De quem é a terra? (AF)

Posse da terra, os pobres e a Bíblia

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de

Deus o criou; macho e fêmea os criou.” Génesis 1:27

 

 

I – Introdução                                          

 

Com certa frequência, lemos na Comunicação Social, bons textos abordando vários problemas sociais e económicos provocados pela luta dos povos pobres, em muitas regiões do Mundo, em busca de melhores condições de vida, a sua “Terra Prometida”.

E uma das áreas, que mais tem sido posta em evidência, devido à sua particularidade geográfica e histórica, é a Terra da Palestina, no Médio Oriente, com a luta frequente entre Israelitas e Palestinianos, devido ao problema da ocupação e exploração da terra, com tudo aquilo que esta posse significa.

Este diferendo geográfico, político e também religioso, de contornos muito específicos, de solução difícil, lembra-nos a existência de muitos outros problemas de povos com dificuldades económicas, que em muitas regiões do mundo, lutam também pela posse de terra, no seu anseio de liberdade, estabilidade de vida, promoção social e económica.

A exigência dos pobres para terem acesso à terra para a manutenção da sua vida, em condições dignas, tem sido um grave problema moral e social difícil de resolver, ao longo dos séculos.

Os pobres pretendem, de forma legítima, viver condignamente, com acesso aos meios de riqueza, que o cultivo da terra proporciona. Por outro lado, temos os grandes latifundiários que detém vastas áreas de terra para a sua agricultura intensiva e industrializada, que lhes permite um retorno de capital adequado. Numa outra face da questão, temos pequenos produtores com terra, mas que devido à sua pequena produção agrícola não têm condições económicas competitivas, afastando-os, muitas vezes, dos circuitos comerciais para o escoamento dos seus produtos. 

É nesta falta de equilíbrio que se processam as grandes revoluções políticas e sociais, que ao longo da história tem tido lugar, entre povos e dentro das Nações, que a História Universal regista, e que tem, na sua génese, e na generalidade, a posse da terra, como meio de emancipação económica e política dos mais desfavorecidos. 

As grandes migrações dos povos no passado e a conhecida história da Época dos Descobrimentos dos Portugueses e Espanhóis, reflectem a busca da necessidade de emancipação de carácter económico e de espaço vital, para crescimento das suas populações e deve ser vista também no contexto histórico da sua época. 

A posse da terra, sempre significou para os povos, não só o seu sustento diário e formação de riqueza, mas também a sua liberdade.

A terra, enquanto território, contribui para a formação do enriquecimento cultural e tradições populares que fortalecem o tecido social dos povos; além disso, ela permite ainda obter a segurança, em vários sentidos, porque o desenvolvimento dos povos necessita de um lugar permanente para a defesa da vida.

A acrescentar a tudo isto, sabe-se que a ocupação permanente da terra permite o seu pleno desenvolvimento, mas exige um enorme esforço de trabalho, investigação e de investimento financeiro, que precisa de tempo para a obtenção de mais valias compensadoras.

 

 

II - Referências bíblicas

 

Ligado à posse da terra, encontramos na Bíblia inúmeras referências a este tema.

A primeira referência encontra-se em Génesis 1:28/29 e Génesis 2:1/8. É opinião do autor destas linhas, que se trata já de um lugar físico, que constitui o primeiro lar humano, com que se inicia a história do Homem.

 O princípio do domínio do homem sobre a terra e sobre a criação, são ali expressos, reflectindo formas de organização social e de trabalho que representa um valor económico, não ainda no sentido de bens de transacção comercial, mas da obtenção dos meios necessários à sustentabilidade da vida.

Nos capítulos seguintes, o autor do Livro, enriquece o texto, com mais detalhes, nomeadamente a formalização do aspecto da fixação do homem sobre a terra e o início da exploração desta, indicando os critérios com que Deus define o Seu Projecto, fixando as fronteiras da acção do homem.

É-nos dito que o Criador, coloca o homem no Jardim do Éden Génesis 2:8. Nesta expressão, podemos fazer uma leitura que nos revela um ambiente propício à harmonia da natureza de que o homem faz parte, reunindo todos os elementos de felicidade para a sua realização.

Desta forma, criou Deus todas as condições que conduziam à completa realização do homem. O projecto Divino é, por isso, um projecto completo e perfeito.

Nele o homem fica contemplado com a afinidade com Deus, a sua comunhão e lealdade e é ainda chamado a cooperar no projecto Divino. A harmonia entre o Criador e o Homem é uma nota dominante.

Neste projecto, Deus não deixa o homem ocioso. O trabalho faz parte da disciplina e do equilíbrio psicológico do próprio homem e fica ligado à natureza. A vida para o homem decorrerá de forma tranquila, produtiva e enriquecedora e entendemos isto, lendo que o homem recebe instruções para “lavrar e guardar a terra”, que lhe é confiada. A sua ligação à terra é decisiva e dela depende.   

Neste projecto Divino, são também fixadas para o homem as normas para a sua alimentação, que tem por base, a parte vegetal da terra, como forma de manutenção da sua vida física e de saúde Génesis 1:29. Este princípio orienta o homem para o cuidado que deve ter com a terra, porque ela é fonte e sustento da vida física.

Como parte importante deste projecto Divino, o autor do Livro indica que Deus decide que o homem não deve estar só e introduz a formação da mulher como parte integrante que completa e enriquece a criação humana. Em Génesis 1:28, lemos que Deus estabelece para o Casal, além das normas de vivência na terra, uma outra tarefa, que é a de se multiplicarem e encherem a terra. Ou seja, é-lhes dada a faculdade da fertilidade, como graciosa extensão do poder de Deus às suas criaturas.

E este aspecto cria novas necessidades morais e sociais que é a procriação, com as suas implicações de segurança necessária ao sucesso da vida.

No desenvolvimento desta reflexão e da análise do texto bíblico, encontramos, no relato de Génesis 12, a promessa divina da outorga de terra a Abraão e sua descendência, em que a terra assume a expressão de bênção Divina para a realização desse projecto, Génesis 12:1/2 estabelecendo Deus uma Aliança, que encontramos na leitura em Génesis 15:18, e que contém, como parte integrante, a posse de terra.

Por conseguinte, a terra é uma questão concreta e não uma promessa a realizar na eternidade, como bênção futura. É uma bênção divina e uma realidade da vida neste mundo.

Em Êxodo 3:7/8, Deus faz a promessa a Moisés, da libertação da escravidão do povo pobre hebreu, porque ouviu a sua aflição, ânsia de liberdade e desejo de progresso económico. E o projecto Divino é de conduzir o povo, pela mão de Moisés, a uma “terra que mana leite e mel”, sonho secular acalentado pela consciência popular.

Esta promessa Divina da entrega de uma “terra que mana leite e mel”, longe do Egipto, tem na terra um elemento concreto, não obstante a área geográfica ser habitada por outros povos, o que levanta questões de moral só compreensível pelo facto daqueles povos indígenas, assumirem uma posição de ideologia pagã, contrária à religião de Javé, segundo o entendimento do autor do Livro e no contexto de então.

No Livro de Josué, com a sua magnífica história de luta pela terra do povo pobre hebreu, vindo do Egipto, após séculos de escravidão, ansioso por um lugar de legitima realização individual e colectiva, assume um significado especial, em que os hebreus entendem que Deus está presente na sua luta, abençoando o seu anseio de terras para se fixarem.

Não poderíamos deixar de citar Isaías 11, e Isaías 65:17/25, com a sua esplêndida visão de um mundo novo, em que a terra continua a ser um meio de bênção no projecto divino para a humanidade. O Profeta anuncia a reformulação da terra, e a sua exploração será pacífica e em que cada um receberá o usufruto da terra que cultivará e viverá na sua casa, beneficiando das bênçãos divinas. Será a idade de ouro da agricultura.

Não se pode deixar ainda de referir Amós 2:6, porque ele reflecte o grito de justiça para com os pobres, sobretudo a total desconsideração para com os direitos e a personalidade humana.

Este Profeta menciona ainda o resultado da exploração do povo pobre, na sua luta diária de sobrevivência, em que a riqueza do alimento agrícola é usado, não como fonte de bênção para todo o povo, mas sim como elemento de exploração da classe dominante sobre os pobres. Ainda e sempre a terra como base da sustentação da vida física e de elemento social Amós 8:5.

 

 

III - Consequências morais e sociais

 

Aceites estes princípios da formação do Homem e da terra, facilmente encontramos motivos mais que suficientes, para concluirmos da necessidade que o homem tem de se fixar à terra e cultivar o seu campo, para obter o sustento, conforto e buscar nela segurança, em face das suas necessidades físicas e de procriação.

A terra não é só o aspecto físico, ela é também território onde a actividade humana se pode e deve desenvolver.

O homem precisa de espaço para a realização das suas necessidades espirituais, morais e culturais. E isto só se consegue com a fixação num lugar permanente, que reúna todas as boas condições climáticas, segurança ambiental e pacificação social para o efeito.

Com a queda do homem do seu elemento paradisíaco, a Natureza tornou-se difícil, de acordo com o relato bíblico. Com o desenvolvimento da humanidade e da busca da necessidade de terra, o conflito armado pela posse ou defesa do espaço vital físico da terra, passou também a ser quase uma constante e assim se tornou um novo elemento de instabilidade do homem, que o conduz à fuga das várias opressões.

A história diz-nos isto mesmo. A necessidade de terra, a busca da sua realização integral e desejo de liberdade, levam-no à fuga para evitar a opressão criada por ele próprio, com a instalação de sistemas ideológicos políticos, económicos e religiosos fundamentalistas, que o aviltam e aprisionam.

A construção das Américas, é um exemplo do que se mencionou no parágrafo anterior. Os seus intensos movimentos migratórios europeus, é um dado histórico que reflecte essa ânsia dos povos pobres na sua busca de terra livre para se libertarem da tirania feudal e religiosa da época.

 

 

IV - A terra na nossa sociedade contemporânea

 

Nas nossas sociedades modernas, com as suas preocupações sociais e com os seus projectos agrícolas, a distribuição da terra assume um elemento crucial para a justiça social.

Daí, a necessidade de haver reformas agrárias realistas que valorizem o património do povo, como elemento fomentador de progresso económico e de independência nacional.

A terra continua a representar uma colossal riqueza, porque não há nação livre que possa viver sem agricultura. E a posse da terra assume também o aspecto importante de território onde vive o povo, com as suas heranças culturais e históricas. Nenhum povo perde as suas memórias, que fazem parte do quotidiano e são ponto de referência psicológica. 

No Antigo Testamento, no Livro de Levítico encontramos diversas leis sobre a posse da terra, da necessidade do seu descanso, para a sua própria renovação e ainda leis que reflectem um enorme espírito de justiça perante o povo que pode empobrecer.

O capítulo 25, do mencionado Livro, contém preciosas informações sobre este tipo de justiça, que visa manter a dignidade humana, no sentido da não opressão  dos mais carenciados. Levítico 25:14/17

Levítico 25:25, estabelece o sistema de resgate da terra daqueles que empobreceram, exigindo manter o equilíbrio social, pela eliminação da injustiça, baseado na compaixão.

Em Levítico 25:23, é-nos dito: “também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha.”

Isto estabelece e define o princípio de conduta que o homem deve ter na sua caminhada social.

As notícias que no entanto, sempre aparecem na Comunicação Social, relatam-nos o aparecimento dos grandes movimentos dos povos pobres que reclamam a posse da terra e do usufruto dos seus recursos. O processo produtivo e a forte competição dos mercados cria, porém, fortes desigualdades sociais e económicas, muito difíceis de resolver, introduzindo ainda aspectos ecológicos da produção intensiva, que cria outras dificuldades.

 

 

V - Qual o papel das Igrejas Cristãs?

 

O Evangelho mostra-nos que Deus se preocupa com os pobres e com todos aqueles que são injustiçados.

A luta dos pobres por uma vida melhor, é uma luta de Deus. Os pobres encontram no Evangelho motivos mais que suficientes para entenderem que Deus não se esqueceu deles. 

Como Deus é o único proprietário das terras, conforme referência já anteriormente mencionada, as igrejas devem colaborar na elaboração de leis dos Governos, contribuindo para a eliminação da injustiça e ajudar a promover socialmente os mais desfavorecidos. Leis mais justas permitem uma maior disseminação da riqueza, com vantagens para todos, fortalecendo o tecido social e económico, trazendo paz e melhorando o ambiente moral das Nações.

 No “Sermão da Montanha”, mencionado em Mateus 5:1/11, Jesus anuncia nele uma autêntica revolução política, porque pretende criar uma ordem radicalmente nova na convivência entre os seres humanos. E no tema terra, desta reflexão, aparece-nos um elemento que lhe diz respeito, que se encontra no versículo 5: Ele diz-nos que a “terra” será herdada pelos mansos. Mais uma vez o tema “terra” assume o seu papel relevante na sociedade humana.

A Igreja Cristã continua a ser desafiada a dar atenção à ética  contida nas páginas do Evangelho de Jesus Cristo.

 

 

Afonso Felício Porto, Portugal

Setembro de 2005

 

 

Bibliografia consultada:

* Bíblia de João F. Almeida, ed. Soc, Bíblica de Portugal, 1981

* Bíblia Vida Nova, ed. S.R. Edições Vida Nova, S.Paulo, Brasil, 1980

* “Josué, y la Tierra Prometida”, de Roy H. May, Jr, ed. Junta General de Ministérios Globales, Igreja Metodista Unida, New York, NY 10115

* “O que diria Jesus hoje?” de Heiner Geisler, ed. Casa das Letras, Cruz Quebrada, 2005

 

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas

 

 

 

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