Onde estava Deus? (AF)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Marcos 15:34 Eloi, Eloi, lama sabactâni? Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?
Introdução:
Li,
recentemente, um curioso artigo, na Comunicação Social que me chamou a atenção,
em que o seu Autor, cujo nome não fixei, falava do “tsunami” ocorrido na Ásia,
em que pereceram mais de 200.000 pessoas. O seu artigo terminava com uma
pergunta, que é um clássico clamor do homem impotente perante o sofrimento
inexplicável: Onde estava Deus?
Esta idêntica
pergunta, tem sido feita ao longo da história e continua a ser repetida nos
dias de hoje, quer na Comunicação Social, quer ainda em livros, ou numa ou
noutra celebração pública. A pergunta Onde estava Deus?, revela a
grave crise do homem na sua caminhada histórica, reflectindo a sua posição
dramática de crise ética e moral, nas suas relações sociais, com reflexos no
mau desempenho da economia, que gera a desconfiança no futuro, empurrando
muitos milhões de pessoas para o desemprego e miséria.
Apesar do forte
laicismo, especialmente no Ocidente, assiste-se hoje ao fenómeno do
ressurgimento religioso, que parece indicar ser uma forma de fuga ao futuro
incerto e encontrar assim, - esperam os seus seguidores - um meio que
proporcione algumas certezas, na incerteza da vida.
Mas a história
está, infelizmente, repleta de sofrimento devido às violentas atrocidades
desumanas e às grandes transformações sociais, fruto do conhecimento; tudo isto
tem sido uma constante no caminhar humano.
O homem que não
é religioso, sabe e reconhece que tudo é fruto do egoísmo e da perversidade do
carácter humano. Aqueles que são religiosos, sabem que a palavra que se aplica à
maldade, chama-se pecado, uma palavra teológica que tenta explicar o
sofrimento. Apesar deste conhecimento, a explicação não traz conforto e paz ao
coração do homem. A humanidade anseia por uma linguagem concreta de amor e
esperança que vá ao seu encontro e lhe dê alento, na sua caminhada. Homens e
mulheres querem viver em paz, uma vida digna, com sentido feliz, um velho sonho
ainda por realizar.
Mas ao lermos a
pergunta com que iniciamos esta reflexão, “Onde estava Deus?”, lembrámo-nos do
percurso de Jesus Cristo, durante a Semana da Sua Paixão e Morte. Somos aí
confrontados, de forma mais viva, com a violência e ódio da multidão que estão
na base do sofrimento de Jesus.
Desde a sua
prisão, até ao caminho do Calvário, Jesus, um homem bom e inocente, provavelmente
julgado ilegalmente, segue solitário, no transporte da Sua pesada Cruz, sem que
alguém tivesse tido, de entre a multidão, um gesto de carinho e de
solidariedade.
A pouca e única
ajuda, que acabou por receber, e isto porque foi reconhecido que Jesus estava
esgotado física e psicologicamente, é a de um homem chamado Simão de Cirene,
que não era seguidor de Jesus e que por ali passava, vindo do campo. É ele que,
provavelmente, vindo do seu trabalho, compelido, carrega a Cruz, até ao fim, no
Monte do Calvário. Recebeu um grande e honroso privilégio. Mateus 27:32 , Marcos
15:21, Lucas
23:26.
Pouco se sabe do
passado de Simão, também conhecido por cireneu. E o que se conhece, é que tinha dois filhos, Alexandre e Rufo, que eram
seguidores de Jesus, cujos nomes aparecem no Novo Testamento, em Marcos 15:21.
O sofrimento de Jesus e o sofrimento
humano
Jesus está na
Cruz. Olha os soldados no desempenho do seu trabalho profissional, insensíveis ao
sofrimento dos crucificados. Eles aproveitam uma pausa para jogar os dados
sobre a túnica de Jesus, para ver qual deles ficaria com os seus vestidos. Mateus 27:35 e Marcos 15:24.
A multidão, que
contempla a crucificação, na qual se destacam os doutores religiosos que
ridicularizam Jesus, blasfema do Homem que espalhou a bondade, que ajudou
muitos em várias circunstâncias, que restabeleceu a saúde a tantos outros e que
deu vida aos mortos.
Esqueceram-se
depressa da Sua mensagem em que sempre falou do grande Amor de Deus pelo homem
e que renovou a esperança numa vida melhor, mais completa, a uma humanidade
desiludida e prisioneira do pecado. Jesus está preso na cruz, ferido e
solitário. Mateus
27:36ss; Marcos
15:24ss; Lucas
23:33ss; João
19:18ss.
Ao relermos e
meditarmos nesta triste situação, fica-nos continuamente uma pergunta tão
angustiante e perturbadora, que tem sido feita em sucessivas gerações: “Se Deus
existe, como explicar o mal? Se Deus não existe, donde vem o bem?”
É-nos impossível
imaginar a agonia e o sofrimento atroz de Jesus, quer físico, quer psicológico,
a avaliar pela sua 4ª.palavra: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
Como deve ter
sido grande a Sua agonia. Naquela hora pesou sobre si o pecado do mundo inteiro
e Jesus percebeu que Deus, o Seu Pai, a quem chamava Aba – Paizinho – retirava
dele a sua face. Marcos
14:36 e Marcos
15:34.
Torna-se
evidente, que o sentido deste clamor de Jesus está além da compreensão humana.
Quem pode sondar a profundeza da relação íntima entre o Pai e o Filho Amado,
que nunca se interrompeu?
Neste clamor a
Deus, a quem Jesus, pela primeira vez, não chama Pai, percebe-se que é possível
ser-se abandonado por Deus, por algum tempo, mas simultaneamente amado por Ele,
porque Jesus nunca deixou de falar em Deus.
O clamor de
Jesus, ao pronunciar o texto de Salmo 22:1, assume
inteiramente todo o seu conteúdo de sofrimento e, ao mesmo tempo, de esperança
inabalável no Pai. É um Salmo de lamento profético, que Jesus conhecia muito
bem, porque se refere ao Messias que sofre.
E, ao lê-lo,
podemos entender, não só uma referência ao sofrimento de Jesus, mas também de
todos os que estão em tribulação, mas que esperam justiça, como seu socorro
final. Em Salmo
22:24 lemos: “Porque (Deus) não desprezou nem abominou a aflição do aflito, nem escondeu
dele o seu rosto; antes, quando ele clamou, o ouviu. E mais adiante,
em Salmo 22:26 Os mansos comerão e
se fartarão; louvarão ao Senhor os que o buscam: o vosso coração viverá
eternamente.
E se a Jesus
aconteceu esta dolorosa experiência, sendo Ele a Cabeça da Igreja, Efésios 1:22 também
pode, às vezes, em certo sentido, ser esta uma experiência do povo de Deus, na
riqueza, saúde, solidão e nas provocações da vida.
Lembremo-nos da
experiência de Job, um servo amado de Deus, a quem O Senhor permite passar por
uma grande tribulação, sem que Deus o perca de vista. E como sabemos, Job era
um homem inocente, que amava Deus e nunca deixou de o amar, embora não pudesse
compreender a razão do seu tão grande sofrimento.
Jesus, ao clamar
em alta voz, identifica-se inteiramente, não só com todos os pecados do mundo,
que tem trazido sofrimento indescritível ao homem, mas também expressa, de uma
forma peculiar, a angústia dos pobres, dos fracos e excluídos deste mundo, que
estão inocentes, que vivem desamparados nas bermas dos caminhos agrestes da
vida e que são excluídos dos bens económicos e culturais deste mundo. Eles são
sacrificados nos altares das exigências materialistas daqueles que vivem insensíveis
à miséria dos fracos e doentes que jazem à porta das suas casas, tal como Jesus
nos assinala na parábola do rico e Lázaro. Lucas 16:19/31
Deus
meu, Deus meu, porque me desamparaste?
Marcos 15:37, encerra a descrição do sofrimento de Jesus, quando nos
diz: E, Jesus
dando um grande brado, expirou.
Não era normal
um crucificado ter energia suficiente para dar um grande brado. Para um homem
crucificado e exausto, o normal seria um desmaio, sem nenhum outro sinal de
energia.
Mas a morte de
Jesus não é uma morte típica. O Evangelista Marcos refere os estranhos sinais
da natureza, que se identifica com a angústia do seu Criador, como as trevas
que cobriram a terra durante três horas (Marcos 15:33), do
véu de tecido forte do templo, que se rasgou em dois de alto a baixo, e em que ... abriram-se
os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam foram ressuscitados,
e …saindo dos
sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram
a muitos. Mateus 27:52/53
O centurião
romano representante da autoridade Imperial declara: Verdadeiramente este era Filho de Deus.
Mateus 27:54. Ao
fazer esta declaração, põe em causa a Teologia dos deuses do Império Romano e
abre o caminho ao reconhecimento dos gentios ao Evangelho de Jesus.
O Apóstolo Paulo
no ano 55, quando vivia em Éfeso, meditando em todos estes relatos dos
Evangelhos, escreveu à Igreja de Corinto, na sua primeira carta, numa
esplêndida frase cheia de sabedoria: 1ª Coríntios 15:54
Tragada foi a morte na vitória.
Porto -
Portugal, Outubro de 2006.
Bibliografia:
Bíblia Sagrada,
versão de J. Ferreira de Almeida, Ed. Sociedade Bíblica de Portugal, 1981.
A Bíblia Vida
Nova, edição S.R.Edições Vida Nova São Paulo, Brasil,
1980.
“Falar de Deus”,
a partir do sofrimento do inocente. Gustavo Gutiérrez.
Ed. Vozes, Petrópolis, 1987.
“O problema do
sofrimento”, de C.S Lewis, Colecção Pensadores
Cristãos, série 3, Editora Mundo Cristão, São Paulo, 1983.
Marcos,
Introdução e comentário, de Dewey M.Mulholland,
Série Cultura Bíblica, Editora Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, S. Paulo,
Brasil, 1973,1978.
Livro, “Deus e a
fé” de J. I. González Faus
e Ignácio Sotelo, editora
Casa das Letras/Editorial Notícias, Lisboa, 2005 – segundo subtítulo do livro.
Livro, “A
Crucificação e a Democracia” de Gustavo Zagrebelsky,
Edições Tenacitas, Coimbra, 2004.