Pela Paz, contra a ocupação
(Artigo
assinado por 24 intelectuais portugueses de grande prestígio)
Em
7 de Janeiro, «profundamente preocupados com a ameaça iminente de guerra contra
o Iraque», apelámos «ao lançamento de acções cívicas contra as limitações dos
direitos e garantias democráticas e contra histerias securitárias
que visam condicionar as liberdades individuais», em defesa de «uma verdadeira
Cultura da Paz no respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas». O
manifesto «Pela Paz contra a Guerra», congregou
milhares de assinaturas, ao mesmo tempo que, por todo o mundo, posições
similares mobilizaram consciências e protestos.
Esta
vasta movimentação dos mais variados sectores da opinião pública desembocou nas
gigantescas manifestações de 15 de Fevereiro, que reuniram milhões de pessoas
em mais de 600 cidades de todos os continentes.
Não
obstante, a administração norte-americana e o Governo britânico ultimaram os
planos de guerra e invasão do Iraque, ao arrepio do direito internacional,
fugindo a qualquer decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas e à
continuação das inspecções sobre a existência de «armas de destruição maciça»,
ignorando os pedidos, nesse sentido, feitos pelas instâncias da ONU.
Bush
e Blair encenaram “in extremis” um encontro preparatório da guerra na base
americana das Lajes, em território português, com a conivência do Governo de Aznar, tendo Durão Barroso como anfitrião.
Ao
som de uma imensa operação de propaganda e de manipulação da informação, as
tropas norte-americanas e britânicas, coadjuvadas por forças australianas,
invadiram o Iraque no dia 19 de Março, recorrendo a bombardeamentos intensivos
e devastadores, utilizando «armas de destruição maciça» de novo tipo. O mundo
ignora até hoje o número exacto dos mortos provocados na população.
A
formidável máquina de guerra lançada contra um povo do Iraque, praticamente
indefeso, procedeu à destruição sistemática de infraestruturas,
edifícios públicos, Universidades, atingindo com frequência densas zonas
populacionais, assumindo ainda uma estratégia de assassinato político em que os
inimigos foram reduzidos a fotografias de um baralho de cartas.
A
pilhagem do Museu de Bagdad e de muitas outras instituições culturais é um
crime contra a História da Humanidade e a memória do povo iraquiano,
constituindo um sinal claro da barbárie associada a esta guerra, que visa
facilitar o controlo da sociedade e das elites iraquianas pelos vencedores.
A
violência exercida contra jornalistas, incluindo portugueses, e a censura
organizada para ocultar notícias e imagens inconvenientes, são elementos
centrais da operação «choque e pavor» tecnocraticamente aplicadas à máquina de
morte e destruição, de modo a minimizar a oposição dentro dos próprios Estados
Unidos da América e da Grã-Bretanha e o repúdio generalizado da opinião pública
mundial. Do mesmo modo que o tratamento brutal e vexatório infligido aos
prisioneiros de guerra – cujo número e situação real se desconhecem – exibem
arrogante desprezo pelas Convenções de Genebra.
A
ocupação militar e a anunciada partilha dos lucros do petróleo e da
reconstrução do que agora foi destruído pela invasão entre empresas americanas
e inglesas, com eventuais migalhas para outros países apoiantes desta acção
militar ilegítima, traduz o verdadeiro objectivo desta «guerra preventiva».
Alegadamente
conduzida contra o regime ditatorial de Saddam Hussein, visa de facto reordenar
geográfica, política e economicamente toda a Região, colocando-a sob tutela
norte-americana. Não foi por acaso que o único ministério que não foi saqueado
em Bagdad foi, significativamente, o Ministério dos Petróleos...
As
crescentes ameaças aos países vizinhos, em especial a Síria e o Irão, e o apoio
declarado à política agressiva da Sharon, que
pretende exterminar o povo e as instituições palestinianas, são outros tantos
sinais do carácter hegemónico da política prosseguida pela administração
norte-americana, que recusa o Direito Internacional e vê nas Nações Unidas um
empecilho à sua afirmação unilateral.
Assistimos,
mesmo assim, a diligências contraditórias de envolvimento de instâncias
internacionais, das Nações Unidas e suas agências à NATO e à União Europeia,
sem esquecer as ONGs, para servirem de manto diáfano e
cobrir a nudez forte da verdade da guerra, da ocupação e dos interesses.
O
Iraque não é um país livre. É hoje um país ocupado por tropas estrangeiras.
Como as imponentes manifestações ocorridas em Bagdad em 18 do corrente,
reclamando a retirada das tropas de ocupação anglo-americanas, bem
demonstraram.
Conscientes
da extensão do apoio e empenhamento do Povo Português na luta pela paz, vimos,
de novo, juntar a nossa voz a quantos, em Portugal e em todo o mundo, querem
lutar pela preservação da paz, no respeito dos princípios da Carta das Nações
Unidas;
Afirmamos
a nossa oposição à ocupação militar do Iraque, defendendo a retirada das tropas
invasoras e a criação, sob a égide da ONU, de genuínas condições de
autodeterminação do seu povo, designadamente através do envio urgente de uma
comissão de observadores de reconhecida credibilidade internacional;
Manifestamos
a nossa profunda preocupação com as intenções belicistas das autoridades
norte-americanas contra países vizinhos do Iraque, em especial a Síria e o
Irão, denunciando também o aproveitamento da situação que as autoridades de
Israel têm feito para prosseguirem a sua política agressiva contra a população
e as instituições palestinianas;
Tememos
uma crescente globalização da guerra e do terrorismo, que siga a par e passo
com práticas de condicionamento pela «lei do mais forte» e com inaceitáveis
restrições às liberdades e garantias individuais;
Rejeitamos
as crescentes ameaças à livre expressão do pensamento e o incremento da
manipulação generalizada da informação, ao serviço de uma visão imperialista e
unilateral;
Apelamos
aos Governos – a todos os Governos – para que respeitem a vontade de paz e
justiça manifestada em todo o mundo, abandonando as políticas armamentistas que
esbanjam recursos vitais para a luta contra a pobreza e a iniquidade;
Somos
pelo reforço efectivo da Organização das Nações Unidas e pela sua exclusiva
legitimidade em termos de Direito Internacional.
Exigimos
o funcionamento autónomo das instâncias europeias face à crescente ameaça
hegemónica dos EUA;
Acreditamos
na solidariedade entre os povos e defendemos uma Cultura de Paz, assente no
primado dos direitos e garantias democráticas e no diálogo de civilizações;
Apelamos,
em consequência, ao lançamento de novas iniciativas, amplas, diversificadas e
plurais em favor da paz e contra a guerra e a ocupação do Iraque.
Lisboa,
2 de Maio de 2003
Mário
Soares (Ex-Presidente da República Portuguesa)
Freitas
do Amaral (Prof. Universitário – Ex-candidato a Presidente da República)
António
Almeida Santos (Presidente da Assembleia da República Portuguesa)
José
Saramago (Escritor Nobel da Literatura)
Maria
de Lourdes Pintassilgo (Ex-Primeira Ministra)
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Artigo
transcrito do Diário de Notícias de 2003-05-05