Contributos do Jubileu para o Ecumenismo (JL)

Artigo publicado na Agência Ecclésia, de autoria do Pastor José Leite

Professor de Ecumenismo no Seminário Evangélico de Teologia.

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

 

Começo por aceitar o tema que me foi entregue com o sentimento, que se vai fortalecendo cada vez mais em mim, que o “pobre” do Ano Jubilar tem de dar resposta a quase tudo. Ele é o Jubileu e a Igreja, o Jubileu e a Teologia, o Jubileu e a Bíblia, o Jubileu e a dívida externa, o Jubileu das Crianças, dos Idosos, dos Artistas, etc., etc., etc.. A mim cabe-me dizer algo sobre o Jubileu e o ecumenismo. Faço-o com agrado, sem saber se o que vou dizer corresponderá ao que estava no espírito de quem mo pediu.

Aparentemente, o título parece apontar um caminho onde caberia enumerar um conjunto de contribuições positivas que as celebrações do Jubileu ofereceriam ao movimento ecuménico. O que não deixa de ser verdade, como veremos. Mas as celebrações também contêm aspectos negativos, ecumenicamente falando, que não deixarei de enumerar. Os seis exemplos que citarei, serão apresentados resumidamente a fim de respeitar o espaço que, generosa e amistosamente, me foi concedido.

Gostaria de começar por fazer a diferença entre o Jubileu e o Ano Santo. Faço-o por duas razões. A primeira é por me dar conta da confusão, ou identificação, que é feita por muitos entre as duas celebrações. A segunda é para dizer que a dimensão ecuménica do Ano Santo é praticamente nula e não estou a ver as Igrejas não católicas-romanas interessadas na participação do mesmo, bem pelo contrário.

O primeiro contributo positivo que a comemoração deste Jubileu pode dar ao ecumenismo é o de oferecer um espaço comum no qual todos os cristãos, com todas as suas diferenças doutrinais, litúrgicas e eclesiais, podem em conjunto dar graças a Deus pelo Seu imenso amor por nós ao enviar-nos, há 2.000 anos (abstraindo-nos dos pequenos erros de cálculo referentes à exactidão da data) Jesus Cristo, como Senhor e Salvador. É a alegria e a gratidão por este gesto único que a família cristã deve partilhar e viver em unidade. Para além de tudo o que ainda nos diferencia, nada justifica que estejamos separados nesta dimensão prioritária do actual Jubileu. O estarmos juntos, celebrando e proclamando a vinda do Filho de Deus, orando e cantando em uníssono, é uma oportunidade ecuménica que o tempo jubilar nos oferece. Que a saibamos aproveitar!

O segundo contributo ecuménico positivo que apresento reside no facto das celebrações do Ano Jubilar não serem exclusivo de uma determinada Igreja, mas ser comum a todas. Isto facilita, e encoraja, muito uma participação alargada dos vários ramos da Igreja de Cristo, ainda que uns estejam muito mais activos e empenhados do que outros. A ideia e génese do Jubileu é um conceito bíblico Levítico 25 e daí o estarmos em face de algo comum a todos os cristãos. Um tempo apropriado para um aprofundamento bíblico através da leitura, partilha e meditação em conjunto das Sagradas Escrituras.

Um terceiro aspecto positivo em que o Jubileu pode fomentar o diálogo e a acção ecuménicos tem a ver com as muitas iniciativas de carácter cultural, social e diaconal que estão sendo programadas pelas várias Igrejas e por muitos movimentos e associações a elas ligadas. A dimensão do verdadeiro ecumenismo não se esgota nas áreas do espiritual, do teológico ou do eclesiológico. O alvo do movimento ecuménico é o de manifestarmos visivelmente a unidade que existe entre nós. A cooperação solidária, o projecto social comum, o serviço diaconal aos mais pobres e marginalizados socialmente, são oportunidades que o Jubileu oferece e que não devem ser consideradas de importância menor. Saibamos, como irmãos, dar as mãos e não desperdiçarmos todas estas oportunidades.

No que diz respeito aos aspectos negativos das celebrações jubilares, direi que todos eles estão, directa ou indirectamente, ligados a assuntos que têm sido causa de separação das Igrejas que constituem o Corpo de Cristo. Ao fazê-lo, não me move a mínima ideia de dizer que esta ou aquela Igreja não tem legitimidade para orientar o seu programa jubilar desta ou daquela maneira. Faço-o, tristemente, por constatar que algumas das actividades anunciadas não poderão ser realizadas pela totalidade da família cristã que, por razões teológicas, posições doutrinais ou outros motivos, se vê obrigada a separar-se por motivos de consciência e fidelidade aos seus princípios. Daí que o Jubileu do ano 2000 ainda manifestará muitos dos sinais da divisão.

Vejamos alguns exemplos ilustrativos do que acabo de afirmar, tomando como referência o programa da Igreja Católica romana por ser o mais representativo, estruturado e importante no contexto social e eclesial do nosso país.

Um dos aspectos ecuménicos negativos que o programa católico apresenta para o Ano Jubilar é o de ligar o mesmo à concessão de indulgências.

Transcrevo da Carta Apostólica Tertio millennio adveniente (TMA), de João Paulo II, sobre a preparação para o Jubileu do ano 2000: “Convém, todavia, sublinhar aquilo que Isaías exprime com as palavras: «pregar um ano de graça do Senhor».

Para a Igreja, o jubileu é exactamente este «ano de graça», ano de remissão dos pecados e das penas pelos pecados, ano de reconciliação entre os desavindos, ano de múltiplas conversões e de penitência sacramental e extra-sacramental. A tradição dos anos jubilares está ligada à concessão de indulgências, de modo mais amplo do que nos outros períodos. [...] A Igreja, nestas circunstâncias, proclama «um ano de graça do Senhor», esforçando-se porque todos os fiéis possam usufruir mais amplamente de tal graça. [...]" (TMA, II, 14). Sabendo o que a questão das indulgências significou para os Reformadores do século XVI, e conhecedor de todas as normas que a elas se encontram associadas, não tenho qualquer receio em afirmar que esta dimensão dada ao Jubileu não terá qualquer aceitação por parte das Igrejas reformadas. Neste sentido, e ecumenicamente falando, lastimo dizer que o considero um aspecto negativo das intenções jubilares.

Um outro aspecto que reputo negativo é o desmesurado peso dado à pessoa de Maria nos textos jubilares, sejam os dos anos de preparação, sejam os actuais. A fase preparatória do Jubileu, foi desenvolvida pela Igreja Católica durante três anos (1997-99). Sobre este período, diz a TMA: “A estrutura ideal para este triénio, centrado em Cristo, Filho de Deus feito homem, não pode ser senão teológica, isto é, trinitária”.(IV, 39).

Segue-se, no texto da mesma Carta Apostólica, a descrição do programa dos três anos, sendo o primeiro dedicado à reflexão sobre Cristo, o segundo dedicado ao Espírito Santo e o terceiro a Deus Pai. Se as linhas do programa ficassem por aqui, penso que todas as Igrejas cristãs o poderiam aceitar jubilosamente.

Sucede que, apesar de se dizer que a estrutura do triénio deverá ser trinitária e estar centrada em Cristo, não se deixa de afirmar que “A Virgem Maria, que estará presente de modo, por assim dizer, «transversal» ao longo de toda a fase preparatória, [...] A afirmação da centralidade de Cristo não pode, portanto, ser separada do reconhecimento do papel desempenhado pela sua Santíssima Mãe. O seu culto, se bem esclarecido, de modo nenhum pode trazer dano «à dignidade e eficácia do único Mediador, que é Cristo». Na verdade, Maria aponta perenemente para o seu Filho divino e apresenta-se a todos os crentes como modelo de fé vivida no dia-a-dia...” (TMA IV, 43). Se esta citação encerra o que se diz para o ano dedicado a Jesus Cristo, o mesmo se passa em relação ao ano do Espírito Santo, cujo parágrafo final afirma: “Maria, que concebeu o Verbo encarnado por obra do Espírito Santo... será contemplada e imitada no decorrer deste ano sobretudo como a mulher dócil à voz do Espírito, mulher de silêncio e de escuta, mulher da esperança, que soube acolher como Abraão a vontade de Deus «esperando contra toda a esperança» Romanos 4:18 (TMA IV, 48). No ano dedicado a Deus Pai, também como parágrafo final, o texto diz: “... Maria Santíssima, filha predestinada do Pai, apresentar-se-à ao olhar dos crentes como exemplo perfeito de amor a Deus e ao próximo. Como Ela própria afirma no cântico do Magnificat, grandes coisas fez n'Ela o Omnipotente, cujo nome é Santo. Lucas 1:49 O Pai escolheu Maria para uma missão única na história da salvação: ser Mãe do Salvador esperado...” (TMA IV, 54).

Entre outras coisas que se poderiam argumentar, não será que a centralidade do triénio está mais em Maria do que em Cristo? Ou será, como escrevi em artigo anterior, a dimensão trinitária do Jubileu assenta em quatro pessoas e não em três?

Um terceiro, e último, aspecto que forçosamente não contará com a participação das Igrejas protestantes, diz respeito à importância e ao encorajamento dado às peregrinações, particularmente a certos santuários.

Deixo de lado neste exemplo o texto papal e socorro-me da Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, de 8 de Setembro de 1996, que no seu ponto 2 estabelece as orientações gerais, entre as quais se diz: “As grandes peregrinações, nomeadamente ao Santuário de Fátima, constituam momentos fortes de preparação para o Jubileu, tendo em consideração o tema indicado para cada ano.” Encorajar uma peregrinação ao principal Santuário Mariano português num texto em que dois parágrafos acima se faz “um ardente apelo a todas as confissões cristãs para que coloquemos o nosso olhar em Cristo, único Salvador, com o compromisso de formarmos um só Corpo, como Ele pediu ao Pai” parece-me pouco pedagógico sob o ponto de vista ecuménico. Ecumenismo significa conhecer cada vez mais e melhor os outros, através de um diálogo e oração que se desejam constantes, e procurar não ferir as suas susceptibilidades.

A Igreja Católica tem todo o direito de organizar e encorajar os seus fiéis a realizar as mais variadas peregrinações que entender e onde entender. Não poderá é esperar uma resposta positiva da parte de muitos dos seus irmãos quando os seus convites são inseridos em contextos que, mesmo sem qualquer intencionalidade, acabam por ferir sentimentos alheios.

Apesar de tudo isto, estou convicto que o balanço final do ano jubilar será positivo e acabará por ser um kairos de Deus, durante o qual o Corpo de Cristo, ao qual todos pertencemos, sairá mais fortalecido e unificado.

Esta é a minha esperança e a minha oração.

 

Pastor José Manuel Leite 

Presidente da Igreja Presbiteriana

Janeiro de 2000