“Quem conhece o Islão não
parte para fazer a jiade”
Entrevista da revista África21 a Mohamed Yioussouf Adamgy
O
Islão é mal conhecido em muitos países e geralmente está associado na opinião pública
às noções de guerra, radicalismo e terrorismo. Os cerca de 50.000 muçulmanos
que vivem em Portugal, oriundos maioritariamente da Guiné- Bissau e de
Moçambique, repudiam esta violência e também a manipulação caluniosa do
Alcorão.
Nicole
Guardiola
ÁFRICA21. Nunca se falou tanto do Islão na imprensa lusófona.
Como muçulmano e como intelectual, como avalia esta mediatização?
MAHOMED
YIOSSUF ADAMGY. Se se fala tanto na imprensa lusófona
é porque se fala, também, na imprensa internacional que, por sua vez,
transmite, duma forma ou de outra, o que a CNN noticia. E
quando se fala do Islão, fala-se só e sempre ligado à guerra, ao radicalismo e
ao terrorismo.
Assistimos
a uma monumental maquinaria mediática que caracterizou o sempre impreciso e mal
definido «fundamentalismo islâmico» como uma nova praga bíblica. A comunicação
social internacional preocupou-se em difundir (com pouco material de apoio) que
as ações do dito Estado Islâmico são bárbaras, que assassinam pessoas, que
raptam mulheres e que, sobretudo, impõem a lei islâmica às populações que
conquistam. Mas apesar da muito real violência que existe em algumas zonas do
mundo islâmico, há que recordar que a história do Islão não foi mais violenta
que a de outras religiões e que se os media fossem
objetivos veriam que estes crimes não são muito piores do que as ações dos
«civilizados» israelitas em Gaza, ou que os «civilizados» ataques com drones que ordena o Presidente dos Estados Unidos no
Paquistão e que deixam um trágico saldo de mortes de civis, crianças, mulheres
e idosos, sem distinção.
A
violência não é religiosa; é criminosa. O ódio cego não é islâmico, é um pecado
mortal. Está escrito no Alcorão Quem matar uma pessoa, sem que esta tenha cometido homicídio
ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado
toda a humanidade; quem a salvar, será reputado como se tivesse salvado toda a
humanidade. Alcorão
5:32.
Como reage a comunidade islâmica, em Portugal e no seu país de
origem, Moçambique?
A
maioria da comunidade islâmica (e mesmo os não-muçulmanos) em Portugal,
Moçambique e em todo mundo condena estas atrocidades e este Estado islâmico que
nada tem a ver com o Islão. Por outro lado, essa maioria pressente que há uma
manipulação caluniosa dos Estados Unidos e, por inércia, do Ocidente contra o
Médio Oriente e o Islão, porque em nome de uma «democracia totalitarista» se
invade e se bombardeia nações soberanas como Síria, Líbia, Iraque que foram
arrasadas e as suas economias devastadas.
A radicalização de jovens, de origem muçulmana ou
recém-convertidos, que partem para fazer a jiade na
Síria ou no Iraque, suscita alguma inquietação.
Quer comentar?
Quem
conhece bem o Islão, certamente não parte para fazer a jiade
na Síria ou no Iraque. Apesar de ser este o discurso de inúmeros ocidentais que
aderiram ao Estado Islâmico (e são, pelos vistos, os seus dirigentes no
terreno) penso que são indivíduos que por um motivo ou outro se sentiram
marginalizados pela sua sociedade, e que em vez de assumirem os seus
insucessos, defeitos ou incapacidades, optaram por culpar toda a cultura
ocidental, e que esse facto é aproveitado pelos angariadores de mercenários.
Sem desculpabilizar estes indivíduos, posso vislumbrar quem está por detrás de
tudo isto e sei que não é a religião. Nenhuma religião manda massacrar
inocentes. O que acontece é que a sociedade humana sofre as consequênciasda
desinformação e mentiras, a verdade tem sido deformada por interesses
económicos, os centros de poder no mundo…
Os muçulmanos em Portugal são pouco numerosos e pertencem aos
vários ramos do Islão. Como se relacionam entre eles?
Segundo
a Comunidade Islâmica de Lisboa, os muçulmanos são cerca de 50.000 em Portugal,
originários sobretudo da Guiné-Bissau e Moçambique. A maioria é sunita. Há uma
minoria chiita: a Comunidade Ismaelita com o seu
templo em Lisboa e a Comunidade Içna Achari com o seu lugar de culto em Almada. Todos
relacionam-se entre eles.
E com os portugueses que professam outras religiões, nomeadamente
os católicos?
Os
muçulmanos de Portugal convivem e têm relações de amizade, fraternidade e
solidariedade, vivendo em paz com os seus irmãos de fé cristã e outras, pois os
ensinamentos do Alcorão assim os orientam.
Quando
Deus diz: Ó
humanidade! Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em tribos e
nações, para que se conheçam uns aos outros.
Alcorão, 49:13
não se está a referir apenas a conhecer um determinado nome ou tribo; a
expressão implica, numa interpretação mais lata e dirigida a toda a humanidade,
a troca de saberes e de conhecimentos e toda uma série de interações positivas.
Quero
lembrar, por exemplo, o encontro com o Dalai Lama na
Mesquita de Lisboa, que reuniu budistas, muçulmanos, judeus, cristãos, hindus e
bahha’is, e cuja notícia (na época) foi registada, na
sua íntegra, na revista islâmica portuguesa Al Furqán.
Recebemos
na Mesquita de Lisboa as visitas dos Presidentes da República Portuguesa,
nomeadamente, o Dr. Mário Soares, o Dr. Jorge Sampaio e o Dr. Cavaco Silva, e
os primeiros-ministros Sócrates e Passos Coelho. E tem
havido eventos culturais com participação de várias religiões.
Tem sentido recentemente mais intolerância, hostilidade?
Em
Portugal, felizmente temos poucos indícios de radicalização e de maior
intolerância. A maioria dos muçulmanos são portugueses, originários das
ex-colónias e a nova geração já nasceu cá; por conseguinte, estão integrados.
Mas não esqueçamos que o mundo se tornou uma aldeia global. Na Europa crescem
os partidos extremistas e xenófobos. A televisão que entra quotidianamente em
casa das pessoas fala do Islão só e sempre ligado à guerra, ao radicalismo e ao
terrorismo. Já há sinais de islamofobia, sobretudo na
internet.
Diz que em matéria de direitos humanos um dos valores
fundamentais do Islão é a justiça. Acha que uma ordem
política e social injusta contribui para a emergência do chamado islão político
e à sua radicalização?
No
clima de desespero em que vivem grandes massas de muçulmanos – e mais ainda da
sua juventude – a saída violenta pode aparecer como uma tentação. Mas
pergunta-se: é realmente esse um
caminho de libertação para as empobrecidas e prostradas massas muçulmanas?
O
escritor, psicólogo e politólogo de origem argentina Marcelo Colussi escreveu que num ambiente de pobreza, desemprego e
miséria «as populações dos países muçulmanos encontram-se num beco sem saída» e
que «a arrogância e desprezo dos monarcas e ditadores no mundo islâmico e árabe
adicionam mais combustível ao ódio e cólera das massas». De um ponto de vista
sociopolítico, as razões principais deste fenómeno são o enorme vazio criado
pela falta de propostas alternativas que acontece nestas sociedades, e a
manipulação das populações apelando a um fanatismo fácil de exacerbar. É ai
onde começa a vislumbrar-se outra pergunta: a quem beneficia este
fundamentalismo? Segundo o economista egípcio Samir Amin
«Imperialismo e fundamentalismo cultural caminham juntos. O fundamentalismo de
mercado diz: subvertam o Estado e deixem que os mercados à escala internacional
manejem o sistema. Isto se conseguirá quando os Estados forem completamente
desmantelados».
Por
outro lado, todas as religiões podem comportar rasgos fundamentalistas. Proibir
o uso do preservativo alegando que representa um «atentado à vida» como faz o
Vaticano, no meio de uma pandemia de VIH como a que atualmente temos, não é por acaso um fundamentalismo irresponsável? E o fundamentalismo não é só religioso. Bombardear a
população civil não combatente com o pretexto de defender a «liberdade» e a
«democracia» não é uma forma extrema de sangrento fundamentalismo?
Nunca houve em Portugal grande interesse pela cultura islâmica.
Agora mais pessoas estudam a língua árabe. Acha que
pode contribuir para o reconhecimento do Islão como parte da identidade
histórica portuguesa?
A
curiosidade pelo Islão cresceu após a Guerra do Golfo (1990) e os atentados de
11 de Setembro de 2001. A criação pela Al Furqán, em 1997, da Feira do Livro
Islâmico nas instalações da Mesquita de Lisboa (que se repete todos os anos
durante a última semana do mês do Ramadão) foi, para muitos, a primeira
oportunidade de entrar na Mesquita de Lisboa. As pessoas pensavam que se
tratava de um lugar proibido e a feira veio quebrar este tabu.
A
Mesquita de Lisboa recebe, anualmente, muitas visitas de escolas de todo o
país. Há aulas de árabe, gratuitas, ministradas pelo Imame da Mesquita, Cheik David Munir. Muitos não-muçulmanos frequentam essas
aulas. Por outro lado, há já historiadores e arqueólogos portugueses que se
dedicam a investigar e divulgar os vestígios árabes e islâmicos em Portugal.
Mahomed
Yiossuf Mohamed Adamgy nasceu na Ilha de Moçambique
em 1951, fez os estudos secundários em Nampula e reside em Portugal desde 1977.
É um dos fundadores e diretor da Al Furqán (O critério do bem e do mal), uma
Organização Islâmica Portuguesa, fundada em 1981, para a defesa, divulgação e
edição de estudos islâmicos em Portugal. A revista bimensal Al-Furqán é uma das
poucas publicações portuguesas que se dedica à exegese e reflexão sobre o
Alcorão mas também à refutação de muitas interpretações erradas e preconceitos
existentes entre muçulmanos e não muçulmanos.
Foi
secretário (1985-87) da Direção da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), fundada
em 1968 por um familiar, Suleiman Valy
Mamede (falecido em 1995 e conhecido entre os muçulmanos lusos como o «pai da
grande mesquita» inaugurada em 1985) e empenhou-se no desenvolvimento das
atividades culturais da CIL e na abertura do diálogo inter-religioso mediante a
organização de colóquios e a criação da Feira do Livro Islâmico que se realiza
anualmente durante o Ramadão.
Muçulmano
sunita, considera-se independente quer do ponto de
vista teológico quer em relação à CIL, atualmente presidida pelo Sheik David
Munir. Como intelectual de nacionalidade portuguesa (como 70% dos muçulmanos
residentes em Portugal) defende o reconhecimento do Islão como um dos pilares
do chamado universalismo cultural lusófono.
Transcrição
da revista angolana África 21
Novembro
de 2014
Comentários recebidos
Maria Irene <myriam.pax@gmail.com>
Melúli - Larde, Circunscrição de Môma, Angoche - Moçambique
É com
pessoas como o meu Ex.mo Amigo que construímos o
Mundo.
O Mundo só
pode ser construído com Paz, com Desenvolvimento, com Humanismo. O Respeito
pelo Outro é fundamental, é pedra angular!
«A violência
não é religiosa; é criminosa». Tem o meu Ex.mo Amigo
toda a razão. E, infelizmente, nós, Cristãos, Católicos, tivemos,
no passado, muitos erros. Deus nos perdoe! E, se
calhar, ainda hoje: temos de buscar, incessantemente a perfeição a que Jesus
Cristo nos convida. (Não me refiro aqui apenas aos erros individuais, mas
sobretudo aos que foram cometidos pela própria Igreja. Infelizmente!)
«O ódio cego
não é islâmico, é um pecado mortal» - muito bom, este esclarecimento!
Muito
obrigada!
Parabéns!