Violação no Afeganistão (CC)
(Clicar
nas referências sublinhadas para ter acesso aos textos)
INTRODUÇÃO
Em
23 de Novembro de 2011, o jornal Público divulgou a notícia que transcrevemos a
seguir: http://www.publico.pt/Mundo/a-escolha-de-gulnaz-1522212#Comentarios
A
única forma de Gulnaz ultrapassar a desonra de ter
sido violada, ou de ter incorrido em adultério é casar-se com o seu agressor (DR)
Uma
afegã de nome Gulnaz, de 21 anos, enfrenta um
terrível dilema: ou permanece na prisão com uma filha pequena, cumprindo pena
por ter sido violada por um homem casado, ou contrai matrimónio com o agressor
para poder sair da prisão.
Quando Gulnaz tinha 19 anos foi violada pelo marido de uma das
primas. Dois anos depois, a jovem ainda se recorda dos pormenores do episódio:
“Ele tinha as roupas nojentas, porque trabalha na construção. Quando a minha
mãe saiu, ele veio até minha casa e fechou as portas e as janelas. Eu comecei a
gritar mas ele calou-me, tapando-me a boca com as mãos”, descreveu Gulnaz à CNN.
Depois da violação
não contou a ninguém o que se tinha passado – sabendo que não seria ajudada –
mas depressa a verdade veio à tona: estava grávida.
Acabou por ser
julgada por adultério e condenada a 12 anos de prisão. É lá que está
actualmente, com a sua filha. Cumprem pena em conjunto.
Para sair da prisão,
só tem uma solução: casar-se com o seu agressor. A única forma de uma mulher
afegã ultrapassar a desonra de ter sido violada, ou de ter incorrido em
adultério, é casar-se com o seu atacante.
E é precisamente isto
que Gulnaz está disposta a fazer. “Perguntaram-me se
eu estava disposta a começar uma nova vida de liberdade casando-me com este
homem”, disse a jovem à CNN. “A minha resposta foi que há um homem que me
desonrou e que eu quero ficar com esse homem”.
A jovem diz que na
sua decisão pesa o futuro da filha. Só assim poderão permanecer juntas e em
liberdade.
Mas - adianta a CNN -
a escolha de Gulnaz não a livra de perigo. A família
do atacante ou mesmo a sua própria família poderão querer matar a jovem por ter
desonrado o nome familiar. É muito provável que, mal ponha pé fora da prisão, Gulnaz corra perigo de vida.
Casos como o de Gulnaz são comuns no Afeganistão mas este tornou-se notícia
após uma disputa entre a UE e uma equipa de realizadores contratados pela
própria União Europeia para levarem a cabo uma série de documentários sobre os
direitos das mulheres no Afeganistão.
Os realizadores
fizeram uma extensa reportagem sobre Gulnaz e sobre
histórias de outras mulheres que falaram abertamente para as câmaras, sem
lenços a cobrirem-lhes os rostos, sobre as suas vidas.
Depois de mostrarem
as filmagens aos responsáveis da UE, estes decidiram cancelar o projecto
afirmando que essas mulheres poderiam ser identificadas e sofrer represálias.
Mas os realizadores -
citando um e-mail da UE cujo conteúdo foi parar aos
media – afirmam que o problema está nas relações delicadas entre a UE e o
Afeganistão, que é apresentado de forma muito pouco favorável (especialmente o
seu sistema judicial).
Pode ler-se no e-mail, segundo a CNN: “A delegação tem de considerar as
suas relações com as instituições de Justiça afegãs”.
O embaixador da UE
para o Afeganistão, Vygaudas Usackas,
rejeitou, porém, qualquer motivação política para a suspensão do projecto
documental. “Eu estou realmente preocupado é com a situação das mulheres. Com a
segurança e o bem-estar destas mulheres (...) esse é o critério de acordo com o
qual eu - como representante da UE - irei julgar este caso”, disse o
embaixador, citado pela CNN.
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Provável interpretação do leitor ocidental
Ao
ler esta notícia, publicada no jornal “Público” e possivelmente por outros
órgãos de informação, tive a vulgar reacção dos leitores do mundo ocidental.
Estamos
habituados a relacionar o Afeganistão com o islamismo fundamentalista, e
certamente como muitos outros leitores, pensei que essa atitude insólita das
Autoridades do Afeganistão para com uma jovem que foi violada fosse o
cumprimento de alguma lei do Alcorão.
Mas,
como sou um curioso em teologia, fui investigar no Alcorão e nada encontrei.
Qualquer
dos leitores da minha página na internet, poderá
consultar o Alcorão
Sugiro
que “entre” na secção b) Alcorão com sequência de todos os versículos e utilize a
busca informática procurando palavras ou frases sobre o assunto. Caso encontre
algum versículo que justifique este procedimento, agradeço que me informe, pois
não encontrei.
Também
perguntei ao colaborador desta minha página, o sufita Yiossuf Adamgy que conhece bem
o Islão, que me informou de que nada há no Alcorão que justifique este estranho
procedimento.
Qual a base ou a origem desta atitude
Mas
a verdade é que esta tradição existe e suspeito que tenha algum fundamento
religioso.
Como
nada encontrei no Alcorão, fui procurar no Novo Testamento, que conheço bem
melhor, e como já previa, também nada encontrei.
Só
faltava procurar no Velho Testamento, com que não estou tão familiarizado,
embora saiba onde estão as passagens mais escandalosas.
Foi
lá que encontrei as seguintes passagens: Êxodo 22:16/17 e
Deuteronómio 22:23/29
Vejamos
as passagens na versão “Bíblia de Jerusalém” (a)
Êxodo
22:15/16
Vr.15 Se alguém seduzir uma virgem que não estava comprometida em
casamento, e se deitar com ela, pagará o seu dote e a tomará por mulher.
Vr.16 Se o pai dela recusar dar-lha, pagará em dinheiro conforme o
dote das virgens.
Como
podemos ver pelo contexto destes versículos, Moisés (ou o Deus de Moisés), neste
capítulo, preocupa-se em legislar sobre litígios desse contexto histórico,
determinando as respectivas indemnizações. A preocupação incide somente no
delito e respectiva punição.
Como
podemos ver no contexto destes versículos, logo no início do capítulo Êxodo 22
temos
o caso do ladrão, depois o caso dos animais que foram pastar no terreno do
vizinho, depois o fogo que destrói os bens, os animais roubados, animais
emprestados e danificados. É nesta sequência que aparece o caso da filha que
foi violada. A grande preocupação de Moisés é a perda material do pai da jovem
que se vê prejudicado no que poderia receber quando desse a sua filha em
casamento, pois no Velho Testamento, as jovens não tinham o direito de escolher
o seu marido. Essa escolha era decidida pelos pais e uma esposa, a partir do
seu casamento, deixava de pertencer ao seu pai, passando a pertencer ao marido.
Era na altura do casamento que o noivo deveria pagar ao pai da jovem, pois na
prática tratava-se duma venda. (b)
A
Lei de Moisés não se preocupa em saber se o homem seria solteiro ou casado e
quantas mulheres já tinha, pois no Velho Testamento havia poligamia sem
qualquer limite, nem se preocupa com a vontade de mulher.
Como
podemos ver pelo contexto destes versículos, o problema é visto simplesmente
sob o aspecto economicista em que havia preocupação com um único lesado, que
era o pai da jovem que via desvalorizado o valor da sua filha.
Vejamos
agora a outra passagem em Deuteronómio 22:22/29 na versão “Bíblia de Jerusalém”
Vr.22 Se um homem for pego
em flagrante deitado com uma mulher casada, ambos serão mortos, o homem que se
deitou com a mulher e a mulher. Deste modo extirparás o mal de Israel.
Vr.23 Se houver uma jovem virgem prometida a um homem, e um homem
a encontra na cidade e se deita com ela, Vr.24 trareis ambos à porta da cidade e os apedrejareis até que
morram: a jovem por não ter gritado por socorro na cidade, e o homem por ter abusado
da mulher do seu próximo. Deste modo extirparás o mal do teu meio. Vr.25 Contudo, se
o homem encontrou a jovem prometida no campo, violentando-a e deitou-se com
ela, morrerá somente o homem que se deitou com ela. Vr26 nada farás à jovem, porque ela não tem um pecado que mereça a
morte. Com efeito, este caso é semelhante ao do homem que ataca o seu próximo
para lhe tirar a vida: Vr.27 ele a
encontrou no campo, e a jovem prometida pode ter gritado sem que houvesse quem
a salvasse.
Vr.28 Se um homem encontra uma jovem virgem que não está
prometida, e a agarra e se deita com ela e é pego em flagrante, Vr.29 o
homem que se deitou com ela dará ao pai da jovem cinquenta siclos de prata, e
ela ficará sendo a sua mulher, uma vez que abusou dela. Ele não poderá mandá-la
embora durante toda a sua vida.
Também
nesta segunda passagem, nota-se que o problema é
principalmente económico. Trata-se da defesa da propriedade privada (a mulher)
Enquanto
nos versículos 22 a 27 fala-se em pena de morte, quando chegamos aos versículos
28 e 29, parece que o delito fica reduzido a simples pagamento do dote.
Não
há o problema do homem já ser casado ou ter mais mulheres, pois o Velho
Testamento permite a poligamia sem qualquer limite no número de mulheres.
Não
encontro a mínima preocupação com a vontade da mulher, que nunca é ouvida.
O
problema considera-se resolvido com o pagamento dos cinquenta siclos de prata
ao pai da jovem.
Qual a relação da primeira parte da Bíblia, o Velho Testamento, com
o Islão?
Como
sabemos, Moisés viveu cerca do ano 1200 AC, quando “nasceu” o Judaísmo.
O
Cristianismo vem na sequência do Judaísmo, pois Jesus Cristo nasceu em Israel e
pregou inicialmente aos judeus num contexto cultural judaico.
Certamente
que o Antigo Testamento tem um grande valor histórico e cultural. Mas terá
também valor normativo para cristãos e islâmicos? O verdadeiro cristão é o que
segue a Cristo e só a Cristo, ou será o que segue a Cristo e Moisés? (c)
Ainda
não há unanimidade entre todos os cristãos sobre este ponto. Geralmente as
igrejas evangélicas que defendem toda a Bíblia (Velho e Novo Testamento) como a
Palavra de Deus, eterna e imutável, procuram encobrir estas e outra passagens
mais escandalosas com os planos de leitura de “toda a Bíblia”, onde estas
passagens nunca são mencionadas. O catolicismo e o protestantismo tradicional
têm o leccionário que se repete de três em três anos, onde constam os textos
bíblicos das pregações, que é obrigatório para os sacerdotes católicos e
geralmente seguido no protestantismo tradicional, salvo em casos bem
justificados. Assim, com o passar do tempo, acabou por se formar uma espécie de
cânon do cânon, o leccionário, que não menciona estas passagens que se tornaram
inaceitáveis para quem conhece a mensagem cristã.
O
Islão aparece cerca do ano 570, com a mensagem de Maomé que conhecia tanto o
Judaísmo como o Cristianismo.
Embora
com maior ênfase no Alcorão, o Islão mantem a crença nos antigos profetas de
toda a Bíblia e em Cristo que considera como um Profeta. Muitas das antigas
tradições bíblicas veterotestamentárias tiveram continuidade em algumas seitas
do Islão.
Considero
muito provável que esta atitude das Autoridades do Afeganistão tenha origem
nestas passagens do Velho Testamento, pois eles cumprem o que está nestas duas passagens
da Lei de Moisés. São passagens do Velho Testamento, a primeira parte da
Bíblia, que muitos cristãos consideram como a Palavra de Deus, eterna,
inspirada e inerrante, e que também neste caso influenciou os islâmicos.
Camilo -
Marinha Grande, Portugal
Dezembro
de 2011
Estudos bíblicos sem fronteiras
teológicas
(a).
Ao clicar nas referências bíblicas terá acesso a uma outra versão que nesta
passagem tem diferença de um versículo, ou seja, os versículos 15 e 16
correspondem aos 16 e 17. Como sabem, nos textos originais não havia capítulos
nem versículos.
(b)
Sobre o noivado e casamento, transcrevemos o que o autor Joaquim Jeremias afirma
no seu livro “Jerusalém no tempo de Jesus” no capítulo “A situação social da
mulher”.
O
noivado que precedia o pedido em casamento e a execução do seu contrato, expressavam “a aquisição” (qinyan)
da noiva pelo noivo, e assim a conclusão válida do casamento; a noiva passa a
se chamar “esposa”, pode ficar viúva, é repudiada por um libelo de divórcio e
castigada de morte em caso de adultério. É característico da situação legal da
noiva que “a aquisição” da mulher e a do escravo sejam postas em paralelo:
Adquire-se a mulher pelo dinheiro, contrato e relações sexuais; assim
“adquire-se” também o escravo pagão por dinheiro, contrato de tomada de posse (hazaqah, consistindo para o escravo em fazer, para o novo
patrão, um serviço inerente aos deveres do escravo).
(c)
Sobre este assunto, da posição do cristão perante o Velho Testamento, veja
também os artigos:
Deus do V.T. e Deus de Jesus (DO),
Velho Testamento (Algumas leis
do)
Velho ou Antigo Testamento? (MC)
Velho Testamento - Porque não o sigo (DO)
Velho Testamento
(Que fazer com o…) (CC)
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