Navegação à vela no Atlântico (CC)

 

 

1 - Introdução

 

Acabo de regressar a casa, em Portugal, depois de mais uma viagem a Goa.

Foi uma viagem incómoda, com duas paragens no caminho, para mudar de avião e outras tantas demoras nos aeroportos à espera de ligação ao avião seguinte. Depois de feitas as contas do tempo gasto na viagem, contas não muito fáceis devido às diferenças horárias, considerando a saída da Marinha Grande pois não moro em Lisboa e também a viagem do aeroporto de Dabolim em Goa, até à praia de Benaulim onde fiquei, em casa dum amigo, tudo isso dá bem mais de 24 horas de viagem. Tempo demasiado para quem viaja com a família e um netinho de três anos.

Isto levou-me a pensar no que seriam as grandes viagens do passado, e também a rever o conceito de distância, e como medir uma distância? Será que nos interessa medir em quilómetros? Em horas de voo? Em número de aeroportos utilizados pelo caminho?

 

 

2 - Grandes viagens do passado

 

Dos séculos XV, XVI, até praticamente meados do século XX, uma viagem de Lisboa a Goa, seria certamente por mar. O tempo da viagem seria determinado, não tanto pela distância, mas pelos ventos e correntes marítimas.

Sobre o assunto, acabo de publicar o interessante estudo do Meteorologista Manuel Monteiro Correia, com o título O observador meteorológico português nos descobrimentos e na colonização, cuja leitura aconselho, antes de ler o presente artigo.

O Dr. Monteiro Correia, após ter prestado apoio com informação meteorológica a muitos comandantes de aviação, lembrou-se de pegar no seguinte tema: Se aparecesse o próprio Vasco da Gama a perguntar qual a melhor rota e época do ano para chegar à Índia, e depois a rota para regressar a Portugal, o que lhe diria, numa época em que a Meteorologia dispõe de estações de observação em todo o mundo, comunicações em tempo real, incluindo as estações de radar e fotos dos satélites?

Afinal, acaba por concluir que Vasco da Gama escolheu praticamente a rota correcta. A única sugestão seria continuar a navegar mais uns dias ao longo da costa brasileira, antes de atravessar o Atlântico a caminho do sul do continente africano ou procurar uma rota mais para sul durante essa travessia do Atlântico, evitando assim a navegação à bolina a que se viu obrigado para chegar à Baía de Santa Helena.

Depois de publicar o artigo do Dr. Manuel Monteiro Correia, que nessa altura (ano de 1983) exercia as funções de Director do Centro Meteorológico da cidade da Beira, em Moçambique, resolvi abordar certos aspectos da navegação à vela no Oceano Atlântico, neste artigo que considero um complemento do artigo principal do Dr. Manual Monteiro Correia, nosso Director, pois nessa época eu era um dos observadores do Serviço Meteorológico de Moçambique.

Assim, aconselho em primeiro lugar a leitura do artigo que mencionei, sobre o observador meteorológico português nos descobrimentos e na colonização.

 

 

3 - Contexto histórico de Vasco da Gama

 

Numa época em que as especiarias, utilizadas não só na alimentação dos reis e dos mais abastados, como para a medicina, pois parece que só medicamentos com os rótulos de “indicum” ou “arabicum” surtiam efeito, o preço da pimenta, cravinho, noz-moscada, gengibre, canela, incenso e muitas outras especiarias, desconhecidas da maior parte da população, era exorbitante e o mesmo acontecia com o tecido exótico chamado seda, vindo da longínqua China, cujo sistema de fabrico era desconhecido na Europa.

Devido às dificuldades e perigos do transporte e aos direitos alfandegários das inúmeras fronteiras desde a Índia ou a China até à Europa, fronteiras dos vários países indianos, árabes, ou europeus, incluindo as repúblicas italianas que as transportavam pelo Mediterrâneo, onde tinham o monopólio do seu comércio, o custo das especiarias atingia valores altíssimos.

Assim, o objectivo de Portugal era nitidamente comercial. A intenção dos reis de Portugal não era primariamente a descoberta de novos povos ou a sua evangelização, como foi apresentado ao povo e assim ficou registado na História Universal, mas a descoberta duma outra rota para as especiarias orientais, concentrando todo o comércio das especiarias e da seda em Portugal.

As terras descobertas ao longo da costa africana e da costa brasileira, inicialmente só tinham interesse para a construção de fortalezas onde os barcos tivessem apoio garantido para se abastecerem de água e legumes frescos, e se fosse no regresso a Portugal, também teriam interesse alguns escravos desses povos desconhecidos na Europa, certamente muito mais valiosos que o vulgar escravo europeu, pelo seu exotismo e mais tarde, para trabalhos agrícolas, nomeadamente nas plantações da Ilha da Madeira. Na cidade de Lagos, no Algarve, bem no sul de Portugal, o Município ainda preserva o edifício histórico onde funcionava o antigo mercado de escravos.

 

 

4 - Aspecto técnico

 

Quase todo o nosso mundo lusófono conhece a história dos descobrimentos portugueses, mas ignora os pormenores do grande aperfeiçoamento da arte de navegar que tornou possíveis tais viagens. Eles navegaram em águas desconhecidas mas tiveram o cuidado de registar diariamente as condições meteorológicas, nomeadamente a direcção e intensidade dos ventos.

Como já exerci a profissão de observador meteorológico, sinto-me feliz pela grande contribuição que esses meus colegas da minha primeira profissão deram aos descobrimentos portugueses.

Mas o pormenor que considero mais importante foi a caravela, que substituiu as velas redondas por velas que, se ainda não são bem velas latinas, são pelo menos o meio caminho para as actuais velas latinas, o que permitiu a navegação à bolina.

Nos meus tempos de jovem, pratiquei o desporto da vela, tenho a carta de patrão de embarcações de recreio, mas para que todos percebam estes pormenores, vou tentar explicar com umas ilustrações.

Como se pode ver na foto da página na internet http://stephanebeau.free.fr/Sommaire.P/baPpg/baP1.html, há dois tipos de velas. As chamadas “velas redondas”, aproximadamente rectangulares, prendem-se a uma “verga”, termo náutico que designa a peça horizontal, geralmente de madeira que se apoia no mastro, onde se prendem as velas, enquanto as velas latinas, geralmente triangulares, têm uma das suas faces no centro do barco, geralmente adjacentes a um mastro.




 

 

Assim, a embarcação da foto da esquerda, embora tenha os dois tipos de velas, as principais, são velas redondas, enquanto a embarcação da foto da direita só tem velas latinas.

Na foto seguinte, podemos ver mais em pormenor a verga duma barca. Foto tirada há mais se 50 anos ao largo da antiga Lourenço Marques, actual Maputo, a capital de Moçambique. (a)

 

 

 

 

 

Duma maneira geral, pode-se dizer que o barco de vela redonda é mais apropriado para navegar a favor do vento ou de vento em popa, e o de vela latina permite a navegação à bolina, ou seja, contra o vento. Pela página http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/a00.html poderão saber os nomes que se dão em náutica às várias posições do barco em relação ao vento.

 

 

5 – Caravela

 

Até Portugal dar início às grandes navegações, para chegar à Índia por mar, praticamente todas as embarcações eram de vela redonda. Os barcos dos antigos gregos e romanos, eram geralmente a remos e as pequenas velas só eram utilizadas quando houvesse vento favorável. Segundo podemos ver na página da internet http://www.rtalgarve.pt/NR/rdonlyres/71E3CAE6-1267-44BB-8746-47CAD4EE5A8C/0/folheto_caravela.pdf que relaciona a caravela portuguesa com o aperfeiçoamento dum veleiro árabe, a caravela pode-se considerar de vela latina, pois a verga já não está na horizontal e pode ficar quase na vertical, junto aos mastros. O importante é que uma das faces da vela esteja no centro da embarcação.

 

 

 

 

 

 

6 - Navegar à bolina (contra o vento).

 

Esta afirmação poderá parecer estranha a quem não souber velejar.

Propriamente contra o vento, não é possível, mas pode navegar à bolina, como exemplificado na página que indiquei, e mudando de bordo, isto é, invertendo várias vezes a sua posição em relação ao vento, conseguem ir em sentido contrário ao do vento.

No desenho seguinte, procurarei explicar como se efectua esta navegação à bolina, com ângulos que conseguem ser inferiores a 45 graus em relação à direcção do vento. 

 

 

 

 

 

Na figura F1, o vento com a direcção V1, incide na vela do barco e é desviado para a direcção V2, dando origem à força VR aproximadamente na bissectriz da direcção das forças V1 e V2.

Mas, a navegação à bolina, não pode ser explicada somente pelo tipo de velas, como por vezes se tem tentado fazer, pois certamente que um barco que não tivesse o casco apropriado para a navegação à vela, como o caso duma jangada ou duma chata (barco de fundo chato), seriam arrastados nessa direcção da força resultante VR.

Peguemos agora na força VR, que repetimos na figura F2.

O navio à vela, tem uma quilha funda (figura F3) devidamente localizada em relação à posição das velas ou um patilhão (figura F4), chapa metálica ou de madeira, por vezes com um lastro (peso) na parte inferior, que dá uma grande resistência à deslocação lateral do barco, que assim praticamente só se move para avante ou para a ré. Na figura F2, essa resistência à deslocação lateral do barco, exercida pela quilha ou patilhão, está representada pela força FQ, que em conjunto com a força VR já referida, dá a resultante final R, a força útil que impulsiona o barco para avante. Assim, o barco, embora não possa navegar rigorosamente contra o vento, pode ir para a direcção de onde vem o vento, utilizando a técnica de bordejar, isto é, virando de bordo (inversão da sua posição em relação ao vento) várias vezes, como fez Vasco da Gama, quando viu que não conseguia atingir directamente a Baía de Santa Helena, no sul da costa africana, como se pode ver na rota da sua armada, no desenho seguinte.

 

 

 

 

É esta, em linhas gerais, a explicação mais simples que me foi possível apresentar a quem não esteja familiarizado com a navegação à vela.

Apresentei o exemplo mais simples do barco só com uma vela. Certamente que em veleiros com vários panos, a resultante de todas as forças exercidas nas velas, deverá passar na vertical do patilhão ou da quilha do barco, pormenor que é “sentido” pelo timoneiro, pela tendência do barco em orçar (aproximar-se da direcção do vento) ou arribar (desviar-se para o lado contrário). Também não considerei a influência do movimento do barco no vento aparente, pois o veleiro reage, de acordo com o vento aparente, cuja intensidade diminui com a navegação com vento em popa e não só aumenta com a navegação à bolina, como a sua direcção se torna mais desfavorável.

Falta também mencionar a influência das correntes marítimas, que geralmente tem a mesma direcção dos ventos. No Atlântico Norte um movimento circular no sentido dos ponteiros do relógio à volta do anticiclone dos Açores e no Atlântico Sul também um movimento circular, mas em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio centrado aproximadamente na Ilha de Santa Helena.   

Portanto, quando Vasco da Gama se viu a sotavento da baía de Santa Helena, se não fossem as caravelas, o único barco que nessa época conseguia navegar à bolina, seria o fim das suas descobertas, pois os ventos e correntes marítimas o obrigariam a regressar a Portugal.

 

 

7 - Conclusão

 

Este tipo de artigos nunca pode ter uma conclusão, pois muitas perguntas ficam sempre por responder, em especial a grande dúvida que tem intrigado os investigadores através dos tempos.

Será que foi Pedro Álvares Cabral quem descobriu o Brasil, só no ano de 1500, depois da descoberta da costa de Moçambique de depois de Vasco da Gama ter chegado à Índia em 1498?

Parece estranho, pois para a navegação à vela, o caminho para Moçambique e para o Oriente, passava pelas proximidades da costa do Brasil, como se pode verificar pela carta dos ventos predominantes.

Esse será possivelmente o assunto do nosso próximo artigo.

 

Camilo – Marinha Grande, Portugal

Junho de 2009

 

 

 

(a) Eu também estou nessa foto e sou esse jovem mais alto e magro à esquerda, pouco à vontade com este tipo de embarcação, não só devido à altura em que estávamos, mas principalmente ao baloiçar da barca ao sabor da ondulação. Estava cheio de medo (ainda bem que isso não se vê na foto). Os barcos que utilizávamos na antiga Mocidade Portuguesa de Moçambique eram o polana (versão melhorada do lusito), o snipe com patilhão móvel, estai e vela grande, para dois tripulantes, e o viking de regatas, com patilhão fixo, estai, vela grande latina quadrangular e balão para vento em popa, para três ou quatro tripulantes. Todos eles, barcos bem pequenos a comparar com esta barca onde tiramos esta foto.   

Depois dos 50 anos que passaram, já perdi o contacto com a maioria desses jovens do meu tempo e possivelmente muitos já faleceram, mas aos sobreviventes, peço o favor de me contactarem pela internet, se virem esta foto.

 

 

 

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