Protestantismo Português - Oportunidade
Perdida? (MC)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Devo
começar por esclarecer que não fui eu quem escolheu o título-tema desta conferência.
O seu autor, o meu distinto colega Pastor Andreas Ding, deu-mo apenas como sugestão, aberto a alternativa,
mas eu aceitei-o assim, não sei se por falta de criatividade ou se por eu
próprio estar muito interessado na resposta que se poderá dar à pergunta
formulada. Aceitei-o com a convicção de que a abordagem deste tema me
permitiria a mim próprio, para começar, encontrar uma resposta a essa pergunta.
Sendo
eu português, protestante e pastor poderia supor-se que a pergunta seria apenas
retórica ou expediente publicitário, pois a resposta seria conhecida
antecipadamente, e seria um não inequívoco.
Se
assim fosse, seria um tanto enganador em relação aos meus distintos ouvintes.
Mas
tenho vivido intensamente o movimento protestante português, tenho procurado
observá-lo com objectividade e tenho tentado dar a minha modesta contribuição
para a sua história, e não tenho relutância em começar por afirmar que, sem
paixão nem sectarismo, deve dizer-se que há, realmente, razões para falar de
uma oportunidade que, se não podemos qualificar totalmente de perdida, é, pelo
menos, uma oportunidade que não obteve até hoje os resultados com que muitos
dos nossos antecessores espirituais sonhavam. Por muito que doa a alguns de nós
reconhecer (e esta palestra vai ser desagradável nesse sentido), a verdade é
que o Protestantismo português não tem sequer hoje a expressão que os homens e
as mulheres da minha geração há quarenta anos acreditávamos poder vir a ter.
Não
é difícil perceber que houve e há factores exteriores ao Protestantismo que
concorreram e concorrem para esta situação, e eu próprio já citei alguns numa
História do Protestantismo em Portugal que escrevi. Referi as perseguições que
desde a primeira hora, já na Ilha da Madeira, o Protestantismo sofreu da parte
de autoridades políticas e de áreas integristas católicas. Perseguições que
tiveram expressão brutal e física, e que se apresentaram também sob disfarce
subtil, durante a ditadura e ainda hoje em dificuldades burocráticas e
administrativas. Houve portugueses que pelo facto de professarem a fé
evangélica viram as suas carreiras no funcionalismo público ou nas forças
armadas prejudicadas – e se é evidente que se as perseguições físicas ou
burocráticas do passado não impediram alguns de se manterem fiéis até à morte
nas fileiras do movimento protestante, elas concorreram, pelo menos, para que
os mais timoratos ou os ainda não seriamente atingidos pela mensagem,
preferissem não ousar desagradar aos defensores da sociedade tradicional.
Também se pode falar da muralha de silêncio que envolveu o Protestantismo
quando os jornais, a rádio e mais tarde a televisão nos estiveram vedados,
tornando assim mais difícil a divulgação do nosso ideário. Para não referir as
dificuldades económicas que o Protestantismo sempre experimentou e que
limitaram a sua acção na concorrência com uma Igreja majoritária fortemente
beneficiária de subsídios estatais.
Mas
não interessa muito falar dos factores exógenos que nos estorvaram o passo.
Pensarmos
demasiado neles dá-nos uma psicologia de vítimas, que é perigoso cultivar,
porque a vitimização, a auto-piedade, desmobiliza, torna-nos pessoas negativas
e à defesa, e portanto pode levar-nos a uma atitude de recusa da sociedade
circundante.
Mais
sensato que o exercício da auto-piedade é verificarmos o que é que o
Protestantismo português tem feito prejudicial a si próprio, ou que factores
há, não apenas no Protestantismo português mas no Protestantismo de qualquer
parte do mundo, para ele não poder ter o sucesso que a sua mensagem permite
esperar.
Radicalismo anti-católico
No
livro que escrevi com a história desta comunidade figueirense, apontei um
factor a meu ver muito negativo que tem prejudicado o Protestantismo português:
o radicalismo anti-católico. Ninguém ignora que essa atitude foi a reacção
natural a uma Igreja que, nas últimas décadas da Monarquia, quando o
Protestantismo surgiu no nosso país, e depois sob a ditadura de Salazar, estava
profundamente aliada ao Estado e que em muitos lugares usava dessa aliança para
oprimir as consciências e eliminar toda a oposição; mas saber isso não retira a
verdade de que foi um erro responder aos desmandos de alguma parte da Igreja
Católico-Romana com a institucionalização, por assim dizer, do
anti-catolicismo.
Para
além de todas as considerações bíblico-teológicas que se possam fazer sobre
essa reacção ao que foi tacitamente considerado o “inimigo” do Protestantismo,
não é difícil perceber como, mesmo numa simples perspectiva humana, foi
desastroso seguir esse caminho. Deu-se realce à polémica e apresentou-se,
inconscientemente, o Protestantismo pela negativa, a ponto de ser resumido
assim: ser protestante é não aceitar a adoração de Maria e dos anjos nem a
autoridade do papa. Mas a mensagem protestante é, tem de ser, acima de tudo
mensagem da salvação por meio do Evangelho da graça!
Um
dos resultados dessa atitude foi o Protestantismo ficar em certo sentido
prisioneiro do Catolicismo. Vivia em função do Catolicismo, correndo o risco de
perder a sua própria identidade. Um pastor com algum humor dizia há anos que se
pode ser católico-romano de duas maneiras: (1) sendo--o por escolha própria e
vivendo, portanto, o Catolicismo positivamente, ou (2) vivendo em oposição a
ele. Numa comparação necessariamente inadequada, pode dizer-se que é como no
relacionamento de um casal que se separa litigiosamente, mas em que o amor vai
continuar, agora sob a forma agressiva e sofrida de repreensões a quizílias.
Outro
resultado desse anti-catolicismo foi a preocupação de se evitar no
Protestantismo tudo o que lembrasse o Catolicismo Romano. É corrente ainda hoje
em alguns lugares combater uma prática ou uma doutrina com o argumento de que
ela é da Igreja Católico-Romana, o que, objectivamente, percebe-se que é um
argumento de grande fragilidade.
Mais
uma vez digo: esta atitude foi a reacção natural a exageros do próprio
Catolicismo, principalmente do Catolicismo popular, que a hierarquia nem sempre
soube controlar, e é fácil hoje criticá-la. Mas é útil reflectirmos sem paixão
nesse aspecto para percebermos que mais adequado é viver pela positiva,
aprofundar os grandes valores da Reforma e apresentá-los no contexto das
preocupações contemporâneas aos nossos compatriotas. E digo isto num espírito
de auto-crítica mesmo pessoal , pois ainda há vinte
anos aceitei fazer uma conferência para jovens universitários sobre as
diferenças entre Catolicismo e Protestantismo – conferência que o Grupo Bíblico
Universitário depois publicou num opúsculo e que hoje não faria porque a fé
evangélica é riquíssima e não tem necessidade de ser apresentada como luta
contra a confissão católico-romana.
Doutrinarismo e cissiparidade
A
nossa autocrítica colectiva levar-nos-á por certo a reconhecer que outro factor
interno que nos tem prejudicado é o que chamarei o doutrinarismo. O que se quer
referir com esta palavra é a tendência de sobrevalorizar doutrinas,
apresentando-as como fundamentos indispensáveis, neste caso indispensáveis para
se ser autêntico cristão. Esta pecha não se verifica apenas no Protestantismo
português. Um dos mais reputados teólogos protestantes do Brasil dos nossos
dias, Rúbem Alves, viu assim este problema: “Desde o
seu início, o Protestantismo sentiu uma grande tendência para uma definição
cerebral do que significa ser cristão. Há razões históricas para explicar isto.
Nas polémicas que se seguiram à Reforma, a Igreja católica sempre dizia: “Somos
a verdadeira Igreja apostólica. O protestantismo, entretanto, é uma coisa nova,
algo que surgiu num acidente histórico, e que não pode, portanto, pretender ser
possuidor da tradição evangélica”. Para contra-atacar, os protestantes
retrucaram: “A marca da verdadeira Igreja não se encontra na sua continuidade
histórica. O que importa é se ela, no presente, confessa a sua fé de
conformidade com a Escritura”. E continua Rúbem Alves:
“O Protestantismo tendeu, em consequência, a produzir um grande número de
confissões, todas elas com o objectivo de expressar com maior clareza e
precisão, a essência da fé bíblica. A preocupação com a confissão correcta
chegou a tornar-se obsessiva, produzindo um período que veio a denominar-se de
“ortodoxia protestante”. A fé chegou mesmo a identificar-se com a adesão
intelectual a um certo número de proposições dogmáticas que, pretendia-se,
expressavam o ‘sistema de doutrinas’ contidas na Bíblia, e que eram necessárias
para a salvação”. Rúbem Alves aponta depois o erro
oposto, que é o pietismo, para o qual o que interessa é apenas a experiência
pessoal, emocional, do encontro com Jesus Cristo. ( in
Dogmatismo e Tolerância, p. n65-66, Edições Paulinas, 1982)
O
Protestantismo português, como o brasileiro, tem sido tão visitado pelo
doutrinarismo como pelo pietismo. De qualquer forma, tanto o doutrinarismo como
o pietismo levam ao fenómeno de cissiparidade (ou da proliferação de grupos, se
se preferir), especialmente o dogmatismo, pois o dogmático ou fundamentalista
não suporta a mais pequena divergência de opinião. O dogmatismo ou
fundamentalismo, como se sabe, pode apresentar-se sob a forma reaccionária,
politicamente direitista, ou sob a forma de progressista, politicamente
esquerdista.
Desde
quase o princípio do Protestantismo em Portugal, foram surgindo congregações
que se dividiram porque dentro delas apareceram pessoas a sublinhar doutrinas
que colocaram como indispensáveis à salvação. Os que a elas aderiram
impuseram-se aos que delas divergiam ou acabaram por sair e fundar uma nova
congregação dissidente. Ainda hoje se assiste a lutas desse tipo, que
enfraquecem as congregações e as instituições e devolvem muita gente ao
cepticismo. O tipo de baptismo praticado, de aspersão ou imersão, em crianças
ou só em adultos; o tipo de ministério; a questão da inspiração das Escrituras,
infalibilidade ou não; o tema da evolução ou criação; a questão escatológica (milinaristas, pos-milinaristas, pre-milinaristas); o problema do diálogo ecuménico, tudo
pode servir para suspeição, exclusão e divisão.
Desta
tendência para a divisão e fragmentarismo nenhuma
denominação protestante está isenta, sendo as mais fundamentalistas as que mais
se dividem. Mas não se pode negar que mesmo nas Igrejas que se reclama do
Protestantismo histórico, não faltam ecos desta atitude que tão prejudicial nos
tem sido. A então considerada maior comunidade presbiteriana de Lisboa foi há
trinta anos cindida em duas, e muitos se afastaram, por causa do embate de dois
dogmatismos, um conservador e outro dito progressista, e recentemente houve uma
cissão também nos Açores entre os presbiterianos por motivos igualmente
doutrinais. O dogmatismo ou fundamentalismo é um fenómeno, obviamente, não
apenas detectável no Protestantismo português. Trata-se de um fenómeno muito
presente na sociedade portuguesa. Somos um povo de grande habilidade,
improvisador, o que é bom, mas, porque se lê pouco e à pressa, rapidamente as
pessoas se afirmam seguidoras de uma corrente que conhecem apenas pela rama – e
quando assim acontece supre-se a falta de conhecimentos pela paixão das
afirmações e oposição radicais. Já vimos pessoas falarem com ódio de teólogos
que nunca leram e outras defendendo-os como discípulos fanáticos, sem
igualmente o terem lido.
Fraco espírito comunitário
Se
o doutrinarismo faz finca-pé de uma doutrina como condição para se ser ou não
verdadeiro cristão, é evidente que ele terá tendência a tornar aquele que
aceita essa corrente mais um fiscal ou juiz dos seus irmãos do que um
companheiro de caminhada. E se o pietismo sobrevaloriza a interioridade da fé,
é natural que a comunidade fique em lugar secundário. Daí resulta que, ao
analisarmos a história do Protestantismo em Portugal, verifiquemos que nele o
espírito comunitário é, em geral, pouco sólido. Nos grupos mais conservadores
pode ser forte o espírito de seita ou a clubite, mas não o sereno espírito
comunitário. A ideia bíblica de que a Igreja é o Corpo de Cristo, e de que, com
a conversão, o homem torna-se parte do Povo de Deus não é, em geral, levada a
todas as consequências, incluindo a necessidade da manutenção da unidade, mesmo
que ela requeira o sacrifício do indivíduo. Por isso, não é possível negar o
facto de que um Protestantismo mal entendido fomenta o individualismo.
Uso
aqui a palavra individualismo para qualificar a orientação daquele que coloca
invariavelmente o seu interesse, a sua opinião, o seu gosto, a sua comodidade,
em primeiro lugar. E por espírito comunitário a orientação em que o indivíduo
se integra no grupo, trabalha, luta com o grupo, tendo em vista um objectivo
comum. Não se deve confundir individualismo com personalismo. O personalismo é
o respeito pela pessoa individualmente, mas sem esquecer todas as outras
pessoas da comunidade, enquanto o individualismo é a perversão daquele, pois
não só não tem em conta o conjunto da comunidade como também não respeita os
outros individualmente.
Martinho
Lutero pode ser apontado como o homem que sublinhou a importância da pessoa na
relação da fé. Para ele não basta dizer o Credo com a multidão, não basta
aceitar o ensino da Igreja, mas é preciso que o crente tenha a relação pessoal
com Jesus Cristo. É por isso que Lutero combate a venda das indulgências: não
basta aceitar a graça supostamente recebida do “tesouro da Igreja”: é preciso
experimentar verdadeiro arrependimento e conversão. Mas Lutero não defenderia a
caricatura do personalismo, que é o individualismo em que se pode cair se a
exigência da relação pessoal for mal entendida. Para manter o equilíbrio
personalismo / espírito comunitário é preciso valorizar a unidade da Igreja e a
vida sacramental. Lutero fê-lo, mas um Protestantismo mais racionalista, que no
extremo produz o já referido doutrinarismo, acaba por perder esse equilíbrio e
o cristão fica excessivamente entregue a si próprio.
Também
o pietismo entrega o cristão excessivamente a si próprio.
Este
individualismo leva, por exemplo, ao desprezo pelas tradições. “Tudo começa
comigo e portanto o que outros fizeram e pensaram antes de mim não interessa”.
É claro que há tradições protestantes, mas a tendência no Protestantismo mais
recente e de cunho mais popular é o de as desprezar. Um teólogo alemão, Gunther Bornkamm, diz: “Com
certeza, tradições são e sempre foram importantes na sociedade humana e sem
elas seria impensável a vida. Quem negasse a necessidade de tradições e
tentasse alijá-las, na realidade estaria destruindo os fundamentos da sua
própria existência; uma pessoa assim não deveria maravilhar-se se o barco de
sua vida andasse por aí sem rumo e sem remo até fincar em banco de areia”
(Bíblia, Novo Testamento, pág. 7). É claro que Bornkamm
reconhece que há tradições que devem ser postas de parte, mas é importante o
facto de se sublinhar que uma pessoa, e isto aplica-se
também a uma comunidade, precisa de manter tradições para salvaguardar a sua
identidade.
Quando
fui pastor desta congregação, cometi o erro (não foi o único, infelizmente...)
de aceitar a mudança de um dia para o outro do hinário Salmos e Hinos, que
acompanhava a Igreja desde 1901, por um hinário novo totalmente diferente
daquele. Fi-lo, suponho, por espírito de comunhão com a Igreja a nível
nacional, que eu acreditava ir na sua totalidade também aceitar o novo hinário,
mas mesmo assim seria errado fazê-lo, porque os cânticos, a liturgia de uma
comunidade é um património tradicional que pode ir mudando gradualmente, mas
não abruptamente. Alguns membros da congregação reclamaram e tinham muita
razão.
Facilmente
se compreende como o individualismo, sobretudo a nível da direcção das
comunidades, da Igreja em geral e das suas instituições, pode concorrer para
enfraquecer o Protestantismo. Se cada dirigente se lembra de fazer tábua-rasa
dos valores existentes, dos princípios, das tradições, dos símbolos, para os
substituir por ideias suas, não admira que se crie uma desorientação que
perturbará muitos espíritos e afastará outros, com poucos, se alguns, a beneficiarem das inovações. Dessa maneira não se criam
raízes no subconsciente das pessoas, o lugar onde a personalidade é
verdadeiramente tocada.
Um
pastor americano que esteve entre nós e que falava bem o português, comentava
um dia, usando linguagem muito popular: “No Protestantismo português tudo
parece estar colado com cuspo”. Desculpem-me por referir o plebeísmo nada
asseado, mas foi assim que Paul Pierson falou, e isso
por sentir, como eu sentia há trinta anos, como eu ainda sinto hoje, que entre
nós exagera-se o princípio de “cada cabeça, sua sentença”, se é que algumas
cabeças não chamam agora “branco” ao que há momentos chamavam “preto”. É
evidente que não é desejável uma Igreja em que não haja lugar para a
pluralidade e para a diferença de opinião, mas não é disso que falo. Falo da
unidade e estabilidade que se cria entre as pessoas quando se diz uma fé comum,
quando se sabe que os compromissos são respeitados, a comunidade se sobrepõe ao
indivíduo, e as regras são cumpridas. O mais belo retrato da Igreja primitiva é
dado em Actos 2:42
quando se diz que a Igreja perseverava unida na doutrina dos apóstolos, no
companheirismo, nas orações e na celebração da Ceia do Senhor. E a isso o autor
de Actos atribui o êxito que ela ia tendo. O irmão Roger, fundador da
Comunidade de Taizé, deu a um dos seus livros o
título de “Unanimidade no Pluralismo”, e nele começa por escrever: “Sem
unanimidade no mais íntimo da comunidade, esta afunda-se, mesmo que não pareça”
(p. 7) E depois afirma: “Viver a unanimidade na pluralidade é procurar qual é o
eixo (“pivot”, no francês original) comum a todos, em volta do qual se edifica
a comunidade num pluralismo de expressões, numa liberdade de existir tanto
maior por a unanimidade ser mais certa”. E eu direi que onde reina o
individualismo há sempre os que querem brilhar, ter protagonismo, receber
elogios e honras e ficar à frente no retrato – e como consequência surge a
concorrência, que inclui em si as “inimizades, porfias, emulações, iras,
pelejas e dissenções” de que fala São Paulo quando descreve as “obras da carne”
Gálatas 5:20.
Uma oportunidade por cumprir
Calculo
que estas minhas palavras sejam muito desagradáveis para os evangélicos que as
lêem. Em geral, seja qual for a nossa confissão ou a nossa ideologia,
preferimos ouvir palavras de elogio e de aprovação. Mas também pode ser útil um
exame, mesmo que ligeiro, do que eventualmente não está bem, para podermos
melhorar a nossa caminhada. A auto-estima, um valor a construir, não se faz
apenas com a lembrança das nossas vitórias, mas também com a correcção dos
nossos erros.
No
princípio desta exposição expressei a opinião de que não se pode falar de uma
oportunidade totalmente perdida. O Protestantismo português não manifesta hoje
os resultados que, por exemplo, em 1900 se podia esperar. Não temos registo,
(eu pelo menos não o encontrei) do que teriam dito responsáveis evangélicos na
noite de 31 de Dezembro desse ano, quando o século XIX dava lugar ao mítico
século XX, mas podemos imaginar que algum deles, talvez o já então venerando
Manuel dos Santos Carvalho, pastor congregacional, de longas barbas brancas,
tenha usado o tom e os gestos eloquentes da época para dizer qualquer coisa
como isto: “O Evangelho, nesta expressão da Reforma, chegou Portugal e vai
rapidamente, qual abençoada chuva em terra árida, regar a nossa querida
Pátria!” Mas, cem anos depois, é forçoso reconhecer que não tem sido grande a
colheita desta sementeira de esperança. Tenho observado que há em muitos dos
nossos irmãos nas congregações, desânimo e mesmo, parece, o sentimento de
derrota. Tanto quanto parece, na quase totalidade das congregações das Igrejas
tradicionais – e por tradicionais digo as Igrejas do Conselho Português de
Igrejas Cristãs, mas também nas congregações baptistas, congregacionais e dos
irmãos, talvez mesmo também as Assembleias de Deus – está a diminuir o número
de participantes no culto. Algumas congregações pequenas já fecharam e outras
não fecham apenas por teimosia de quem se calhar não quer perder a face.
E
no entanto, não podemos falar em oportunidade perdida, porque ao longo de todos
estes anos muitos encontraram a Vida Abundante oferecida por Jesus Cristo
graças ao ministério das Igrejas protestantes em Portugal. Muitos que já
pertence à Igreja Triunfante viveram a fé cristã com alegria e nela morreram
porque ouviram a pregação da Palavra de Deus nas nossas comunidades e a ela
aderiram. Muitos que vinham de famílias afastadas do Cristianismo encontraram
Cristo graças à pregação das igrejas protestantes e com Cristo encontraram a fé
que justifica. E ainda hoje, se não somos a multidão com que alguns sonharam, e
nem sequer, de certeza os 500 mil portugueses que alguns exagerados citam,
somos, pelo menos, uma minoria de perto de duzentas mil pessoas que encontram
no Evangelho a força para viver e lutar. Na criação de um Portugal renovado, o
Protestantismo português é indispensável. O personalismo, a que já me referi e
que é um dos valores altos da Reforma, promove a responsabilidade dos cidadãos
e é só numa cultura de cidadania responsável que a Democracia pode vicejar.
Mesmo
em países como a França e a Itália, onde o Protestantismo representa uma
percentagem em relação à população em geral parecida com a do Protestantismo
português, a sua influência positiva no conjunto da sociedade é de grande
valor. A França tem tido primeiros-ministros e outros governantes, escritores e
cientistas de fé protestante e na Itália a fé dos valdenses é muito respeitada.
As
minorias têm um papel importante em qualquer sociedade. E nosso Senhor disse
aos seus discípulos que eles tinham como missão ser o fermento na massa. Apesar
de tudo, isto é, apesar de em Portugal a corrente do Protestantismo histórico
ser ainda muito débil, não se pode deixar de reconhecer que o Protestantismo
tem tido um papel importante. É preciso é que tenha a coragem de ser fiel à sua
própria mensagem e a proclame, remando contra a maré. Foi no sector do chamado
Protestantismo histórico (Igreja Presbiteriana de Portugal, Igreja Metodista Portuguesa
e Igreja Lusitana) que o movimento ecuménico encontrou seguidores no nosso
país. Quando a Igreja Católico-Romana estava ainda por receber o forte impulso
de “agiornamiento” do Vaticano II e os evangélicos
mais conservadores ainda estavam longe de poder aceitar o espírito
interconfessional, já o Seminário Evangélico de Teologia, então em Carcavelos,
tinha um ensino aberto e estava em relação com o Conselho Mundial de Igrejas. A
introdução do espírito ecuménico em Portugal pelas Igrejas Presbiteriana,
Lusitana e Metodista custou-lhes a zanga de muitos dos seus membros mais
conservadores e a crítica severa de outras Igrejas evangélicas, mas o
ecumenismo é um valor a preservar, porque é o antídoto da intolerância
religiosa, sempre de graves resultados.
Ainda
não havia em Portugal sinais do que veio a chamar-se “catolicismo
progressista”, que viveu em volta da revista “Vértice” e dos Cadernos o Tempo e
o Modo, de Alçada Baptista, e já as Igrejas que depois formaram o COPIC
defendiam posições dialogantes para uma sociedade democrática.
Como
pastor presbiteriano que sou, seja-me permitida uma referência muito positiva à
contribuição que a Igreja Presbiteriana pode dar no nosso país. Pode parecer
auto-elogio condenável, mas dirijo-me principalmente aos presbiterianos, para
que estejam atentos aos seus valores. Não é errado cultivar a auto-estima.
Temos,
obviamente muito a receber de outras denominações, mas é indubitável que nesta
Igreja, a nível nacional ou local, vive-se uma liberdade de pensamento pouco comum.
Pode dizer-se que quem for fiel às Escrituras nos resumos do Credo Apostólico e
do Credo Niceno não tem problemas nesta Igreja. Além disso, a regra fundamental
no governo da Igreja é a colegialidade. Não somos uma Igreja com hierarquia
pessoal, mas governamo-nos por concílios que se sobrepõem, cada um com
jurisdição na sua própria área, e nesse aspecto penso que o modelo
presbiteriano merece ser defendido como uma alternativa verdadeiramente
inovadora do modelo tradicional de ser Igreja. É interessante que em dois mil
anos de Igreja Cristã foi Calvino o único teólogo quem pensou uma estrutura
verdadeiramente colegial e adequada aos tempos modernos, esta que veio a
receber a designação de presbiteriana. Isto não quer dizer que em Portugal o
sistema presbiteriano seja vivido sem mácula, pois a Igreja nem sempre consegue
evitar as más influências da sociedade em que está, e a sociedade portuguesa é
tradicionalmente hierárquica e autoritária. Mas há muitos de nós que nos
batemos para que o sistema presbiteriano seja cumprido.
Estou
persuadido de que muito do desânimo experimentado por membros das comunidades
protestantes é errado, porque é o resultado de falsas expectativas criadas que,
naturalmente, não se puderam cumprir. Há poucos anos vi uma ilustração que
consistia num mapa de Portugal do Minho ao Algarve, e incluindo Madeira e
Açores, todo ornamentado com a cruz céltica da Igreja Presbiteriana,
expressando talvez o sonho ingénuo do seu autor de o Presbiterianismo venha um
dia a ser a religião dos portugueses. Outros foram mais moderados e sonharam a
substituição do Catolicismo pelas várias denominações evangélicas. Muitos
evangélicos, inebriados com a sua experiência pessoal, acreditaram que o
Protestantismo iria conquistar um número sempre crescente de portugueses.
Obviamente,
são aspirações fantasiosas Há entre nós quem fale de evangelização em termos de
conquistar mais e mais pessoas para a Igreja, e por isso ficam desanimados por
não verem acrescido o seu grupo, desânimo tanto maior quanto lêem nos jornais e
vêem nas televisões que aos novos movimentos religiosos ocorre muita gente. E
quando, no Protestantismo histórico, se torna evidente que o tal crescimento
espectacular não se regista, vem o desânimo, o azedume, a crítica aos pastores,
vistos como aqueles que deviam fazer crescer as congregações e o não conseguem.
Mas
devíamos pensar mais em termos de consolidação do Protestantismo que somos,
investir mais energias na formação dos nossos pastores e dos nossos leigos, na
criação de condições para que os jovens das famílias que hoje fazem parte das
nossas Igrejas se mantenham unidos a elas, às Igrejas, e fiquem preparados para
transmitir a sua fé aos seus descendentes. A obsessão do número, que terá de
ver com aspiração a poder de tipo mundano, como é o caso dos que falam da
existência de 500 mil evangélicos em Portugal, tem levado a negligenciar o
cuidado dos que fazem parte das comunidades e, ironicamente, as comunidades
diminuem drasticamente em cada geração que passa.
Evangelizar,
é bom não esquecer, não é apenas aumentar o número de pessoas que aderem ao
Evangelho de Jesus Cristo, mas é também consolidar a fé dos que foram
baptizados na sua infância, ajudá-los a confirmarem o sacramento pedido por
seus pais – e é também fortalecer numa fé adulta aqueles que já hoje se sentam
nos bancos das igrejas. Se as pessoas que se sentam nos bancos das Igrejas
viverem com a fé singela que lhes foi ensinada nas classes infantis da Escola
Dominical, terão uma fé infantil, inadequada para o testemunho que se espera
dos cristãos – uma fé que facilmente se afundará diante dos embates duros em
que a vida é pródiga.
O
Cristianismo não está a morrer. O seu ramo protestante a que pertencemos tem potencialidades
que o tornam indispensável ao homem, e essas potencialidades vêm-lhe da
promessa de Cristo feita a toda a Sua Igreja: “As portas do inferno não
prevalecerão contra ela” Mateus 16:18. O
Protestantismo não pode ser uma oportunidade perdida porque tem a assistência
de Deus. Mesmo em Portugal, e apesar das deficiências que apontei, é evidente
que ele abriu o seu caminho, tem hoje o seu lugar e desempenha uma função
importante na salvação das vidas e na criação de uma mentalidade moderna no
nosso país. Aqueles que forem fiéis a Deus e O servirem com lealdade e
dedicação não devem inquietar-se – nem sequer fazer grandes planos como o
patrão de uma empresa ameaçada de falência, porque a Igreja tem o próprio
Cristo como sumo Pastor Hebreus 13:20. O
modelo dos crentes é Abraão, a quem Deus chamou de Ur da Caldeia e, diz a
Sagrada Escritura, que ele “partiu sem saber para onde ia” Hebreus 11:8. É
assim também que temos de seguir a nossa caminhada cristã: sem olhar saudosos
para trás e sem pretendermos adivinhar o futuro, mas confiantes de que o Senhor
é aquele que nos guia, como lembra o Salmo 23. O
Protestantismo português, pelas várias razões que tentei expor em resumo, não
tem podido ter todo o sucesso que seria legítimo esperar. Não receamos reconhecê-lo,
pois nunca apresentámos este ramo da Fé Cristã como o seu ramo perfeito. Não há
ramo perfeito do Cristianismo. E reconhecemo-lo não como exercício de
introspecção mórbida, senão como repto para um mais consciente discipulado
cristão.
Estudo,
foi apresentado na Comunidade Presbiteriana da Figueira da Foz em 2001/05/09
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas