O OBSERVADOR METEOROLÓGICO PORTUGUÊS NOS DESCOBRIMENTOS E NA COLONIZAÇÃO

Por: Manuel Monteiro Correia

 

 

1. Aproveitando o facto do Dia Meteorológico Mundial (23 de Março) do ano corrente (a) ter sido dedicado ao observador meteorológico e, ainda, a oportunidade de ter sido inaugurada em Lisboa, em Maio deste mesmo ano, a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, patrocinada pelo Conselho da Europa e dedicada aos Descobrimentos Portugueses e à Europa do Renascimento, parece ser altura de conhecer um pouco o papel relevante que o observador meteorológico português desempenhou durante os Descobrimentos e, a seguir, na Colonização dos vastos territórios, até então, desconhecidos do Ocidente.

 

2. Pedro Nunes no “Tratado em defensam das cartas de marear” afirmava que “os descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar; mas partiram os nossos mareantes mui ensinados...”.

Com efeito, além das viagens normais, os portugueses efectuaram missões de puro reconhecimento e estudo, visando sobretudo a Oceanografia e a Meteorologia, disciplinas de que muito depende a navegação à vela. Viagem após viagem, os resultados das observações eram cuidadosamente analisados e discutidos, com vista à obtenção de um melhor rendimento futuro.

Os portugueses aperfeiçoaram o astrolábio, o que lhes permitiu um maior rigor na determinação das posições; melhoraram o velame para conseguir um melhor aproveitamento do vento; aprenderam a bolinar; modificaram os tipos das embarcações, passando das primitivas barcas às caravelas e, mais tarde, às naus.

 

3. O anticiclone dos Açores provoca no Atlântico-Norte um regime de ventos dominantes como a Figura l indica. Se os ventos dominantes norte e nordeste junto à costa africana facilitavam a tarefa das tripulações durante a ida, no regresso as dificuldades eram enormes.

Mas muito cedo os portugueses se aperceberam do regime dos ventos na região e começaram a praticar, na vinda, uma rota em arco que passava nas proximidades dos Açores, onde vinham procurar ventos favoráveis que muito os ajudavam a chegar a Lisboa. Esta rota ficou a ser conhecida por “Volta da Mina”, por ser a rota utilizada na viagem de regresso da Mina, estabelecimento português no Golfo da Guiné.

Por sua vez, o anticiclone de Santa Helena provoca no Atlântico-Sul um regime de ventos semelhantes ao do Atlântico-Norte, mas há, agora, a particularidade do vento soprar em sentido contrário (Figura 1).

Afastando-se cada vez mais para sul, as embarcações começavam a encontrar vento desfavorável no Golfo da Guiné e, a partir da costa angolana, em regra, o vento aumentava de intensidade.

Bartolomeu Dias, a partir de certa altura da viagem, já depois de ter ultrapassado aquela costa, encontra vento contrário extremamente forte. Para vencer a dificuldade, faz-se ao largo e navega, em arco, primeiro para oeste, depois para sudoeste e, a seguir, para sul. Por fim, encontra ventos gerais de oeste que o levam, com facilidade, ao Oceano Índico. A rota que seguiu nessas paragens foi uma réplica da “volta da Mina”, mas executada em sentido contrário, atendendo ao regime dos ventos na região (Figura 1).

 

 

 

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4. Dobrado o Cabo da Boa Esperança, começa D. Joio II a preparar nova expedição que, tudo indicava, levaria finalmente os portugueses à Índia.

Dado que o vento encontrado por Bartolomeu Dias sugeria a ideia de um regime de ventos no Atlântico-Sul análogo ao do Atlântico-Norte, embora soprando em sentido contrário, não deixariam de se efectuar expedições destinadas a comprovar esta ideia. Interessava, sobretudo, investigar o que se passava a sudoeste de Cabo Verde. Uma caravela, nesta missão, poderia ter chegado ao Brasil. Mera hipótese de que não há qualquer prova documental.

Mas do que não restam dúvidas é que a faixa oeste do Atlântico-Sul se transformou rapidamente, pelo conhecimento dos ventos aí dominantes, numa zona de capital importância para Portugal. Por lá haveriam de vir a passar as expedições em demanda da Índia. E se nessas paragens existissem ilhas ou terras continentais, tanto melhor, pois serviriam para edificar bases de protecção, reabastecimento e manutenção.

Daí o grande interesse, o grande “segredo” de D. João II, ao pretender aumentar para oeste a zona de influência portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas, de 7 de Junho de 1494, fosse ou não do seu conhecimento a existência de terras naquela região. Como Damião Peres afirma em “Os Descobrimentos Portugueses”: “Pugnando por uma divisão mais ocidental... D. João II reduzia, correlativamente, o campo de acção portuguesa no Extremo Oriente, obtendo como compensação dessa renúncia, o simples domínio de águas do Atlântico. Talvez disso intimamente se sorrissem os Reis Católicos, porque ignoravam que dessas águas, as do Sul, desafrontadas de qualquer domínio estrangeiro, precisava a navegação portuguesa, pois decerto já então estava estudada a futura rota para a Índia, que no seu troço atlântico se traçava muito ao largo da costa africana”.

Quem, desapercebidamente, analisar a parte atlântica da rota de Vasco da Gama (Fig. 1) na sua viagem à Índia, já no tempo de D. Manuel I, poderá concluir que, na ida, seguiu uma rota de acaso ou andou perdido. Ora, tanto na ida, como no regresso, as rotas seguidas haviam sido conveniente e previamente determinadas. Importava-lhe, sobretudo, evitar os ventos contrários e aproveitar os ventos favoráveis, o que soube fazer com toda a mestria. Vasco da Gama não descobriu “apenas” o caminho marítimo para a Índia. Graças ao prévio conhecimento do regime dos ventos no Atlântico, ele abriu a rota “certa” que tantas expedições futuras viriam a sulcar. 

Bem merecem a nossa homenagem os ignorados e esforçados técnicos, investigadores, cientistas e observadores meteorológicos que tornaram possível a epopeia maravilhosa dos descobrimentos.

 

5. Muitas vezes comparam-se os feitos de Colombo com os de Vasco da Gama, saindo desse confronto quase sempre enaltecido o navegador genovês, aliás mais conhecido mundialmente do que o português.

A verdade é que ao chegar às Antilhas, Colombo determina a sua posição com erros grosseiros. Julga-se em Cipango (Japão) e morre sem ter compreendido que nunca estivera no Extremo Oriente. Vasco da Gama, pelo contrário, depois de ter descrito no Atlântico-Sul uma rota em arco bem afastada da costa africana, chega à Baía de Santa Helena onde o seu piloto-mor, Pêro Dalenquer, determina a distância que o separa do Cabo da Boa Esperança, por processos astronómicos, com uma precisão notável para a época.

Colombo descobre, por acaso, as Antilhas e toca no continente americano vendo, assim, premiada a sua aventura. A chegada de Gama à Índia premeia um século de esforços, sacrifícios, estudos e notáveis realizações.

 

6. Camões, em “Os Lusíadas”, presta homenagem a tenacidade dos portugueses e à sua ciência e poder inventivo:

 

E, para que mais certas se conheçam

As partes tão remotas onde estamos

Pelo novo instrumento do astrolábio

Invenção de sutil juízo e sábio

(Canto V, 25)

 

O próprio Camões foi um observador meteorológico exímio, como o provam as soberbas descrições dos acidentes meteorológicos na viagem de Vasco da Gama e que só podem ser fruto da própria experiência durante a sua viagem ao Extremo Oriente.

Com efeito, a armada navegou sob

 

Tantos climas e céus experimentados

Tanto furor de ventos inimigos

(Canto I, 29)

 

E outras vezes

 

Tão brandamente os ventos os levaram

Como quem o céu tinha por amigo;

Sereno o ar e os tempos se mostraram

Sem nuvens, sem receio de perigo

(Canto I, 43)

 

Ou, ainda, durante a tempestade que suportaram já prestes a chegar à Índia e que pôs a armada em perigo:

 

Os ventos eram tais, que não puderam

Mostrar mais força de ímpito cruel

(Canto VI, 74)

 

Da fala de Gama, ressalta a importância em que eram tidos os fenómenos meteorológicos, o que não admira, uma vez que, como já vimos, deles dependia o rendimento e a segurança das expedições. Assim, depois de

 

Contar-te longamente as perigosas

Cousas do mar, que os homens não entendem

Súbitas trovoadas temerosas,

Relâmpagos que o ar em fogo acendem

Negros chuveiros, noites tenebrosas,

Bramidos de trovões, que o mundo fendem

(Canto V, 16)

 

Refere-se ao fogo do S. Telmo e descreve uma tromba marítima com um realismo impressionante, entusiasmando-se perante o acontecimento:

 

Vejam agora os sábios na escritura

Que segredos são estes da Natura"

(Canto V, 22)

 

7. À preparação científica dos descobrimentos, seguiu-se o estudo das regiões descobertas. Vejamos alguns exemplos que bem ilustram a competência e espírito de bem servir que animava os portugueses.

7.1. D. João de Castro que foi discípulo de Pedro Nunes deixou em três “Roteiros” os resultados das suas observações náuticas, magnéticas, hidrográficas e meteorológicas, executadas nas viagens que fez ao Oriente. Como diz Nordenskjold: “Como navegador, hidrógrafo e observador, ninguém o excedeu até ao tempo de Barents, Linshoten, Hudson e Davis".

7.2. Tendo o capitão Távora seguido para a Ilha de Moçambique, deixara a Fortaleza de Sofala entregue ao preboste João Vaz de Almada que, por carta, informaria o rei dos acontecimentos do dia 29 de Fevereiro de 1516, como segue:

Amanhecente amanheceo num tempo tam forte do sull que me parecya que me queria levar o castelo e durou hobra de quatro ou cynquo horas em que me derrybou e, de seguida, enumera circunstancialmente os estragos ocorridos. A certa altura, volta à descrição do temporal: Y este vento acallmou em tanta maneyra que huma ora boa ou ora e meya nam bullya as palhas do cham. E tanto que passou ysto acude logo do norte que nada foy ha sull e ho que deixou em pé a yda tornou a derrybar... e relata os novos estragos provocados pelo temporal.

Repare-se que a observação meteorológica é tão cuidada que, hoje, podemos reconstituir, com exactidão, o que se passou naquele fatídico dia: o centro de uma destruidora depressão tropical, vinda do Oceano Índico, passara exactamente sobre Sofala.

7.3. As expedições científicas portuguesas na região africana entre Angola e Moçambique, nomeadamente as viagens de Capelo e Roberto Ivens (1877-79) e (1884-85). Serpa Pinto (1878-79) e Henrique de Carvalho (1884-88) foram um contributo muito importante para o conhecimento das condições meteorológicas naquela região, tendo sido os mapas com os resultados das observações arquivados no Observatório do Infante D. Luís.

7.4. Tem também interesse referir a causa que levou à criação da primeira estação meteorológica da Beira. Inaugurado o Porto Militar de Aruângua (1887), o desenvolvimento da insignificante povoação que mais tarde se viria a chamar Beira em homenagem do Príncipe da Beira, Luís Filipe, foi de tal ordem que cedo começou a suscitar as invejas que sempre acontecem em tais circunstâncias. Assim, em 1892, os habitantes de Chiloane dirigiram uma petição ao Governador do Território de Manica e Sofala em que se protestava contra a atenção que se dava a uma terra que "nada merecia e nada valia devido ao seu clima".

Para demonstrar o contrário, aquele governador determinou a criação de uma estação meteorológica que entrou em funcionamento em 1893. E aí está, hoje, a moderna cidade da Beira que tanto deve à sua primeira estação meteorológica, demonstrando a razão que assistia ao Governador do Território de Manica e Sofala.

 

8. O observatório meteorológico criado em 1853 na Escola Politécnica de Lisboa passou, por decreto de l de Julho de 1856 a designar-se “Observatório do Infante D. Luís”, com as funções, entre outras, de estabelecimento central da rede meteorológica nacional. Orientava a instalação de estações meteorológicas na Metrópole, no Ultramar e a bordo de navios, difundia instruções às estações meteorológicas e publicava os resultados das observações nos seus “Anais”.

Após a criação do Serviço Meteorológico Nacional (1946), a Lei n2 2042, de 17 de Junho de 1950, estabeleceu em cada uma das, então, províncias ultramarinas, um serviço meteorológico subordinado ao governo local e tecnicamente integrado no Serviço Meteorológico Nacional que publica nos seus “Anuários” os resultados das observações executadas nas estações meteorológicas daqueles serviços.

No Ultramar, a acção do Observatório do Infante D. Luís, digna do maior realce, não se faz esperar.

Em Cabo Verde, há resultados de observações meteorológicas desde 1864 executadas na cidade da Praia, desde 1872 na Ribeira Grande e, desde 1884, no Mindelo.

A primeira estação meteorológica da Guiné foi instalada em 1907, em Bolama, na Capitania do Porto.

Em S. Tomé as primeiras observações meteorológicas datam de 1858, embora só a partir de 1872 tenham sido publicados os seus resultados com certa regularidade.

Em 1857 começaram a executar-se observações regulares em Luanda, onde em 1879 foi criado o Observatório Meteorológico de João Capelo. Em Angola há ainda resultados de observações antigas executadas no Ambriz (1893) e em N'Dalla-Tando (1899).

Em Moçambique, o capitão-tenente Augusto de Castilho executou observações meteorológicas na, então, Lourenço Marques (1876-78). Ainda na capital, funcionaram estações meteorológicas na Missão Suíça (b) (1896), na Capitania do Porto (1906) e, a partir de 1909, no Observatório Campos Rodrigues. Fora da capital, as observações mais antigas referem-se ao Ibo (1882), Quelimane (1885), Beira (1893) e Ilha de Moçambique (1896).

Em 1860 começou a funcionar em Goa, na Escola Matemática e Militar, uma estação meteorológica que foi elevada à categoria de observatório em 1871,

Em Macau executaram-se observações meteorológicas no Hospital Militar (1862-66) e na Capitania do Porto, a partir de 1881, estação esta que foi elevada à categoria de observatório em 1900 e transferida para instalações próprias em 1904.

Em Timor as primeiras observações datam de 1861-63, seguindo-se períodos de grande irregularidade na sua execução.

 

9. Instaladas as primeiras estações meteorológicas, outras se seguiram, formando uma rede que rapidamente se adensou e que foi a base dos serviços meteorológicos modernos e eficientes que se viriam a estabelecer em todos os territórios.

Ao observador meteorológico português que, tantas vezes, sem as mínimas condições de conforto, colaborou activamente na epopeia dos descobrimentos, deu a conhecer ao Mundo as condições climáticas de várias regiões e deixou aos novos países de língua oficial portuguesa uma riqueza incalculável, publicada nos respectivos anuários climatológicos, aqui se deixa esta singela homenagem.

 

 

Manuel Monteiro Correia (c)

Beira, Moçambique

 

BIBLIOGRAFIA

AMORIM FERREIRA - A Meteorologia no Ultramar Português

GAGO COUTINHO - A Náutica dos Descobrimentos

DAMIÃO PERES - Os Descobrimentos Portugueses

 

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Foto do autor em Janeiro de 2014

 

 

 

(a) Este artigo, escrito na cidade da Beira, em Moçambique, em finais da década de 60, foi publicado em Lisboa, Portugal em 1983.

(b) Esta Missão Suíça é uma missão protestante Presbiteriana no sul de Moçambique, que funciona desde 1878.

(c) O Meteorologista Dr. Manuel Monteiro Correia era nessa época, finais da década de 60, quando escreveu este artigo, o Director do Centro Meteorológico da cidade da Beira, em Moçambique.

 

 

Comentários recebidos

 

Victor Francisco – Industrial da Marinha Grande, Portugal

Amigo e senhor Camilo

Bom dia

Achei um relato histórico empolgante e realmente não tinha ideia de toda essa preparação e estudo anterior ás grandes viagens. Estava mais inclinado para algum conhecimento e um pouco do acaso.

Sim senhor uma lição de história que faz inveja aos portugueses de hoje . . .

Com um saudoso abraço

Victor Francisco

 

 

Afonso Felício – Porto, Portugal

Caro Amigo Camilo

Excelente artigo, numa área de conhecimento deveras interessante. Chamou-me a atenção o facto de saber que se estudava e planeava cuidadosamente, tal como o Autor do artigo destaca.

Cumprimentos amigos do

Afonso Felício