Não
há no Alcorão pena capital para apostasia (YA)
A intolerância revela ignorância relativamente ao Islão
Embora os Muçulmanos se
queixem da incompreensão Ocidental para com o Islão, certa interpretação
errónea dos textos sagrados prevalece, infelizmente, em algumas mentes
Muçulmanas.
Matar uma pessoa devido à sua
escolha intelectual-religiosa, contradiz toda a essência dos princípios
Islâmicos de liberdade de religião e de culto, repetidamente acentuada no Alcorão
e na prática do Profeta Muhammad (p.e.c.e.).
Não existe compulsão na
Religião. O facto de uma pessoa abandonar a fé Islâmica, trocando-a por uma
outra, representa um grave pecado. Trata-se de uma violação clara do pacto
individual firmado com Deus; contudo,
tal não viola, seja de que forma for, a Lei Islâmica. O Alcorão condena
repetidamente aqueles que trocam a fé Islâmica por uma outra, avisando-os do
severo castigo que os espera no Dia do Juízo Final. Contudo, o Alcorão nunca determinou um castigo mundano para os
apóstatas. Consequentemente, caso um Muçulmano pretenda mudar de fé, pode
fazê-lo. A crença, por definição, emana do coração da pessoa.
O Islão não deixa qualquer
margem de dúvida ao dizer que a fé é uma questão de escolha e convicção pessoal;
consequentemente, poder compulsório algum poderá ser
usado para obrigar uma pessoa a adoptar uma determinada fé ou impedi-la de
mudar de credo.
É dito o seguinte no Alcorão:
«Não há imposição quanto à religião». (2:256).
«Dize-lhe: A Verdade emana do vosso
Senhor; quem quer crê e quem não quer não crê …» (18:29)
«Se Deus quisesse, todos os que estão sobre a Terra creriam.
Queres (ó Muhammad) obrigá-los a tornarem-se crentes? Na verdade, não é dado a
ser nenhum crer sem a anuência de Deus. Ele lançará a sua indignação sobre
àqueles que não raciocinam». (10:99-100).
«Na verdade, temos-te revelado o Livro, para (instruíres) os
humanos. Assim, pois, quem se encaminhar, será em benefício próprio; por outra,
quem se desviar, será em seu próprio prejuízo. E tu não és guardião deles». (39: 41).
«Admoesta, pois, porque és tão-somente um admoestador! Não és,
de maneira alguma, guardião
deles». (Alcorão 88:
21-22).
Em obediência a esta
orientação Alcorânica, o Profeta Muhammad (p.e.c.e.)
nunca castigou ninguém por abandonar o Alcorão.
Isto é prova evidente que
Muhammad não pretendia castigar ninguém devido à sua escolha espiritual e
intelectual.
Se houvesse um castigo
mundano para os apóstatas do Islão, o Profeta Muhammad (p.e.c.e.)
teria sido o primeiro a aplicá-lo. Contudo, era do seu conhecimento que Deus
não lhe havia confiado uma tal autoridade.
Consequentemente, julgamentos referentes à fé deverão ser
remetidos a Deus, que os avaliará no Dia do Juízo Final.
Traição versus Apostasia
Existe uma determinada
questão susceptível de ser colocada: se o Alcorão afirma explicitamente a
liberdade de fé, porquê toda esta controvérsia em torno da matança de
apóstatas?
O problema teve início com a
má interpretação de alguns Ahadices [ditos do Profeta Muhammad (p.e.c.e.)],
e onde era sugerida a pena capital como castigo para a apostasia.
Contudo, o que o Profeta (p.e.c.e.) pretendia dizer com estes Ahadices nada
tinha a ver com escolhas intelectuais relativas à fé; referia-se, sim, à traição
política e à insubordinação militar dentro da comunidade, e com a qual Muhammad
(p.e.c.e.) se preocupava, visto tratar-se de algo que
fazia parte da sua responsabilidade política.
A fonte desta confusão
encontra-se no facto do termo “apostasia” (riddah em Árabe) ser usado na Escritura Islâmica com dois sentidos diferentes: o
primeiro, tem a ver com a apostasia pessoal, o que
se trata de uma escolha intelectual-religiosa e não é castigada pelo Islão. O que é pedido a todos os Muçulmanos
que façam, relativamente àquele que decide abandonar a sua fé, é que o recordem
do pacto sagrado que tem para com o seu Criador (Deus), e que o aconselhem a
arrepender-se.
O outro uso do termo tem a ver com a apostasia político-militar, o que inclui a
rebelião face à paz social da sociedade e o seu legítimo governo. Toda a pessoa
considerada culpada de tal crime é julgada e punida segundo a Lei Islâmica, a
menos que se arrependa e se entregue às autoridades. Este tipo de apostasia é o equivalente àquilo a que hoje chamamos “alta
traição”.
Trair a sociedade, através de
actos de alta traição e rebelião militar contra a paz e a harmonia, é punível
por todas as leis divinas e seculares. Quanto a isto, a Lei Islâmica não
constitui excepção.
Segundo os versículos
citados, a liberdade de religião e de consciência são inerentes ao Islão. Ninguém pode obrigar ninguém a acreditar ou
a manter-se à força no Islão. Uma pessoa forçada a aceitar uma religião não
se converte por isto nem num mumin (crente) nem num muslim
(muçulmano), porque estas palavras não designam em absoluto os que seguem
nominalmente uma religião histórica concreta, mas aqueles que se confiam e se
entregam a Deus conscientemente (de facto, no Alcorão mencionam-se mumin doutras
religiões, não só muçulmanos). Os teólogos do Islão concordam no facto de que é
completamente irracional pensar que se pode impor a fé. (a)
Eis alguns comentários
clássicos sobre o versículo 2, do capítulo 256: «Não há imposição quanto à
religião»:
Az-Zamakhshari:
“O Islão não há-de ser imposto nem pela coação nem pela violência, mas o povo
há-de aceitá-lo conscientemente e com plena liberdade”. (b)
Al-Baidawi:
“Não há coerção em religião… porque, estritamente falando, coagir é querer
impor a uma pessoa algo que não lhe apetece em absoluto”. (c)
Ibn Kaçir: “Não se
há-de obrigar ninguém a abraçar o Islão: o Islão é, por si próprio, uma prova
clara e manifesta, os seus argumentos fazem-se evidentes para o espírito; não
há nenhuma necessidade, então, de obrigar ninguém a aceitá-los. Pelo contrário:
o coração daquele que Allah guia para o Islão
alarga-se, e o olhar ilumina-se até o ponto de que o Islão se lhe aparece como
toda uma evidência. Muito diferente é o caso daquele cujo coração Allah cega e cujos olhos e ouvidos fecha: nenhuma coação
nem violência lhe farão converter-se em muçulmano!”. (d)
Existem dados que sugerem que
o Profeta Muhammad (p.e.c.e.) permitiu, a alguns
judeus que se reconheceram muçulmanos, voltar ao judaísmo e que não castigou em
absoluto os beduínos que voltaram à sua fé pagã depois de se terem feito
(nominalmente) muçulmanos. Até Ibn Taimiya, assinalado habitualmente como partidário da pena
de morte para quem abandona o Islão, dá testemunho de que o Profeta Muhammad (p.e.c.e.) permitiu a diferentes pessoas abandonar o Islão
sem pôr problema nenhum. (e)
Como se não fosse pouco, a
referência a pessoas que abandonam o Islão aparece no Alcorão pelo menos treze vezes, sem que se prescreva
nenhuma pena legal: (Ver Alcorão, 3:86-90).
Existe um versículo no qual
se aconselha ao próprio Profeta (p.e.c.e.) a atitude
que deve manter para os que renegam do Islão:
«Quanto àqueles que crêem e, em seguida, negam, voltam a crer e
depois renegam, aumentando assim a sua descrença, é inadmissível que Deus os
perdoe ou os guie por senda alguma». (4:137).
Deus não diz ao Profeta (p.e.c.e.) que
os castigue ‘nesta vida’, mas que lhes anuncie o castigo de Deus ‘no Além’. Noutro lugar, o Alcorão deixa aberta a
possibilidade de que, após a morte do Profeta (p.e.c.e.),
alguns dos seus seguidores abandonassem o Islão, sem que se prescreva pena
nenhuma:
«Muhammad não é senão um Mensageiro, a quem outros mensageiros
precederam. Porventura, se morresse ou fosse morto, voltaríeis à incredulidade?
Mas quem voltar a ela em nada prejudicará Deus; e Deus recompensará os
agradecidos». (3:144).
Se Deus tivesse estabelecido a pena de morte para os que abandonam
o Islão, sem dúvida estes e outros versículos que tratam sobre o assunto o reflectiriam.
Mas não é assim, antes o contrário. Comentando o versículo atrás citado (4:137), o erudito Shahul Hameed ressalta os quatro
passos reflectidos no Alcorão (alguém que primeiro é crente, que depois comete
apostasia, que mais tarde volta a acreditar e que de novo renega o Islão) e
pergunta-se o seguinte:
“Como podemos pensar em alguém a converter-se em muçulmano uma
segunda vez, após rejeitar uma primeira vez a fé, no caso de que se devesse
matar esta pessoa após a sua primeira apostasia?” (f)
Como dissemos, em todos estes
versículos o Alcorão está a reflectir um facto acontecido durante a vida do
Profeta: os casos daqueles que se convertiam ao Islão e depois abandonaram a
comunidade. E, todavia, não temos notícia nem de um só caso no qual o Profeta fizesse
retaliações contra alguém por causa do seu abandono do Islão. O Alcorão deixa
aberta claramente a possibilidade de que os apóstatas voltem ao Islão, o que
seria difícil se tivessem sido executados.
A conclusão é clara: a sentença de morte por
apostasia não é conforme ao princípio Alcorânico da liberdade de consciência. O
Alcorão mostra a rejeição para os apóstatas, mas deixa claro que não deve haver
nenhum castigo humano, porque a apostasia será castigada por Deus depois da
morte.■
(a). Tal e como disse o
Papa Bento XVI no seu discurso de Ratisbona: “A difusão da fé mediante a
violência é algo irracional”
(b) Al-Kaixaf,
p.229.
(c) Tafssir: Anwar al-Tanzil wa Asrar al-Ta’wil,
p. 172.
(d) Mujtaçar, vol. 1/3, p. 232.
(e) Ibn
Taimiya, As-Sarim Al-Maslul (As-Sa`adah ed. revista por Muhey Ad-Din Abdul-Hamid).
(f)
Shahul Hameed é consultor
de Islamonline
e dirigente da secção da Índia da Jama'at-e-Islami, a organização fundada por Maulana
Mawdudi.
M. Yiossuf Adamgy – Lisboa, Março de 2012