Islâmico português escreve fraternalmente ao
Papa (YA)
(Deverá “clicar”
nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)
(Carta aberta e fraterna ao irmão Papa Bento XVI coordenada por: M. Yiossuf M. Adamgy Director da Revista Islâmica Portuguesa Al Furqán)
Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso
— Ó humanidade! Na verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e
vos dividimos em tribos e nações, para que se conheçam uns aos outros
Alcorão 49:13, na
base da justiça, que é uma boa e frutífera palavra: Como a árvore nobre, cuja raiz está
profundamente firme, e cujos ramos se elevam até ao céu. Alcorão 14:24
— Deixemos que a divisa do diálogo civilizacional seja o vers. 83 do Cap 2 do Alcorão que
diz: "Falai com brandura a todas as pessoas, e deixemos que a
finalidade do diálogo seja a de adquirir a liberdade tão vasta como o universo.
Alcorão 2:83
— Diz: Todos agem de acordo com a sua própria disposição. Mas
o teu Senhor sabe melhor quem é e está Melhor guiado no caminho. Alcorão 17:4
— Diz:... O teu dever é proclamar a Mensagem.
Alcorão 3:20
— Para Nós será o regresso deles. Então caberá a Nós chamá-los
para as contas. Alcorão 88:26
— Não há compulsão na religião. Alcorão 2:256
Com a nossa saudação fraternal, maior
respeito e consideração.
Querido irmão Bento:
Permita-me que o trate assim, como um
irmão mais velho. Esta liberdade de escolha é, creio eu, facultada dentro
do quadro de dois piedosos princípios: primeiro, há o facto de todos nós sermos
membros da raça humana, em todos os continentes e em todas as épocas, no tempo.
Descendemos de Adão que foi criado da lama; assim, todos são irmãos e irmãs e o
homem é irmão do homem, quer queira quer não. Em segundo lugar, o
reconhecimento mútuo e a amizade (não a matança mútua, o ódio e a vingança) são
os termos Islâmicos para o diálogo inter-civilizacional e inter-cultural:
Dizia eu, então, querido irmão Bento.
Indubitavelmente que sabes que, enquanto Muçulmanos, a nossa ascendência na Fé
remonta ao nosso pai comum, o Profeta Abraão, pai de Ismael e de Isaac (a paz
esteja com eles), e que fazemos parte desse mesmo universo luminoso de crentes
que Deus lhe prometeu como descendência. Então, levou-o para fora e disse-lhe: Olha para o céu e
conta as estrelas, se é que as consegues contar. E disse-lhe: Assim será a tua
descendência. Génesis 15:5 Irmão,
nós, os Muçulmanos, assim como toda a Humanidade, esperamos muito de ti.
Esperamos a tua contribuição clara, decidida e decisiva, para a neutralização
da infinidade de bombas de ódio, prontas a serem activadas nos arsenais mentais
das pessoas mais afastadas da espiritualidade e da transcendência, tanto a
Oriente como a Ocidente.
É pela posição que ocupas e
responsabilidade que tens perante o ser humano, e especialmente perante o universo
de crentes prometido a Abraão, que verificámos que a tua lição de Teologia do
outro dia, proferida na Universidade de Ratisbona - Alemanha, não foi uma das
mais bem sucedidas e nem correctas.
Tratou-se de uma apresentação académica,
visto que, acima de mais, és um erudito em teologia. Se era tua a intenção de
desafiar os sábios Muçulmanos para uma discussão acerca dos méritos e
desméritos de ambas as religiões em termos de fé e de razão, qualquer erudito
Muçulmano de terceiro nível estaria disposto a aceitá-lo. Contudo, e em
primeiro lugar, terias que abdicar do teu posto e voltar a ser um académico. Na
História contemporânea, nunca os Papas cederam às discussões inter-religiosas.
Pelo menos, os três últimos Papas tinham consciência do Mundo e ordenavam o
respeito para com as religiões.
Foi uma lição maculada pela
irresponsabilidade e pela indolência, que fomenta uma visão trivial e frívola
do Islão, que favorece o confronto entre crentes e que se submete servilmente
ao jogo dos terroristas e dos poderes, ditos democráticos, que não hesitam em
assassinar milhares de inocentes, violar todo um conjunto de resoluções,
invadir impunemente os países ou desalojar milhões de pessoas, deixando-as sem
casa e sem história, em nome de uma ideia de Deus, liberdade ou Democracia, que
não correspondem e não se harmonizam com os valores que emanam de um Deus
Misericordioso e Compassivo. Democracia, que hoje está em conflito com as
democracias reais, só o será, como definiu Rousseau, «quando, numa sociedade,
ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que
tenha de se vender a alguém».
No momento em que redigimos esta carta,
é-nos possível ler títulos onde a tua própria segurança é já posta em causa.
Sentimos que foste induzido pelos obscuros poderes dominantes do Mundo a
trespassar esta linha vermelha que, do nosso ponto de vista, não devias nunca
ter passado, e receamos que a utilização da tua elevada pessoa e posição sejam
mesmo manipuladas ao mais dramático extremo. Um sangrento ataque contra a
Igreja representaria uma excelente desculpa e um perfeito álibi para legitimar,
sem necessidade de mais nada, o progressivo e definitivo extermínio da fé
unitária.
Tu, irmão Bento, precisas sinceramente
reflectir se, com tal declaração, estás a ser um nobre defensor da Verdade, se
estás a ser o favorecedor evidente da Paz que todos esperamos que sejas, e para
o qual também nós, fiéis Muçulmanos, dirigimos o nosso olhar.
Tens que ter consciência que já
recentemente se fez uso do Islão para um confronto entre os crentes. E há que
recordar o martírio dos irmãos cistercienses de Tibhirine.
Assassinato este, no qual existem suspeitas da autoria real dever-se aos
serviços secretos de um país Europeu de marcada tradição colonialista na zona.
Voltamo-nos também para ti, porque
acreditamos na bondade da mensagem de nosso Jesus (a paz esteja com ele). Não
te admires por nos referirmos a ele com tais palavras, pois é assim que as mães
Muçulmanas ensinam os seus filhos a chamar a Jesus: Este é Jesus, filho de Maria, é a pura
verdade, da qual duvidam. Alcorão 19:34
Como vês, para nós, Jesus também é
“palavra”, é a pronunciação viva da Verdade. É ele quem na Revelação contribui
com o conceito da Ternura de Deus. Jesus é “al Ruh al Qudus”,
o Espírito da Santidade…Jesus é tão vosso como nosso, é ele quem nos une, se é
que aquilo que verdadeiramente queremos é a união e a Paz.
Quanto à tua suposição de que o
Cristianismo é o produto da síntese entre a fé do Velho Testamento e a
filosofia grega da razão, estás a separar o Cristianismo da sua origem
Hebraica, ocidentalizando-o e revelando, uma vez mais, o teu sectarismo
europeu. Surpreende-nos que, em lugar de dares valor à razão, queiras roubar o
significado que tem o semitismo da pessoa de Jesus. Jesus era aramaico, o
aramaico é a língua materna de Jesus e com o esquema mental que forma a língua
materna semítica é que se dirige e relaciona com Deus. O próprio Paulo o
recorda na sua carta aos Romanos, quando refere que …recebestes um espírito de adopção pelo qual
chamamos: ‘Abba, Pai!’ Romanos 8:15
Acreditamos sinceramente que devolver o Novo
Testamento ao estudo pré-grego acentuaria as extraordinárias semelhanças
existentes entre a mensagem de Jesus e o Islão. Evitar isso seria o mesmo que
dissimular a natureza semítica de Jesus, um acto que não apenas serve para
aprofundar a distância entre os crentes, mas também que acabará por supor que o
Cristianismo perde não apenas a Deus (Pai), com O Qual encerrou já o acesso
devido às desnecessárias intermediações impostas pelo Cristianismo, mas que a
perda será ainda mais terrível, ou seja, é o verdadeiro Jesus quem acabará
desprovido da transcendência e, portanto, da Revelação, acabando transformado
num “ídolo da razão”, o que converterá definitivamente a vossa crença numa
religião materialista. A nossa proposta é a de que vos volteis para a oração de
Jesus: Pai
Nosso…, Abbá… Que grave perda foi para o Cristianismo
cimentar a teologia à margem da oração de Jesus e viver em permanente
contradição!
Qual é o conflito entre a razão e a
transcendência? Acreditamos que a tua aula apresenta algum desacordo
relativamente a este tema, apesar do mestre de Tomás de Aquino ter sido um
Muçulmano Hispânico, Averróes.
Baseias toda a Dogmática no “mistério”.
A transubstanciação é um mistério, todos os sacramentos são um mistério, a
Virgindade de Maria é um mistério, a concepção de Maria é um mistério, a
humanidade e a divindade de Jesus, perfeitamente equilibradas, são um mistério,
a Trindade…é um mistério. Nós partilhamos convosco alguns desses mistérios,
especialmente no que se refere a Maria; contudo, como nos explicareis a
Trindade com a razão? Como se pode explicar o mistério do amor de Deus tendo a
razão como única arma? Como podeis explicar todos os mistérios da fé católica,
a não ser recorrendo a um Deus transcendente? É possível medir Deus? Nem mesmo
o rosto humano de Deus poderia ter explicação, se é que a tem, sem um Deus
transcendente.
Por último, dizes “que o Islão se
propagou pela espada”.
Na realidade, acreditamos que o fazes
para esconder a tua profunda admiração para com a nossa fé, para com a nossa adoração
perseverante e intensa. Uma fé inquebrável, que faz com te perguntes, sem
encontrar respostas convincentes, porque são tão poucos os Muçulmanos que se
convertem ao Cristianismo, e tantos e tantos aqueles que, depois de terem sido
Cristãos praticantes, reconhecem no Islão a nossa própria constituição enquanto
seres humanos, o nosso lugar no Cosmos. A verdade é que custa, quando se é
Cristão, ver como as Mesquitas estão cheias todas as sextas-feiras, de homens e
de mulheres de todas as idades, com as frontes junto ao solo, prostradas na
mais sincera atitude de aceitação da vontade de Deus. O que chama especialmente
a atenção é que estes participantes são sobretudo homens, sendo que a sua
grande maioria é composta por jovens. E as Igrejas encontram-se vazias, apenas
as mulheres, especialmente as já de idade, poucas ainda com um véu ou lenço na
cabeça, rezam, espalhadas pelos bancos solitários. É duro. Sabem-no muito bem,
aqueles que entre nós, que já foram Católicos e que durante muitos anos
serviram à Igreja. É lamentável, inclusive, que os dois únicos jejuns
obrigatórios da Igreja (a pão e água) sejam cumpridos por tão poucos
paroquianos, enquanto que mais de 1500 milhões de pessoas fazem um jejum total,
de sol a sol, durante os abençoados trinta dias do Ramadão, mês mais sagrado do
Islão, que irá entrar dentro de três dias. A pergunta que possivelmente
deverias fazer é a seguinte: o que há no interior dos corações desses crentes?
Fanatismo…ou a pura e simples experiência de Deus?
É possível que, 1400 anos depois das
supostas conquistas Islâmicas, quem tenha professado a fé pela espada, continue
hoje a fazê-lo com este imenso fervor? O único lugar do mundo Islâmico onde não
foi possível prosseguir com estas impressionantes demonstrações de amor a Deus,
foi na Espanha Andaluza, pois aí teve lugar um genocídio religioso brutal,
cometido por Católicos contra Muçulmanos e Judeus por meio da espada, muito
mais forte, violento e sanguinário. Uma espada que se ergue de novo, e cuja
sombra não deveria confundir-se com a cruz de Nosso amado Jesus, filho de
Maria.
Diz-se e lê-se por aí que o «Papa sabe
que uma guerra religiosa é uma maneira excelente de recuperar o Cristianismo. O
Islão radical está a dar-lhe uma oportunidade. As desculpas são apenas poeira
para os olhos. E preciso reunir os rebanhos quando os lobos andam por perto, e
o pastor sabe disso...». Espero e apelo que não deixes que, isso que se diz e
se lê, se torne verdade verdadeira.
Irmão Bento, não receies o Deus
transcendente que adoramos. Não receies o abismo. Se de facto a tua fé é um
acto de confiança plena, saltarás, sem duvidar, no vazio do Deus Único.
Reflecte e medita se talvez a vossa fé não é uma fé presente e tomada, em que,
por um impulso da natural debilidade humana permanecereis na borda do
precipício, refugiados na imagem humana de Deus, da qual conseguis a segurança
que vos falta para que vos entregueis plenamente a Ele.
A nossa fé, salvaguardadas pequenas
diferenças, assemelha-se à de Francisco de Assis, João da Cruz ou Teresa de
Ávila, todos eles justos e conhecedores da tradição espiritual Islâmica chamada
sufismo (a), praticantes de
uma fé despojada, numa fé que se eleva no bonito salto no vazio da imensidão de
Deus para conhecer por fim que apenas Deus basta, que apenas Deus existe, que
apenas Allah (b) existe…
Porque recear então?
Allah (b) ama-te, irmão Bento.
Que a Sua Misericórdia derrame
abundantemente sobre ti e sobre a Igreja. E, da nossa parte, Paz.
(a) Sufismo: Sofismo (ár. Tassawwuf) não é algo acrescentado à Religião Islâmica, mas
algo que procede directamente do Sagrado Alcorão e das Tradições do Profeta,
que as bençãos e a paz estejam com ele. É uma
ramificação do conhecimento Islâmico que se centra no desenvolvimento
espiritual dos Islâmicos. Ao estudar a vida do Profeta, os eruditos que
propagaram o tassawwuf compreenderam que um dos requesitos para a aproximação a Deus era o abandono dos
objectivos comuns ao mundo. Eles muitas vezes vestiam artigos de lã devido à
sua simplicidade e baixo custo. Em árabe a palavra para lã é suf e, assim, aqueles que a usavam ficaram conhecidos como
os Sufis (ou Sufitas). Outra derivação possível desta
palavra vem da palavra raiz safa, que significa "limpar". Porque os
eruditos do tassawwuf focavam a limpeza do coração,
eles mais tarde tornaram-se conhecidos como os Sufis. O objectivo é a completa
submissão à Chariah (Lei Divina) e Sunnah (Ditos do Profeta), a fim de conseguir a
purificação do coração e da alma e de desenvolver uma ligação verdadeira,
profunda e duradoira com Deus.
(b) Allah: “Allah” é uma palavra árabe que significa Deus. Não é Deus
dos Muçulmanos ou Islâmicos, nem Deus dos Árabes como aparece muitas vezes na
Imprensa e até em certos dicionários portugueses. É preciso esclarecer que não
há “Deus” especial dos Muçulmanos que adoram o mesmo e um só Deus, venerado por
todos os praticantes das religiões monoteístas universais: Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo. De registar, ainda, que os Cristãos orientais que
celebram a missa em língua árabe chamam a Deus “Allah”.
Lisboa. Outubro de 2006
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas