DEVE O PAPA PEDIR PERDÃO? (MC)
O mundo islâmico, que nos últimos anos
tem andado muito agitado, manifesta-se agora por toda a terra, indignado contra
o papa Bento XVI. As multidões requerem que peça perdão pela citação que fez
numa lição de teologia apresentada no dia 12 de Setembro passado na sua viagem
à Alemanha, citação que, segundo os islamitas, ofende a memória de Maomé e
deturpa a natureza da sua religião. Alguns dirigentes islâmicos ameaçam com o corte
de relações com a Igreja Católico-Romana e há mesmo
quem fale em retaliações violentas.
O discurso do papa na Universidade de Regensburgo ocupa 6 páginas de A4, em tamanho 12, e trata
do tema “Fé, Razão e Universidade: memórias e reflexões”. A frase que os meios
de comunicação social destacaram e se tornou o pomo da discórdia é a citação
que o papa faz do imperador Manuel II Paleólogo, que viveu no século XIV. Num
diálogo com um erudito persa o imperador terá dito: “Mostra-me apenas o que Maomé trouxe de novo, e encontrarás só coisas
más e desumanas, tal como a sua ordem para espalhar pela espada a fé que ele
pregou”.
Não foi, porém, sobre o Islamismo que o
papa falou. Embora voltasse a pegar na frase na conclusão do seu discurso, o
essencial da sua lição foi combater as correntes teológicas – dentro do
Cristianismo – que têm procurado “des-helenizar” a fé
cristã. Por “des-helenizar” entende-se o esforço de
retirar a influência do pensamento grego (Grécia =Hellas)
da exegese bíblica e da dogmática. Bento XVI considera que com a tradução do
Antigo Testamento para o grego (Septuaginta) a
mensagem cristã ficou indissociável do pensamento grego e todo o Novo
Testamento vai reflectir essa herança, como se vê, diz o papa, pelo prólogo de
São João, com a declaração de que no princípio era o Logos
(reflexo da Palavra de Génesis 1). Logos é, não só Palavra,
mas também Razão – e é esta
necessidade de harmonizar fé com razão que o papa quer sublinhar. Ratzinger aponta três momentos em que, na sua opinião, esse
esforço de eliminar a herança grega se manifesta: 1) na Reforma do século XVI e
a sua ênfase na “sola Scriptura”;
2) no liberalismo teológico do século XIX (Harnack) e
3) no mundo moderno. Não há, pois, em todo o discurso, um ataque directo ao
Islamismo.
É possível que a citação de Manuel II
Paleólogo tenha sido um deslize involuntário do papa. Mesmo os católicos mais
conservadores só acham que o papa é infalível quando proclama dogmas. No dia 12
de Setembro de 2006, o papa estava provavelmente sentado numa cátedra, mas não
na sua “Cátedra de Roma”, e por isso pode muito bem ter sido traído pelo prazer
de, como intelectual, ter lido a obra sobre o imperador bizantino que um
professor de teologia havia publicado.
Podemos ver nesta citação do papa alguma
modéstia. Quando preparou a sua lição, Bento XVI estava a pensar,
provavelmente, apenas no conjunto de pessoas que iriam ouvi-lo na sala magana
da Universidade de Regensburgo: ilustres teólogos,
altos clérigos, distintos representantes da sociedade civil. Pôs-se, uma vez
mais, na pele do professor que foi e falava para os ouvintes que teria diante
dos olhos. Mas nas funções que agora desempenha de chefe supremo da Igreja Católico-Romana e Chefe do Estado do Vaticano tudo o que
diz, todo o gesto que faça, tudo é visto à lupa e comentado. Os meios de
comunicação social estão particularmente atentos – e apanham o mais fácil, o
mais “picante”, e eis o que disseram ao mundo: o papa denunciou a “guerra
santa” do Islamismo. Chamou-se a atenção dos crentes muçulmanos para essa frase
e foi como “falar de corda em casa de enforcado”.
Tem o papa o dever de pedir perdão aos
islâmicos? Penso que não, pois a leitura de todo o discurso mostra claramente
que a citação tem um lugar mais do que secundário. Verifica-se até que a
ilustração com o dito do imperador podia muito bem nem ter sido usada, pois não
faz falta nenhuma à argumentação do resto do discurso. De qualquer forma, não
teria sentido um académico pedir perdão por uma ideia que expressasse, desde
que a ideia seja defensável ou seja de um testemunho autêntico. O imperador
terá dito essa frase? Não havendo dúvidas, o papa não mentiu. Se alguém não
está de acordo, reaja de forma também académica: ideias combatem-se com ideias.
Os teólogos do Islão que não gostam da frase têm todo o direito de tornar
pública a sua interpretação teológica do conceito de “guerra santa”. Se não
concordam com o papel que o papa deseja para a razão na relação com a
revelação, devem expressar pela escrita ou pelo discurso oral a sua
discordância. O autor destas linhas reconhece que, ele próprio, como pastor
protestante, também tem, na modéstia do seu círculo, acolhido o discurso
teológico que faz reservas ao pensamento grego. É verdade que não dou hoje
atenção ao pensamento de Adolf Harnack
e ao liberalismo, mas não escondo o meu interesse pessoal pelo regresso ao
pensamento semita dos textos bíblicos. O papa dirá que isso de “pensamento
semita dos textos bíblicos” não existe. Não escondo a minha inclinação por uma
linha teológica que está próxima de Kant e da sua crítica da razão pura. O
papa, porém, é claramente mais escolástico, mais devedor de Aristóteles do que
de Platão. É uma posição respeitável que merece uma discussão entre os
estudiosos, e da qual também não tem de pedir desculpa a ninguém. Mas num ponto
todos estaremos de acordo com Bento XVI: uma religião que não respeite a razão
não pode ser de Deus.
Se houver uma lição a tirar desta crise,
julgo ser esta: não devemos ir à História buscar elementos polémicos que possam
incendiar os ânimos da actualidade. O que o imperador bizantino disse foi dito
num contexto próprio e num tempo que já passou. Quem estuda História tem de
conhecer os factos, mas não vale a pena, por exemplo, que os não católicos
denunciem os crimes da Inquisição, já que a própria Igreja Católico-Romana
denunciou esses mesmos crimes. Em Portugal, não vale a pena voltar a recordar
as crises religiosas do liberalismo político e da República nem as perseguições
aos protestantes de há cem anos. Isto não quer dizer que estejamos todos de
acordo, mas que temos outros temas a tratar.
Manuel Pedro Cardoso
(Pastor presbiteriano)
Figueira da Foz – Portugal – Setembro de
2006
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas