Não sou ateu, mas tenho minhas incredulidades (DO)

(Deverá clicar nas referências bíblicas para ter aceso aos textos)

 

João 20:24/25: Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe, pois, os outros discípulos: Vimos o Senhor. Mas ele disse-lhes: Se eu não vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o meu dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei.

João 20:29: Disse-lhe Jesus: Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creramJoão 20:24/29

Esse episódio me remete a pensar em como seria o começo, a manutenção e a guarda da nossa fé nos dias de hoje. Não temos o “privilégio” que teve Tomé em ver, observar, verificar, apalpar, abraçar, cheirar e ajoelhar-se para confessar in loco, que Jesus é realmente aquele apresentado em Hebreus 1:01/06.

A ressurreição de Jesus, entre várias outras, foi a maior prova da deidade de Cristo, a nossa maior convicção de fé, 1ª Coríntios 15:16/20  Essa é a história que chegou até nós e, por causa disso, somos bem-aventurados. Está bem, mas será que somos assim, tão felizes por ter aquela mesma fé das constatações oculares e presenciais?

Será que, pela dificuldade de não sermos testemunhas oculares é que somos bem-aventurados? Será que não temos (também), as nossas dificuldades para crer? E se temos, quais seriam elas, depois de havermos crido? Como estamos sem a presença do Jesus ressuscitado, aparecido de repente numa sala fechada? Qual seria o maior motivo da nossa incredulidade atual? A literalidade e a dificuldade de contextualizar a Bíblia, os dogmas que fazem através dela, as “neo igrejas”, que brotam como ervas daninhas, a teologia do “toma-lá-dá-cá”, o comércio das curas, expulsões de pretensos demônios, o culto à vaidade e egoísmo dos líderes religiosos? É constrangedor dizer que nós, os atuais crentes bem aventurados, somos “meios incrédulos”. Essas dificuldades enumeradas não seriam os motivos da nossa incredulidade? Será que a retórica da grande parte da chamada “igreja atual” nos faz tanto mal assim? Penso que temos muito mais motivos de incredulidade do que Tomé. Ele teve a certeza de que a sua fé era real e verdadeira, e nós?

 Incredulidade não é necessariamente ateísmo, (Tomé não era ateu), mas dificuldade de acreditar no que lemos, ouvimos e presenciamos. Não é “não acreditar que Deus existe”, mas é acreditar que Deus existe sem acreditar na maioria das vozes que ouvimos e literatura que lemos. É não acreditar na maioria dos dogmas pretensamente formulados como regras de fé peremptórias. Fé, não pode ser criada por falácias, sofismas, induções de hipnose e shows de pirotecnia cúlticas. Estamos caminhando num terreno infestado de armadilhas oriundas de técnicas de auto-ajuda, de misticismos, curandeirismo e propaganda insidiosa que toma conta da mídia a toda hora.   

Dentre outras testemunhas oculares, Tomé não estava só no quesito incredulidade. Outros “crentes-ícones” também demonstraram esse fenômeno.  João, o batista, sentiu a necessidade de pedir aos seus discípulos para irem até Jesus e perguntar se Ele era de fato “o que haveria de vir”, Lucas 7:20. Em outra ocasião os discípulos de João não entendiam o porquê de eles e os fariseus jejuarem e os discípulos de Jesus não jejuarem, apesar de que o Emanuel estava a centímetros deles; (Jejuar para quê?) Mateus 9:14. Pedro, o principal ícone de todos; aquele que gastou sandálias a andar juntinho com Jesus teve que ouvir publicamente que ele, Pedro, não era convertido, Lucas 22:32. A família de Jesus acreditava que ele era apenas um simples membro familiar, João 7:05. Maria Madalena, apesar de enxergar Jesus ressuscitado, de relance, não acreditou, só creu depois de ouvi-lo a falar com ela João 20:15/16 . Numa praia, depois da ressurreição, os discípulos não acreditaram que Jesus estava lá, só o reconheceram depois de recolherem a rede abarrotada de peixes, João 21:02/07. Os dois discípulos, durante todo o caminho de Emaús não reconheceram que era Jesus quem os acompanhava, Lucas 24:29/32. O povo em geral, apesar de ver e ouvi-lo, não acreditava em tudo o que Jesus falava e fazia; Mateus 13:15/17.  

Todas aquelas pessoas eram judias (inclusive os discípulos) e como tais, sabiam das profecias de seus profetas a respeito do Messias, mas apesar de estarem juntas com ele, não acreditaram o suficiente; não consolidaram a fé, não se comportaram como quem tivesse o privilégio de viver ao lado do Emanuel. As profecias estavam se cumprindo junto deles, mas não acreditaram, não perceberam.

A Bíblia é um livro narrativo-histórico com uma pesada carga mística, sendo esta, o principal fundamento para o que se pretende a sua leitura. É também um livro poético, profético e de sabedoria de seu tempo. Jesus se preocupou em usar as pedagogias didáticas da época para a compreensão popular, sendo estas, compostas de parábolas e metáforas. Esta é a principal fonte de nossa fé e tudo o que podemos fazer é a liberdade da sua transliteração e contextualização. Depois de quase dois mil anos do evangelho original, temos esse elo de compreensão como um fio condutor de preservação, muito distante da eficácia dos contextos do Emanuel, o Deus connosco. Para crermos em Jesus temos de crer na sua história, temos que crer na Bíblia. 

As dificuldades das barreiras do tempo da sua formação, como as várias versões vindas de idiomas rudimentares, costumes, tradições, e concepções das épocas são as fontes de nossos conhecimentos. Não se surpreendam, mas isso que ouvimos a vida inteira, de que há uma só palavra vinda da bíblia é um dogma religioso e sendo um dogma carece de acreditar ou não nele, mas a nossa fé não depende de dogmas e nem das diversas traduções bíblicas. É fácil perceber isso se lembrarmos que existem várias facções religiosas que entendem de maneira diferente o que “Deus fala”. A Bíblia é cheia de “vozes de Deus”; se dissermos a qualquer denominação religiosa que as compreensões da Bíblia são subjetivas, logo vão dizer que a compreensão de seus dogmas é que é verdadeira, então, se há uma compreensão para cada reduto religioso, a Bíblia é subjetiva e manipulável, ou seja, Deus fala de diferente maneira para cada crente a depender de suas variadas solicitações e intenções.

Como poderá a Bíblia fazer o papel do Emanuel? Será ela a compreensão absoluta “da Palavra” Dele? Será que esse conceito que se tem dela é tão simples assim? Talvez não. Essa compreensão não vem dela; não está escrito que a bíblia que temos às mãos é “a palavra de Deus”. Nem todas as bíblias vêm com as mesmas traduções; além disso, ainda há erros de traduções que persistem em não soluciona-los, razão pela qual, o surgimento de dogmas que originam crenças irreais, não condizentes com o que originalmente foi escrito.

Surpreendentemente não estou a dizer que a Bíblia “não serve para nada”, pelo contrário, o que digo é que ela está sendo servida de maneira errada. Não podemos transformá-la em núcleos de “ideias teológicas”, através de epifanias de indivíduos “iluminados”.  A fé não pode ser fundamentada em erros; fé deve ser alicerçada em bases reais e verdadeiras, senão teremos uma vida de contos de fadas que não leva a nada, a não ser a fanatismos. 

Se a humanidade, antes, com o Emanuel e depois, sem o Emanuel, absorvesse de maneira eficaz e sem vícios as suas mensagens e diante dessa atitude gerasse a fé genuína e sem nenhuma incredulidade produzisse a conversão genuína, o mundo seria totalmente diferente. Nós cremos que tudo isso poderia acontecer, mas não cremos o suficiente, não consolidamos a vida de renúncia e perdê-la é a coisa que não está nos nossos planos, portanto não podemos construir o paraíso no planeta terra. Talvez Deus não contasse com esse avanço da humanidade; talvez “não nascemos para nascer de novo” e manter Jesus pregado na cruz é a solução enquanto aproveitamos essa vida. Quem sabe um dia, se for possível, poderemos apalpá-lo à maneira de Tomé, assim confessaremos e nos abdicaremos da nossa incredulidade que nos rodeia.

David de Oliveira       

Goiânia, Brasil.  Outubro de 2019

 

Comentários recebidos

Camilo S. Coelho

Marinha Grande, Portugal, 6 de Novembro de 2019

Tive o prazer de colocar na nossa página, este artigo do Eng. David de Oliveira, um dos principais colaboradores, devido às questões que levanta.

Afinal, muitos outros, entre os quais me incluo, poderíamos dizer o mesmo, da nossa incredulidade perante certas passagens da Bíblia, mas ele teve a iniciativa de pegar no problema. Assim, resolvi também abordar o assunto, com este comentário e possivelmente, no futuro, escrever um artigo sobre o mesmo assunto, pois penso que o nosso irmão toca na base da teologia, que é o seu ponto fraco, ou o “calcanhar de Aquiles” da teologia. 

As igrejas e seminários teológicos, geralmente esforçam-se em passar a ideia de que toda a Bíblia é igualmente inspirada, sem sombra de erro, do Génesis ao Apocalipse e de que há uma perfeita sintonia da mensagem divina em toda a Bíblia.

Mas, o que era a Bíblia no tempo de Cristo, e a que bíblia se referem nos nossos dias?!

Na época de Cristo havia vários “livros” bem diferentes dos nossos, pois tinham a forma de rolos em pele manuscritos, que estavam no Templo de Jerusalém, e havia cópias dos livros mais importantes nas várias sinagogas.

Mas, já nessa época, nem todos esses “livros” tinham idêntica credibilidade quanto à sua inspiração, pelo que cerca do ano 90 ou 100 já depois de Cristo, um grupo de teólogos judeus elaborou na cidade de Jâmnia, uma lista dos livros mais credíveis. Assim surgiu o cânon veterotestamentário.

Nos nossos dias há vários cânones desses livros, do Velho Testamento, de acordo com a teologia das várias igrejas, havendo unanimidade quanto ao Novo Testamento. Sobre este assunto podem consultar a página da Wikipédia Cânon Bíblico.

No artigo a que me refiro, logo no início o ir. David de Oliveira mostra-se preocupado com as suas incredulidades, mas não nos diz quais são, nem em que é que não acredita.

Eu estaria muito mais preocupado se ele não tivesse nenhuma incredulidade e se fosse um fundamentalista que aceitasse e cumprisse tudo que está na Bíblia, pois no Velho Testamento há muitas passagens que considero escandalosas e muito raramente são mencionadas nas igrejas.

Digo isto a pensar principalmente em:

Números 15:32/36 que obrigava todo a povo a apedrejar até à morte, quem trabalhasse ao sábado. Assim, eu já devia ter sido morto, porque muitas vezes trabalhei aos sábados e domingos, quando era observador meteorológico nos aeroportos em Moçambique, pois de acordo com o Velho Testamento, devia ter abandonado o meu trabalho pondo em perigo os que nesse momento viajavam de avião.

Números 31:08/18 onde Moisés, em nome do seu deus obriga o exército israelita a cometer tal barbaridade. 

Deuteronómio 20:10/18 Onde vemos o comportamento que o deus dos judeus exigia do seu povo.

Conheço pessoalmente o ir. David de Oliveira  e não acredito que ele não assumisse a mesma atitude que o nosso Único Mestre quando lhe apresentaram a mulher adúltera que de acordo com o Velho Testamento deveria ser apedrejada até à morte por todo o povo que estava presente, como vemos em João 08:01/11.

O problema talvez seja semelhante aos muitos que nos aparecem.

A quem vamos obedecer? A Moisés, que no último dia estará ao nosso lado no banco dos réus no Julgamento final, ou a Cristo nosso Salvador aceitando-o como nosso Único Mestre?

Se à entrada duma grande biblioteca me perguntassem se acreditava em todos os seus livros ou os rejeitava, o que poderia responder?! Certamente que haverá sempre livros melhores ou piores. Assim, também não posso deixar de ter a mesma resposta para todos os livros da Bíblia.

Admito que o Velho Testamento tenha certo valor histórico transmitindo a interpretação do escritor, mas não posso aceitar o Velho Testamento como normativo para os nossos dias.

Mas no Novo Testamento estão registadas as palavras e o exemplo de Jesus que é muito mais importante que o Velho Testamento ou as antigas tradições veterotestamentárias, que nem os judeus dos nossos dias levam a sério, pois o Israel dos nossos dias, já não é uma teocracia, mas um país com a sua constituição.

O problema, que o ir. David de Oliveira apresenta, não é só dele, mas de todos nós.

 

Aditamento em 10 de Novembro de 2019

Como disse de início, pensei em escrever um artigo sobre este assunto, mas penso que muito pouco poderia acrescentar ao que já afirmei no meu artigo Dogma evangélico e protestante (CC) que escrevi em Outubro de 2016 e trata dum assunto semelhante.