Tentando compreender a
discriminação religiosa em Portugal (CC)
(Artigo de Outubro de 1998)
(Clicar nas referências sublinhadas para ter acesso
aos textos)
Em breve, possivelmente ainda este ano,
será examinada a proposta de Lei de Liberdade Religiosa em Portugal.
É natural que se pergunte:
Qual a situação actual da liberdade
de religião em Portugal?
Será a liberdade de religião, o ideal
que todos desejamos para o nosso país?
Embora todos saibamos da grande
importância duma Lei de Liberdade Religiosa, será que basta termos legislação
correcta para que o problema esteja ultrapassado?
Certamente que vivemos actualmente num
clima de muito maior respeito pela religião de cada um. Muitas autarquias do
nosso país são disso um bom exemplo pelo apoio que têm dado a todas as igrejas
sem discriminação, embora o Estado duma maneira geral continue a privilegiar a
Igreja Católica Romana.
Penso que vários factores têm
contribuído para esse clima de maior abertura.
Em primeiro lugar o 25 de Abril com a
derrocada da ditadura salazarista não deixaria de abalar os privilégios do seu
principal suporte, a Igreja Católica Romana. Privilégios que foram abalados,
mas ainda se mantêm.
Em segundo lugar a nossa integração na
Comunidade Europeia em que o protestantismo tem lugar de destaque e
principalmente as verbas de que o nosso país tem beneficiado, verbas da
Comunidade Europeia em que os maiores contribuintes são os países protestantes
mais desenvolvidos do norte da Europa e que têm fornecido uma eficiente ajuda
aos países católicos do sul, mais atrasados quer em nível de vida, quer em
matéria de liberdade de expressão.
Não podemos também ignorar a nova
atitude da Igreja Católica Romana que também acabou por aderir ao Movimento
Ecuménico, facilitando o clima de maior abertura que temos actualmente.
Não há dúvida de que duma maneira geral
temos liberdade de religião em Portugal, isto é importantíssimo. Mas será que
corresponde aos ideais que desejamos? Penso que não, pois as igrejas têm
liberdades diferentes. Para uns há tolerância religiosa enquanto a Igreja Católica
Romana tem os seus privilégios garantidos por acordos internacionais.
Esperamos que esta injusta situação seja
ultrapassada pelos nossos governantes, não só com a aprovação da nova Lei de
Liberdade Religiosa, como pela imprescindível revogação da Concordata com o
Vaticano, que constitui escandalosa ingerência dum estado estrangeiro que
divide os portugueses.
Sobre este assunto, já nos referimos no
nosso artigo sobre a “Liberdade Religiosa”, mas gostaria de tentar responder à
seguinte questão:
Será que basta alterar a legislação para
que o problema esteja ultrapassado?
Compreendemos que não é fácil mudar dum
dia para o outro, pensamentos tão profundamente arreigados na cultura
portuguesa, mas tenho observado um aspecto bem positivo que é a nova mentalidade
dos sacerdotes católicos mais jovens apesar da dificuldade de muitos antigos
sacerdotes de zonas rurais em se adaptarem à nossa época. Também é
compreensível a dificuldade de muitas igrejas evangélicas que durante anos
foram perseguidas em se adaptarem à nossa época de maior abertura, embora ainda
permaneça a discriminação religiosa que esperamos seja atenuada com a nova
legislação. Eu próprio, sei pessoalmente o que eram as pressões do catolicismo
romano em Moçambique, numa época em que era fácil um sacerdote católico sugerir
que algum protestante estava ligado aos movimentos pró-independência para
dificultar qualquer trabalho evangélico, mas nem tenho coragem para me queixar,
pois conheci pastores africanos da Igreja Presbiteriana e da Assembleia de Deus
com quem me identificava, que foram presos e mortos pela Pide por motivos
religiosos sob o pretexto da segurança do país. Temos de compreender que não é
fácil as mentalidades mudarem dum dia para o outro.
Penso no entanto, que será útil meditar no
assunto e procurar as origens desta mentalidade de intransigência medieval que
ainda se nota em muitos portugueses.
Quando um psicólogo tenta estudar um
doente, geralmente vai investigar as origens do seu mal. Se pudéssemos fazer o
mesmo ao nosso país, aonde chegaríamos?
Julgo que o raciocínio nos levaria às
origens de Portugal, ao nosso primeiro Rei, que ao declarar a independência do
seu país, se declarava vassalo do Papa.
Não digo que a ideia não fosse aceitável
nesse contexto histórico. Não estamos a julgar os actos do nosso primeiro Rei,
mas a olhar para a história para tentar compreender o presente.
Nessa época criou-se a mentalidade de
subserviência em relação ao Vaticano que parece ter marcado profundamente toda a
história de Portugal e que ainda afecta a nossa realidade.
Ao longo da história de Portugal e duma
maneira particular na época das descobertas, os vários povos com quem
contactamos, foram perseguidos e torturados “para dilatar a fé e o império”.
Suponho que não há registos do que se terá passado em África e no Brasil, mas o
mesmo não aconteceu na China e na Índia, onde um Tribunal da Inquisição foi
implantado em Goa em 1560 e ainda hoje o prestígio de Portugal é afectado pelas
atrocidades cometidas para a implantação do Catolicismo Romano. Quem nos nossos
dias tiver a oportunidade de efectuar um circuito turístico em Goa, terá
oportunidade de visitar o templo Hindu de Ramnath em
Pondá, templo centenário, que segundo informação das guias turísticas foi destruído
em 1566 pelos missionários portugueses embora fosse reconstruído em 1905, ainda
durante a administração de Portugal, e o templo de Shantadurga
destruído e incendiado pelos portugueses em 1567 sob a influência do fanatismo
dos jesuítas.
Na época de D. João II, que de acordo
com as informações dos nossos historiadores, não tinha preconceitos religiosos
e até defendeu os judeus nas Cortes de 1481/1482, muitos deles, fugidos de
Espanha, fixaram-se em Portugal.
Quatro ou cinco décadas mais tarde,
quando já estávamos na época áurea de Portugal, a tradicional divisão do país
em clero, nobreza e povo, foi abalada com o aparecimento duma burguesia culta,
rica, com ingerência na política e em todas as actividades lucrativas, onde
havia grande percentagem de judeus.
Estavam já criadas as condições para o
aparecimento do Tribunal da Inquisição que se manteve em funcionamento durante
250 anos, reprimindo não só todas as religiões não-católicas, como defendendo o
país da “imoralidade literária”, o que significa a restrição de toda a
liberdade de expressão.
Numa altura em que Portugal era o país
mais rico da Europa e em que os banqueiros mais poderosos estavam em Lisboa,
grande parte da fortuna estava nas mãos desses portugueses que seguiam a
religião judaica. Parece que o que deu origem à Inquisição,
foram não só os motivos religiosos, mas principalmente motivos económicos, pois
os bens dos condenados eram confiscados em favor do próprio Tribunal da
Inquisição e do Catolicismo Romano. Este limitava-se a “interrogar” os
suspeitos, pelos meios que todos conhecemos, até obter confissões verdadeiras
ou inspiradas pelo terror, após o que eram “relaxados ao braço secular”, isto
é, entregues às autoridades para serem executados.
No entanto, não houve só aspectos
negativos do Tribunal da Inquisição. Há países, como a Holanda, a Inglaterra, a
França e até a Turquia, que lucraram com a acção da Inquisição em Portugal,
pois nem todos os capitalistas, intelectuais e técnicos judeus e não-católicos
foram apanhados pelos inquisidores. Houve alguns que conseguiram fugir para
esses países e levaram não só o seu dinheiro como os seus conhecimentos e a sua
experiência. Particularmente no século XVII, o progresso económico de algumas
das mais ricas regiões da Europa, foi obra dos refugiados do fanatismo da
Igreja Católica.
Portugal entrava num período de declínio
e esses países tiveram oportunidade de aprender a navegar, enquanto em Lisboa,
Coimbra e Évora, ardiam as fogueiras da Inquisição e se consolidava a antiga
divisão em clero, nobreza e povo. Este último, cada vez mais desprotegido, sem
acesso à cultura que lhe estava vedada pela censura, e cada vez mais distante
do nível de vida do resto da Europa.
Duma maneira geral, penso que a
influência dessa velha mentalidade que tem levado ao afastamento de muitos dos
nossos melhores intelectuais, de certa maneira ainda se mantêm, não só no sub-consciente da nossa gente. Veja-se a atitude do nosso
Ministério da Cultura, que em 1992 proibiu José Saramago de concorrer ao prémio
Nobel devido à polémica levantada pelo seu livro “O Evangelho segundo Jesus
Cristo”, atitude que está na origem do seu auto-exílio para Espanha. Não quero
dizer que apoie o seu livro sob o aspecto religioso mas, segundo afirmou
Jónatas Machado, Professor de Direito na Universidade de Coimbra e membro da
Igreja Batista dessa cidade, “a liberdade tem um preço, é ouvir o que não se
quer ouvir e saber que se tem o direito de discordar”. Afinal em 1998 José
Saramago pode concorrer e ganhou o Nobel da literatura. Penso que Portugal só
lucrou, e que valeu a pena pagar o tal preço da liberdade. Também na recente
Cimeira Ibero-Americana, segundo os órgãos da nossa comunicação social, houve
uma proposta para que os vários países tivessem uma acção fiscalizadora nos
órgãos de comunicação, proposta que foi rejeitada pelo Brasil, Portugal e
Espanha. Parece que finalmente a liberdade de expressão se vai implantando nos
nossos países.
Mas, com um passado histórico em que,
salvo raras excepções, o poder político tem estado ao serviço da igreja
dominante, não admira que o artigo 41 da nossa Constituição seja um tanto
incómodo e se tente interpretá-lo num contexto muito diferente do que foi a
mentalidade do 25 de Abril.
O que é que acontece, quando nos
referimos ao artigo 41 Ponto 3 da nossa Constituição: “As igrejas e comunidades
religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no
exercício das suas funções e de culto”?
Aparece sempre quem diga: “Eu também
concordo com isso, pois a Igreja Católica, com o Vaticano II concedeu essa
liberdade ao reconhecer as outras igrejas....”
O velho problema da vassalagem de D.
Afonso Henriques ao Vaticano, cimentado pelos dois séculos e meio de
Inquisição, continua ainda bem vivo na nossa cultura. Continuamos a raciocinar
como se Portugal fosse ainda um feudo do Vaticano. Afinal a liberdade e
igualdade de religião é conquista do 25 de Abril ou é generosa concessão do
Vaticano que a qualquer momento pode ser cancelada?
D. Afonso Henriques era vassalo do Papa,
portanto as leis do Vaticano estavam acima das leis do próprio país.
Hoje, embora a Constituição diga que as
igrejas estão separadas do Estado, temos ainda em vigor uma Concordata com o
Vaticano que concede privilégios à Igreja Católica Romana, e segundo o critério
internacional, os acordos entre os vários países têm prioridade sobre as suas
leis internas. Será que a nossa situação é na prática, muito diferente do que
foi na época do nosso primeiro rei?
Não basta mudar a legislação, se não
houver vontade política para a cumprir, e principalmente se não houver a
iniciativa da revogação da Concordata acabando-se de vez com o secular complexo
de vassalagem que vem desde o nosso primeiro Rei.
Camilo - Marinha Grande,
Portugal
1998/10/16
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