Morte Cerebral: Do Conceito à Ética (JC)
A morte de um ser humano é sempre motivo de inquietação, não
só pelo processo de morrer, muitas vezes envolvendo dor e sofrimento, físico, psíquico
ou social, mas também pela angústia do desconhecido para lá da morte.
A
determinação da morte por paragem cardiorrespiratória não levanta normalmente
qualquer dúvida ao médico experiente e leva à assinatura do certificado de
óbito e aos habituais procedimentos legais. No entanto, com o advento de novas
tecnologias na área da Medicina, na década de cinquenta, surgiram novos
problemas, desconhecidos até então. O desenvolvimento das Unidades de Cuidados
Intensivos tornou a determinação da morte mais difícil e complexa, dando origem
a uma nova entidade clínica, denominada morte cerebral, que resultou da
possibilidade de prolongamento da vida biológica, desafiando a aplicação dos
critérios tradicionais de verificação do óbito, nestas circunstâncias. Como
resultado desta evolução, a paragem cardiorrespiratória deixou de ser o único
fator determinante para a morte do indivíduo, pois o que a caracteriza
verdadeiramente é a destruição irreversível do tronco cerebral, conforme se
encontra claramente expresso na legislação portuguesa, desde 1999: “A morte corresponde à cessação irreversível das
funções do tronco cerebral”.
Este
tema apresenta uma enorme relevância para a prática médica, uma vez que o
transplante de órgãos, obtidos de cadáveres, que depende
em grande medida da aceitação do conceito de morte cerebral, representa
atualmente a única esperança de sobrevivência para alguns doentes em relação
aos quais se esgotaram todas as outras modalidades de tratamento. No entanto,
nunca será demais salientar que o conceito de morte cerebral não surgiu por
mera conveniência, de modo a satisfazer a necessidade de órgãos de cadáveres
para transplantes, mas sim como resultado da evolução dos conhecimentos da
Ciência e da Medicina, que permitiram identificar esta nova entidade clínica.
Se, no futuro, surgirem novas modalidades de obtenção de órgãos, como a
clonagem ou a xenotransplantação, que tornem
dispensável o recurso a órgãos de cadáveres humanos, irão continuar a existir
situações de morte cerebral em doentes internados em Unidades de Cuidados
Intensivos, que serão desligados do ventilador após a confirmação do óbito,
tendo em vista uma correta gestão dos recursos humanos e tecnológicos
disponíveis. Com os progressos verificados, nos últimos anos, na área da transplantação,
é efetivamente previsível que a colheita de órgãos de cadáveres humanos deixe
de ser, a médio prazo, a única esperança para doentes que necessitam
desesperadamente de um transplante, sobretudo cardíaco ou hepático, para
sobreviverem.
Diagnosticar a morte a partir dos critérios de morte
cerebral, apesar de ser uma forma recente de verificação do óbito, com base em
critérios neurológicos, não é mais do que uma extensão dos critérios clássicos,
na medida em que, na ausência de Unidades de Cuidados Intensivos (que surgiram
apenas nos últimos cinquenta anos), qualquer paragem cardiorrespiratória conduz
inexoravelmente à abolição das funções cerebrais. A morte de uma pessoa implica
assim, necessariamente, a cessação das funções do tronco cerebral, pelo que a
lesão irreversível desta estrutura é condição necessária e suficiente para o
diagnóstico de óbito, confirmada através das provas de morte cerebral.
Apesar
de algumas críticas recorrentes, o conceito de morte cerebral como sendo
equivalente à morte do indivíduo tornou-se aceite de forma generalizada pela
comunidade científica e também por juristas, filósofos e teólogos. Tal não
aconteceu com a conceção de morte neocortical, que se
baseia em premissas essencialmente filosóficas e critérios utilitaristas,
consistindo, em nossa opinião, numa manipulação da definição de morte de modo a
legitimar a utilização de órgãos de doentes em estado vegetativo ou de
recém-nascidos anencefálicos.
Como
refere o autor da carta aos Hebreus, no Novo Testamento, aos
homens está ordenado morrerem uma só vez
Hebreus 9:27. Na verdade, seja qual for o método
utilizado para diagnosticar a morte de uma pessoa, designadamente com recurso
aos critérios clássicos de morte por paragem cardiorrespiratória ou aos
critérios de morte cerebral, é fundamental ter-se em consideração que a morte
será sempre, por definição, um acontecimento único e irreversível, cuja
verificação é um ato de exclusiva responsabilidade médica.
Podemos,
assim, considerar que o atual conceito de morte cerebral, que do ponto de vista
científico, legal e ético, corresponde à morte da pessoa humana, permite a
utilização de órgãos de cadáveres, para transplantes, bem como a cessação de
todas as medidas de suporte artificial da vida orgânica. Na verdade, se o
diagnóstico de morte cerebral for rigoroso e definitivo, resultante da morte,
natural e irreversível do potencial dador, é perfeitamente legítimo proceder-se
à colheita de órgãos do cadáver, desde que não exista contraindicação e se
tenham cumprido os requisitos legais de consentimento, presumido ou informado,
consoante a legislação do país.
Em
nossa opinião, é um dever ético dos profissionais de saúde, e em particular dos
médicos, conhecerem os princípios em que se fundamenta o diagnóstico de morte,
seja com base nos critérios clássicos de paragem cardiorrespiratória ou nos
critérios de morte cerebral. Nesse sentido, afigura-se aconselhável o
aprofundamento desta matéria nas aulas de Bioética e Deontologia, nas várias
escolas médicas do país, de modo a que os futuros médicos possam estar
devidamente preparados para enfrentar os dilemas éticos que possam surgir na
sua prática clínica e a dar o seu contributo esclarecido para a discussão e
divulgação deste assunto, conforme defende também o Professor Daniel Serrão
(1998): “impõe-se
aos médicos e à sua organização de classe, um trabalho permanente de
esclarecimento da opinião pública sobre os critérios de morte cerebral, a sua indiscutível
validade, a forma rigorosa como são utilizados em cada caso e a segurança
absoluta que eles conferem ao diagnóstico de morte cerebral como morte
irreversível do corpo humano”.
Jorge Cruz Porto – Portugal
Abril
de 2014
http://falemosdesaude.blogspot.com
Morte Cerebral – Do
Conceito à Ética
Climepsi, Lisboa, 2004,
pp. 119-122