Protestantismo Histórico – Que futuro? (CC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

1) O Protestantismo na História da Igreja

 

Desde a época de Cristo até ao ano de 325, é geralmente considerada a época do Cristianismo Primitivo.

Foi no distante ano de 325, que no Concílio de Niceia se notou uma grande mudança no cristianismo.

Não é nossa intenção abordar os aspectos doutrinários, mas o comportamento dos crentes que de perseguidos passaram a perseguidores das outras religiões. Em Niceia, a Igreja é declarada oficialmente tolerada pelo Imperador, que anos mais tarde colaborou com a “evangelização”, confiscando templos, terrenos e fontes de receita das antigas religiões tradicionais em favor do cristianismo, que acabou por se tornar a religião oficial do Império Romano.

Durante a Idade Média, o Catolicismo tornou-se gradualmente uma forte potência militar e religiosa, que impunha a sua fé pela força das armas.

Foi no dia 31 de Outubro de 1517, em plena época de grande obscurantismo medieval, que Lutero coloca as suas 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg. Esta data foi considerada como o nascimento da Reforma Protestante, embora tivessem aparecido outros reformadores antes de Lutero que foram completamente exterminados assim como os seus seguidores pelos exércitos do Papa.

 

 

2) Origem do Protestantismo Histórico

 

Sendo as 95 teses de Lutero, um dos mais importantes documentos, não só do Protestantismo, como da História de Igreja duma maneira geral, perece estranho que muito poucos evangélicos alguma vez os tenham lido.

Haverá algum motivo que leve certos pastores a encobrir tal documento?!

Grande parte das teses de Lutero estão ultrapassadas, mas há artigos dignos duma atenta reflexão, pois é possível fazer uma transculturação para a nossa época.

O principal assunto que levou Lutero a manifestar-se contra o Papa da sua época foi o comércio das indulgências.

O assunto das indulgências no Catolicismo dos nossos dias, embora ainda esteja oficialmente em vigor, pode-se considerar como “adormecido” pois já não se fala nisso. No “Catecismo da Igreja Católica” só encontrei duas pequenas referências nos parágrafos 1032 e 1471, que pouco dizem e passam despercebidos aos leitores. Depois da reforma litúrgica após o Concílio Vaticano II, as indulgências só aparecem num contexto litúrgico.

 

 

3) O Protestantismo já terminou a sua principal função?

 

Assim, parece que o Protestantismo já cumpriu uma das suas principais funções pois, embora Lutero não tenha conseguido o seu objectivo que era reformar a Igreja Católica a que pertencia e ficou na história como um separatista, a reforma que ele defendeu sempre acabou por “germinar” no Catolicismo Romano e produzir os seus frutos muito tempo depois de Lutero.

Mas se o Protestantismo já cumpriu a sua principal função, será que ficou reduzido a um grupo de “igrejas sem futuro”? Esta questão foi levantada pelo Pastor Cardoso no seu artigo Igrejas sem futuro? (MC)

Será que a exploração da ingenuidade popular pelas igrejas já não é problema dos nossos dias?

 

 

4) Dízimo neotestamentário – As “indulgências” dos nossos dias

 

A maior fonte de receita das igrejas evangélicas é a cobrança do dízimo, prática que já há muito foi abandonada pelo catolicismo. Também não nos consta que os Reformadores tenham alguma vez defendido o dízimo neotestamentário. Nada encontrei nas “Institutas de Calvino” nem nas traduções dos livros dos reformadores que consultei.

Vejo uma certa semelhança na posição das igrejas do Protestantismo Histórico em Portugal e da Igreja Católica, que perderam a tradição de pregar sobre a contribuição neotestamentária. Como essas passagens não fazem parte do lecionário litúrgico, ficam sempre esquecidas e não tenho visto incentivos à contribuição, o que se traduz numa redução das contribuições, enquanto os evangélicos tanto exageram ao falar na contribuição exigindo o que não é aceitável numa igreja cristã.

Não tenho dúvidas de que a doutrina do dízimo no Novo Testamento nada tem a ver com o cristianismo sério e responsável. No entanto o dízimo neotestamentário é aceite pela grande maioria das igrejas evangélicas no Brasil que são fruto da evangelização norte-americana e também foi aceite por muitas igrejas do Protestantismo Histórico no Brasil.

Bem sei que a doutrina do dízimo neotestamentário resulta num aumento das contribuições, mas à custa da fidelidade à mensagem de Jesus, tal como no caso das indulgências.

Sobre o aspecto doutrinário, convido a visitar a secção Temas Polémicos desta página da internet.

 

É possível estabelecer um paralelo de ideias entre as indulgências inventadas pelo Papa Leão X por motivos económicos para, a construção da sua catedral, a Catedral de São Pedro, e o “dízimo neotestamentário” das igrejas evangélicas, para sustento pastoral e construção de inúmeras igrejas (refiro-me aos edifícios).

Vejamos atentamente algumas das 95 teses de Lutero e a sua transculturação para a nossa realidade (em vermelho), que pensamos seriam palavras de Lutero se vivesse nos nossos dias.

No nosso contexto histórico, as igrejas que arrecadam maiores verbas são algumas das igrejas denominadas evangélicas ou neo-evangélicas com a doutrina veterotestamentária do dízimo que colocaram em vigor nos nossos dias.

Vou repetir algumas das 95 teses de Lutero tentando fazer a transculturação para os nossos dias. Onde está “Indulgência” vou colocar “dízimo”, com as necessárias adaptações da frase.

 

 

41. É necessário pregar cautelosamente sobre a indulgência papal para que o homem singelo não julgue erroneamente ser a indulgência preferível às demais obras de caridade ou melhor do que elas.

41. É necessário pregar cautelosamente sobre o dízimo, para que o homem singelo não julgue erroneamente ser o dízimo preferível às demais obras de caridade ou melhor do que elas.

 

 

42. Deve-se ensinar aos cristãos, não ter pensamento e opinião do Papa, que a aquisição de indulgência de alguma maneira possa ser comparada com qualquer obra de caridade.

42. Deve-se ensinar aos cristãos, não ter pensamento e opinião do Pastor que o pagamento do dízimo de alguma maneira possa ser comparado com qualquer obra de caridade.

 

 

43. Deve-se ensinar aos cristãos, proceder melhor quem dá aos pobres ou empresta aos necessitados do que os que compram indulgências.

43. Deve-se ensinar aos cristãos, proceder melhor quem dá aos pobres ou empresta aos necessitados do que os que pagam o dízimo às igrejas.

 

 

44. É que pela obra de caridade cresce o amor ao próximo e o homem torna-se mais piedoso; pelas indulgências porém, não se torna melhor senão mais seguro e livre da pena.

44. É que pela obra de caridade cresce o amor ao próximo e o homem torna-se mais piedoso; pelo pagamento do dízimo porém, não se torna melhor senão mais seguro e livre da pena.

 

 

45. Deve-se ensinar aos cristãos, que aquele que vê o seu próximo padecer necessidade e a despeito disto gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgências do Papa, mas provoca a ira de Deus.

45. Deve-se ensinar aos cristãos, que aquele que vê o seu próximo padecer necessidade e a despeito disto gasta dinheiro com o dízimo, não adquire bênçãos, mas provoca a ira de Deus.

 

 

46. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem fartura, fiquem com o necessário para a casa e de maneira nenhuma o esbanjem com indulgências.

46. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem fartura, fiquem com o necessário para a casa e de maneira nenhuma o esbanjem com dízimos para construção de novas igrejas.

 

 

47. Deve-se ensinar aos cristãos, ser a compra de indulgências livre e não ordenada.

47. Deve-se ensinar aos cristãos, ser a contribuição do dízimo livre e não ordenada.

 

 

48. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o Papa precisa conceder mais indulgências, mais necessita de uma oração fervorosa de que de dinheiro.

48. Deve-se ensinar aos cristãos que, se os pastores precisam do dízimo, mais necessitam de uma oração fervorosa de que de dinheiro.

 

 

49. Deve-se ensinar aos cristãos, serem muito boas as indulgências do Papa enquanto o homem não confiar nelas; mas muito prejudiciais quando, em consequências delas, se perde o temor de Deus.

49. Deve-se ensinar aos cristãos, ser atitude meritória a entrega do dízimo enquanto o homem o conceder voluntariamente e não por obrigação; mas muito prejudicial quando, em consequências dele, se perde o temor de Deus.

 

 

50. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o Papa tivesse conhecimento da traficância dos apregoadores de indulgências, preferiria ver a catedral de São Pedro ser reduzida a cinzas a ser edificada com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

50. Deve-se ensinar aos cristãos que, o Senhor sabe da traficância dos pregadores de dízimo, e preferiria ver os edifícios religiosos construídos em Seu louvor reduzidos a cinzas a serem edificados com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

 

 

51. Deve-se ensinar aos cristãos, que o Papa, por dever seu, preferiria distribuir o seu dinheiro aos que em geral são despojados do dinheiro pelos apregoadores de indulgências, vendendo, se necessário fosse, a própria catedral de São Pedro.

51. Deve-se ensinar aos cristãos que o Senhor preferiria distribuir o dinheiro aos que em geral são despojados pelos pregadores de dízimo, vendendo, se necessário fosse, os próprios edifícios religiosos.

 

 

52. Comete-se injustiça contra a Palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra tanto ou mais tempo à indulgência do que à pregação da Palavra do Senhor.

52. Comete-se injustiça contra a Palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra tanto ou mais tempo à pregação sobre o dízimo do que à pregação da Palavra do Senhor.

 

 

53. São inimigos de Cristo e do Papa, quantos por causa da prédica de indulgências, proíbem a Palavra de Deus nas demais igrejas.

53. São inimigos de Cristo quantos por causa da prédica do dízimo proíbem a livre interpretação da Palavra de Deus nas demais igrejas.

 

 

71. Aquele, porém, que se insurgir contra as palavras insolentes e arrogantes dos apregoadores de indulgências, seja abençoado.

71. Aquele, porém, que se insurgir contra as palavras insolentes e arrogantes dos pregadores de dízimo, seja abençoado.

 

 

72. Quem se levanta a sua voz contra a verdade das indulgências papais é excomungado e maldito.

72. Quem levanta a sua voz contra a pregação do dízimo é excluído das igrejas e maldito.

 

 

5) Será que não há futuro para as igrejas do Protestantismo Histórico?

 

Noto que, não só em Portugal, como principalmente no Brasil e um pouco por todo o mundo, é cada vez maior o número de cristãos sem igreja. São crentes em Cristo que estão desiludidos com as igrejas. Não se identificam com o Catolicismo nem com as igrejas evangélicas, e procuram um igreja onde possam actuar como cristãos, uma igreja livre de rígidas hierarquias, onde haja liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de interpretar os evangelhos, a Mensagem do Mestre.

Parece que há um “espaço” que está vazio, que o Senhor ainda não preencheu. Mas será assim? Onde está o verdadeiro Protestantismo de Lutero e de Calvino e outros? Certamente que nessas igrejas havia grandes problemas, grandes divergências, mas também sérias meditações teológicas e acaloradas discussões teológicas que nem sempre acabavam bem. Mas as igrejas cresciam. Tinham impacto na sociedade e na classe pensante dessa época. Nos nossos dias, essas igrejas já não têm desses problemas, está tudo calmo, tudo monótono, sempre a mesmo rotina, deixaram de ter o mesmo impacto na sociedade. As igrejas “morreram”, embora os edifícios continuem de pé e as organizações continuem a funcionar.   

Há anos, quando um grande incêndio destruiu várias propriedades no nosso Alentejo, os agricultores, depois de esgotadas todas as possibilidades de salvar os seus animais, abriram as portas para que esses pudessem fugir. Depois do incêndio tudo ter consumido, nos dias seguintes as pombas continuavam a voar sobre a terra queimada. O seu instinto lhes indicava o local certo, mas o pombal que procuravam, já não existia. As pombas continuavam a voar até caírem mortas de sede e exaustão.

Isto faz-me lembrar as igrejas do protestantismo histórico. Ficaram somente os restos carbonizados dessas igrejas. Pequenos grupos que, em vez de ocuparem o seu lugar, tentam imitar os outros, muitas vezes à custa dos seus princípios, tudo sacrificando em favor do aspecto económico. Tentam sobreviver com a continuidade da sua liturgia, mas já abandonaram a reflexão teológica que será sempre o “motor” duma igreja.

 

Só vejo duas hipóteses para o nosso Protestantismo:

Ou manter a mesma rotina, procurando identificar-se com o Catolicismo ou com os evangélicos, perdendo a razão da sua existência como igrejas de inovação e reflexão,

Ou serem verdadeiras igrejas Protestantes, com ênfase no estudo e reflexão, principais características dessas igrejas.

Mas, será isso possível?

Bem sei que será difícil, depois dos Seminários que encerraram e das Escolas Dominicais que deixaram de funcionar.

Mas por outro lado, a época nunca foi tão oportuna, atendendo aos muitos que procuram em vão, uma igreja onde haja séria reflexão teológica sem a preocupação com as tradições sem sentido. Noto em algumas igrejas e seminários um grande receio com a investigação teológica, preferindo investir somente na “formação” teológica. Empreguei a palavra “formação” de acordo com a etimologia da palavra, que deriva de “forma”. Mas, se for a mesma “forma” que deu origem à actual crise, podemos ter a garantia de que a crise vai continuar e aumentar.

Temos talvez uma das últimas oportunidades de preservar as igrejas do Protestantismo Histórico, que afinal será simplesmente ocuparem o seu lugar na Igreja Cristã como igrejas reformadas em constante reforma. Mas, se estas renegarem a finalidade para que o Senhor as criou…. Então não fará sentido a sua preservação.

 

Camilo – Marinha Grande, Portugal

Abril de 2010

 

Sobre este assunto, veja também:

Igrejas sem futuro? (MC)

 

 

Comentários a este artigo

 

 

David de Oliveira Goiânia – Brasil - Abril 2010

É interessante observar que alguns dos “dizimistas” atuais dizem que não esperam retornos financeiros divinos, quando dão os seus “dízimos”. Eu sei que isso é uma “mentira quase inconsciente”, fruto de manipulação e lavagem cerebral, pois também já fui “dizimista”.

Achava que o meu “dízimo-dinheiro” ia para Deus pelas mãos dos pastores institucionais, porém não sabia que isso é uma coisa totalmente impossível. O dízimo e as ofertas são matérias do ministério da Lei e nesta, haviam as pessoas certas para receber os verdadeiros dízimos, coisa que no ministério sacerdotal de Cristo não tem. Então, para quem vai o dinheiro dos atuais “dízimos”? Vai para as instituições religiosas, ou mais especificamente,  para  os seus donos, que por sinal, vão muito bem, obrigado! mas nunca, nunca para Deus!

Há no Brasil uma espécie de dízimo aplicado pelo “Partido dos Trabalhadores”, o partido do Lula, porém sem nenhuma conotação de indulgência. Cada político eleito pelo partido, tem “obrigação moral” de contribuir, pela manutenção daquela entidade. Esse “dizimo”, embora conceitualmente errado, é um dízimo consciente e não enganoso, ao passo que o “dízimo” aplicado pelos evangélicos brasileiros, não passa de um grande golpe de matilha.

Então, muita gente perguntaria: O que fazer com essa “igreja” chamada evangélica ou protestante atual? A solução é sair, como fiz há alguns anos. Não digo sair da “Igreja”, mas das instituições a que se tornaram. Não é fácil e as conseqüências psicológicas e comportamentais vão certamente afetar o dia a dia daqueles que tiverem a coragem de tomar uma posição e um passo além da mesmice burra. O mais difícil para um homem e para uma mulher, não é aprender coisas novas, mas desaprender coisas velhas.

 

 

 

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