Al Aqsa (YA)
Mesquita
de Al Aqsa em Jerusalém: O
Lugar da Experiência Mística
Caso
os dados de que dispomos se limitassem apenas a algumas referências históricas,
o papel desempenhado por Jerusalém pareceria, pois, terrivelmente antigo: uma
recordação assaz carregada. Contudo, a realidade é, de facto, muito mais
complexa, isto devido a um acontecimento que tanto tem de enigmático, como de
impalpável, mas que marcou, todavia, a configuração simbólica da imaginação
Muçulmana: refiro-me pelo que é conhecido como “a viagem nocturna” do Profeta
Muhammad (vulgarmente conhecido em português por Maomé), paz esteja com ele, ou
seja, um trajecto por ele realizado numa única noite, e durante o qual viveu
uma experiência decisiva. O Alcorão refere-se a esta viagem. Trata-se do
primeiro versículo da Surata XVII, intitulada
precisamente Al-isrâ’, “A Viagem Nocturna”:
Glorificado seja Aquele que, durante a noite, transportou o Seu
servo, tirando-o da Sagrada Mesquita (em Makkak =
Meca) e levando-o à Mesquita de Al Aqsa (em Jerusalém), cujo recinto bendizemos, para
mostrar-lhe alguns dos Nossos sinais. E Ele é Omniouvinte,
Omnividente. Alcorão 17:1.
A
exegese dos primeiros séculos dividiu-se no que respeita à explicação destes
versículos. Houve consenso quanto à identificação do “Santuário Sagrado”,
o qual foi rapidamente identificado como tratando-se do de Meca. Mas qual seria
o “santuário mais distante”, cujos arredores eram abençoados? Duas
interpretações foram então emitidas.
Segundo
a primeira, tratava-se do lugar mais elevado do Céu. O Profeta foi elevado e
viveu uma ascensão de Céu em Céu, até ao “santuário último” o derradeiro
a que tem acesso um ser humano. Aí, houve um frente a frente supremo, entre o
Profeta e Deus.
De
acordo com a segunda, trata-se do santuário de Jerusalém. Ora, os historiadores
contemporâneos argumentam que, na altura em que este evento teve lugar (616 ou
617), não existia ainda nenhum santuário em Jerusalém, visto o local do antigo
templo ser então um terreno vago, destinado ao uso público.
De
um ponto de vista simbólico, não é possível excluir ambas as explicações, tão
forte era a possibilidade de uma dimensão celeste de Jerusalém. Por outro lado,
a exegese que por fim prevaleceu no Islão, a única que foi retida pelo
imaginário comunitário, resulta precisamente de um aglomerado destas duas
tradições. Se procedermos à síntese das versões tradicionais tardias
(diferentes dos Ahadices antigos, cf. “Le voyage intiatique
en terre d’Islam”, principalmente o artigo de J. Van
Ess), referente à viagem nocturna, obtemos a seguinte
narrativa:
Uma
noite, enquanto dormia (na sua casa, ou perto da Ka’aba)
Muhammad (s.a.w.) foi acordado por mensageiro (o anjo
Gabriel é expressamente nomeado). Indicaram-lhe uma montaria esplêndida e, ao
montá-la, voou de Meca a Jerusalém. Aí, encontrou-se com vários dos grandes
Profetas, entre os quais, e tendo em conta as versões de uso mais corrente,
Abraão, Moisés e Jesus. Em conjunto, efectuaram a oração ritual, tendo Muhammad
(s.a.w.) na altura assumido a função eminentemente
simbólica de Imame. Seguidamente, Muhammad (s.a.w.), sempre guiado por Gabriel, subiu de céu em céu,
tendo por base o local exacto que em Jerusalém, liga as duas dimensões do
Universo. Foi-lhe possível contemplar o Paraíso e o Inferno. A cada Céu,
encontrou-se com um Profeta, que funciona aí como que um encarregado. No sétimo
Céu, onde se encontrou com Abraão, viveu um encontro imediato com o próprio
Deus.
Este
relato da ascensão celeste conheceu múltiplas amplificações. Seria lido,
difundido, comentado, e abundantemente ilustrado. Seria, inclusive, traduzido
em Castelhano ou Catalão, depois em Latim, livro “Livre de l’Echelle de Mahomet” (Liber Scale Machometi).
Seja
como for, a tradição retida baseia-se na dupla experiência dessa noite: por um
lado, o trajecto de Meca a Jerusalém e, por outro, a ascensão celeste de
Muhammad (s.a.w.). Penso, todavia, que há que evitar
separar as duas, ou de ver aí um simples subterfúgio destinado a conciliar os
dados exegéticos contraditórios. O relato significa explicitamente que
Jerusalém é a porta do Céu, que sobre ela repousa o eixo que conduz ao Trono de
Deus (cf. a bibliografia corrente – a Sîra –
do Profeta, ou ainda o Livro da Viagem de Muhammad (Cap. V). Este
livro reúne outras tradições, contadas por Abû al-Ma`âlî, as quais descrevem Jerusalém como um lugar donde
a luz celeste emana permanentemente sobre a Terra (pág. 164).
O
relato desta viagem nocturna – qualquer que tenha sido a sua primeira forma –
desempenhou um grande papel na história da primeira Comunidade Muçulmana.
Quando no dia seguinte Muhammad (p.e.c.e.) a contou, tal motivou o sarcasmo por
parte dos habitantes de Meca e vários Muçulmanos acreditaram que algo de mal
lhes poderia acontecer por terem aderido àquela religião. A tradição posterior
específica, evidentemente, que Muhammad (p.e.c.e..)
encontrava-se em situação de lhes descrever detalhadamente o trajecto e a
cidade de Jerusalém, e que tudo foi corroborado pelo testemunho de uma caravana
que regressava de viagem. Do mesmo modo, e confrontado com a questão de saber
se a viagem fora em espírito ou em corpo, se se
tratara de uma visão ou de um arrebatamento miraculoso, ficou determinado que
foi “em corpo” (cf. A viagem inicial…, o artigo de G. Monnot; e o livro “A Vida de Muhammad” de M. H. Haykal). Mas tenhamos em conta que a alternativa existe em
menor grau para aqueles que têm em conta a dimensão imaginativa das
experiências deste tipo. Em todo o caso, retenhamos deste relato da viagem
nocturna um ponto decisivo: se o culto exterior dos Muçulmanos tem lugar em
Meca, e em nenhum outro lugar, o culto espiritual, aquele que antecede o
encontro com o Divino, está relacionado com a Mesquita de Al
Aqsa, de Jerusalém.
Mahomed Yiossuf Adamgy - Lisboa - Portugal
Fevereiro de 2010
NOTA: Este artigo foi a resposta a um
crente cristão, que ao tomar conhecimento da afirmação, muitas vezes
erroneamente divulgada de que a Mesquita de Al Aqsa fora o lugar da ascensão de Maomé, perguntou como era
possível Maomé ter um lugar da sua ascensão e ao mesmo tempo o lugar do seu
túmulo em Meca.
Admitindo que mais pessoas possam ter a
mesma dúvida, decidimos publicar este esclarecimento.