Shalom
no Antigo Testamento (EM)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Regra geral, nos dias que correm,
citações bíblicas não se encontram propriamente (nem impropriamente) entre os
assuntos que despertam grandes curiosidades e, menos ainda, animadas discussões.
Nem entre aqueles raros exemplares da espécie humana cuja curiosidade
teimosamente recusa esgotar-se nos mais recentes desastres desportivos ou nas
últimas novidades big-brotherianas (1)...
No entanto, mesmo entre esta rara
espécie de gente citações bíblicas costumam passar despercebidas. Mesmo se
alguém insiste em afirmar a sua actualidade ou relevância, raramente conseguem
adquirir valor de notícia. Assim sendo, não surpreende que a mais recente
reunião do Comité Executivo do Conselho Ecuménico de Igrejas, realizada em
Janeiro de 2001 na cidade de Berlim, tenha sido imperialmente ignorada pela
comunicação social portuguesa. Não surpreende, mas é pena. Pois aqueles
cristãos reunidos em Berlim – representando mais de 350 igrejas ortodoxas e protestantes
– tiveram a ousadia de proclamar um “Decénio para superar a violência”. Ou
seja, de afirmar que, durante os próximos dez anos, as igrejas aí
representadas, na base da sua fé, podem, devem e querem concentrar todas as
suas energias num enorme esforço para superar a violência neste mundo. Não por
um capricho qualquer. Não apenas porque a questão da violência é, de facto, de
extrema actualidade – veja-se as notícias sobre a violência nas escolas, os
assaltos na rua, a violência doméstica, o debate sobre a prisão perpétua ou até
a pena de morte, os incontáveis conflitos armados pelo mundo fora, desde Angola
e Palestina/Israel até aos Balcãs e os ataques da ETA – .
Mas sim, motivados pela sua fé cristã e inspirados pela Bíblia.
Superar a violência. O projecto é
deveras ambicioso. Provavelmente ambicioso demais. Enfim, as probabilidades do
seu sucesso parecem ser diminutas, se não mesmo inexistentes. Nem que aconteça
um milagre. Porquê, então, a insistência?
Porque os cristãos são chamados a
superar a violência neste mundo e a proclamar e construir a paz. “Felizes os que constroem a paz”, nas palavras do
Evangelho em Mateus
5:9.
É esta a mensagem bíblica. Não há
espaço para dúvidas. A não ser.... e aqueles textos,
igualmente da Bíblia, que falam da “guerra santa”? Ou aquelas passagens que
apelidam Deus o “Senhor dos exércitos”? E as cruzadas e inquisições ao longo da
tão pouco pacífica história do cristianismo?
Afinal, parece oportuno e urgente – um
indispensável primeiro passo no sentido deste Decénio – estudar e rever a nossa
tradição. Com especial incidência na tradição bíblica.
Este artigo pretende contribuir para
esta tarefa. Opto por uma abordagem a partir do Antigo Testamento, pelo simples
motivo de este geralmente ser menos conhecido e de suscitar mais dúvidas (se
não acaba por simplesmente ficar ignorado). E também – e sobretudo – porque
nele se encontra o fascinante conceito de Shalom que,
julgo eu, pode com algum proveito inspirar e orientar este titânico projecto de
superar a violência no mundo actual.
Quanto às interrogações que normalmente
se levantam em relação ao AT, elas não são novas. “O Novo Testamento
apresenta-nos Deus como misericordioso, bondoso, Deus de Amor, Pai”, afirma-se
desde a Antiguidade, “mas o Deus do Antigo Testamento é duro, severo, violento,
vingativo, belicoso. Que proveito podemos tirar daí para uma teologia da Paz?”
(2) Não é raro ouvirem-se afirmações como esta e, no entanto, pelo menos nesta
forma tão geral, ela é incorrecta e profundamente enganadora. E isto por três
razões:
1 - Enquanto o NT reflecte não mais do
que 150 anos de história da fé, o AT representa quase 2000 anos. É
perfeitamente natural que a fé e a reflexão teológica se tenham desenvolvido ao
longo deste extenso tempo (tal como a fé cristã se desenvolveu ao longo dos
últimos 2000 anos – ninguém defende hoje cruzadas ou a divulgação da fé pela
força da espada, por exemplo). Encontramos, por isso mesmo, no Antigo
Testamento uma grande variedade de experiências com Deus e também ideias muito
diversas acerca da violência. Pouco tem a ver o “príncipe da paz” de Isaías 9:1 ss. com o Deus guerreiro de Êxodo 15:3 ss, por exemplo.
2 - É importante, para qualquer
comparação entre Antigo e Novo Testamento, que se escolham textos comparáveis.
Ou seja, é completamente inadequado contrastar “o melhor” do Novo Testamento
com “o pior” do Antigo Testamento (como ainda muitas vezes acontece). Mas é,
sim, interessante comparar textos sobre a misericórdia de Deus no NT com outros
sobre o Deus misericordioso no AT. Em Êxodo 34:6/7,
por exemplo, Deus apresenta-se a Moisés como “Deus
misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e de fidelidade,
que mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a iniquidade, a
rebeldia e o pecado, mas não declara inocente o culpado e pune o crime dos pais
nos filhos, e nos filhos dos seus filhos até à terceira e à quarta geração”.
Enquanto passagens sobre a severidade de Deus no Antigo Testamento podem ser
comparadas, por exemplo, com passagens sobre o julgamento no NT (cf. Apocalipse 19:11/21;
Mateus 25:31/46).
3 - Muitas passagens do Antigo
Testamento afirmam: Deus não tolera o mal. Mas a sua misericórdia e o seu Amor
são infinitamente maiores do que o seu castigo. (3) O castigo, sim, pode
manter-se até à quarta geração, mas a graça de Deus permanecerá até à milésima,
afirma-se, por exemplo, na passagem acima citada! “Se existe algo evidente na
história de Israel, reflectido com fé profunda ao longo de inumeráveis páginas
da Bíblia, é a certeza de que Deus ama o seu povo”. É na base desta profunda
convicção que Israel procura entender a experiência do sofrimento e do fracasso
enquanto purificação, castigo passageiro, etc., sem que isso ponha em falência
a fé no amor de Deus. (4)
O profeta Oseias testemunha este
profundo amor de Deus pela humanidade, que procura a vida e não a morte dos
seus filhos. O mais “natural” seria Deus abandonar o seu povo que o abandonou.
Mas “não desafogarei o furor da minha cólera, não
voltarei a destruir Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio
de ti, e não me deixo levar pela ira.” Oséias 11:9
Não obstante, é de facto urgente um
estudo aprofundado das passagens mais violentas do Antigo Testamento. Durante
demasiado tempo estes textos foram simplesmente ignorados ou rejeitados na sua
generalidade, sem que alguém se desse ao trabalho de uma análise rigorosa e
pormenorizada. Recentemente porém têm vindo a publicar-se diversos estudos
neste sentido. (5) Não podendo referir aqui os seus interessantíssimos
resultados, quero pelo menos chamar a atenção dos leitores para a sua existência.
Por outras palavras, a violência é uma
(lamentável) realidade deste mundo. O Antigo Testamento não nega nem ignora
este facto. Antes, encontramos nele o testemunho de um povo que, no meio desta
realidade, procura ouvir e perceber, sempre de novo, o Deus da Vida e seguir a
sua palavra.
É no contexto desta fé e desta reflexão
teológica ao longo dos séculos que vai ganhando cada vez mais importância o
fascinante conceito de Shalom, vulgarmente traduzido
por “paz”. Embora, visto de perto, as nossas Bíblias portuguesas precisem de
pelo menos vinte palavras diferentes para exprimir o seu vasto significado.
O que é Shalom?
E em que sentido é que este antigo conceito poderá inspirar e orientar os
Cristãos no início do século XXI?
Para aproximarmo-nos de Shalom, convém, antes de mais, distingui-la de outras
ideias da paz que influenciaram e ainda influenciam o nosso pensamento
ocidental sobre o assunto. Assim, a palavra Shalom
nunca significa simplesmente a ausência de guerra ou conflitos violentos.
Também não se alcança nunca simplesmente pela subjugação sob uma ordem imutável
e eterna (seja ela de origem social, cósmica ou divina). Menos ainda Shalom se deve confundir com uma “ordem” imposta pelo mais
forte (militarmente ou economicamente), como sugere a ideia da “Pax Romana”, esse antigo eufemismo pela exploração dos
povos subjugados pelo Império Romano. E Shalom também
nunca se aplica a uma paz apenas interior, uma paz apenas do espírito.
Posto isto, constatamos, em primeiro
lugar, que “Shalom” é um cumprimento, na Bíblia e
ainda hoje no Médio Oriente, na língua hebraica e também na língua árabe.
Jacob, ao encontrar e cumprimentar os pastores do seu sogro Labão, quer saber
se Labão está bem, se está com saúde, etc. “Hashalom
lo?”, pergunta Jacob Génesis
29:6. “Tudo bem?”, diríamos nós numa
situação semelhante. Com estas palavras estabelecemos ou exprimimos uma
relação. Shalom, a paz, é eminentemente relacional.
Nunca se pode ter Shalom sozinho, é impensável eu ter paz enquanto o
outro não a tem.
Literalmente, Shalom
significa “inteiro”, “são”, “vivo”. No fim da viagem de regresso da
Mesopotâmia, Jacob chega à cidade de Siquém “são, salvo e inteiro” (em
hebraico: shalem), Génesis 33:18. “Que o nosso coração esteja integralmente (shalem) com o Senhor”, afirmam os Israelitas, ao
recusar-se à idolatria 1º Reis 8:61. E
quando David quer saber se o seu filho Absalão continua vivo, pergunta: “o jovem Absalão está com Shalom?”
2º Samuel
18:29/32.
No Antigo Testamento, a vida
caracteriza-se fundamentalmente pela relação. Sem relação não há vida. A morte
é a ruptura mais brutal de todas as relações. Onde há violência, onde há morte,
não há Shalom, não há relação, não há paz, não há
vida. “Exclamam ‘Paz! Paz!’. Mas não há paz.” Jeremias 6:14.
A vida, a relação, Shalom,
a paz é, no AT, dom de Deus. Um dom que implica necessariamente um apelo à
actividade humana. Com efeito, cada um (e não apenas o rei, o governo, os
poderosos, os políticos etc.) é responsável pela Shalom,
cada um pode e deve contribuir para ela. Incansavelmente o AT convida: “Desvia-te do mal e faz o bem, procura a paz (shalom) e segue-a!” Salmos 34:14. (6)
Como é que se segue e constrói a paz?
Fazendo justiça, respondem os profetas: “A paz será
obra da justiça e o fruto da justiça será a tranquilidade e a segurança para
sempre” Isaías
32:17. Definitivamente, não basta a ausência da guerra para que reine a Shalom! Não se pode superar a violência, não haverá paz
enquanto não houver justiça para todos. “Vão beijar-se
a justiça e a paz”, formula poeticamente o Salmos 85.
O Antigo Testamento documenta a
tentativa humana de seguir a paz e ao mesmo tempo a incapacidade humana de
manter a Shalom. Se falta Shalom,
isto não se deve a obscuras “forças do mal”, a vagas “estruturas” ou simplesmente
à superioridade das nações vizinhas. Se falta Shalom,
a culpa é dos homens e das mulheres. Não é a lamúria sobre a violência, nem a
sua aceitação apática e resignada que se ouve na voz dos profetas, mas sim o
apelo à responsabilidade humana e por isso à conversão. “Buscai-me e vivereis!” Amós 5:4.
Independentemente disto, a última
garantia para a Shalom não reside em instituições
humanas (o rei, o templo, o monte Sião, etc., como se pensava sobretudo durante
a época monárquica), mas sim, em Deus. “Ainda que os
montes sejam abalados e tremam as colinas, o meu amor por ti nunca mais será
abalado e a minha aliança de paz nunca mais vacilará” Isaías 54:10.
Inseparavelmente encontram-se ligados os aspectos social e político de Shalom, por um lado, e o seu significado religioso, por
outro. (7)
Já se constatou que ao longo da extensa
história de Israel a fé e com ela também a ideia de Shalom
se desenvolveram. Desde o simples cumprimento entre pastores numa sociedade
tribal, até à esperança escatológica dos profetas do exílio e depois. Apesar da
vacilação que encontramos portanto no conceito de Shalom,
podemos resumir três aspectos característicos:
1.
A universalidade de Shalom
Shalom engloba todos os âmbitos da vida, neste sentido ela
tende a ser universal. Shalom aplica-se a todas as
relações de uma pessoa: a sua relação consigo própria,
com a sua família, com a sociedade mais ampla de que faz parte, com a natureza,
com Deus.
2.
A solidariedade de Shalom
É completamente impensável estabelecer
a Shalom sozinho, menos ainda à custa dos outros. Por
isso, não há paz onde as viúvas e os órfãos, ou seja, os mais fracos da
sociedade, não estejam bem.
3.
A realidade de Shalom
Não se pode traçar uma linha clara que
separe entre a Paz de Deus e a paz do mundo. A Shalom,
dom de Deus, capacita a humanidade para a realizar e construir neste mundo,
realizando a vontade de Deus. Longe de ser uma paz apenas interior, ela tem mão
e pé, cabeça e coração. Ao mesmo tempo aponta para além de si própria, na
esperança do “príncipe da paz”.
Três ideias, enfim, muito simples. Com
efeito, em vão se procura no Antigo Testamento uma elaborada “teoria de Shalom”. Em vão se buscam receitas do género “Como superar
a violência. Aprenda em 5 dias”. Em vão se espera o “sucesso garantido”.
Encontramos, sim, histórias antigas, hinos e orações, oráculos proféticos.
Todos eles enraizados em circunstâncias bem concretas da vida real do antigo
Israel. É nestes textos que transparece – se temos olhos para o ver e ouvidos
para o ouvir – algo como uma antiga e profunda sabedoria, alimentada pela fé no
Deus da Vida e amadurecida ao longo dos milénios de experiência histórica.
Será esta antiga sabedoria da Shalom de alguma utilidade para superar a violência na
actualidade? Teimosamente insisto que sim! Confesso que me lembro de Shalom sempre que fico desanimada com aquele discurso, tão
comum e ao mesmo tempo tão gasto, que espera resolver a violência actual – seja
na família, na escola, na rua, entre etnias e nações, seja a violência inerente
à omnipresente globalização – simplesmente com ainda mais violência (da
polícia, dos educadores, da lei e ordem, das tropas de intervenção rápida
etc.). Lembro-me da Shalom pois sinto que com esta
antiga sabedoria, com esta visão da paz (universal, solidária e real), com este
grande “sonho”, os cristãos têm um contributo deveras inovador, precioso e
válido para a tão urgente problemática da violência na sociedade actual.
E mais,
acredito, não: sei por experiência própria, que a Igreja (as igrejas) pode(m) ser um espaço privilegiado para experimentar,
aprender e viver a Shalom. Ainda nesta Páscoa tive o
privilégio de fazer parte de um curso de liderança para jovens da IEPP onde
conviveram jovens em quase tudo diferentes (idade, origem social, cultura....).
São raros, na nossa sociedade, lugares como este curso onde todos podem
aprender uns com os outros e onde crescem respeito mútuo e amizade. Para mim,
experiências como esta transformam-se em preciosos sinais de esperança.
Esperança de que, inspiradas pela Shalom bíblica, as
igrejas possam de facto lançar muitas pequenas sementes que, ao crescerem e
desenvolverem-se, contribuem para superar a violência e para criar um mundo
mais humano.
3 de Maio de
2001
Eva Michel Lisboa, Portugal
(1) Ou nas discussões sobre a mais
recente telenovela, acrescento para eventuais leitores em países que até agora
foram poupados a esta incarnação de banalidade televisiva intitulada “Big Brother”.
(2) Marcião (ca. 140) e vários outros
desde então optaram, nesta base, por excluir o Antigo Testamento - ou partes
dele - das Sagradas Escrituras cristãs.
(3)) Cf. Salmo 86:15; 103:8 ss; 145:8/9
(4) Sicre, J.
L. ( 1999 ). Introdução ao Antigo Testamento.
Petrópolis: Vozes, p. 42.
(5) Por exemplo, no seu livro Texts of Terror P. Trible, estuda várias passagens sobre a violência contra
mulheres. No módulo Teologia do Antigo Testamento I (Lição n.º7 – “É Deus um
guerreiro?”) do Seminário Evangélico de Teologia, aborda-se a questão da
violência nos textos sobre a tomada da terra.
(6) Nalgumas versões da Bíblia é o
versículo 14
(7) Uma ideia
semelhante encontramos, no Novo Testamento, em Mateus 25:31 ss.
Bibliografia:
Ginzel, G. B. (1982?). “...suche
den Frieden und jage ihm nach!”.
Zum Schalom in der Hebräischen Bibel. In: Albertz, H. et
al., Zumutungen des Friedens. Kurt Scharf zum 80. Geburtstag.
Rororo.
Schmidt,
H. (1969). Frieden. Stuttgart/Berlin: Kreuz-Verlag (Themen de Theologie vol. 3).
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas