Que fizeste do teu Deus?
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Que fizeste do teu Deus? Que fizeste do teu irmão?
Artigo
de Frei Bento Domingues, publicado
no jornal Correio da Manhã de 2001/09/28
1.
Nenhum povo tem o monopólio do sofrimento humano. As tragédias étnicas não são
mensuráveis. Como diz A. Safieh: “Se eu fosse um
judeu ou um cigano, a barbárie nazi seria o acontecimento mais atroz da
história. Se fosse um negro africano, esse acontecimento seria a escravatura e
o “apartheid”. Se fosse um americano nativo, seria a descoberta do Novo Mundo
pelos exploradores e colonos europeus. Se eu fosse um arménio, seria o massacre
praticado pelos otomanos. Se eu fosse um palestiniano, seria a Nqba/Catástrofe de 1848.”
Não
existem filhos de um Deus maior e filhos de um Deus menor: Gosto muito, por
isso, de uma pergunta divina, referida na Bíblia, nessa biblioteca onde nem
tudo é recomendável: - “Que fizeste (ou vais fazer) ao teu irmão?” Génesis 4:1/16
É
uma passagem admirável. Nela, irmão não se restringe ao membro da família, da
etnia ou da nação. É uma forma como Deus pede contas de um ser humano a outro
ser humano.
Invocar
Deus para abençoar um povo contra outro ou contra outra pessoa é uma blasfémia.
Invocá-lo para exercer vingança sobre uma pessoa, um povo ou uma cultura é
sacralizar o crime. Como diz Tomás de Aquino, Deus não pode ser directamente
ofendido. É atingido quando agimos contra o bem das pessoas.
2.
Simone Weil, uma filósofa judia, sugere que os
Evangelhos, antes de serem uma teoria sobre Deus, são uma teoria sobre o homem.
É o que também sustenta o antropólogo René Girad (Cf.
“Je vois Satan tomber comme
l’éclair”, Paris, Grasset,
1999). O Evangelho de Mateus
25 confirma essa tese. Antes de qualquer referência religiosa, é a atitude
que se tem em relação a qualquer vítima – e não em relação às vítimas
seleccionadas por critérios políticos, étnicos ou religiosos – que nos afasta
ou aproxima de Deus e do seu reino.
Para
René Girad, a preocupação com as vítimas – mesmo se,
por vezes, não passa de uma grande comédia – é uma herança cristã. Nem a China
dos mandarins, nem o Japão dos samurais, nem as Índias, nem as sociedades
pré-colombianas, nem a Grécia, nem a Roma da República ou do Império, se
importavam com as vítimas que, sem conta, sacrificavam aos deuses, à honra da
pátria, à ambição dos conquistadores, pequenos ou grandes.
Nietzsche,
no seu agudo anticristianismo, captou como poucos o contributo cristão para o
reconhecimento da dignidade absoluta de cada ser humano: “No cristianismo, o
indivíduo foi tomado tão sério, elevado a um ponto tão absoluto, que não era possível
continuar a sacrificá-lo. Mas a espécie não sobrevive senão graças aos
sacrifícios humanos... A verdadeira filantropia exige o sacrifício para o bem
da espécie: é dura, obriga a se dominar a si mesma, porque tem necessidade do
sacrifício humano. E esta pseudo-humanidade chamada
cristianismo quer precisamente impor que ninguém seja sacrificado...”
3.
Se não há várias espécies humanas, é tempo de nos ocuparmos, com inteligência,
da humanidade de todos. A ONU, nas suas diversas instâncias, devia existir para
garantir um mínimo de paz, liberdade, de justiça e de solidariedade no mundo.
Se não funciona ou funciona mal, que seja reformada e prestigiada – e não
esvaziada – para poder garantir uma nova ordem mundial baseada no direito e na
procura da justiça para todos. Sem isso, viveremos segundo os interesses e o
egoísmo dos mais poderosos e a ameaça terrorista dos mais frustrados.
Álvaro
Vasconcelos, director do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais,
escreveu um texto de ética política sobre “O mundo sem ordem” (Cf. Público,
19/9) que merece tornar-se uma peça de referência num momento em que a
propaganda e demagogia tendem a substituir o discernimento.
Diz-se
que a operação “Justiça Infinita” – uma designação que soa demasiado aos
estúpidos “slogans” dos taliban – corre o perigo de continuar uma série de
triste memória: Coreia, Vietname, Irão, Iraque, Somália, Líbano etc.
O
que está provado é que a hegemonia militar, económica e cultural
norte-americana – com grandes bases militares em 62 países – não basta para
garantir a paz. Passadas as emoções do sobressalto actual perante o horror, não
vai ser possível continuar a reunir o mundo em torno da bandeira do EUA e da
sua política imperial.
O
combate ao terrorismo disseminado será compatível com a multiplicação dos focos
de guerra, de violência, de anarquia e de catástrofes humanitárias que a
“Justiça Infinita” parece anunciar? E quem se vai lembrar de Angola, há mais de
25 anos entregue a todas as formas de guerra e de terrorismo, com diamantes e
petróleo para pagar o renovamento do armamento e da corrupção?
O
eurodeputado José Ribeiro e Castro teve o mérito de desencadear o processo da
candidatura do bispo Zacarias Camuenho – um
incansável lutador pela paz – ao prémio Sakharov 2001
do Parlamento Europeu. É fundamental apoiar esta voz de “Angola pela positiva”.
Tentarei
mostrar o que isto significa, o que implica e o que exige. Dentro e fora de
Angola.
Frei Bento Domingues - Portugal
Setembro
de 2001