Califado Islâmico entre mitos passados e ilusões presentes
Enviado para Al Furqán por: Louay Fatoohi
Traduzido por: M. Yiossuf Adamgy
Prezados Irmãos Assalamu Alaikum:
O “califado islâmico” é promovido
pelos seus advogados, alegando que era um sistema ideal de governo islâmico no
passado, que pode ser igualmente adequado e bem-sucedido para o presente e
futuro. O facto é que esta forma de governo é completamente inadequada para
uso, sem falar que é impossível de implementar. Mas a história do califado islâmico também mostra que este estava longe
de ser a imagem que é dada não só pelos seus apoiantes de hoje, mas também nas
mentes de outros muçulmanos que não estudaram a história cuidadosamente.
O califado islâmico é um
dos conceitos que sofreu do que eu chamo a abordagem “puritana” para entender e
apresentar a história Islâmica. Quando usado com qualquer aspecto desta
história, esta abordagem infalivelmente produz uma narrativa que é extraordinariamente
arrumada e despreocupada mas, ao mesmo tempo, largamente contra a história.
Isto aplica-se a coisas como a lei Islâmica, os ahadith do Profeta (p.e.c.e.), a história política do Islão, e por aí fora. O califado é outra vítima de tal perspectiva
ingénua e pouco crítica da história do Islão. A abordagem puritana é o
resultado de confundir Islão e Muçulmanos. O califado islâmico é invenção de
muçulmanos e não um conceito islâmico genuíno.
O termo “califa” vem da
palavra árabe “khalīfa” que significa “sucessor,”
em referência a suceder ao Profeta Muhammad (p.e.c.e.) enquanto líder dos
Muçulmanos. Este conceito não existe no Alcorão, apesar do termo “khalīfa” ser usado diferencialmente para se referir a
qualquer humano que represente Deus na terra. Os dois elementos principais de
um Califado Islâmico são uma
liderança política que governe todos os Muçulmanos ou pelo menos um número
substancial deles e a aplicação da lei islâmica através dessa liderança. Vou
focar-me na questão da liderança dos Muçulmanos, tendo em conta a sua história
para projectar o seu futuro.
Os
Muçulmanos Sunitas, al-Khulafā’ al-Rāshidūn
ou os “Califas Justos” que lideraram o estado Muçulmano depois da morte do
Profeta (p.e.c.e.) em 11 da Hégira (632 Era Cristã), foram os primeiros califas.
Estes foram Abu Bakr
(11-13 H), ʿUmar bin al-Khaṭṭāb
(13-23 H), ʿUthmān bin ʿAffān
(23-35 H), e ʿAlī bin Abī Ṭālib (35-40 H). Os muçulmanos xiitas, no
entanto, acreditam que ʿAlī devia ter
sucedido o Profeta (p.e.c.e.) e que os primeiros três não foram califas
legítimos. Argumentam que o Profeta (p.e.c.e.) nomeou ʿAlī
como seu sucessor, e que a Reunião dos Companheiros do Profeta que teve lugar
em Saqīfat Banī Sāʿida e que apontou Abū
Bakr foi deliberadamente marcada, enquanto ʿAlī estava a preparar o enterro do Profeta
(p.e.c.e.). Os Sunitas, pelo seu lado, argumentam que ʿAlī
deu a sua bênção às nomeações dos três primeiros califas. Vários estudiosos e
grupos acederam diferenciadamente e contrastaram argumentos e relatos
históricos, daí as divergências sobre o que realmente aconteceu.
Independentemente da
visão que cada um tenha sobre a legitimidade destes três califas, ninguém pode
argumentar contra a existência de mais do que uma versão da história. Do mesmo
modo, ninguém pode contestar o facto de estas divergências serem impossíveis de
resolver de uma forma conclusiva, devido à falta de evidências indiscutíveis.
Mas, deixando estas questões de lado, há factos concordantes, e estes não são
menos importantes. O primeiro é que
três dos quatro primeiros califas foram mortos. De facto, Abū
Bakr governou apenas dois anos, então, é pertinente
especular que, se ele tivesse governado mais tempo também teria sido morto.
Estes assassinatos, certamente não foram sinal de estabilidade e consenso.
Também indicam que os primeiros califas não estavam rodeados da protecção que
os califas, mais tarde, tiveram.
As políticas e as
nomeações de ʿUthmān causaram corrupção
administrativa e favoritismo, provocando a fúria pública. Então, o segundo facto significativo é que na
altura ʿAlī tomou posse do Califado depois
do assassinato de ʿUthmān, e a situação
política do estado Muçulmano piorou, significativamente, ao ponto de se tornar
ingovernável pacificamente. Enquanto os três primeiros califas expandiram o
estado islâmico através de conquistas, ʿAlī
foi forçado a entrar em guerras civis.
No seu Segundo ano (36
H), ʿAlī teve de derrotar um exército
comandado pelos Companheiros Ṭal-ḥa bin
al-Zubair e al-Zubair bin
al-ʿAwwām, ambos mortos na batalha. O nome
da batalha, “al-Jamal” (O Camelo), indica por si só a
gravidade da instabilidade política. O nome vem do facto de uma das esposas do
Profeta (p.e.c.e.), ʿᾹ’isha,
ladeada por Ṭal-ḥa e al-Zubair, ter caminhado no seu exército às costas de um
camelo.
Mas a Guerra que
verdadeiramente mudou a direção da história do Islão, surgiu três anos mais
tarde. ʿAlī tentou substituir Muʿāwiya bin Abī Sufiān que fora indicado por ʿUmar
como governador da Jordânia e Damasco, e a quem ʿUthmān
estendeu, mais tarde, o seu poder para incluir a Síria. Muʿāwiya
usou o pretexto, de que ʿAlī não levou os
assassinos de ʿUthmān à justiça, para
rejeitar o califado de ʿAlī e a sua decisão
de o demitir da sua função. Isto fez com que os dois se defrontassem na Batalha
de Nahrawān em 39 H. O fim inconclusivo desta
batalha, mais tarde, enfraqueceu o califado de ʿAlī.
Sem surpresa, o quarto califa foi assassinado um ano depois. Após a morte de 'Alī, o seu filho e neto do Profeta al-Imam al-Hassan foi escolhido para sucedê-lo como califa,
mas em 6 meses foi forçado a demitir-se e entregar o poder a Mu'awiya. Depois de frustrada a tentativa de 'Alī para reformar o Estado islâmico e ter conseguido
tomar o poder, Mu'awiya passou a introduzir a monarquia
hereditária para os muçulmanos, estabelecendo o primeiro califado dinástico, o Umayyad
(Omíadas) (41-132 H).
Esta é uma extremamente breve descrição da história mais antiga do
califado islâmico, mas serve para mostrar a quão desarrumada a história é.
Mais detalhes do que aconteceu só podem tornar a imagem ainda mais confusa. Os
califas que sucederam, com raras excepções, não foram muito melhores do que Mu'awiya. O último líder político a levar o título de
califa foi Mehmed VI, o último sultão otomano. Em Novembro de 1922, a Grande Assembleia
Nacional Turca, sob a liderança de Mustafa Kemal Atatürk, aboliu o
sultanato e enviou o último sultão para o exílio. O primo do último, Abdül-mecid Efendi, foi nomeado
califa, que é um líder religioso, mas sem poder político. Em Março de 1924, este título, agora
totalmente sem sentido, também foi
finalmente abolido.
Quando o Profeta Muhammad
(p.e.c.e.) estava vivo, ele era o líder incontestado e único, tanto espiritual
e político, de todos os muçulmanos. Isso é natural, é claro, uma vez que a
própria definição de "muçulmano" implica a crença na origem divina da
missão do Profeta e obediência a ele como indicado, repetidamente, no Alcorão,
aos muçulmanos que "obedeçam a Deus e ao Mensageiro" (por exemplo,
3:32). Qualquer rejeição da liderança espiritual e política do Profeta
(p.e.c.e.) não teria sido vista como uma quebra entre os muçulmanos, porque
teria resultado na perda rejeitadora da sua
identidade islâmica, ou seja, tornar-se-ia não-muçulmano. A própria definição
de muçulmano foi derivada de aceitar e seguir o Profeta (p.e.c.e.).
Mas o mesmo não pode ser
dito sobre os sucessores do Profeta. Se alguém rejeitasse a nomeação de,
digamos, Abu Bakr (r.a.), como califa, em seguida, não seria automaticamente afastado da
sua identidade islâmica ou excluído da comunidade muçulmana. Uma pessoa pode
acreditar que Abu Bakr era a pessoa errada para
liderar os muçulmanos e ainda assim ser um muçulmano. Obviamente, se alguém
acreditasse que o Profeta (p.e.c.e.) tinha escolhido o seu sucessor, mas
rejeitasse a sua decisão, então, teria sido um acto extremamente grave de
desobediência, mas nenhum dos que apoiava ou contestava a nomeação de qualquer
dos primeiros califas disse que agiam contra a decisão do Profeta (p.e.-c.e.). Todos argumentaram que estavam a seguir o que o
Profeta (p.e.c.e.) queria.
Os
xiitas argumentariam que ‘Alī (r.a.) foi, a
este respeito, mais como o Profeta do que os outros califas, porque o Profeta
(p.e.c.e.) escolheu-o explicitamente a ele para sucedê-lo, política e
espiritualmente. No entanto, o facto da maioria dos muçulmanos não ter e não
partilhar esta crença, significa que o caso de 'Alī
não é o mesmo que o do Profeta. A liderança do Profeta (p.e.c.e.) era indiscutível, e isso é um ponto
crítico na discussão actual.
Para o bem do argumento,
vamos supor que os três primeiros califas foram aceites por unanimidade por
todos os muçulmanos. Mesmo se isso fosse verdade, essa unanimidade terminou com
a morte de 'Uthmān (r.a.). 'Alī
(r.a.) foi
a escolha da maioria, mas também enfrentou oposição séria. Esta oposição
cresceu assim como alguns dos seus seguidores também se voltaram contra ele,
porque ele aceitou uma trégua com Mu'awiya. Não se
encontrou nenhuma vitória, nenhuma situação ganha; uma tarefa impossível. Após 'Alī,
os califas muçulmanos não ganharam poder através do consenso da maioria, como
os primeiros califas, mas impondo-se sobre os seus súditos muçulmanos. Mu'awiya (41-60 H) não era mais popular do que 'Alī ou al-Hassan, nem lhe foi dada a posição de chefe
de Estado islâmico pelos muçulmanos. Ele simplesmente
tomou o poder pela força, bem como astúcia, e sacrificou tudo para tomar o
poder e tornar-se califa e, em seguida,
passá-lo para seu filho Yazīd (60-64 H). Os
Abássidas extravagantes não eram menos brutais ou mais consensualmente eleitos
do que os governantes Omíadas, e os Sultões indulgentes Otomanos não eram menos
ditatoriais e narcisistas, para citar apenas os principais impérios islâmicos.
Estes governantes
poderiam ter governado a maioria dos muçulmanos e países muçulmanos, mas isso
não é o principal elemento do conceito do califado islâmico, como aplicado aos primeiros califas.
Nenhum destes governantes e poderosos califas o foram no mesmo sentido dos
primeiros califas. Além disso, os seus motivos estavam longe de ser puramente
islâmicos. É revelador que os sultões otomanos conseguiram conquistas que
expandiram o seu império massivamente em todas as direcções mas, ainda assim,
nem um único deles fez a viagem a Meca para a peregrinação ou 'umra ou
visitou o Santuário do Profeta (p.e.c.e.) em Medina. A sua vontade de juntar
supostas relíquias do Profeta (p.e.c.e.), em Istambul, era mais sobre a
promoção do seu capital do que resultado de amor pelo Profeta (p.e.c.e.) ou
prestação de um serviço para os muçulmanos. Houve raras excepções, como eu
disse, como o califa omíada ʿUmar bin ʿAbd al-ʿAzīz.
Tudo isto evidencia um
facto simples: a partir da perspectiva sunita, os muçulmanos tiveram um califado
por apenas 30 anos depois do Profeta (p.e.c.e.), e para os xiitas só existiu
durante os cinco anos do governo de 'Alī. Os
séculos posteriores de lideranças fortes, muitos dos quais governou a maioria
dos muçulmanos, foram tempos de califado islâmico apenas de nome. É por isso
que o alegado califado islâmico do passado é mais um mito do que uma realidade.
Mesmo quando a comunidade
muçulmana ainda era pequena, ter um califa amplamente aceite era difícil. Nem
mesmo 'Alī, cuja proximidade com o Profeta (p.e.c.e.)
e piedade nunca foi questionável, não pôde unir os muçulmanos. Mu'awiya percebeu que para
unir os muçulmanos ou a maioria deles, os governantes tinham que recorrer às
mesmas tácticas de base que todos os reis e imperadores da época: usar o poder, tomar o poder, para
justificar o poder. Pode-se argumentar que se Mu'awiya
tivesse aceite o califado de 'Alī
a história do califado islâmico teria sido diferente. Mas a questão é que esta
história alternativa preferível não se concretizou ainda que tivesse como
destaque uma figura como 'Alī.
Então, se isto é o que aconteceu naquela
época, quais são as possibilidades
de realização de um verdadeiro califado islâmico no mundo de hoje? Quem é que é um califa excepcionalmente
talentoso e piedoso? Colocando esta questão
de lado, mesmo um califa que governasse da Indonésia a Marrocos teria muitos
milhões de muçulmanos que vivem em outros lugares e em diferentes sistemas
políticos. E como é que poderia ter lugar uma qualquer
unificação política entre os estados islâmicos ainda que fosse pela força? É
por isso que um califado islâmico moderno nunca pode ser mais do que uma
ilusão.
Pode-se argumentar que,
independentemente de todas as suas falhas, o califado islâmico era melhor para
os muçulmanos, do que viver sob as regras de não-muçulmanos. Isto era verdade
para a maioria, se não fosse para todos os tempos. Na verdade, esses califas
muçulmanos muito corruptos foram muitas vezes preferidos, até mesmo por
não-muçulmanos, a outras regras. Os judeus tiveram uma vida muito melhor e
estavam mais seguros sob o governo de califas muçulmanos do que governantes
cristãos. Mas isso não significa que esses califas tivessem representado uma
liderança islâmica adequada. Eles não eram governantes muçulmanos genuínos, com
algumas falhas; eles eram ditadores corruptos que tinham emprestado do Islão
alguns dos seus belos valores.
Mas
aqui está o ponto crítico. Enquanto esse califado pode ter sido a melhor opção
disponível na época, no entanto, certamente, não é uma opção hoje. Quero dizer,
não só para os não-muçulmanos, mas também para os muçulmanos. O califado
islâmico é efectivamente um sistema de governo totalitário; por isso, por
definição, é totalmente incompatível com a forma como as pessoas hoje querem
viver e ser governadas. Qualquer sistema ditatorial, independentemente da sua
base teológica, seria rejeitado e ressentir-se-ia pela esmagadora maioria dos
muçulmanos. É por isso que qualquer grupo que busca estabelecer um califado
islâmico, como a al-Qaeda e o Estado Islâmico (IS), só
pode fazer isso forçando brutalmente as pessoas. Na verdade, a sua selvajaria
excede até a brutalidade de outros ditadores contemporâneos, algo de que a maioria dos califas do
passado não pode ser acusada. Os muçulmanos sabem que têm mais direitos
humanos se viverem sob os governos não-muçulmanos que sob uma versão moderna do
califado islâmico terrível do passado. Porque a esmagadora maioria dos
muçulmanos hoje se opõem a um califado islâmico, este projecto não tem
hipóteses de sucesso. No entanto, como em qualquer guerra, pode ainda deixar
para trás muitas pessoas mortas e causar sofrimento e destruição inimaginável.
Para muitos, a imagem do Islão é parte do dano.
Aqueles que querem
estabelecer um califado islâmico hoje e voltar à supostamente perdida glória,
são culpados de, pelo menos, uma das seguintes opções, senão, maioritariamente,
de todas elas:
◾ A ignorância da história islâmica.
◾Promoção de uma visão incrível e irreal do califado
islâmico.
◾Falha em mostrar como esse sistema pode ser implementado.
◾Tentativa de estabelecer um pequeno califado de curto
prazo usando extrema brutalidade contra aqueles que eles querem governar.
Aqueles que usam a
violência para conduzir o seu objectivo de um califado islâmico, como a al-Qaeda e IS, buscam o que os Omíadas, Abássidas,
Fatimitas, Otomanos e outros governantes muçulmanos queriam. Do que eles estão atrás é exactamente o
mesmo que os gregos, romanos, cristãos e outros reis e imperadores procuraram:
poder e privilégios. A sua alegação de que querem estabelecer um califado
islâmico para servir o Islão não é mais
verdadeira do que a proclamação dos cruzados que travaram as suas guerras para
promover e defender o cristianismo. Quando o poder e os privilégios são um
motor principal, o fanatismo vem a calhar, porque o falso zelo pela religião
pode ser usado para justificar a eliminação de um rival e inimigos, incluindo
aqueles que partilham da mesma fé. Esta é a forma como os grupos islâmicos que
buscam o califado justificam a perseguição e morte de xiitas, sufis, sunitas;
eles não aprovam os muçulmanos não-conformes, e muito menos os não-muçulmanos.
Tais grupos violentos e indivíduos são os novos cruzados; eles são em si mesmo
os cruzados.
M. Yiossuf Adamgy
– Lisboa
16/10/2014.