Protestantismo e 1ª República em Portugal (MC)

(Palestra apresentada na Igreja Presbiteriana da Figueira da Foz)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

 

Neste ano em que, desde há muitos meses, Portugal comemora o centenário da implantação da República, esta pequena igreja tem a honra de se juntar às comemorações com esta despretensiosa conferência. Há nove anos, escrevi a história dos cem anos de existência desta Igreja Evangélica Figueirense e nela disse que na pesquisa feita para elaborar esse livro não encontrei informação sobre as reacções desta Igreja à implantação da República. Não pesquisei mais desde então e por isso o que vou dizer tem de ver com o Protestantismo português em geral e não particularmente com o Protestantismo existente na Figueira da Foz.

Sobre este tema publiquei um artigo em Julho passado no mensário “Portugal Evangélico” e hoje o que penso ser mais adequado é fazer uma espécie de comentário a esse artigo, embora eu calcule que poucos dos meus distintos ouvintes tenham lido tal artigo – o que de resto não foi grande perda.

 

Predisposição histórica

 

No dia 21 de Outubro de 1910, portanto, 16 dias depois da proclamação do regime republicano, uma delegação composta por quatro pastores protestantes apresentou a seguinte saudação ao Presidente provisório da República, Dr. Teófilo Braga: “Senhor Presidente: Comissionados pelas Igrejas protestantes do Porto e Gaia e representando os protestantes do norte do país, vimos cumprimentar V. Exa e saudar na pessoa do democrata exemplar, do ínclito professor e literato inconfundível, glória da nossa Pátria, o primeiro magistrado da nação, testemunhando-lhe a nossa alegria pelo advento da República portuguesa (…). Embora seja nosso princípio respeitarmos os poderes constituídos, alheando-nos colectivamente de toda a preocupação partidária, o certo é que a nossa obra em Portugal, nestes últimos 40 anos, nos dispensa, por certo, de fazermos agora declaração de adesão aos princípios republicanos”. (O Mensageiro, Outubro de 1910)

Esta saudação merece um comentário sobre o facto de a delegação representar apenas igrejas protestantes do norte do país. A verdade é que não havia, e continua a não haver, nenhuma organização que possa representar todos os protestantes portugueses. Mas o silêncio que se fez entre os protestantes a nível nacional quando esta saudação foi publicada e o comportamento geral do Protestantismo, como veremos em seguida, leva-nos a crer que as palavras desta saudação, não reparando no estilo ditirâmbico da oratória da época, as palavras desta saudação veiculavam um sentimento sincero de alegria pela implantação da República.

 Havia uma certa, digamos, predisposição histórica já nos pioneiros do Protestantismo em Portugal, ainda no século XIX, para simpatizarem com o regime republicano. Portugal era uma Monarquia quando o Protestantismo começou a ter seguidores entre nós (a primeira igreja organizada foi em 1845), e nessa Monarquia a Igreja Católica tinha um lugar central e privilegiado. A Carta Constitucional, que era o documento fundamental do Estado português, no seu artigo 6º, estabelecia que o Catolicismo era a religião dos portugueses e considerava-se ilegal a um nacional seguir outra religião. Com base neste princípio constitucional, o tribunal do Funchal decretou, durante as tremendas perseguições aos calvinistas de 1945-46, a pena de norte a uma mulher que ousara abjurar do Catolicismo e converter-se ao Protestantismo, e que só não foi executada porque a Relação de Lisboa comutou a pena. Então, aos olhos das primeiras gerações de protestantes portugueses, o Catolicismo e a Monarquia formavam um bloco e repudiar um significava, potencialmente, ao menos, repudiar o outro. Rejeitar o Catolicismo era rejeitar o Estado confessional católico. Aliás, o mesmo se dava com os pioneiros do Republicanismo: a Igreja Católica estava de tal modo unida à Monarquia e à aristocracia que não se podia imaginar a implantação em Portugal do regime republicano sem repudiar a Monarquia e repudiar a Igreja Católico Romana, sua aliada. Os republicanos portugueses tinham como modelo a Revolução Francesa, de 1789, que fez uma guerra sem tréguas ao Catolicismo. Pode lamentar-se a visão anti-clerical jacobina dos republicanos portugueses, que veio, com outros factores igualmente ponderosos, a destruir a Primeira República, mas deve reconhecer-se que a Igreja Católica do século XIX e nesses anos da Primeira República, em muitos aspectos, merecia a reputação que tinha de reaccionária.

 

Membros da Maçonaria

 

Por outro lado, os grandes propagandistas da República eram membros da maçonaria – e sabe-se que aderiram também à maçonaria alguns dos dirigentes do Protestantismo desses dias.

De qualquer forma, há um aspeto nessa luta renhida entre os republicanos e a Igreja Católico-Romana que é preciso sublinhar. É que a “Questão Religiosa” então levantada tomou medidas que afectavam quase que exclusivamente a Igreja Católica e não as demais expressões religiosas existentes então no país, embora a lei de 20 de Abril de 1911 se designasse da Separação das Igrejas do Estado. Aliás, ainda antes da lei da Separação houve medidas tomadas pelo Governo Provisório que já criaram um clima de antagonismo à hierarquia católica, como, por exemplo, logo em 3 de Novembro, menos de um mês depois do começo do novo regime, a publicação da Lei do Divórcio.

Na verdade, algumas das restrições postas às Igrejas, principalmente na Lei da Separação, já os protestantes as praticavam como convicções próprias da sua confissão, como era o caso de não fazerem procissões, não usarem vestes talares em público, de rejeitarem o sistema hierárquico de governo da Igreja. A Lei de Separação abolia o subsídio do culto pelo Estado – mas isso não mexia com os protestantes, que jamais haviam recebido cooperação financeira do Estado. Também a nova lei abolia a côngrua – mas o Protestantismo não conhecia tal modo de financiar o culto e por isso estava dentro da lei antes mesmo de a lei existir. A hierarquia católica fez extrema oposição à criação de associações cultuais, mas nas Igrejas protestantes a aceitação foi rápida. Exemplo disso foi o que aconteceu com a Igreja Lusitana, que logo no dia 1 de Maio, nem 15 dias depois da Lei ser publicada, já Diogo Cassels enviava ao administrador do Concelho a informação da constituição da associação cultual do Torne (O Mensageiro, Janeiro-Fevereiro de 1913). Em Junho, onze pastores de Lisboa e Porto entregavam uma exposição ao ministro da Justiça, Afonso Costa, onde pediam que fossem tomadas em consideração certas particularidades protestantes.

 

Colaboração protestante?

 

De tal modo a Lei da Separação das Igrejas do Estado se adequava a princípios e práticas protestantes que, na geração em que se destacou o Pastor Eduardo Moreira, se chegou a pensar que a Lei teria sido feita com a colaboração estreita de Alfredo da Silva, pastor metodista do Porto, que era amigo íntimo e correligionário maçom de Afonso Costa, ministro da Justiça e dos Cultos no Governo Provisório. Maçom também era o mesmo Eduardo Moreira que isto disse. Talvez tal colaboração de Alfredo da Silva a Afonso Costa na redacção da Lei nunca tenha existido mas, dadas as afinidades que eu acabei de referir entre o pensamento republicano e o pensamento do Protestantismo de então, compreende-se que muitos tenham tirado tal ilação.

 

Desencantados com a República

 

Mas o Protestantismo, como grande parte do restante povo português, não guardou por muito tempo entusiasmo pela questão política. Por um lado, havia o radicalismo ateu de uma parte dos republicanos, radicalismo que começou a manifestar-se, como resultado da convicção de muitos de que toda a expressão religiosa resquício de um passado obscurantista que era preciso substituir pela luz positivista dos tempos modernos. Em certo momento, já não era apenas o Catolicismo que era combatido pelos revolucionários mas era todo o pensamento religioso.

Outro factor que concorreu para afastar os protestantes portugueses desses dias da questão política era a ausência de uma reflexão teológica no seio das modestas igrejas existentes. Não havia um Seminário onde se estudasse teologia, nem se publicava nenhuma revista teológica nesta corrente. Os pastores, na sua maioria, com exceção de Guillherme Dias e Joaquim Cândido de Figueiredo, eram autodidactas, como Eduardo Moreira, este e outros com uma cultura enciclopédica, mas homens que tinham começado, uma parte deles, por serem humildes vendedores ambulantes da Bíblia e tratados religiosos (colportores), feitos depois evangelistas, e após anos de serviço nas igrejas, ordenados ao ministério pastoral. A essência da mensagem dos pregadores protestantes era, felizmente, o Evangelho, mas esses pregadores não estavam preparados para enfrentarem o vendaval de ateísmo que soprava sobre Portugal.

 

Um Cristianismo apolítico

 

Um missionário brasileiro, numa entrevista ao “Portugal Novo”, em 1952, regozijava-se dizendo que “felizmente as nossas igrejas não se preocupam com política”. Esse missionário chamava-se Gerson de Azevedo Meyer, que foi bem conhecido e estimado por alguns que aqui estão. Estou convencido de que o Reverendo Meyer mais tarde repudiaria totalmente esta frase de auto-contentamento por um Cristianismo apolítico, mas este era o espírito reinante no Protestantismo português não apenas durante o Estado Novo mas já pouco depois da proclamação da República.

Na verdade, não deve dizer-se, não “felizmente as nossas igrejas não se preocupam com política”, mas sim lamentar quando tal acontece. A política ocupa-se do governo da cidade, do Estado, e é uma área que merece toda a atenção e cooperação dos cristãos. É certo que as Igrejas, como comunidade não devem pretender ter acção política, actuando como partidos políticos, mas os cristãos, individualmente, devem dar toda a atenção ao fenómeno político.

Jesus determina no Evangelho que devemos dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César (Mateus 22:15/22), e muitos usam este texto para defenderem que o cristão deve viver de costas voltadas à política, que é a questão de César, para servir exclusivamente “as coisas de Deus”, mas o que o texto bíblico ensina é que somos cidadãos de dois reinos, o de Deus e o dos homens, e a ambos temos de dar o máximo de nós mesmos. Ninguém, mais do que os cristãos, e principalmente os cristãos que citam Calvino, sabe como o homem é inclinado ao erro e que por isso precisa de organizar a comunidade civil de tal forma que reine a justiça entre os homens.

Em Mateus 9:13, e paralelos, Jesus diz: Ide e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não sacrifício. A misericórdia é o cuidado dos outros; o sacrifício é o acto religioso que se apresenta à divindade. É por isso aceitável a tradução que o Padre Mário de Oliveira fez deste versículo que é tema e título de um livro que escreveu: “Disse Deus – Do que eu gosto é de política, não de religião”. O Padre Mário da Lixa é um profeta e provocador como todos os profetas, mas é um facto que devemos ter presente: a proclamação do Reino de Deus implica o combate a todas as formas de injustiça, de opressão, de alienação do homem.

 

Preferência pela República

 

Um último ponto que gostava de abordar é este: o Protestantismo, a começar em Lutero, tende a ser uma sociedade igualitária, com, portanto, à partida maior simpatia pelo sistema republicano, que reconhece a todos os homens as mesmas oportunidades no nascimento, em detrimento do sistema monárquico, que vê no rei um pai e pressupõe privilégios adquiridos no berço. Lutero não hesita em opor-se ao papa, chamado o “Santo Pai” e faz aparecer um movimento onde não há um “pai”. É verdade que nos nossos dias as mais antigas monarquias que existem na Europa estão em países de maioria protestante ou de grande influência protestante – mas aí os reis têm um papel meramente simbólico, como nos últimos tempos muito se fala ao referir os “poderes da Rainha de Inglaterra”. Foi no século XVII que os puritanos ingleses se levantaram contra o rei e criaram o sistema republicano, com Oliver Cromwell à frente do Estado. O regime republicano não durou muito, mas cito-o para ilustrar essa preferência. As colónias inglesas e francesas da América do Norte, com cidadãos muito maioritariamente de confissão protestante, quando alcançaram a independência, em 1776, escolheram também o regime republicano.

O último censo feito no nosso País, em 2001, foi tão confuso nas perguntas sobre religião, com resposta facultativa, que não foi possível saber o número de portugueses que se identificavam com o Protestantismo. Alguns representantes da linha evangélica (conservadora) diziam nessa altura que éramos 500.000 os protestantes portugueses, mas eu calculo que aquele número, meio milhão, está muito inflacionado e a verdade pode ser menos de metade desse número. De qualquer forma, se hoje somos tão minoritários, há cem anos, obviamente, a nossa expressão na população portuguesa era liliputiana, aos olhos dos políticos, insignificante. O Reverendo Eduardo Moreira disse que um dos pais da República, julgo que Afonso Costa, lhe teria lamentado o facto de o Protestantismo existente em Portugal nesses dias ser tão fraco, pois ele poderia ser a alternativa para satisfazer o que esse político chamava “as necessidades religiosas do povo português”. Mas o problema maior não foi, não é, sermos minoria. É deixarmo-nos intimidar pelo facto de sermos numericamente tão débeis e termos ficado fechados como em ghetto, cultivando na maior parte dos casos uma piedade singela, quase infantil, em muitos casos conservadora e fundamentalista, em detrimento do aprofundamento de um Cristianismo transformador dos homens e das instituições, ancorado numa sólida reflexão bíblica e teológica. Naturalmente, esta situação não é fatal. A Igreja de Cristo, nos seus vários ramos (Catolicismo, Ortodoxia e Protestantismo) tem sempre a possibilidade de se renovar pelo poder do Espírito Santo. As minorias, religiosas ou políticas, não têm que ficar preocupadas com o número de pessoas que representam. O que têm é de se perguntar se o contributo que querem dar à sociedade é benéfico ou não a essa sociedade. E nós, cristãos protestantes, estamos certos que temos algo de extrema importância a fazer, que é anunciar pela palavra e por actos o Reino ou Soberania de Jesus Cristo.

Ao longo dos pouco mais de 150 anos que o Protestantismo está organizado em Portugal, tem havido uma contribuição da sua parte para a sociedade portuguesa, apesar de tudo, digna de nota. Como vimos, a contribuição para a implantação da República foi singela, mas nestes cem anos teve o mérito de ter sido uma contribuição em geral feita com lealdade aos poderes instituídos e sem reaccionarismo.

 

Manuel Pedro Cardoso – Figueira da Foz, Portugal

Novembro de 2010

 

 

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas