Perdão na Igreja cristã (MC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

O cristão não faz sozinho a sua caminhada. Tem a companhia luminosa do Espírito de Cristo, que prometeu estar sempre connosco e tem também a companhia dos seus irmãos e irmãs na fé. Jesus providenciou para que o cristão tenha na sua caminhada a companhia visível e concreta de irmãos e irmãs, que formam em cada localidade a sua igreja e globalmente formam a Igreja Universal. Nosso Senhor quer que os seus discípulos caminhem em companheirismo, para que dêem força uns aos outros, mutuamente se edifiquem na fé, e juntos combatam o bom combate.

Cada homem e cada mulher converte-se individualmente a Cristo. Cristo é reconhecido como o único e suficiente Senhor e Salvador, mas, ao convertermo-nos a Cristo, saímos do individualismo e tornamo-nos parte de um todo, que é a Igreja, chamada o Corpo de Cristo, Povo de Deus: Vós dantes não éreis povo, mas agora sois Povo de Deus… 1ª Pedro 2:10. Já alguém comparou a Igreja a um conjunto de homens e mulheres que vão fazer alpinismo e seguem ligados por cordas uns aos outros. Só podem avançar e alcançar o pico da montanha se tiverem o cuidado de se manter unidos na sua caminhada. Quando lemos a descrição da vida da Igreja primitiva Actos 2:42/47, percebemos melhor a infelicidade do crente que estiver numa igreja onde não houver o espírito de unidade e comunhão que ali reinava.

Há muitos cristãos dos nossos dias que desvalorizam o papel da Igreja ou das igrejas, mas no Novo Testamento há a preocupação constante de lhe reconhecer um lugar cimeiro na vivência da mensagem cristã. Principalmente todo o capítulo 18 do Evangelho de São Mateus é dedicado ao papel da Igreja como amparo da vivência da Fé. O texto de Mateus 18:15/20 dá-nos instruções do Senhor de suprema importância para todos nós.

 

1 - O pecado existe e é desintegrador

Para formar uma autêntica e feliz comunidade cristã é preciso, desde logo, reconhecer que nos seus membros pode haver situações de pecado. O texto começa por dizer: Se o teu irmão pecar, ou, como diz a versão moderna: Se o teu irmão te ofender. Não podemos ser ingénuos e pensar que, se todos se dizem seguidores de Jesus Cristo, todos obedecem a Cristo durante as 24 horas do dia e os sete dias da semana. Cada um por si mesmo sabe que infelizmente não é assim, mas o pecado ronda a nossa vida. A Comunidade Cristã, justamente por causa da sua condição de comunidade inspirada pelo Espírito Santo, tem de levar a sério o pecado, porque ele é mesmo um elemento desintegrador da pessoa e da comunidade.

A tendência do homem em geral é de subestimar o pecado, começando justamente por fugir até da própria palavra. Cantamos velhos hinos em que falamos do pecado e da ira de Deus, mas se queremos mostrar uma linguagem mais moderna evitamos falar em pecado. No entanto, ele existe, é a desobediência à vontade de Deus. Na ordem do culto da minha denominação é costume haver um momento em que se faz a “Confissão de Pecados”. Aquele que preside ao culto dirige a comunidade numa oração, em geral escrita, confessando o pecado colectivo. Mas é, quase sempre, muito formal, sem profundidade e julgo que poucos o levam a sério.

O que é necessário é que a nossa consciência se envolva na confissão: Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar 1ª João 1:9 .A nossa própria consciência está formada de tal maneira que sabemos muito bem quando estamos a pecar Romanos 2:15. É verdade que tem havido na História do Cristianismo e nos nossos dias, pregadores e movimentos que se excedem no uso da palavra pecado, numa pregação de meter medo, com ameaças constantes ao fogo do inferno; mas tal abuso, que procura manter os crentes como crianças amedrontadas, obedecendo cegamente a pastores e dando fartas ofertas, não nos deve levar ao abuso oposto que consiste na pregação que reduz tudo a simpatia, sorrisos, paz e amor, pregação muitas vezes feita com o mesmo alvo de angariar generosas ofertas e obter sucesso humano.

Se o teu irmão pecar... Mateus 18:15 A comunidade cristã, incluindo o pastor e outros dirigentes, não está imune à ação do Maligno, e cada membro tem de estar atento para não cair e para ajudar outros a não caírem. Recentemente, os media portugueses noticiaram que perto de Lisboa um pastor evangélico brasileiro abusou sexualmente de um rapazinho e quando descoberto fugiu para o Brasil. O pai da criança, num depoimento à televisão, dizia: “Nós confiávamos plenamente no nosso pastor. Quem havia de esperar uma coisa destas?!” Desgraçadamente, não podemos nunca confiar plenamente em ninguém. É a essa perspectiva que compreendemos esta Palavra de Deus: …Não há um justo, nem um sequer Romanos 3:10. Em 2009, celebrámos os 500 anos do nascimento de Calvino, mas teimamos em ser muito pouco calvinistas na leitura da Bíblia, porque esse Reformador sublinhava justamente a inclinação para o erro que há no ser humano.

 

2 - É preciso denunciar o erro

O pecado existe dentro da comunidade cristã e Jesus manda-nos enfrentá-lo. Nos tempos do rei David, como podemos ler em 2º Samuel 12:1/14, Natã era o profeta que o Senhor conduzia com a Sua inspiração. O rei cometeu um duplo pecado: adulterou com a mulher de Urias e enviou o marido traído para a frente mais perigosa da guerra, onde foi morto. Natã soube-se enviado por Deus para confrontar o rei com os seus pecados, tal como um cristão hoje se sabe enviado por Deus para confrontar o homem com o seu pecado (em Mateus l8:15 diz: Se o teu irmão pecar, vai…). E que fez o profeta para alcançar a consciência do rei? Contou-lhe, como um facto, a história do homem rico que roubou a única cordeira que um pobre possuía. O rei enfureceu-se com a história, dispôs-se a castigar firmemente o rico insensível e então Natã disse ao rei: Tu és esse homem.

Que enorme coragem mostrou Natã ao colocar o rei diante do seu pecado! David, tendo toda a força do seu lado (era rei, rico e tinha um grande exército sob sua direção), podia zangar-se de tal maneira que imediatamente aniquilasse o pobre profeta. Mas Natã, que, era homem inteligente, tinha plena consciência dos riscos que corria, preferiu obedecer à vontade de Deus que lhe foi revelada, tal como a nós é revelada essa vontade.

Na situação da comunidade cristã que a passagem de Mateus 18 refere também é preciso coragem para obedecer à vontade de Deus, e é isso que o Senhor espera de todos nós. Não apenas de pastores e outros dirigentes, mas de cada cristão, porque cada cristão é templo do Espírito Santo 2ª Coríntios 6:16. Infelizmente, por vezes falta essa coragem. E falta também autêntico amor ao irmão que erra, porque é abandonado no seu erro. Imaginemos o caso de um jovem idealista, vindo de uma família crente, que entrou num Seminário para se tornar pastor. Manifestou-se um jovem egocêntrico, numa luta constante, falta de camaradagem, mentiroso, com sinais de violência. Ninguém dessa comunidade formada por reitor, professores e alunos, alguma vez o confrontou com o seu pecado. No fim de quatro anos de estudo, foi fazer estágio numa congregação. Cometeu mais alguns erros, mas a comissão que supervisionava o estágio não o interpelou. Foi ordenado pastor e instalado numa igreja local. Cometeu mais erros – e o conselho da comunidade aceitava tudo. Se vinha algum alerta de outros dirigentes, a congregação local tomava a defesa do seu pastor, em lugar de o confrontar com as suas faltas. Por fim, o pastor cometeu erros que trouxeram escândalo sobre ele próprio e sobre a igreja. De quem é a culpa? É fácil apontar com um dedo o pastor que, obviamente, tem imensas culpas, mas não podemos deixar de reconhecer que, se o texto da Bíblia que estamos a considerar fosse sempre tomado a sério, ter-se-ia evitado o escândalo e a dor àquele pastor e a toda a Igreja. Se o pastor for expulso do ministério pastoral é uma grande infelicidade, mas os que o não ajudaram serão também infelizes. Quem comodamente se calou ou fechou os olhos por desleixo moral, também peca gravemente, mesmo que seja por omissão.

 

 3 - O perdão não é graça barata

Agir como agiram os dirigentes que refiro acima não é lidar com o perdão. Na passagem de Mateus 18 há todo um esforço para levar o pecador a arrepender-se do que fez: tem de se falar com ele a sós, em primeiro lugar; depois, se a conversa não resultar, levar mais uma ou duas testemunhas; finalmente, apresentar o caso à igreja, ao conjunto dos crentes. Falar em perdão sem esses passos, sem esse esforço, é falar de uma caricatura do perdão, de uma “graça barata”, para usar a expressão cunhada pelo teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer. Se um homem rouba devido à sua miséria, devemos ajudá-lo materialmente, ajudá-lo a sair da sua miséria – mas ajudá-lo também a reconhecer o seu pecado, a arrepender-se e a buscar a ajuda divina. Devemos combater um sistema social iníquo que leva tantos ao crime, mas devemos lutar também para que seja a honestidade e não o crime que domine a sociedade.

 Tenho ouvido várias vezes pessoas simples comentarem: “Temos que perdoar a todos. Nosso Senhor até à mulher adúltera perdoou!”. É um facto: o Evangelho dá-nos conta desse perdão em João 8:1/11 – mas é necessário ler bem o texto sagrado. O texto diz-nos que todos os acusadores da mulher foram-se embora – mas ela não aproveitou para ir-se embora também e escapar a eventual reprimenda do Rabi. O seu silêncio diante de Jesus é um sinal da mudança que se está a operar dentro da mulher. E por fim Jesus manda-a em paz, mas diz-lhe: Vai e não peques mais. Não peques mais, não voltes a adulterar, a fazer o que até a tua consciência te diz ser errado.

 Em toda a Bíblia encontramos a mesma situação: o perdão é acompanhado pelo arrependimento, que é a mudança (metanóia) que se opera no interior daquele ou daquela que pecou. O rei David passou também pelo processo doloroso do arrependimento. O resto do capítulo de Samuel 12 dá conta dessa mudança no rei, e a tradição ensina que o Salmo 51 é o produto literário e espiritual do profundo arrependimento que abalou essa alma. Até fora dos círculos da fé se percebe da relação que tem de haver entre perdão e arrependimento. Não é raro ouvir juízes, na pronúncia da sentença, interpelarem réus de crimes graves por não verem neles sinais de arrependimento ou remorso. Ou, pelo contrário, aliviarem as penas por ser notório o remorso do réu. Porque hão-de os cristãos, guiados pelo Espírito de Deus, ser menos sábios do que a justiça humana?

 

4 - Igrejas com amor fraternal

 Os versículos de Mateus 18:18/20, parecem deslocados no excerto bíblico que estamos a analisar. A quem se dirigem as palavras do versículo 18? Dirigem-se também a todos os cristãos. Temos, cada um de nós, seja pastor ou leigo, o dever de ajudar os nossos irmãos que eventualmente estejam em erro, estando atentos ao nosso próprio erro. Não abandonar o irmão que falha é cumprir o mandamento do amor. Temos todos o poder de ligar e desligar, de contribuir para que haja na congregação um ambiente de verdadeiro amor fraternal, o que se alcança se cada um de nós viver num esforço de seguir a Cristo. Se seguirmos como os alpinistas unidos uns aos outros pelos laços da amizade, seguiremos numa unidade que permite a realização do versículo 19: Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai que está nos céus.

Não é difícil perceber porque é que tantas vezes os cristãos se negam a entrar na crise que ajuda aquele que erra a buscar o caminho correto. Por um lado, o que é legítimo, é a consciência que cada um de nós tem de que erra também e, por isso, falta-lhe autoridade para falar. Mas essa consciência não deve anular o mandamento de Deus que manda interpelar o errado. Por outro lado, o que é mais grave, tem-se medo de zangar a pessoa que precisa de ser corrigida, e mesmo de a levar a afastar-se da igreja. “O Sr. Fulano, que é membro da igreja e faz tantas coisas importantes nela (ou se calhar dá um elevado dízimo), ficou ofendido com uma palavra que ouviu e deixou de ir aos cultos”. A pregar desta maneira, este pastor vai ficar com uma congregação cada vez mais reduzida. Mas o texto diz:”Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles”. É bom ter um largo auditório, mas é melhor lembrar que mesmo quando o auditório é pequeno Cristo está presente, se é em seu Nome que o povo está reunido.

Na igreja onde reina o amor fraternal não são necessários expedientes de alienação psicológica, para atrair pessoas para as reuniões. Não é preciso manipular as mentes para receber contribuições em dinheiro. As pessoas virão por impulso interior, pela ação do Espírito Santo, felizes por encontrar irmãos e irmãs que não são pessoas perfeitas mas são cristãos coerentes, justos e pecadores que buscam obedecer à vontade revelada de Deus. As igrejas onde a vontade de Deus é obedecida são igrejas que brilham e crescem como a Igreja do livro de Atos que foi descrita com estas palavras: Perseveravam unânimes, todos os dias, no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e caindo na graça de todo o povo. E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de salvar Actos 2:46/47.

Há poucas semanas foi reeditada em Portugal a versão de um livro americano publicado em 1937, com grande êxito em todo o mundo. O livro chama-se “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas” e o seu autor foi Dale Carnegie. A receita fundamental desse autor para se conseguir o que o título promete é esta:Não critique, não condene, não se queixe. Se o profeta Natã tivesse esse princípio como orientação, não teria falado com David do modo como falou, e o rei David teria continuado no seu caminho que leva à ruína total. E se os cristãos adoptarem essa regra recusarão o ensino de Jesus. A questão então que se põe é esta: estamos prioritariamente interessados no sucesso e na prosperidade ou estamos acima de tudo prontos a fazer a vontade de Jesus Cristo, que se deu a si mesmo para salvação do pecador? A terrível crise financeira e económica em que o mundo está mergulhado nestes dias deve-se a essa cultura do sucesso e da prosperidade que fecha os olhos à ética e à moral.  

 

Manuel Pedro da Silva Cardoso

Figueira da Foz, Portugal – Julho de 2011

 

 

 

COMENTÁRIOS RECEBIDOS

 

 

Osni de Figueiredo – São Paulo, Brasil, Julho de 2011

É de uma pontualidade admirável este artigo do Pastor Manuel Pedro.

Coincide com minha maneira de ver as coisas nesta atualidade. Pondera sem desconsiderar posições importantes como a voracidade do pecado e a imprescindibilidade da metanoia, não como simples e inerte arrependimento, mas a vontade interior de corrigir velhos hábitos no afã de sentir-se inserido no rol dos justos e agradáveis a Deus.

O final é muito oportuno, pois denuncia a falaciosa máxima tão utilizada pelos pregadores “Não critique, não condene, não se queixe”. Tal comportamento é confortável aos intencionados em explorar (maldosamente) fé alheia.

Na verdade tem aparência de sapiência mas é alienista e omissa. Se não nos interessarmos pelos problemas dos nossos irmãos, quem nos ajudará em tempo oportuno?

Seria cabível aqui a fala do pastor luterano Martin Niemöller (1892 -1984).       

  

 E Não Sobrou Ninguém

Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse

 

Quanto à prioridade entre o sucesso e a prosperidade, em contraste com a vontade de Jesus Cristo, irmão Manuel, cada dia tenho menos otimismo.

Paz do Senhor.