Primeira europeia no Oriente (CC)

 

 

Comemorou-se, há relativamente pouco tempo, a passagem dos quinhentos anos da chegada de Vasco da Gama à Índia.

Penso que ninguém tem dúvidas de que foram os portugueses os primeiros que fizeram a viagem por mar, da Europa à Índia, partindo de Lisboa em 8 de Julho de 1497 para chegar a Calicute em 17 de Abril de 1498.

Mas, quais as primeiras mulheres do Ocidente a chegar à Índia, navegando sempre por mar?

Suponho que este assunto não é mencionado em Portugal, pelo menos em época recente, mas encontrei informação no livrinho “GOA – A brief historical Sketch”, com partes escritas em inglês e outras em português, de autoria do médico e historiador Dr. António de Menezes, publicado em Goa em 1983.

Tentei contactar com o autor do livro, para lhe pedir autorização para transcrever a passagem que apresento a seguir, e tive a informação de que já faleceu em 2002. Mas o seu filho, Dr. Luís Menezes que é médico ginecologista em Goa, teve a amabilidade de autorizar a transcrição, pelo que aqui ficam os meus agradecimentos. Só lamento que o livro já esteja esgotado e não haja planos para nova edição.

 

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AS PRIMEIRAS PORTUGUESAS EM GOA

 

Foi em Dezembro de 1514 que Afonso de Albuquerque escreveu a D. Manuel I sobre a conveniência da vinda das portuguesas para Goa, “a fim de constituírem lar e grei neste berço inicial do Império nascente”.

Coube, porém, a D. João III satisfazer o pedido formulado por Albuquerque - e, assim principiou a lusa emigração para o Oriente enviando para cá numerosas órfãs honradas, umas plebeias e outras nobres. O primeiro passo desse monarca povoador do Ultramar consistiu na instalação em Portugal de recolhimentos de órfãs honradas, tanto plebeias como nobres, dos quais os mais importantes eram o do Castelo e o do Mosteiro de Alcobaça em Lisboa, administrados pela Confraria da Paixão de Cristo, e o Recolhimento de donzelas do Porto.

Essas órfãs, desde os primeiros tempos do seu desembarque na Índia, foram, sempre alojadas, sustentadas e dotadas pela Santa Casa da Misericórdia de Goa, instituição de assistência social, sob a superintendência do próprio Vice-rei, ajudado pelo Arcebispo e pelo Senado de Goa, (Desde 1505, apesar de esporadicamente, em todas as frotas portuguesas pelejando para o Oriente, embarcavam sempre uma ou mais portuguesas, “umas ás claras e outras clandestinamente”).

As primeiras portuguesas de certa linhagem que chegaram a Goa foram, Iria Pereira, esposa do alcaide-mor de Cochim, capitão António Real; Gimanesa Sanches, esposa do capitão Rebelo; Catarina de Albuquerque (que foi a primeira esposa de um Governador Geral da Índia, que com ele casou “in articulo mortis”),

Muitas outras portuguesas vieram depois, em levas progressivamente crescentes. Chegaram a embarcar para Goa inteiras famílias metropolitanas. E conforme um cômputo aproximado, após numerosas e demoradas pesquisas pelos arquivos de Goa, de Portugal, Paris, Londres, Bombaim e Batavia, levadas a efeito durante mais de trinta anos - diz o Dr. Germano Correia na sua “História da Colonização Portuguesa na Índia” - calculo em mais de oito mil o numero das portuguesas desembarcadas nas principais cidades do Oriente Português no decurso do século XVI.

Às portuguesas, portanto, entre as restantes filhas da culta Europa, cabe a glória da prioridade, pois foi só decorrido um século que as holandesas se dispuseram a segui-las no caminho para o Oriente.

Entre 1505, ano da vinda de Iria Pereira para a Índia, esposa de António Real, e o desembarque na capital javanesa, em Novembro de 1610, das primeiras holandesas, decorreu o assaz longo período de mais de cem anos, e foi preciso que decorressem cento e oitenta anos para que as primeiras francesas desembarcassem em Pondicherry.

Foi preciso que transcorressem nada menos de duzentos e cinquenta anos sobre a época do desembarque das primeiras portuguesas, para que as filhas da loura Albion trilhassem a rota marítima das intemeratas filhas da Ibéria Ocidental.

Sucedeu com os ingleses o mesmo que aconteceu com primeiros franceses, que tinham vindo ao Industão erguer no Coromandal um esboço de império colonial, que o génio do grande Dupleix idealizara para a França.

Foram, pois as portuguesas luso-descendentes as primeiras esposas dos ingleses e sobretudo, dos franceses, alicerçando assim os primórdios da sua colonização da Índia.

O Dr. Germano Correia na sua valiosa “História da Colonização Portuguesa na Índia”, referindo-se ao livro “Garcia da Orta e o seu tempo” lamenta que o Conde de Ficalho tenha dado excessivo crédito a Van Linschottem, viajante holandês que esteve em Goa como fámulo do arcebispo Dom Fr. Vicente da Fonseca (1582-1592) e que fala destas mulheres casadas e da sua honestidade com as mais desfavoráveis notícias. Segundo ele diz, quase todas tinham um ou mais amantes, escolhidos entre os soldados, rufiões e desordeiros. Estreitamente vigiadas pelos maridos, recorriam ao uso da “datura” ou de outras drogas para os embriagarem e obterem assim algumas horas de liberdade.

Encontram-se, esporadicamente, dispersos em documentos os mais variados e desconexos, vários nomes de mulheres vindas à Índia, “sem serem alcaiotas, nem aventureiras, antes de 1543, ano histórico para a colonização portuguesa”. Assim, por exemplo, veio à Índia, em 1532, Aldonça Ferraz casada com Pedro Gomes de Abreu, fidalgo, filho de Pedro Gomes de Abreu (“Ementas da Casa da Índia” por Anselmo de Braamcamp Freire, pag. 333). E em 1535, Catarina de Almeida, casada com Fernão Caldeira, moço da Câmara do Infante D. Luís, filho de Álvaro Fernandes e de Maria Fogaça; e Dona Isabel de Aguiar, “que teve provisão para ir à Índia com um irmão na frota de 1535 (“Grandes e Humildes na Epopeia Portuguesa do Oriente”, Vol. II, pag. 138). Foi generosa benfeitora do Colégio Jesuíta Baçaim. (Tinha três aldeias foreiras a Coroa Real, uma das quais largou em vida ao Colégio da Companhia em Baçaim).

Em 1542 desembarcou em Goa uma numerosa e aristocrática família de Henrique Sollis. O grande médico e naturalista português Dr. Garcia da Orta era casado com uma das filhas de Henrique Sollis, chamada Brianda Sollis.

Além das numerosas e ricas famílias Orta e Sollis existiam também em Goa, vindas, quase na mesma época, da Metrópole, outras famílias portuguesas que haviam cá fixado residência definitiva, constituindo lar a grei na Índia, tais como: Peres, Gomes, Pimentel e Soares, entre as mais numerosas.

Esta faceta importantíssima da expansão colonial no Oriente esteve por muitos séculos imersa nas trevas do desconhecimento, a ponto de nenhum historiador colonialista nacional ter-se referido a esse facto histórico de tamanha magnitude, qual o da comparticipação feminina, em larga escala, desde os primórdios da ocupação portuguesa desta zona hindustânica - (“Historia de Colonização Portuguesa na Índia”) - e foi imensamente vantajosa e moralizadora essa comparticipação feminina em tudo quanto diz respeito ao nosso viver privado, social e até oficial naqueles tempos revoltosos e turvos, em que a aventura andava a par da ocupação ordeira, pois que piores poderiam ter sido sem a sua benéfica influência no lar, que sem essa interferência moderadora e morigeradora, viriam a ser ainda mais cruéis e imoderados do que foram de facto.

A lusa epopeia feminina, feita de sacrifícios, sofrimentos e heroísmos, amassada em lágrimas e sangue foi, na frase do ilustre autor da “Colonização Portuguesa na Índia”, eclipsada pela indiferença ou pelos preconceitos dos cronistas da época.

Transcrição de “GOA – A brief historical Sketch”

Dr. António de Menezes, Goa em 1983.

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Penso que a colonização do Oriente foi bem diferente do que aconteceu no Brasil, para onde foi deportada certa percentagem de presos e prostitutas. Mas isso não aconteceu só no Brasil, como em África, e todos os outros povos colonizadores, como a Holanda, Espanha, França Inglaterra, Bélgica etc. fizeram o mesmo. Para a mentalidade da época, depois de saírem de Portugal, só iriam encontrar “gente”, quando chegassem à Índia ou outros países do Oriente.

O “caminho” de Portugal para a Índia passava pela costa brasileira, para aproveitarem os ventos favoráveis em determinadas épocas do ano, seguindo até ao sul do Brasil, após o que o Atlântico Sul era atravessado com navegação à bolina. Assim, a principal finalidade da ocupação da costa brasileira e da costa oriental africana com pequenas fortalezas, inicialmente não era a ocupação do território, mas a garantia do reabastecimento das caravelas de alimentos frescos, água potável, e se fosse no regresso a Portugal, também teriam valor alguns escravos exóticos, certamente mais valiosos que o vulgar escravo europeu. Muitos deles foram vendidos no mercado de escravos da cidade de Lagos, no sul de Portugal, num edifício que ainda se mantém devido ao seu valor histórico.

Bem sei que muitos brasileiros se queixam dessa discriminação com que o Brasil foi tratado em relação ao Oriente. Mas não podemos ignorar o que era o “Brasil” dessa época. Será que o brasileiro dos nossos dias, com certo nível cultural e económico está disposto a ir viver para uma aldeia índia no interior da Amazónia? Como podemos admirar de que nenhum europeu estivesse interessado em passar os seus dias no Brasil ou em África, numa época em que não havia telefone por satélite nem GPS?

Penso que este interessante artigo do Dr. António de Menezes, embora se refira ao caso de Goa, tem também interesse para brasileiros, moçambicanos e outros países lusófonos, pois esses eram os pontos de passagem das primeiras caravelas.

Afinal, ficamos sem saber qual a primeira portuguesa que chegou à Índia.

O Dr. Menezes cita o caso de Iria Pereira, uma aristocrata que foi certamente a primeira entre as nobres mulheres, mas também menciona o caso de muitas outras que embarcaram desde 1505, por vezes clandestinamente. Certamente que o nome da primeira a chegar não ficou na história, mas muitas dessas viajantes clandestinas terão ficado não só na Índia, como na costa do Brasil ou na costa de África. Elas tiveram a coragem de efectuar essa perigosa viagem sem regresso e deixaram o que é hoje a nossa cultura e a nossa língua, que afinal se mantêm mais firme no Brasil e nos países africanos de língua oficial portuguesa do que no Oriente, onde a língua portuguesa, é pouco conhecida e sobrevive com dificuldade em Goa, que já foi a capital do Império Português do Oriente.

Pela carta do Vice-Rei da Índia, Afonso de Albuquerque, vemos que já em 1514, ele concluíra que sem essa acção da mulher portuguesa, não seria possível transmitir a língua e a cultura de Portugal.

Hoje em dia, já nada resta da cidade conhecida como a Velha Goa, que já foi maior e mais rica que a própria cidade de Lisboa, a capital do Império português. Nada ficou dessa cidade, a não ser algumas das suas igrejas de pedra, pois a cidade foi dizimada e abandonada devido à peste. A actual capital é a cidade de Pangim e a cidade mais próspera possivelmente será a cidade de Vasco (Vasco da Gama), devido ao seu importante porto de mar. É esta a realidade dos nossos dias.

Afinal, os tais presos e prostitutas, que foram deportados para a costa do Brasil e de África, de que alguns brasileiros se queixam, muitas vezes sem pensar que se referem aos nossos antepassados, foram mais eficientes na divulgação da sua cultura e da sua língua, do que os nobres que foram para o Oriente.

Bem sei que vários factores contribuíram para isso. Enquanto no Brasil e em África, Portugal encontrou povos primitivos, salvo pequenas excepções, como no norte de Moçambique, e tais países foram ocupados com o povo português incluindo lavradores e operários, no Oriente já havia civilizações antigas e a chamada colonização portuguesa limitou-se a governar os territórios, sem uma verdadeira ocupação, pois o lavrador ou operário europeu não conseguiu competir de forma rentável com os naturais desses países.

No caso de Goa, durante os quatro séculos de colonização, os portugueses misturaram-se com os goeses, mas… na Índia, não basta dizer isto. Na sua grande maioria, os casos de mistos entre portugueses e goeses, são o resultado de casamentos com os brâmanes, a classe intelectual e aristocrática da Índia. Nos nossos dias, são eles que lutam para preservar a sua identidade cultural através da língua portuguesa e do concanim, a língua tradicional do actual Estado de Goa.

 

Camilo – Marinha Grande, Portugal

Março de 2007

 

 

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