Predestinação 2 (MC)

Uma doutrina difícil

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

A doutrina da predestinação não é fácil, mas as pessoas fazem-na mais difícil, ou pelo menos muito diferente, quando a confundem com “predeterminismo”. O predeterminismo acredita que tudo o que acontece a uma pessoa acontece porque já estava previamente estabelecido (por Deus, pelo Destino, pelos astros), não podendo a pessoa livrar-se disso de forma alguma. Predestinação tem de ver com a intenção final. Se um homem, ao entrar no seu automóvel, disser: “O meu destino é Lisboa”, embora isto se diga, está a usar erradamente a palavra destino, porque não é fatal que chegue a Lisboa. O carro pode avariar-se e ele não chegará a Lisboa. Pode adoecer e não poder avançar. O modo correcto de falar seria: “A minha destinação é Lisboa”, tornando claro que Lisboa é o seu alvo. Em inglês e em francês esta diferença é muito clara (destination and destiny; destination et destin). A predestinação afirma solenemente que Deus elege para a salvação eterna, mas não afirma de modo algum que todas as coisas que acontecem na vida do crente já estavam previamente estabelecidas. Nem elimina o direito do homem de rejeitar Deus. O homem eleito não perde a sua capacidade de escolha pessoal nos caminhos da vida, mas se é realmente alguém que Deus escolheu vai ao encontro do plano de Deus. Muitos acontecimentos narrados na Bíblia ilustram a relação entre o plano de Deus e o livre arbítrio do homem. E é à luz de um desses acontecimentos de que é protagonista que Paulo de Tarso se torna o mais expressivo escritor bíblico da predestinação. A vida de Paulo, a sua condição de, sendo judeu, era também cidadão romano, a sua formação rabínica junto de Gamaliel mas também formação helenista; a sua condição de fariseu, enfim, tudo nele se conjugou para ser um elemento fundamental para a difusão da fé cristã. Portanto, a sua referência ao facto de ser eleito de Deus não tem nada de orgulho, mas justamente o contrário, é a humilde afirmação de que tudo se devia à infinita bondade e sabedoria de Deus.

Não deixa de ser significativo que a ideia da predestinação tenha estado obscurecida durante séculos e que tenha sido na Reforma do século XVI, especialmente com Calvino, que ela retomou um lugar importante. O sistema sacerdotalista da Idade Média prefere a salvação pelo sacrifício do homem, pela sua luta, pelo seu mérito. O Catolicismo medieval sobrevalorizava as “boas obras” para a salvação; e Lutero realçou a justificação pela fé; mas Calvino vai mais longe. Não vamos nós chegar à perversa ideia de que somos espertos, somos superiores, porque temos fé e outros não têm, pois notemos bem, diz Calvino, que nem a fé é mérito nosso: pois fomos eleitos por Deus. Recebemos a chamada, não devemos nada a nós próprios. É a posição maior da humildade humana, que muitos inconscientemente receiam aceitar. Segundo essa visão, a Igreja não nasce das boas intenções dos homens e os cristãos não devem a sua salvação a si próprios, mas à chamada absolutamente gratuita que receberam.

No Antigo Testamento é recorrente o ensino de que Abraão é um homem eleito por Deus, não por causa de algum mérito nele existente mas porque na Sua soberana vontade, Deus assim o quis Génesis 12:1/3; Génesis 22:15/18; Génesis 26:4; Isaías 41:8. Não podemos citar todos os textos e referir todos os chamados por Deus. No entanto, é importante sublinhar que a chamada de Deus impõe o dever da obediência. Eis o que é dito a Israel: De todas as famílias da terra, a vós somente conheci; portanto, todas as vossas injustiças visitarei sobre vós - Amós 3:2. Note-se, entretanto, que os profetas de Israel nunca anunciaram a total rejeição de Israel. Como escreve um comentador: “Deus castiga e prova, mas permanece fiel à sua aliança e às promessas feitas, não revogando a vocação do seu povo” (F. Michaeli, Vocabulário Bíblico). Esta ideia da eleição mantém-se no Novo Testamento. Somos salvos porque Deus nos elegeu, mas Deus espera de nós total obediência. Somos a “raça eleita1ª Pedro 2:9, mas com um objectivo: para fazer a vontade de Deus.

Detestam esta ideia os grupos religiosos que querem manter o povo em constante incerteza (estou salvo? Não estou salvo? Que me falta fazer para completar a salvação: pagar o dízimo, obedecer aos chefes e manter-me nesta denominação? Receber tal tipo de baptismo?); esses grupos ou Igrejas detestam a ideia de eleição. Eleitos só eles, os chefes, às vezes eleitos por votos em Sínodos, é verdade, mas Deus sabe o que valem tais votos humanos, às vezes conquistados com jogos de bastidores. Detestam a todos os que disserem que são crentes não por pertencerem a esta denominação, não por subscreverem este credo, não por se submeterem a esta liturgia, mas pela graça de Deus que nos escolheu desde a fundação dos mundos (Romanos 8:29; Efésios 1:4/11). Antes de acabar este artigo é bom dizer que hoje não há, que eu saiba, nenhuma Igreja que defenda a predestinação como Calvino a formulou, isto é, falando da dupla predestinação. A Reforma não canoniza os seus teólogos e não tem dificuldade em reconhecer exageros neles. Calvino achou que, se há uns que Deus elegeu para a salvação eterna, é porque há também quem fosse eleito para a perdição eterna. Este segundo ponto é rejeitado. Trata-se de um aspecto que não conhecemos, não é revelado na Bíblia.

Agora o que se não pode negar é o júbilo profundo que o crente pode experimentar por poder dizer: “Estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura, nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” - Romanos 8:38/39

Manuel Pedro Cardoso

Figueira da Foz – Portugal – Maio de 2006

 

 

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas