Influência secular nos novos caminhos da teologia (CC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

1. Introdução

 

Na última reunião entre professores e alunos do Seminário Evangélico de Teologia, tive conhecimento de que está em estudo uma nova declaração de fé da Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal.

Como aluno do Seminário, sugeri que o assunto fosse divulgado através da página da IEPP (Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal) na Internet, ou por outros meios, para que houvesse ampla participação de todos os estudantes de teologia e em especial dos principais interessados, que são os membros da IEPP, tendo ficado surpreendido ao verificar que um assunto de tal importância, está a ser estudado somente pelos pastores.

 

2. O Pensamento da Modernidade

 

Não tendo portanto, acesso ao referido estudo, decidi escrever este artigo sobre as novas tendências da teologia, mas para abordar o assunto, temos de começar por examinar o pensamento do homem dos nossos dias.

Estamos no limiar do novo milénio, e pode-se afirmar que os últimos dois ou três séculos foram férteis na evolução do pensamento humano.

O assunto foi abordado pelo teólogo brasileiro Ricardo Godim, no III Encontro de Profissionais Cristãos em que este teólogo destacou cinco aspectos do pensamento da modernidade:

2.1 - Secularização, que foi a libertação da tutela religiosa, nos seus vários aspectos, nomeadamente:

A ciência devocional é substituída pela ciência utilista ou tecnociência, geradora de conforto e felicidade.

A tutela do Papa e do Rei, dá lugar aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

A decadência do catolicismo medieval e o surgimento do protestantismo.

A religião mística, desprovida da razão, dá lugar ao livre exame da Bíblia, que se torna um livro acessível a todos.

A tutela religiosa dá lugar a uma sociedade sem influência da religião, ou seja a descristianização da sociedade.

2.2 - Pluralização, que se traduziu num maior número de opções disponíveis na sociedade, em todos os aspectos. É no supermercado, na livraria, no vestuário, na arquitectura etc.

Pode-se definir pluralização com a frase “viva como achar melhor”, o que tem muitas semelhanças com a antiga Grécia e Roma, só com a diferença de que este “ecumenismo” não tem centro e deu origem a várias cosmovisões. Surgiu um sem número de fés que competem entre si, com pouco, ou quase nada em comum.

2.3 - Privatização, que é o direito de cada indivíduo escolher e proteger a sua liberdade pessoal, pois num mundo de cosmovisões tão diferentes, há que se proteger de outras ideias no seu mundo privado. Isto tem vantagens, pois implica a independência pessoal, mas tem como consequência, que nos tornamos órfãos da comunidade, pois somos o único senhor das nossas decisões.

 A privacidade, por um lado, ajuda-nos a proteger do totalitarismo e das tiranias culturais, mas dá-nos uma responsabilidade acrescida, pois passamos a ser os únicos árbitros de nós próprios, gerando-se uma sociedade de solitários.

2.4 - Globalização, que é de certa maneira uma reacção à privatização, pois como ser solitário, o homem busca a sua identificação com a chamada “aldeia global”.

Desde a invenção da imprensa, da rádio, da televisão, dos computadores, e da internet, as distâncias estão cada vez mais curtas e sentimo-nos cada vez mais e mais integrados nesta aldeia global, tornando-nos cidadãos do mundo. Como consequência desta globalização, temos uma cultura mais reduzida, que conduz à superficialidade, devido ao excesso de informação sem termos tempo para a examinar e absorver ou rejeitar, e o tempo é mais rápido. A cosmovisão da modernidade é global, o que por um lado é óptimo, pois através da internet temos acesso a todo o mundo, incluindo as maiores bibliotecas, mas em vez de gerar mais cultura, gera uma cultura rasa e sem a menor crítica.

2.5 - Fragmentação, que é a situação do homem sem raízes, sem centro, sem raciocínio, sem Deus, só ele próprio com a sua emoção de momento. É o homem reduzido ao “eu” mínimo. Como consequência, temos o encerramento das portas migratórias, a guerra étnica, o neo-nazismo e o fragmentar das culturas e da religião.

Segundo o teólogo brasileiro Ricardo Gondim, é este o contexto cultural em que vivemos nos últimos anos e que, embora em decadência, ainda se mantém nos nossos dias.

 

3 - Influência da modernidade na teologia.

 

Podemos destacar vários aspectos da influência da modernidade na teologia:

3.1 - Penso que em primeiro lugar devo mencionar o descrédito da religião.

Desde que a secularização libertou a ciência da tutela religiosa, e os investigadores dos vários ramos das ciências puderam trabalhar livremente, sem se preocupar se as suas conclusões estavam ou não em de acordo com os ensinos da Igreja Católica, iniciou-se o desenvolvimento dos vários ramos do conhecimento humano, incluindo a própria teologia. Por exemplo: A medicina desenvolveu-se mais nos últimos três séculos do que nos três milénios anteriores. As grandes viagens de circum-navegação vêm revogar a concepção cosmogónica da antiguidade que considerava a terra como um disco plano à superfície das águas, apoiado em colunas. O aumento da alfabetização em geral e o aparecimento da imprensa, tornou a Bíblia um livro acessível a todos, pois até a Igreja Católica já desistiu de a proibir.

3.2 - Em segundo lugar, e de certa maneira como consequência do descrédito da religião, há o surgimento duma nova cosmovisão.

Deus deixou de ser o centro da cosmovisão para ser substituído pela mente humana. A antiga cosmovisão, com a estratificação de sociedade, defendida pelo catolicismo medieval, em que se imaginava uma grande catedral em que Deus estava na cúpula, tendo a seguir o Papa, os reis, o clero, a nobreza, o povo e os escravos, foi substituída por uma nova cosmovisão em que o centro já não é Deus, mas a mente humana deificada.

Certamente que rejeitamos a antiga cosmovisão, pois embora possamos ser crentes e membros das igrejas, somos também produtos da secularização e estamos prontos a defender o nosso conceito de liberdade.

Podemos também questionar se a antiga cosmovisão foi produto da revelação bíblica ou simples fruto da tradição religiosa. Mas também podemos perguntar se estará a mente humana preparada para ser o centro da nossa própria cosmovisão.

 

4 - Consequências da modernidade na tendência da teologia actual

 

Os factos que acabamos de mencionar, levaram ao descrédito não só do catolicismo como das religiões em geral. Os dirigentes religiosos perderam a sua credibilidade e o homem do nosso tempo tem certa dificuldade em considerar a teologia como uma ciência. Lembro por exemplo o caso da Universidade de Coimbra com capela privativa do seu Reitor, que inicialmente era um sacerdote. Passamos duma época em que a teologia era considerada a mãe de todas as ciências para o extremo oposto em que muitos têm dúvidas em aceitá-la como ciência. Parece que actualmente a teologia se isolou das outras ciências, facto que vem afectar ainda mais a sua credibilidade entre a classe pensante.

4.1 Escusado será mencionar as dificuldades de expansão das igrejas dos nossos dias, em especial nas sociedades mais evoluídas, onde é mais marcante o pensamento da modernidade, nomeadamente na Europa.

Em face do contexto cultural em que vivemos, muitos dos mais respeitáveis teólogos parecem responder afirmativamente à seguinte questão: Não deveria a mensagem do Evangelho adaptar-se aos nossos dias? Penso que não é possível responder com um sim ou com um não. Tudo depende do que se enter por “adaptação aos nossos dias”.

Segundo 1ª Coríntios 9:19/23, Paulo procurava uma certa identificação com aqueles a quem comunicava o Evangelho, mas penso que isso, embora implicasse métodos diferentes nos meios de comunicação, não significava que o Evangelho fosse diferente.

Nos jornais que se publicam hoje, encontro páginas inteiras dedicadas aos signos e anúncios sobre astrologia, factos impensáveis no auge do iluminismo. Parece que o pensamento da modernidade já está de certa forma em decadência.

Será acertado rejeitar nos nossos dias uma abordagem teológica sob uma visão teocêntrica, que sobreviveu aos ataques de várias culturas nos últimos 4000 anos para a adaptar aos nossos tempos, sendo de prever que, tudo que se faça, estará já ultrapassado nas próximas décadas, obrigando a próxima geração a nova alteração? Não se tornaria assim o Evangelho num produto do nosso próprio contexto cultural?

4.2 Uma das maiores dificuldades do pensamento da modernidade em relação à religião, encontra-se na cosmovisão do homem dos nossos dias, que já não se aproxima de Deus pelo que Ele é, pelo facto de Deus existir e ser o nosso criador. No pensamento secular do nosso tempo, o homem é o centro da sua própria cosmovisão. Assim, Deus é olhado sob o aspecto utilista. É o homem, centro da sua própria cosmovisão que vai ponderar se vale a pena aceitar a Deus, e antes de perguntar se Deus existe ou se é verdadeiro, a principal pergunta é: Para que serve Deus? Em que é que ele me poderá ser útil?

Assim, é compreensível a tentação de substituir a tradicional apresentação do Evangelho sob uma visão teocêntrica por uma apresentação antropocêntrica, mais em sintonia com o pensamento da modernidade em que o ser humano é o centro da sua própria cosmovisão.

4.3 Mas a apresentação do Evangelho sob uma visão antropocêntrica, que parece à primeira vista uma alteração insignificante, tem um sem número de consequências secundárias:

4.3.1 - Embora as pregações sejam mais compreensíveis para o homem secularizado, nem por isso se tornam mais aceitáveis e credíveis, pois o homem perdeu a confiança nas igrejas, onde por vezes é apresentado um “deus envergonhado de ser Deus”, que procura adaptar-se ao pensamento da modernidade e mendigar um pouco de atenção ao Homem, centro da sua própria cosmovisão.

4.3.2 - As pregações tendem a esquecer a apresentação do Deus supremo, para apresentar cada vez mais a imagem dum deus que está ao serviço do ser humano, que vem resolver os seus problemas sociais e que o convida a colaborar.

4.3.3 - Assim, a Igreja abandona a sua missão profética para se tornar simples instituição de solidariedade social.

4.3.4 - A salvação, através do sangue de Jesus derramado no Calvário em favor da humanidade, ideia base do Evangelho, é substituída por uma exortação a uma vida mais útil em favor do nosso semelhante que apela mais para o amor próprio do que para a regeneração do ser humano, que passa a ser obra do próprio homem.

4.3.5 - Já não se dá a devida ênfase à cruz de Cristo e nem se fala na cruz que cada cristão tem de carregar, pois isso levaria à imediata rejeição do Evangelho pelo pensamento da modernidade, mais preocupado com a utilidade da mensagem do que com a sua veracidade.

4.3.6 - Sobre o assunto, Paul Tillich, (Perspectivas da teologia protestante nos séculos dezanove e vinte” tradução da ASTE 1986, página 64s), afirma que se procura cada vez mais uma religião razoável, pela eliminação nas pregações de temas como a morte, a culpa, e o Inferno, e ataca-se com mais furor a ideia do pecado original, por colidir com a crença no desenvolvimento progressivo da situação do homem na terra. Embora ele se refira à época do iluminismo, julgo que a observação ainda se mantém válida, pois ainda há quem continue a busca da tal religião razoável.

4.4 Mas, se os antigos métodos de comunicar o Evangelho não resultam, quais as alterações aceitáveis e quais as que devemos rejeitar?

Penso que serão aceitáveis, todas as alterações que tendam a uma maior integração do culto evangélico na nossa realidade, como por exemplo as alterações ao nível da liturgia e dos hinos, que são tradições culturais e como tais, deverão ser alteradas sempre que necessário, pois não são propriamente o Evangelho, mas o meio de o transmitir.

Noto nas igrejas dos nossos dias em Portugal, uma grande preocupação na preservação da sua identidade litúrgica, que não é propriamente o Evangelho e que por vezes tem consequências desastrosas, pois acaba por se formar uma “mini-cultura” própria de cada igreja, em que até as palavras têm significados que só são válidos nessa realidade, em que as pregações só satisfazem e só têm significado para o restrito grupo dos seus crentes.

Afinal, Jesus nunca foi o que poderíamos chamar de “pregador de sinagoga” ou “pregador de igreja”. 

Embora também tivesse ensinado no Templo e nas sinagogas, os principais ensinos de Jesus foram divulgados perante as grandes multidões, nas praias e nos montes. É portanto urgente recolocar a mensagem do Evangelho no ambiente em que Jesus a divulgou. Estabelecendo um paralelo de ideias com os nossos dias, poderíamos dizer que o Evangelho deverá ser anunciado no ambiente secular dos nossos dias. Em vez de “subirmos ao púlpito das igrejas” para dar continuidade a uma tradição cultual e cultural que já pouco ou quase nada diz à classe pensante dos nosso dias, há que aprender a “descer ao púlpito de Jesus”.

No entanto, não tenho dúvidas em rejeitar as alterações que impliquem a anulação ou o “diluir” da mensagem do Evangelho tal como Jesus o anunciou, ou que de certa forma sejam a influência da modernidade na própria mensagem do Evangelho, pois isso seria o sal a perder o seu sabor, ou talvez ainda pior. Seria uma inversão de valores, seria o próprio “sal” a ser salgado pelo “mundo”.

 

Camilo Marinha Grande - Portugal

Em 1999/04/22

 

 

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