HÁ VIDA DEPOIS DA MORTE
(MC)
0 -
Apresentação
O
estudo que se segue foi publicado no ano 2000, sob a forma de livro, pelo
Seminário Evangélico de Teologia, de Lisboa. Demos-lhe então como título uma
pergunta: A morte é o fim?, título
que se manteve na tradução para inglês (Is
Death the End?), na edição que foi feita nos Estados Unidos, em
2004 (tradução do Dr. John Theodore Brothers).
Acreditando
o meu amigo e irmão na fé Eng.º Camilo Coelho que esta reflexão sobre a morte
não perdeu a atualidade, propôs-me publicar este estudo na sua página Estudos
Bíblicos sem Fronteiras Teológicas, da net, considerando que a edição em livro
está praticamente esgotada. Acolhi a sugestão com prazer, limitando-me agora a
pequenas atualizações e correções do texto original. Aqui deixo os meus
agradecimentos ao Eng.º Camilo Coelho pela sugestão e pelo muito trabalho que
chamou a si para preparar o material, pois eu próprio, autor, não guardei
suporte informático do estudo. Agradeço de novo àqueles que leram o livro e me
honraram com a sua crítica e seu apoio.
O
novo título que damos a esta edição pela net é uma afirmação convicta – HÁ VIDA DEPOIS DA MORTE! – e
corresponde à maturação que em mim, entretanto, se fez da doutrina das últimas
coisas (Escatologia) da Fé Cristã. A morte, em 2010, de um neto adolescente
abalou profundamente a minha alma e fez-me reler com dor a minha reflexão sobre
a esperança cristã. Ilustrando-se assim o princípio de que é a vida, com as
suas dores e as suas alegrias, quando assumida com verdade, que nos faz
aprofundar a Palavra de Deus João 18:37.
A edição em livro fora dedicada à memória do meu irmão Fernando, falecido em
1996; esta edição é dedicada à memória do querido João Francisco.
1 - A questão
suprema
Pascal, o célebre filósofo francês,
matemático e criador da primeira máquina de calcular, reunia em si as características
de acção com as do homem prático e o místico. Nos seus Pensamentos observou:
“A imortalidade da alma é uma coisa que
tanta importância tem para nós, que nos toca tão profundamente, que é preciso
ter perdido todo o sentimento para ficar na indiferença para saber de que se
trata. Todas as nossas acções e os nossos pensamentos devem tomar direcções tão
diferentes, se houver bens eternos a esperar ou não, que é impossível fazer uma
caminhada com sentido e inteligência senão regulando-a tendo em vista este
ponto, que deve ser o nosso último objectivo” (1).
Mais adiante, neste estudo, veremos que
a expressão “imortalidade da alma” usada por Pascal e por muitos outros
escritores, precisa de ser estudada tendo em vista o ensino da Bíblia, mas por
enquanto contentemo-nos com reconhecer que as palavras do pensador cristão são
expressão de puro bom senso. Vivendo todo o ser humano sob o desígnio de passar
pela morte, o seu modo de estar na vida tem que, forçosamente, ser muito
diferente se estiver convencido de que esse acontecimento, a morte, é o fim
absoluto, ou se acreditar que se trata de uma passagem a outro estágio da vida.
Se só há uma vida, esta que agora vivemos, e tudo acaba com o estertor da
morte, têm razão aqueles que dizem, numa tradução simplificada de Epicuro:
“comamos e bebamos que amanhã morreremos”, frase que o apóstolo São Paulo cita
no contexto da discussão sobre este tema da vida depois da morte. 1ª
Coríntios 15:32 e, nesse caso, o hedonismo
justifica-se: o prazer é a finalidade da vida. E o consumismo do nosso tempo
também: que mais podemos pedir à vida senão que possamos usufruir dos bens que
o dinheiro nos pode dar? Mas se há vida depois da morte, viver como um hedonista
ou como um consumista é insensatez.
Não ignoramos que com o pensamento
contrário se tem também feito muita insensatez. Concluindo-se que a vida
presente é apenas a preparação para uma vida após a morte, essa sim, a vida
verdadeira, aceitam-se todos os sacrifícios atuais, todas as humilhações, todas
as indignidades mesmo, com vista a essa vida futura. A história do Cristianismo
tem muitos exemplos dessa insensatez - como também tem a história política, se
nos lembrarmos dos sacrifícios enormes feitos por gerações que esperavam sempre
adiadas auroras ridentes.
Foi como insensatez que Jesus Cristo
classificou a atitude de uma personagem que defendia uma concepção de vida de
onde a morte estava ausente. Lucas
12:13/21 É bem possível quo o nosso mundo actual mereça ser
globalmente classificado por insensato pelo facto de nele se manifestar uma
grande tendência para se fugir de pensar na morte.
E não se trata apenas da nossa morte,
morte como acontecimento em que tu és o sujeito, mas também, e para muitas
sensibilidades sobretudo, da morte daqueles que nos são queridos. Uma mulher
jovem disse a uma amiga: “Vivo sempre assaltada pelo receio de que o meu filho
possa ficar gravemente doente e morrer. Qualquer momento de felicidade é
manchado com essa ideia”. Todos temos experiências desse tipo. Quando alguém
que amamos viaja, se ouvimos falar de um desastre, se à hora em que prometeu
telefonar não recebemos o telefonema, ficamos inquietos, pensamos no pior e nem
sequer ousamos descrever a quem está connosco que é uma terrível notícia o que
tememos receber.
E há também os que se inquietam com a
sua própria morte pensando nos outros. Um homem sensível, já na chamada
terceira idade, confidenciou a um amigo: “Se eu não tivesse constituído
família, nesta altura corria o perigo de me deixar ficar na cama e esperar a
morte, embora não tenha nenhuma doença grave. A verdade é que me sinto cansado
da monotonia da vida. A minha própria morte não me desagradaria nada. Seria
como o trabalhador cansado que finalmente vai ter o gosto de se deitar o
dormir. Mas temo esse momento por causa dos meus filhos e netos,
principalmente. Sei que me amam e ficarão inconsoláveis por muito tempo”. É
significativo que, numa lista de acontecimentos causadores de tensão, elaborada
nos Estados Unidos na década de 1970 por Thomas H. Homes
(2), a morte de um ente amado alcança o que ali se chama Unidades de Mudança de
Vida (UMV) muito elevadas. Acreditava--se então que a
pessoa podia ser vítima de uma doença grave se totalizasse 300 pontos de UMV, numa lista em que a morte do cônjuge representa 100 UMV e a morte de um amigo íntimo 37 UMV.
Aqueles que já perderam um ou ambos os pais, um irmão, outra pessoa íntima,
sabem como pode ser terrível o peso da morte. Os médicos alertam para a
possibilidade de uma depressão vir em breve atormentar a vida daquele que
sofreu o golpe da morte de um ente amado. Muitas pessoas que perderam um
familiar querido, ficam feridas psicologicamente por anos, algumas até ao fim
de seus dias. A morte de uma criança ou de um adolescente na família tem
provocado as mais pungentes dores morais. Dores a que um grande poeta
brasileiro, Vicente de Carvalho, inspirou um sentido poema com o título
“Pequenino morto”, de que transcrevemos a primeira das doze estrofes.
“Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro… tão desconsolado…
No caixão dourado, como em berço de
ouro,
Pequenino, levam-te dormindo… Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro
Pequenino, acorda!” (3)
É a sensibilidade romântica do século
XIX? É a dor de sempre, ainda que hoje a recalquemos mais, com maior prejuízo
sem dúvida. Esta dor da morte de um ente querido ou o temor da nossa própria
morte não podem ser ignoradas. Temos de enfrentar a verdade de que a morte
existe e pode surpreender-nos a qualquer momento, sendo, por isso, necessário
ter uma resposta para esta questão suprema: há ou não vida depois da morte?
Há muitos anos, um dirigente religioso
com responsabilidade afirmou tranquilamente num grupo: “A morte é um falso
problema”. Sê-lo-ia para ele, mas não se pode chamar falso problema a um
acontecimento que atemoriza tanto as pessoas que preferem nem sequer falar
dele.
A sabedoria dos povos tem referido a
necessidade de termos a morte presente na nossa reflexão, sendo constante o
clamor “Memento moris!”;
lembra-te da morte!, porque se percebe que é quando se tem viva consciência
de que nos espera esse acontecimento que mais sensatamente podemos viver. É
quando o homem mais consciente está de que ele e aqueles que ama estão
destinados a passar pela morte, que ele melhor pode deslumbrar-se diante do dom
da vida e descobrir' a importância do momento que passa.
Quase todos temos conhecimento de casos
em que um homem nervoso, inquieto, conflituoso em família, e por isso infeliz,
foi atingido por doença grave que o pôs diante da ideia da morte, e se
transformou num homem tranquilo, paciente, amável. Não por fingimento ou receio
infantil, mas porque a proximidade da morte o fez perceber a inutilidade de
muitas das nossas lutas e inquietações. Uma mulher que esteve casada mais de
trinta anos com um homem inquieto disse: “Os dias mais felizes do nosso
casamento, por estranho que pareça, foram aqueles em que ele, já desenganado
pelos médicos, sabia que ia morrer”.
Para uma pessoa se sentir viver
autenticamente precisa de ter encontrado um sentido para a vida, e esse sentido
não é encontrado se não se tiver em conta a morte. Como escreveu o teólogo
protestante de Estrasburgo, Roger Mehl: “A morte faz
parte da definição da nossa existência, não apenas porque ela constitui o seu
limite, mas também porque a morte projecta a sua sombra sobre toda a nossa
vida” (4).
Pode parecer mórbido ocupar o nosso
pensamento com a morte, mas, na verdade, é um exercício mental saudável, como o
é todo o esforço de olhar de frente seja o que for que consideremos
desagradável e intimidante. Os estudiosos dizem ao tímido que receia atravessar
uma praça sob a observação de outros: “Se receia isso, avance! Atravesse a
praça mesmo que o tema muito, faça-o tantas vezes quantas puder e ficará curado
do seu medo!” O mesmo para viajar de avião, para conduzir um automóvel, etc.. Há
quem não visite ninguém doente, dizendo que fica muito impressionado - pois
nesse caso deve visitar ainda mais vezes, até que vença a sua sensibilidade
exagerada. E há quem nunca vá a funerais pela mesma razão. Ou se vai a um
funeral, evite ver o cadáver. Faz mal. Tal atitude revela medo da morte - e é
necessário que esse medo seja vencido, ou a sua vida não será plenamente
fruída. A reverência, o respeito diante da morte é normal e desejável, mas o
medo ou o pavor são expressões de desarranjo espiritual.
É lícito duvidar-se que haja autêntica
vida no indivíduo ou na sociedade que procura ignorar a existência da morte.
Mesmo que a consciência da sua existência cause angústia, sendo ela a
“desmancha-prazeres” da nossa caminhada, é útil que nela se pense, porque ela
faz parte da realidade integral.
É interessante observar que Aldous
Huxley no seu famoso romance Admirável Mundo Novo imagina nessa sociedade
avançada (com a qual nos vamos parecendo) a existência de um Hospital para
Moribundos, de onde saem “carros fúnebres aéreos, de cores alegres” e onde os
doentes em fase terminal aguardam a morte, sem o saber, em quartos perfumados,
com televisão emitida ininterruptamente. Um lugar solitário, ignorado da
população em geral, onde se morre sem consciência disso. (5)
Na verdade, a tendência das sociedades
mais “avançadas” de fazer da morte um tema sobre o qual não se fala nem se
pensa (tema tabu) terá muito de ver com a desvalorização das relações pessoais
que nelas se verifica. O filósofo judeu Martin Buber
referiu-se às relações de tipo “Eu-Tu” e às relações “Eu-coisa”,
caracterizando-se as primeiras como aquelas em que o homem se sente amado e ama
ou se sente odiado e odeia ou se sente interpelado e interpela. Ele sente-se
pessoa e sente o outro como pessoa também. São essas relações que nos
enriquecem e deviam ser as do homem com Deus e com o seu próximo. São elas que
nos humanizam. Infelizmente, porém, constata Buber,
temos, em geral, relações “Eu-coisa”: o outro é visto como um objecto de que
nos servimos, que é útil ou não, que cumpre uma função, mas cujos sentimentos,
vontade, sonhos, frustrações, não interessam. O outro pode ser até o pai ou a
mãe, o cônjuge, os filhos, os empregados, os colegas de trabalho, toda a gente
- e até Deus, se a relação for do tipo “dá-me isto, dá-me aquilo”, como na
história da lâmpada de Aladino, um Deus ao serviço do homem, é uma coisa, não
uma pessoa que amamos e por Quem nos deixamos interpelar.
É possível que, se cultivarmos o tipo de
relações “Eu – coisa” a morte perca muito do seu horror (ou o horror será
recalcado). No que diz respeito à morte dos outros pode ser que o acontecimento
não nós afecte muito, se a nossa relação é desse tipo, e isso explica o motivo
por que hoje há muitos funerais em que até membros chegados da família estão
ausentes. Aparentemente, esta situação é tranquilizadora.
Se cultivarmos o distanciamento em
relação aos outros, se não amarmos ninguém, se nos limitarmos a viver centrados
em nós próprios, evitamos a dor que a morte de um íntimo noutras condições nos
faria. Pelo menos no que diz respeito à morte dos outros, cultivar as relações
“Eu-coisa” seria uma vitória sobre a dor. O problema é que esta “vitória sobre
a morte” é o que se pode chamar “uma vitória de Pirro”. Ela pode pôr fim ao
horror da morte de um ente querido, mas porá também, simultaneamente, fim ao
gosto de viver! Porque cultivar o estilo “Eu-coisa” é não ter com os outros o
relacionamento que dá sabor à vida. Relações desse tipo são relações que não
tocarão a nossa afectividade. Avida tornar-se-á um deserto afectivo. Um casal
que, para se prevenir contra a dor da morte que os separará, evitasse todo o
gesto, toda a palavra que desse força ao amor, acabaria por sentir, ao fim de
algum tempo, um vazio tão profundo, que a vida em comum passaria a ser, só por
isso, um inferno. Imaginemos também uma família em que as pessoas mal se falam,
mal comunicam e tocam-se apenas no indispensável. Se um filho se cruza no
corredor com o pai dá um grunhido que parece significar “olá”, e o pai responde
no mesmo estilo. Em casa reina o silêncio. As pessoas não se acariciam, não
trocam impressões, nem sequer discutem. Quando um deles morrer pode acontecer
que não haja lágrimas nem dor. Mas é duvidoso que viver numa família assim seja
mesmo viver... E sobretudo, é duvidoso que não sobrevenha uma depressão, como
resultado de sentimentos de culpabilidade.
Em relação à sua própria morte, o
cultivo do distanciamento nas relações humanas não pode trazer qualquer alívio.
Antes pelo contrário: o distanciamento, o vivermos num mundo em que a amizade e
a fraternidade humanas são desvalorizadas, como acontece no mundo actual,
traduz-se por um estilo de vida de qualidade inferior e nessa situação a morte
alheia pode ser olhada sem emoção, mas a morte do próprio é vista pelo
protagonista com horror e um horror tão grande que nem nela quer pensar. Quem
tem assistido a moribundos sabe que o bispo anglicano John Taylor tem razão
quando observa: “O pensamento da morte é mais horroroso para aqueles que nunca
viveram plenamente” (6).
Philippe Ariés,
o historiador francês que se tornou uma autoridade no estudo do comportamento
das sociedades em relação à morte, fala do fenómeno do nosso tempo da “morte
interdita”, e cita o inglês Geoffrey Gorer como tendo
sido o primeiro a chamar a atenção para a particularidade de hoje a morte
substituir o sexo como principal interdito. Diz Ariés,
expondo o pensamento de Gorer, que as crianças “hoje
em dia são iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia do amor mas, quando
deixam de ver o avô e manifestam o seu espanto, dizem-lhe que ele repousa entre
flores de um belo jardim” (7). Um interdito substitui outro interdito, comenta
o historiador.
Esta situação de interdito é fácil de
constatar. Ainda nos anos 40 em Lisboa era comum as crianças assistirem a
funerais. Sobretudo quando morria um colega de escola (e nesses anos a
mortalidade infantil era muito elevada), lá estava a turma, com os seus bibes,
acompanhada pela respectiva professora, a seguir o pequeno esquife branco até à
sepultura. Hoje acharíamos chocante essa presença. “Têm tempo para saber da
existência da morte”, diz-se. Como antigamente se pensava da educação sexual.
Era preciso chegar a adulto para conhecer os mistérios dessa área da vida.
Aos adultos, nesses tempos, era impensável
não acompanharem uma família das suas relações num velório e nas cerimónias
fúnebres. E igualmente impensável, não usarem, por um tempo estabelecido,
sinais exteriores de luto: a simples gravata negra para acompanhar o amigo ao
cemitério, mas entre os familiares a braçadeira ou fumo, os vestidos, as meias
negras, etc. É evidente que muitos, quem sabe se a maioria, cumpriam todas
essas formalidades sem convicção e contra a sua vontade, mas o que procuramos
mostrar é apenas que, de facto, houve uma mudança radical até na sociedade
portuguesa, tanto na rural como na urbana, em relação à morte. Isso não
significará que haja hoje um maior amor à vida do que havia outrora, ou que
haja mais sinceridade e, portanto, se rejeitem essas convenções por isso, mas
certamente quer dizer que as relações humanas hoje são menos calorosas e é
maior o medo da morte.
O citado Roger Mehl
já em 1955, num outro livro escrevia: “É possível que uma civilização em que o
homem perdesse toda a dignidade individual (por exemplo uma civilização técnica
onde o homem não tivesse outra existência senão a de agente produtor) perderia
a preocupação e por assim dizer o gosto pela vida depois da morte” (8).
Pode ser essa também outra das
explicações do comportamento actual diante da morte e da impopularidade de uma
reflexão sobre a vida depois da morte.
Fecharemos este capítulo com a voz com
que o abrimos, a de Pascal, que terminou assim o pensamento sobre a necessidade
de meditar acerca da morte: “O nosso primeiro interesse e o nosso primeiro
dever é esclarecermo-nos sobre este assunto de que depende a nossa conduta”
(9).
2 - Pergunta
e resposta
No mundo de influência cristã chama-se
Antigo Testamento a um conjunto de livros considerados de inspiração divina e a
que o povo judeu chamava simplesmente Escrituras. “Testamento” nessa expressão
traduz a ideia de Aliança. O povo que está no centro dessas Escrituras e a quem
elas eram dirigidas considera que o seu fundador, Abraão, fez uma Aliança com
Deus, renovada depois sob Moisés no Monte Sinai, e por ela foi feito “Povo de
Deus”. Nessas mesmas Escrituras é várias vezes anunciado que virá um tempo em
que Deus fará uma Nova Aliança (Novo Testamento), uma Aliança que terá como
característica principal o ser “inscrita no coração dos homens” e não na pedra,
como a de Moisés, isto é, nela não será a letra que reinará (não será uma
religião de leis) mas Deus dirigirá o Seu povo através do Espírito.
Para os cristãos, esse tempo chegou com
Jesus Cristo, que é ainda maior do que Abraão e Moisés, e que, depois de ter
convidado os seus ouvintes a aceitarem-no como o Enviado de Deus, fez a
“aliança do seu sangue”, morrendo crucificado. É assim inaugurada a Nova
Aliança ou Novo Testamento. O Novo em Deus não significa a rejeição do Velho ou
Antigo, mas sim o cumprimento daquilo que no Velho existe em promessa.
Entre os 39 livros que formam o Antigo
Testamento há um chamado Livro de Job. O objectivo do livro de Job - assinala a
introdução que lhe é feita na tradução ecuménica francesa conhecida por TOB (Traduction Oecuménique de la Bible) não é
explicar, como geralmente se pensa, o enigma do sofrimento injusto, nem
resolver o problema do mal. É antes uma tentativa de o homem perturbado se
situar em relação ao Deus Santo e Todo-Poderoso (10).
É nesse contexto que aparece a questão
fundamental que nos ocupa. Na sua, dor, Job pergunta-se: Morrendo o homem, porventura tornará a viver?... Job 14:14
A resposta que Job obtém para a sua pergunta vem poucos capítulos depois, e diz
assim: Eu sei que o meu redentor vive e que, por fim,
se levantará sobre a terra. E, depois de consumida a minha pele, ainda em minha
carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos e não outros o
verão. Job
19:25/27. Esta resposta, porém, não lhe vem de fora, não lhe
é dada por nenhum homem, nem a recebe de nenhum anjo; é ele próprio, Job, que a
enuncia, como se a si mesmo quisesse consolar com a palavra que desejava ouvir.
É um texto muito importante e a que teremos de voltar, mas por enquanto o que
queremos sublinhar é a pertinência desta questão: haverá vida depois da, morte?
A questão tem acompanhado o homem ao
longo dos tempos. A investigação arqueológica tem mostrado que já nas mais
antigas sociedades humanas a morte era considerada um assunto de grande
atenção. A circunstância de as escavações mostrarem a existência de sepulturas
nas idades mais antigas e de haver também nesses tempos longínquos indícios de
crença na sobrevivência não pode deixar de ser tomada em consideração na nossa
reflexão. Lecomte de Nouy
observou com justeza no seu livro “L’avenir de l'Esprit” (O futuro do Espírito): “Não somente o homem de
Neandertal enterra os seus mortos, mas por vezes reúne-os, como o testemunha o
sepulcro das crianças na Gruta das Crianças, perto de Menton.
Aí não se trata mais do instinto. Trata-se da aurora do pensamento humano (que
se manifesta, por uma espécie de revolta contra a morte)” (11).
As escavações arqueológicas também têm
encontrado em muitos lugares sepulturas com alimentos e objectos colocados
junto de restos mortais humanos, o que se sabe significar a crença de que os
mortos partiam para algures, numa viagem em que precisavam de se alimentar e
continuar acções iguais às que faziam em vida. Também a arte rupestre deixou um
sem número de provas da crença na vida para além do túmulo. Entre muitos
primitivos praticava-se o culto dos antepassados, acreditando-se que os seus
mortos continuavam vivos e do além protegiam os seus descendentes.
As famosas pirâmides e a soberba arte
funerária do Egipto têm de ver com a convicção reinante nessa civilização da
existência de vida para além da morte. Osíris, o deus que, na religião desse
povo, presidia ao destino dos mortos, era a sua mais popular divindade. Na
Pérsia, na Índia, na China, no Japão, na Grécia, em Roma e entre outros povos
da Europa, incluindo os que habitavam no território que hoje chamamos Portugal
(12), assim como nas sociedades primitivas das Américas, de Africa e da Oceania, a crença na imortalidade estava sempre presente.
Dedicaremos uma atenção especial ao caso do povo hebreu, mas queremos neste
momento sublinhar o facto de a crença de uma vida depois da morte se ter vindo
a manifestar ao longo de milénios entre os diversos povos. Não é, bem o
sabemos, um argumento decisivo em favor dessa crença, mas é um aspecto digno de
reflexão. Assim como o é a circunstância de ser quase geral a convicção entre
os grandes homens que se notabilizaram na história a esperança de que, ao
morrerem, iriam continuar a viver, ainda que num estilo diferente. Conhecem-se,
é verdade, já na Antiguidade, alguns sábios que denegam a vida post-mortem, como
Demócrito, Epicuro e Lucrécio, mas são casos raríssimos. É só a partir do
século XVII da nossa era que essa crença negativa começa a ganhar mais adeptos.
Dir-se-á que tal se deve ao grande progresso que se observou entretanto na
ciência, mas a verdade é que não se regista nenhuma descoberta desde a Revolução
Francesa que tenha trazido razões concretas para se não aceitar a crença na
vida depois da morte. O que surgiu foi uma forte convicção do poder da ciência,
a convicção de que ela poderia resolver todos os problemas, e a criação de uma
oposição artificial entre ciência e fé. Desenvolve-se uma visão tecnicista do
mundo. Muitas vezes a culpa dessa oposição foi das próprias igrejas que usaram
textos bíblicos para contrariar afirmações científicas, uso de todo impróprio
para os propósitos da Bíblia. Ao totalitarismo da fé usado na Idade Média e
ainda depois dela, tentou-se impor um totalitarismo da ciência, com a mesma
arrogante pretensão de responder a todas as questões. Essa oposição entre fé e
ciência é falsa, porque cada uma delas tem a sua própria especificidade. Só o
preconceito de um lado e de outro explicam que muitos ainda mantenham tal
visão.
Entretanto, apesar de nestes últimos
séculos se ter desenvolvido uma espécie de idolatria da ciência, que levou
muitos a rejeitarem a crença da vida depois da morte com o argumento de que
“não há provas científicas disso”, é longa a lista das grandes personagens
deste período “cientista” que sustentam tranquilamente essa crença. As ideias
que faziam dessa vida depois da morte não eram sempre coincidentes, mas não cremos
que esse aspecto seja muito importante para a pesquisa que estamos a fazer. A
verdade que importa realçar é que um número enorme de pessoas manteve a
esperança de que o túmulo, ao contrário do que parece, não é a última morada.
Tal esperança não é manifestação de infantilismo, como veremos, e tem sido a
tranquila convicção com que viveram muitos homens e mulheres cuja elevada
capacidade intelectual e moral não é posta em causa. Na grande nuvem dos que,
nos últimos séculos, creram na vida depois da morte há nomes tão ilustres como
Newton, Leibnitz, Kepler, Voltaire, Goethe, Pascal,
Kant, Bach, Benjamim Franklin, Napoleão Bonaparte, Bismark, Victor-Hugo,
Florence Nightingale, Ibsen, Lincoln, Gladstone, Kierkgaard, Tolstoi, Alexandre Herculano (para citar um português),
Pasteur, Marie Curie, Gandhi, Einstein e Soljenitsine.
Não falando, naturalmente, dos homens e mulheres de Igreja, pastores, padres,
teólogos, bispos, religiosos, que também esperaram viver depois da morte.
O autor do presente estudo sabe que, nem
mesmo uma lista de milhares, milhões de crentes na vida para além do túmulo
serviria como argumento decisivo em favor dessa crença. A verdade não pode ser
sufragada pelo número de votos. Um homem sozinho pode estar certo contra
milhões. Mas é bom constatar nesta pesquisa que muitos encontraram uma resposta
positiva à pergunta formulada por Job: “Morrendo o homem, porventura tornará a
viver?”
3 – A esperança de Israel
Pode perguntar-se qual é o motivo por
que se há-de dedicar uma atenção especial ao que pensava o povo israelita sobre
a morte. A resposta é simples. Se alguém escrever sobre o desenvolvimento do
pensamento filosófico, é obrigado a falar da Grécia. Foi na Grécia que se
registou, em certa altura, uma verdadeira revolução na Filosofia, com o
surgimento de uma especulação que é uma rotura com o que até aí se fazia nesta
área. Chama-se a isso “o milagre grego”. Pode dizer-se que houve também “o
milagre israelita”, se falarmos na área do pensamento religioso. Os povos da
Terra tinham a intuição de que há uma Mente por detrás de tudo quanto existe.
Criaram as suas religiões por causa dessa profunda intuição. Essa intuição
resultava do facto que o ser humano ter em si a imagem dessa Mente suprema
(Imago Dei, Imagem de Deus). A forma mais singela dessas religiões foi o
animismo, atribuindo às coisas, às árvores, aos rios, uma alma. Teve-se também
uma visão panteísta, que via a tal Mente ou Divindade encarnada em tudo. Outra
forma que a religião tomou foi a politeísta, divinizando forças da natureza,
vendo em cada uma um deus. Na área geográfica que se chama Israel, junto do
Monte Sinai, de súbito o homem teve conhecimento de algo muito importante:
aqueles deuses todos que eram adorados, no fundo, não esgotavam o mistério da
Mente que está por trás de tudo. Os deuses dos povos são falsos: há um “Deus
para além dos deuses”. Não são os israelitas que O descobrem: é Ele que se
revela (revela-se continuando a ser “o Deus escondido"). E revela-se como
IAHWEH (leia-se Iavé), termo que os israelitas não
pronunciavam, justamente porque O que está acima de todas as coisas e acima da
nossa compreensão não pode ser prisioneiro de um nome. Dar nome é dominar. O
povo israelita alcançara a então mais evoluída compreensão de Deus. É por isso
que nos interessa tanto saber como é que esse povo, o povo de IAHWEH, via a
morte. Alguns autores têm afirmado que os israelitas não acreditavam na
existência da vida depois da morte. Tal afirmação, contudo, carece de análise
cuidadosa.
É um facto que, para o Antigo
Testamento, as Escrituras dos israelitas, o homem é um ser destinado à morte. Génesis 2:7
e Salmo
8:4
A imortalidade é um atributo exclusivo de Deus. Além disso, o homem é uma
unidade, nada havendo nele que tenha a condição de imortal. É possível falar da
existência nele de um corpo, uma alma e um espírito (ou apenas de um corpo e um
espírito), mas sem que estes elementos tenham vida autónoma. Isto é, não há á
possibilidade de a “alma” ou de o “espírito” sair do corpo e voar para um lugar
no momento da, morte.
É por isso que, numa perspectiva
bíblica, deve pôr-se em questão, como fizemos na primeira página deste estudo,
ao citarmos Pascal, a expressão “imortalidade da alma”. O facto não diminui a
importância do alerta do grande cristão, nem põe em questão o essencial do que
ele nos dirá sobre o assunto, mas é uma verdade que, desde muito cedo no
Ocidente cristão, começou a haver um afastamento da antropologia bíblica e uma
aproximação da antropologia grega, e muitos famosos teólogos falaram da alma
como uma realidade autónoma, prisioneira do corpo, do qual é libertada pela
morte. Mas isto é pensamento grego e não judaico-cristão. Embora consideremos
as chamadas “Testemunhas de Jeová” um movimento com uma mensagem contrária ao
fundamental da Bíblia, neste ponto temos de lhes dar razão: não podemos, para
sermos fiéis ao pensamento bíblico, falar da “imortalidade da alma”. Quando
usamos esta expressão devemos subentender que do que estamos a falar, como
Pascal, é da crença na vida depois da morte, o que é possível imaginar de modo
diferente à vida autónoma de uma alma. E quando falarmos de “alma” é do homem
inteiro que falamos. Se o homem é mortal e uma unidade, tudo nele é mortal.
Não é sem razão que devemos abandonar
essa concepção do homem em três partes (corpo, alma, espírito) susceptíveis de
se separarem. A visão bíblica que o vê como uma unidade está mesmo mais de
acordo com o conceito moderno do homem do que a grega, como sublinha Leonardo Boff: “A mentalidade bíblica está muito mais próxima da
compreensão moderna” (13), embora tenhamos de ver com muita atenção o que Boff quer dizer quando acrescenta: “Era na terra e na carne
que o homem louvava e se alegrava com Deus. Toda a perspectiva do Antigo
Testamento é profundamente terrena”.
O importante, neste momento, é sublinhar
que para o Antigo Testamento só Deus, repetimos, é imortal. Esse Deus que aliás
não se chama Deus, porque é o Inominável, o que não tem nome, e se revela como
IAHWEH, forma do verbo ahwah, significando “Aquele
que é”, e pode ser traduzido por “O Eterno” Êxodo
3:14/15 Isaías 43:10
Nas narrativas da Criação, no livro de
Génesis, não se diz que Deus tenha formado com pó da terra o corpo do homem mas
o homem (ser humano, na sua totalidade psicossomática), basar, que é, em seguida, animado pelo sopro divino, o espírito. O
sopro divino é, em hebraico, ruach e o elemento
das capacidades psíquicas é o nephesh. Na nossa
cultura ocidental, herdeira da Grécia, os termos equivalentes são soma (corpo), psyché (alma) e pneuma (espírito). O livro de
Eclesiastes afirma que, na morte, o pó (não apenas o corpo, mas o corpo-alma),
volta à terra e o espírito regressa a Deus, que o deu. Eclesiastes 12:7
Mas não há, aí especulação sobre o que fará o espírito junto de Deus. Não seria
abusivo concluir-se, se um só versículo fizesse doutrina, que o Antigo
Testamento não anuncia a existência de via depois da morte. A dissolução total
do corpo-alma sepultados poderia ser a visão sombria do autor de Eclesiastes.
Contudo, o mesmo livro bíblico termina com uma afirmação carregada de
consequências: “Deus há-de trazer a juízo toda a obra e até tudo o que está
encoberto, quer seja bom, quer seja mau”. Eclesiastes
12:14 Se espera a cada vida um julgamento feito por Deus,
e se esse julgamento não está a ser feito antes da morte, segue-se que, para
Eclesiastes, a morte não é o fim. Eclesiastes 3:17
e Eclesiastes
11:9
Objectar-se-á que Eclesiastes tem
indícios de ter sido escrito depois do regresso do Exílio e que, portanto, há
nele influências estranhas ao pensamento de Israel. Este argumento não convence
porque quando falamos do Antigo Testamento falamos dele como um todo, sem
privilegiar qualquer período ou autor. Haverá afirmações da fé que a
experiência fará dizer com maior ênfase num período do que noutro, mas sem que
haja contradição. A mensagem de Eclesiastes é um alerta severo que tem o seu
paralelo no Salmo
49,
e tira a mesma conclusão que o salmista: “Deus remirá a minha alma do poder da
sepultura, pois me receberá”. Todo o Antigo Testamento se revê nesta exclamação
de Isaías
25:8 Aniquilará a morte
para sempre, e assim enxugará o Senhor IAHWEH as lágrimas de todos os rostos.
Não se pode negar que, embora seja
sóbrio no que diz respeito ao que acontece aos mortos, o Antigo Testamento
reconhece que a morte não pode ter a última palavra. Serão meros
“pressentimentos”, como escreve Von Allmen (14), mas estão lá. De resto, esta esperança é
inevitável, considerando o próprio conceito que a fé israelita tem de Deus, “um
Deus justo que salva” Isaías 45:21
que é o Todo-Poderoso, o Shaddai Génesis 17:01
Êxodo
06:03 A morte é
derrota e o crente percebe que a vitória final tem de ser de Deus: Não deixarás a minha alma no inferno (Sheol, lugar dos
mortos), nem permitirás que o teu santo veja a
corrupção. Salmo
16:10
Essa esperança explica a preocupação do
israelita de dar uma sepultura condigna aos seus mortos e a sua crença de que
Deus voltará a dar vida aos que morreram. Como já se disse, não há no Antigo
Testamento uma esperança na “imortalidade da alma”, mas, em harmonia com a sua
antropologia, há uma esperança na ressurreição dos corpos. Também sobre esta
esperança não há muitas referências nas páginas das Escrituras, nem há
pormenores sobre o como será essa ressurreição, mas é essa a resposta que o
crente israelita tem para a questão da morte, como mostra o exemplo de Job.
Para a pergunta angustiante – “Porventura, morrendo o homem voltará a viver? -
Job tem esta resposta, mas ela vem sem explicação, com a solenidade de uma
Declaração de Fé: Eu sei que o meu Redentor vive e
que, por fim, se levantará sobre a terra. E, depois de consumida a minha pele,
ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos, e
não outros, o verão Job
19:25/27
Há outros lugares do Antigo Testamento
que anunciam a ressurreição dos mortos. Em Isaías, por exemplo: Os teus mortos viverão, os teus mortos ressuscitarão;
despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho será como o
orvalho das ervas, e a terra lançará os seus mortos. Isaías 26:19
A tradição tem indicado a visão de Ezequiel no vale dos ossos Ezequiel 37
como um texto comprovativo da esperança israelita na ressurreição dos mortos.
Os especialistas, no entanto, consideram que se trata de uma visão que anuncia
a restauração de Israel. Mas não é deslocado citar Ezequiel entre os textos
desta esperança na ressurreição, seguindo o pensamento de Martin-Achard: “O profeta não se ocupa da ressurreição dos mortos
enquanto tal, mas os símbolos que ele utiliza puseram sem dúvida entre os
judeus o problema da renovação da vida para os defuntos, e foi nesse sentido
que a tradição, tanto judaica como cristã, releu este capítulo. Ezequiel
fundamenta a sua segurança sobre a soberania do Deus de Israel em relação à
vida, soberania que se manifestou em particular quando da formação do homem.
Ele ousa esperar a renovação do seu povo, porque crê em IAHWEH tal como Ele se
revelou a Si mesmo a Israel. A tradição do seu povo como a sua experiência
pessoal permitem-lhe afirmar que o Deus vivo é capaz de repetir o milagre da
criação a favor dos Seus” (15).
Um outro texto que fala da ressurreição
é o livro de Daniel. Trata-se de uma visão apocalíptica que aponta para a vinda
do Messias, em grego o Cristo: Naquele tempo se
levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta pelos filhos do teu povo, e
haverá um tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação, até
àquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que se
achar escrito no livro. E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão,
uns para avida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno Daniel
12:1/2 Independentemente de, nesta última passagem, o
estilo apocalíptico ser, como sempre, de difícil leitura, é indubitável que a
crença na ressurreição dos corpos está aí bem clara.
É talvez mais fácil aceitar, como
acreditavam os gregos, que o nosso corpo mortal é o cárcere de uma alma
imortal, a qual, no momento da morte, sai liberta para lugares celestiais,
onde, finalmente, pode ser feliz. Mas, fácil ou difícil, a verdade é que, no
que diz respeito ao Antigo Testamento, a resposta que encontramos para o enigma
da morte é esta: ela existe por causa do pecado, e chegará o dia em que o
Senhor chamará de novo à vida todos os que dormem nos sepulcros, ressuscitando
uns para a felicidade eterna e outros para o castigo eterno.
A crença na ressurreição foi a grande esperança
dos judeus, mesmo depois da sua expulsão da Palestina. Uma oração dos judeus
portugueses, que professavam clandestinamente a sua fé, dizendo-se católicos
para escaparem a graves perigos, diz assim: “Dormi em paz, vós todos que Adonai
(16) chamou para Si, até à época anunciada pelos profetas, em que os filhos
serão reunidos aos pais e os pais aos filhos, até ao dia bendito em que soará a
trombeta da Ressurreição e em que vós saireis dos vossos túmulos. Senhor! Tu
cumprirás a Tua promessa. Tu abrirás os túmulos e insuflarás um novo espírito
de vida a todos os que estão deitados, dormindo o sono da morte. Bendito sejas
Tu, Adonai, que chamas novamente os mortos à vida” (17).
4 – Cristo ressuscitou
Quando Jesus iniciou o seu ministério, a
atitude do povo judeu em relação à morte era, na sua maioria, igual à descrita
no capítulo anterior. Das três correntes religiosas do tempo, formadas,
respectivamente, pelos fariseus, os saduceus e os essénios, só os segundos não
acreditavam na ressurreição. Mas os saduceus eram uma minoria, de linha
aristocrática e conservadora, com pouca influência no pensamento do conjunto da
população. O facto, porém, de os saduceus não crerem na ressurreição não os
tornava heréticos aos olhos das outras correntes judaicas, o que prova que a
crença na ressurreição não era matéria de muita gravidade.
A pregação de Jesus e os seus sinais
despertaram em alguns dos ouvintes uma maior atenção para as promessas das
Escrituras, mas os Evangelhos mostram-nos que nem mesmo os seus discípulos mais
íntimos iam muito além do “pressentimento” habitual quanto à doutrina da
ressurreição. Poderiam dizer como Marta, irmã de Lázaro: “Eu sei que meu irmão há-de ressuscitar na ressurreição do
último dia”, João 11:24
mas fariam essa declaração sem grande convicção, como muitos hoje repetem sem
grande convicção no Credo: “Creio na ressurreição do corpo.”
A crença formal de Marta e dos demais
discípulos vai em breve transformar-se numa convicção exultante, a ponto de
levar muitos cristãos a perder a sua vida por testemunharem publicamente de
Cristo, o proscrito.
Como se explica a mudança operada na
convicção dos discípulos, que passou do “pressentimento” à afirmação ousada?
Não vemos melhor explicação do que a própria ressurreição de Jesus Cristo!
O próprio Lázaro que referimos acima foi
ressuscitado por Cristo, pouco depois do diálogo com Marta. Há também nos
Evangelhos as narrativas da ressurreição do filho da viúva de Naím, a ressurreição da filha de Jairo e muitas outras
ressurreições anónimas Mateus 11:05,
Marcos
5:21/43, Lucas
7:11/17, João
11:01/45 mas não foram essas ressurreições que reforçaram e
animaram a esperança na ressurreição dos últimos dias. Porque a ressurreição de
Lázaro e dos outros apenas pode servir para mostrar a misericórdia de Deus, mas
esses ressurectos voltaram para continuar a sua vida habitual - e envelhecer,
adoecer e morrer. A morte neles fora apenas adiada. Talvez seja, por isso, mais
adequado falar nestes casos de reanimações do que de ressurreições. Os corpos
que voltaram da morte eram ainda corpos mortais. Mas a ressurreição de Cristo
tem uma natureza diferente. Não é a simples reanimação de um cadáver. É verdade
que as testemunhas perceberam que a ressurreição de Cristo tinha provocado
algumas mudanças no seu corpo. Ele apareceu-lhes visível ainda com as marcas da
crucifixão, mas agora sem as limitações que o corpo mortal tem. Jesus
ressuscitou com “um corpo glorioso” Filipenses 3:21
O que era mortal revestiu-se de imortalidade. 1ª
Coríntios 15:54 O Ressurrecto tem a capacidade de
entrar numa sala onde as portas estão fechadas, e quando segue com dois dos
seus discípulos João
20:19 a caminho de Emaús não é imediatamente reconhecido
por eles.
Com
a Ressurreição de Cristo os discípulos não apenas perceberam melhor o que
estava implícito nas promessas do Antigo Testamento, quando aí se alude à
ressurreição, como ganharam a certeza de que eles próprios e todos os que
passarem pela crise da conversão terão “no dia final” a mesma experiência. São
Paulo reflecte essa convicção quando escreve: Cristo
ressuscitou dos mortos e foi feito as primícias dos que dormem,
afirmação que a versão em português corrente traduz assim: Cristo ressuscitou dos mortos e é garantia de ressurreição
dos mortos. 1ª
Coríntios 15:20 E ainda podia ter esta tradução: Cristo ressuscitou dos mortos e tornou-se pioneiro dos que
estão mortos e hão-de ressuscitar também.
Há quem procure ver nas palavras
neotestamentárias sobre a ressurreição apenas um sentido metafórico e moral.
Vêem na esperança de uma outra vida depois da, morte a “suprema alienação” e
procuram demonstrar que o Cristianismo verdadeiro quando fala em ressurreição
está a falar da possibilidade que é dada ao homem, que não vive autenticamente,
de encontrar na mensagem de Cristo motivos para sair da sua morte e passar a
viver. Estar morto, nessa perspectiva, é não ter esperança, não participar da
festa da vida em solidariedade com os outros homens, seus irmãos. O Cristianismo
é um humanismo, nesta perspectiva.
Não se pode nem se quer negar que há
aspectos biblicamente correctos na posição que vê a ressurreição como uma
metáfora. O próprio Jesus Cristo qualificou como “mortos” homens que estavam de
pé, respiravam, trabalhavam, movimentavam-se. Ele disse um dia: Deixa os mortos enterrar os seus mortos. Mateus 8:22
e Lucas
9:60
Na Carta aos Romanos, Paulo refere-se à humanidade como estando morta para a
lei, e noutro lugar fala do cristão como alguém já ressuscitado Romanos 7:4,
2ª
Coríntios 5:17. Há sem dúvida, um modo metafórico de
usar a palavra ressurreição e seus derivados, mas é mais correcto dizer com
Talbot Mohan: “Não temos de esperar pela ressurreição
(depois da morte) para fruirmos a vida de ressuscitados. Jesus é muito
específico quando ensina sobre isso, Ele anunciou que todo aquele que recebe a
sua mensagem e crê na oferta que Deus faz em Jesus Cristo tem a vida eterna
desde então. O Pai e o Filho são um na grande obra da redenção. Aqueles que
aceitam o que Jesus cumpriu por nós recebem imediatamente (...) as primícias da
grande colheita que está por vir. Estamos unidos a Cristo e não podemos
portanto ser dele separados nem mesmo pela morte João 5:24.
São Paulo tira a conclusão óbvia de que se nós partilhamos a vida com Jesus,
partilhamos também das suas bênçãos. Os nossos tesouros estão nos céus, e os
nossos corações estão aí também Colossenses
3:1/2. São Paulo vai mais longe ainda e, falando de si
próprio, diz que não é ele que vive, mas é Cristo que nele vive Gálatas 2:20.
Se Cristo vive em nós, ele mostrar-se-á a si mesmo através das nossas vidas,
manifestando a verdade da afirmação de que a vida da ressurreição pode ser
comunicada durante esta vida pelo poder do Salvador ressurrecto”. 1ª
Coríntios 15:19 (18).
Realçar apenas a importância da “vida
vindoura” e viver obcecado com esse tempo por chegar, pode ser, de facto, a
“alienação suprema”, mas reduzir o Cristianismo a um humanismo fechado nos
limites desta vida é tentar remediar um mal com outro. O apóstolo Paulo disse
de uma forma muito clara: “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais
miseráveis de todos os homens”, e disse-o para se opor aos que então punham em
dúvida a ressurreição dos mortos.
É por isso que a ressurreição de Jesus
Cristo – “garantia da ressurreição dos que já morreram e da ressurreição dos
que vão morrer” - é o ponto central da pregação dos apóstolos. Jesus Cristo
“veio, não apenas para nos mostrar como deve ser a existência humana mas também
qual é a meta da vida (céu) “ como devemos e podemos alcançá-lo”, escreve
Leonardo Boff (19). O teólogo brasileiro precisa
depois o que entende por “céu”: “O céu não é fruto de especulações árduas para
a inteligência e para a fantasia. É a potencialização daquilo que já na terra
experimentamos. Sempre que na terra fizemos a experiência do bem, da
felicidade, da amizade, da Paz, do amor, já estamos vivendo, em forma precária
mas real, a realidade do céu” (20).
É interessante notar que Boff era, na altura em que escreveu estas palavras, um
teólogo católico, sacerdote, plenamente integrado na sua Igreja, e o que diz do
céu lembra um singelo hino protestante que tem estrofes como esta:
Depois que Cristo me salvou,
Em céu o mundo se tornou.
Até no meio do sofrer
É céu a Cristo conhecer.
5. A ressurreição é possível?
Ao longo dos séculos, na celebração mais
importante dos cristãos - o serviço divino do Domingo de Páscoa – o presidente
da assembleia reunida inicia com esta proclamação solene, tirada do Evangelho:
-
“Verdadeiramente, o Senhor ressuscitou!”
E a assembleia responde exultante:
- “Aleluia!”
É esta convicção que dá sentido à fé dos
cristãos e aos cultos que Domingo após Domingo celebram. Aliás, a ousadia de
terem passado a juntar-se para a adoração no primeiro dia da semana, a que
começaram a chamar “Dia do Senhor” (Dies Dominicus),
e não no Sábado da Lei, mostra como é na Ressurreição de Jesus, ocorrida no
primeiro dia da semana, que a sua fé se fundamenta. Como se compreende bem
Paulo na sua exclamação atrás citada: “Se Cristo não ressuscitou é vã a vossa
fé”!
Se Cristo não tivesse ressuscitado, nada
disso teria sentido. O culto cristão seria um ajuntamento irrelevante e uma
perda de tempo. Valeria mesmo a pena ir à igreja para ouvir discursos, que
seriam apenas moralistas, ou de “conscientização” política, ou ainda exortações
piedosas sobre fraternidade e boas acções? Mesmo que esses discursos fossem
curtos e os hinos cantados tivessem letras e músicas elevadas, o que nem sempre
acontece...
Mesmo entre aqueles que participam
assiduamente dos serviços religiosos, é sem dúvida verdade que há muitos cuja
presença far-se-á por mera rotina, por dever social, para acompanhar a família,
ou por qualquer outro motivo igualmente diferente do essencial - a Ressurreição
de Cristo - mas em geral tais pessoas, explícita ou implicitamente, consideram
o culto uma grande maçada, bocejam, adormecem e, logo que podem e encontram
pretexto, fogem dele.
É por isso que é de extrema importância
saber se, de facto, Jesus ressuscitou mesmo ou se se trata de um modo de falar
de outra coisa. A ressurreição de Cristo tem o lugar central nos Evangelhos, e
se a não compreendermos não compreenderemos nada dos Evangelhos. Estamos
inteiramente de acordo com Michael Ramsey, que foi
ilustre arcebispo de Cantuária, autor de um notável estudo sobre este tema da
ressurreição, de onde transcrevemos esta constatação: “Para os primeiros
discípulos, o Evangelho sem a Ressurreição não era, apenas um Evangelho sem o
seu capítulo final: simplesmente não era um Evangelho” (21)
Dizem alguns que a Ressurreição de Jesus
não pode ser provada, que não é um acontecimento histórico, mas uma proclamação
da fé. O famoso teólogo Rudolf Bultmann
ia nessa direcção. Para a sua escola, a Ressurreição deve ser interpretada, não
como um facto histórico, mas como o sentido que a comunidade da fé dá à morte
de Jesus na cruz. Bultmann e a sua escola reagiam, a
meu ver com excesso, a outro excesso que os precedera, que consistia em
esgravatar a história no esforço de reconstituir a figura histórica de Jesus e
acabava por fazer de Jesus um simples homem bom que vivera há perto de 2.000
anos. Mas uma proclamação da fé que não tenha apoio histórico dá razão àqueles
que dizem que a fé é cega e estupidifica. Convém-nos, pois, examinar com
cuidado e ver se há ou não elementos que justifiquem a fé na Ressurreição.
Para urna reflexão correcta sobre este
tema, pensamos ser bom começar por colocar a pergunta se é razoável ou não
acreditar que Deus possa ressuscitar um morto. De nada serve pormo-nos a
procurar provas de que Jesus terá mesmo ressuscitado se, em abstrato e à
partida, considerarmos que a ressurreição de um homem é impossível. Em vão
procuraríamos provas se a própria ideia em si fosse inadmissível.
A fé cristã afirma que Jesus Cristo foi
ressuscitado por Deus. E do que é que falamos quando falamos de Deus? Um famoso
texto da Reforma, a Confissão de La Rochelle, de
1559, começa assim: Cremos e confessamos
que há um só Deus, que é uma só e simples essência, espiritual, eterna,
invisível, imutável, infinita, incompreensível, inefável, que pode todas as
coisas, que é totalmente sábia, totalmente boa, totalmente justa, e totalmente
misericordiosa. (22)
Ainda que a linguagem deste artigo seja
da filosofia, ao falar da essência de Deus, qualquer cristão poderia subscrever
esta afirmação, mesmo que num ou noutro ponto as interpretações possam diferir.
O que aliás acontecerá também se nos cingirmos a usar textos bíblicos, como a
palavra que fala de Deus como o “Criador de toda a terra” e “Aquele que não se
cansa nem se fatiga” Isaías 40:28,
ou esta palavra dirigida a Moisés: “Eu sou IAHWEH, e eu apareci a Abraão, a
Isaac e a Jacob, como o Deus Todo-Poderoso” Êxodo
6:02/03 A expressão hebraica que aqui é traduzida por “Deus
Todo-Poderoso” é El-Shaddai,
estando a partícula El, (Deus)
conotada com “poder”, como é traduzida em algumas passagens Génesis 31:29
“poder (el) havia na minha mão”). Quanto à palavra, Shaddai, embora haja variedade de
opinião entre os exegetas, não se conhecendo com segurança a sua raiz, há consenso
na aceitação de que o título El-Shaddai aponta para o poder infinito de Deus. As únicas
barreiras para Ele são aquelas da sua própria natureza. Por exemplo: o Deus
Santo não peca. Seria uma contradição de termos, dizer que Deus peca. Como
dizer que a luz tem comunhão com as trevas.
Pascal distinguiu o Deus da fé revelado
nas Escrituras, o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”, do “Deus dos
filósofos”, isto é, distinguiu o Deus revelado da ideia de Deus que os
filósofos podem congeminar. Mas há um ponto em que crentes e filósofos não
crentes podem estar de acordo, que é este: quando usamos a palavra “Deus”
estamos a falar de uma entidade que é considerada causa necessária e fim último
de tudo o que existe, perfeito e regulador do universo.
Esta, definição singela, mas que cremos
suficiente para os propósitos da nossa pesquisa, permite-nos acreditar que é
perfeitamente razoável a quem fala em Deus aceitar a possibilidade da
ressurreição dos mortos, mesmo que esta não seja fácil de compreender. Tem razão
a Confissão de La Rochelle ao reconhecer que Deus é
“incompreensível”, pois se pudéssemos dizer que tudo em Deus pode ser por nós
compreendido, estaríamos de alguma maneira a dizer que n'Ele não há nada que
nos transcenda - o que seria negar a Sua condição de Deus. É consequente que
quem crê na existência de Deus possa afirmar: “A Deus nada é impossível” –
palavra que o Evangelho põe na boca de Jesus. Lucas 1:37
Não há motivo para duvidar que o Todo-Poderoso possa ser mais forte do que a
morte e possa trazer de volta à vida o que descera ao túmulo.
Pode alguém dizer: “Em termos abstratos,
como hipótese académica, pode aceitar-se a ideia da ressurreição, mas no
domínio do concreto, da ciência, será uma hipótese impossível de provar, logo
inaceitável”.
No que, concerne à Ressurreição de
Cristo, lembramos que é legítimo reconhecê-la como, além de afirmação de fé, um
acontecimento histórico. A própria continuação da actividade dos discípulos é
um forte indício que nenhum historiador honesto pode desprezar. É evidente que
houve um acontecimento inesperado depois da sexta-feira da crucifixão de Jesus
que é a explicação da mudança radical do comportamento dos discípulos de Jesus.
Os únicos documentos que possuímos sobre a actividade e ensino de Jesus são os
Evangelhos, escritos muitos anos depois dos acontecimentos, mas não há razões
para duvidar que esses documentos, embora não sendo trabalhos de história tal
como a entendemos hoje, reflectem bem o espírito de exultação que trouxe à
comunidade cristã primitiva a notícia, da Ressurreição de Cristo.
Que outras explicações podem ser dadas
que justifiquem o modo ousado como os discípulos medrosos, tendo o seu chefe
sido crucificado, em lugar de fugirem e mergulharem no anonimato de que Jesus
os tirara, saíram para a rua a anunciar que o crucificado vencera a morte?
Poderia aventar-se esta hipótese: os apóstolos tomaram consciência nesses dias
que a mensagem de fraternidade proclamada por Jesus era revolucionária, não
podia ser vencida, pela morte - e foi isso que anunciaram. “Mataram Jesus, mas
nós continuaremos a sua Obra”. Não se trataria da Ressurreição de Jesus, mas da
ressurreição da sua mensagem do teimoso regresso do seu projecto. Como diriam
revolucionários do nosso século:
- “Mataram Che Guevara, mas nós
continuaremos a sua revolução”. Mas crer nisso é pôr na cabeça de homens do
primeiro século pensamentos de gerações que leram Feurbach,
Marx e Lenine. Que a mensagem de Jesus também é revolucionária no sentido potítico-social não duvidamos; que se possa dizer de Jesus
que ele foi apenas um revolucionário desse tipo é hipótese inconsistente.
Outra hipótese: despeitados pela
derrota, os apóstolos decidiram mentir, dizendo que Jesus ressuscitara. Dessa
maneira, livravam a face do ridículo de terem seguido um falso Messias e podiam
continuar na sua actividade de pregadores. A ser verdade, esta teria sido a
maior das fraudes da história. É porém uma fraca hipótese, convenhamos. É
provavelmente fácil que três ou quatro pessoas inventem uma história e
mantenham a mentira entre elas, sem quebra do seu segredo. Mas o número de
pessoas que afirmava ter visto o Ressurrecto quando Paulo escrevia a 1ª
Coríntios 15:1/6
era de mais de quinhentas - e teria de ser uma conspiração muito bem
orquestrada para manter o segredo entre tanta gente. E se pensarmos como eram
poderosos os inimigos da nova fé, e como estariam interessados em descobrir o
menor indício de impostura com que pudessem desacreditar a seita, mais difícil
se torna aceitar esta hipótese. E ainda é necessário pensar nos benefícios que
os alegados inventores de tal fraude tiveram: a perseguição, a prisão, a
tortura e a morte. Se a notícia da Ressurreição de Cristo fosse uma invenção
dos discípulos, num primeiro momento, ela acabaria por ser desmentida logo que
o martírio tivesse começado e hoje nada, ou quase nada saberíamos desse
grupelho. Ao longo da história tem havido pequenos grupos anunciando visões e
acontecimentos transcendentes que a razão humana tem dificuldade em crer - mas
quando eles têm sucesso, quando as visões são declaradas verdadeiras, isso
deve-se ao apoio maciço que o pequeno grupo de videntes recebeu da grande
instituição, deve-se a cumplicidades sagazes, a auxílios fortes vindos de
muitos interesses em jogo. Nada disso se podia passar com o frágil grupo
inicial que proclamou a Ressurreição de Jesus Cristo.
Uma hipótese derradeira (23): os
discípulos eram bem intencionados, mas foram vítimas de uma alucinação
colectiva. Viveram tão intensamente a morte de Jesus que acabaram por julgar
que o viram de novo vivo. Parece que sim, que há “alucinações colectivas”, não
exactamente do tipo que permitem ver o que não existe, mas que permitem
experimentar sentimentos que a pessoa individualmente não chegaria a sentir. Um
orador hábil pode levar uma multidão a tomar posições radicais que muitos,
senão a totalidade dos ouvintes, em separado, não tomaria. Mas seria excessivo
acreditar que, sucessivamente, grupos de discípulos tivessem a ilusão de ver
Jesus, sem que não houvesse entre eles ninguém menos influenciável quo os
alertasse. Uma ilusão pode convencer-nos num momento, mas em seguida, dias
depois ou nas semanas seguintes, com a “cabeça fria”, começamos a duvidar da
objectividade do que “vimos” ou “ouvimos”, e mesmo que a ilusão não passe
totalmente deixamos de dar muito por ela. As testemunhas da Ressurreição de
Cristo, porém, mantiveram-se firmes e felizes na sua convicção, crendo na
objectividade do que viam e ouviram do Ressurrecto até ao fim dos seus dias.
Acreditar que Deus possa ressuscitar uma
pessoa, como o fez com Jesus Cristo, é de difícil aceitação para uma mente
habituada a acreditar apenas naquilo que a ciência pode confirmar. Mas a
história é também um ramo da ciência, e a história já ultrapassou o estágio em
que só reconhecia, como facto histórico, aquele que pudesse ser provado com
documento, escrito ou de outro tipo (ruínas arqueológicas, por exemplo). Os
historiadores de linha tradicional tinham como princípio que o que não pode ser
documentado não existe. Essa atitude é clara no positivismo que dominou o
século XIX e ainda tem influência no nosso tempo. Ora como documento sobre a
Ressurreição temos apenas o Novo Testamento, e nessa perspectiva para a crítica
positivista o Novo Testamento não ó suficiente, porque tem como origem “a parte
interessada” na divulgação da notícia da Ressurreição.
Além disso, as narrativas da
Ressurreição de Cristo divergem nos vários Evangelhos. Como se pode aceitar
como documentos para estudo histórico textos que entre eles dão informação
diferente do mesmo acontecimento? Há muito que se sabe que os Evangelhos não
são biografias de Jesus, mas testemunhos sobre os seus ensinos e actos. Os acontecimentos
e discursos não estão colocados numa ordem sempre cronológica, mas na ordem que
mais interessava aos propósitos específicos do evangelista. Não há
possibilidade hoje de saber exactamente como se deu a Ressurreição, mas os
passos essenciais estão aí narrados e o Novo Testamento merece toda a
confiança.
Para a Igreja primitiva, uma das provas
da Ressurreição de Cristo era o túmulo vazio. Mas não era a mais importante. A
mais importante era a da vivência que a cada momento tinha da presença de Jesus
Cristo, Vivo, na vida de cada discípulo e na condução da Igreja. Se estava Vivo
era evidente que tinha vencido a morte. Porque há um aspecto que deve ser
acrescentado: tal como Jesus anunciara, aqueles que aceitam a sua mensagem e o
aceitam como o Messias, nascem de novo, pelo Espírito João
3:01/16 , tomam uma nova natureza que lhes permite viver a
realidade da presença do Ressurrecto nas suas vidas. C. S. Lewis, que teve o
mérito de apresentar o Cristianismo numa forma simples e inteligente, falou do
Homem Novo como a etapa seguinte da evolução. O próprio Cristo é o “primeiro
exemplo” do Homem Novo, sendo os cristãos homens novos em crescimento
espiritual progressivo (mas nem todos caminhando “ao mesmo passo”) (24).
O cristão, pela acção do Espírito, vai
sendo aperfeiçoado até chegar à estatura do Homem Perfeito, que é Cristo Efésios 4:13,
o que só acontecerá no Dia da Parusia de Cristo (2ª vinda), quando os que
“dormem no Senhor” forem ressuscitados.
Por causa dessa experiência de comunhão
com o Cristo Vivo e dessa esperança na ressurreição final é que, nos seus
ajuntamentos, os cristãos podem proclamar com ênfase:
“Verdadeiramente,
o Senhor ressuscitou! Aleluia!”
6. A essência do Evangelho
A
palavra evangelho vem do grego euangelion, palavra usada para referir o prémio que se dava
a um mensageiro portador de uma boa notícia. Era equivalente à nossa palavra
alvíssaras. Como na frase: “Dão-se alvíssaras a quem der informações que ajudem
a encontrar a pessoa desaparecida”. Evangelho tornou-se termo técnico para
falar das Boas Novas ou Boas Notícias anunciadas por Jesus Cristo e pelos
apóstolos.
A Boa Nova é que em Jesus Cristo o ser
humano encontra a salvação. Mas o que é a salvação? Michel Quesnel
observa com razão: “Afirmar que Deus nos salva provoca logo, e de maneira
legítima, a pergunta: “De quê?” Porque não há salvação absoluta, sem passagem
de uma situação má para uma situação boa. Por isso, quando o cristão se afirma
salvo por Jesus Cristo, tem de esforçar-se por esclarecer a situação pouco
invejável da qual o seu Salvador o faz sair”. Em seguida, Quesnel
reflecte sobre a pouca eficácia de se associar hoje salvação apenas a
libertação do pecado. Não se nega essa verdade que Jesus salva do poder do
pecado, mas é um facto que ao homem e à mulher modernos, como nós próprios
somos, não soa a verdadeira boa nova de alegria dizer-lhe: “Vai em paz, os teus
pecados te são perdoados” (25).
Também é certo que Jesus nos salva da
prisão do egocentrismo. Mas teremos clara consciência de quanto isso nos
escraviza para podermos perceber nessa libertação a notícia alvissareira? E que
diremos da salvação em termos sociais e políticos? O mesmo Quesnel
faz referência à Teologia da Libertação, da América Latina, que chamou a
atenção para a necessidade de se tomar em conta as implicações do Evangelho na
mudança das estruturas do mundo da exploração do homem pelo homem num mundo de
justiça e partilha. Mas se tal vertente não pode ser descurada (mas continua a
ser!), é um facto que ela não corresponde totalmente à Boa Nova de Jesus
Cristo. Se tivéssemos já um mundo com governos só nas mãos de pessoas honradas,
competentes e justas, com a pobreza erradicada e onde todos tivessem as mesmas
oportunidades e acesso aos bens essenciais, mesmo assim haveria algo ainda de
que o ser humano precisaria de ouvir e a que pudesse chamar claramente Boa
Nova. Isto não diz Quesnel, mas é o que qualquer um
de nós pode dizer, mesmo sem ser filósofo ou teólogo. No limite, a Boa Nova
para o ser humano é esta: “A morte está derrotada!”
Imagine-se que um homem chega junto de
um amigo e diz: “Houve um incêndio e a tua casa ficou totalmente destruída!” A
má notícia faz empalidecer o homem que perdeu a casa. Com voz angustiada
pergunta: “Estava alguém em casa?” “Não, não. Tua mulher e tua filha felizmente
tinham saído”. A casa fora comprada com muito esforço, graças a muitos
sacrifícios, e é duro receber aquela notícia, mas a segunda informação, por
contraste, é já uma boa nova. Tudo tem remédio, costuma dizer-se, menos a
morte. Na história bíblica de Jacob que quis casar com Raquel, tão
sensivelmente posta em soneto pelo grande Camões, o pastor, para ganhar a sua
amada, serviu Labão, pai de Raquel, por catorze anos, e disse: “mais serviria
se não fora / para tão grande amor tão curta a vida!”. Sim, a Boa Nova, sendo
tudo isso que já referimos (perdão dos pecados, libertação do egocentrismo,
construção de um mundo de fraternidade, de amor, de paz e justiça), tem de
incluir também, para ser Boa Nova integral, este anúncio: “Depois da morte há vida!”
A ciência pode anunciar o aumento
admirável da média de vida humana nos próximos anos, especialmente nos países
ricos, e a vitória sobre um número crescente de doenças, o que para muita gente
são notícias muito agradáveis. Mas nenhuma notícia será mais exultante do que a
de que a morte não é o fim. Há em nós uma sede de imortalidade que nos leva a
ver na morte um “desmancha-prazeres”, e por isso há em tantos o esforço enorme
para não pensar nela, fazendo de conta que ela não existe, para não sofrerem
com o pensamento horrível de que ela, inflexível e inexorável, espera no fim da
caminhada.
Essa Boa Nova, porém, não pode ser dada
pela ciência. Se a ciência não pode senão falar do que é objecto de observação,
medição, comprovação, experimentação; como pode ela pronunciar-se sobre o que
se passa depois da morte? Mesmo que, por hipótese absurda, a Ressurreição de
Cristo tivesse sido filmada no local, registados os depoimentos das
testemunhas, não seria possível falar da vida depois da morte em termos
científicos. Poder-se-ia, nesse caso, falar da “ressurreição de Jesus”, um caso
que não provava por si que se repetiria com todos os que cressem em Cristo. Com
filmagens, gravações e todos os exames que se tivessem feito ao Ressurrecto
Jesus de Nazaré não estaríamos com mais possibilidades de esperar viver depois
da nossa morte do que estamos com as simples narrativas dos Evangelhos.
Na altura em que escrevemos esta página,
a revista “Super Interessante” publica um curioso
artigo com chamada na primeira página sobre ciência e religião, e refere os
entendimentos que cada vez mais se registam entre estes dois ramos do saber
humano. Cita, entre outros, o cientista Chet Raymo
que diz: “Abandonámos a época dos milagres, mas não a capacidade de nos
surpreendermos com o mistério. A nossa pretensão de nos encontrarmos com o
Absoluto decorre da nossa procura de respostas. Somos cientistas peregrinos, empoleirados
no parapeito da eternidade, curiosos e atentos”. E cita também Enrique Miret Magadalena, teólogo e
químico, que está convencido de que “a reflexão científica torna mais razoável
pensar que existe Deus do que o contrário”. E um cientista australiano, Paul Davies, que afirma: “Pertenço ao grupo de cientistas que
não subscrevem uma religião convencional, mas negam que o universo seja um
acidente inquestionável. Creio que o cosmos foi talhado com uma dose de engenho
tão surpreendente que não posso aceitá-lo, simplesmente, como um facto brutal.
Tem de haver um nível mais profundo de explicação. Se se quiser chamar Deus a
esse nível, trata-se de uma questão de gosto e de definição”. A hesitação deste
cientista no uso do nome de Deus terá a sua justificação, considerando que há
muitos que usam e abusam deste Nome. E terminamos as referências a este artigo
da “Super Interessante” com a citação de um Prémio
Nobel, Charles Townes, que é físico e cristão
católico: “As recentes descobertas sobre o universo encaixam com a ideia de um
Deus criador, em forma de uma inteligência superior que se encarnou nas leis
naturais”(26).
Quem diz “Deus criador” e fala em
“inteligência superior”' crê que a vida humana, com as suas lutas, as suas
dores, as suas aspirações, tem sentido, o que não aconteceria se a morte fosse
o fim.
7. Sem temor da morte
Há um velho hino, outrora muito usado
nos funerais, que tem esta estrofe:
Presente
estás nas trevas e na luz:
Não
há perigo andando com Jesus!
A
morte e o túmulo não aterrarão,
Onde
meu Deus fizer habitação.
A convicção profunda que os cristãos
podem ter da vitória sobre a morte explica este uso de cânticos nos funerais e
o clima de esperança que neles se vive. Era esta a, situação que se sabe ter
existido entre os primeiros cristãos. Os estudos que têm sido feitos, com o
auxílio de achados arqueológicos, de pedras tumulares com as suas inscrições,
têm comparado o desespero reinante nos funerais pagãos e a esperança presente
nos funerais cristãos. Num livro que foi lido com muito interesse já no
princípio do século XX, As Catacumbas de
Roma, de Benjamin Scott, há este período: “Em nada é a diferença entre os
dois sistemas (Paganismo e Cristianismo) tão surpreendente como no espírito em que a morte é encarada pelos
seguidores das duas crenças. Para o pagão, a morte é a terminação de tudo
que é desejável, manifestando-se em cada pagão um sentimento de desânimo ou de
vingança contra o Grande Autor da vida e da morte; para o cristão tudo é paz,
esperança, previsão de felicidade e indicação de triunfo” (27). Em seguida
Scott transcreve alguns epitáfios pagãos e cristãos que ilustram bem as suas
palavras:
Epitáfio pagão: EU, PROCÓPIA, LEVANTO AS
MINHAS MÃOS CONTRA DEUS QUE ME LEVOU INOCENTE. ELA VIVEU VINTE ANOS. PROCLUS EREGEU ESTE.
Epitáfio cristão: DEUS O DEU... O
TIROU... BENDITO!... DO SENHOR, QUE VIVEU... ANOS DE PAZ, NO CONSULADO DE…
Epitáfio pagão: ENQUANTO VIVI, VIVI BEM,
MEU DRAMA TERMINOU: BREVE TERMINARÁ O TEU, ADEUS E APLAUDI-ME.
Epitáfio cristão: NICEFORO:
UMA DOCE ALMA EM DESCANSO (28).
Um outro autor, valendo-se de textos dos
primeiros séculos da nossa era, reconstitui um cortejo fúnebre cristão nestes
termos: “O corpo do defunto é colocado sobre uma padiola pelos parentes e
amigos vestidos de branco; outros agitam tochas acesas ou ramos de palmeira.
Nada de cânticos fúnebres à maneira pagã, nada de carpideiras profissionais,
nada de mercenários para levarem a padiola. O que há é uma procissão triunfal
porque “tragada foi a morte na vitória” (29). A. Hamann
cita um famoso diálogo entre um procônsul romano e um cristão preso por causa
da sua fé e por isso condenado ao martírio, no qual o oficial romano reage ao
testemunho do cristão dizendo: “Com essas ideias, Apolónios, amas a morte?
Apolónios responde: “Eu amo a vida, Perennis, mas o
amor da vida não me faz recear a morte. Nada é melhor do que a vida, mas a vida
eterna” (30). Na igreja primitiva, e em princípio para os cristãos de qualquer
época, crer na sobrevivência não é uma forma de alienação da vida presente.
A diferença entre o comportamento do
pagão e do cristão em face da morte, o primeiro de desespero e o segundo de
esperança, veio a diminuir com o tempo. À medida que o Cristianismo se tornou
religião oficial, com seus privilégios, sua ligação aos poderes, sua
institucionalização, regressaram os comportamentos tradicionais, os medos
ancestrais, o velho sentimento de terror diante da morte. Uma prova disso é um
sermão sobre 1ª
Tessalonicenses 4:13 do grande orador sagrado João, chamado
“O Crisóstomo” (O Boca de Ouro, em grego), que viveu na segunda metade do
século IV e princípios de século V. Nesse sermão, João Crisóstomo interpela os
seus ouvintes pela falta de esperança com que enfrentam a morte, e diz a certo
passo: “Crede-me, sinto-me corar de vergonha ao ver indecorosos grupos de
mulheres (que acompanham o cortejo fúnebre) passarem junto do mercado
arrancando os seus cabelos, arranhando os braços e batendo nos seus rostos - e
isto sob o olhar dos gregos (pagãos). O que é que eles não dirão? O que é que
eles não hão-de declarar em relação a nós? São estas as pessoas que falam
acerca de uma ressurreição? É espantoso! Quão pobremente as suas acções
concordam com as suas opiniões! Em palavras, falam acerca da ressurreição: mas
actuam tal e qual como aqueles que não acreditam numa ressurreição. Se eles
plenamente acreditassem numa ressurreição, não actuariam assim. Se estivessem
realmente convencidos de que um amigo falecido tinha partido para um estado
melhor, não teriam tal choro. Coisas como estas e ainda piores dirão os
descrentes quando ouvem estes lamentos. Tenhamos, pois vergonha e sejamos mais
moderados e não demos ocasião a tão grande dano a nós próprios e aos que nos
estão a observar” (31).
Nos séculos seguintes e até aos nossos
dias tem sido sempre possível encontrar esta mesma situação em largos sectores
da Igreja. Ao lado de um número reduzido de cristãos que cultivam com firmeza a
esperança da ressurreição, tem existido uma grande multidão dos que repetem o
comportamento de desespero próprio dos que não vêem na morte senão tragédia.
Uma boa parte da culpa deste comportamento, desta falta de esperança, deve-se
aos próprios dirigentes da Igreja que deixaram a mensagem simples do Evangelho
ser constantemente adulterada por influências estranhas ao pensamento bíblico.
É como se de uma fonte generosa, na encosta de um monte, tivesse jorrado água
cristalina que, descendo cantante em direcção ao mar, fosse recebendo aqui e
ali minúsculos poluentes e, perto do mar, a água do rio já traga em si
elementos que, se ainda não fazem dela líquido letal, perdeu, pelo menos, o
sabor puro que apetece degustar. Mas tem havido momentos na história em que a
água dada a beber como Cristianismo foi líquido pestilento literalmente
mortífero... Caso das Cruzadas, da Inquisição, das Guerras Religiosas, por
exemplo. Mas, para nos concentrarmos no tema da morte, é um facto que, apesar
de tudo, a par de comportamentos de pavor desmedido, ou de mórbida atracção
entre muitos formalmente cristãos, sempre houve homens e mulheres que assumiram
a atitude de tranquilo e salutar acolhimento, na esperança de que ela não tem a
última palavra.
A história do Cristianismo está repleta
de ilustrações desse modo como grandes cristãos morreram. Escolhemos a morte de
John Wesley para ilustrar o que acabámos de dizer. Wesley (1703-1791), inglês,
foi pastor anglicano, passou por uma profunda experiência de conversão e
iniciou um movimento de evangelização que passou a ser conhecido conto
“Metodismo”. Não tendo recebido o apoio da Igreja Anglicana para a sua nova
actividade, o Movimento, que não parou de crescer, veio a tornar-se uma nova
denominação protestante com a designação de Igreja Metodista, espalhada por
todo o mundo, incluindo Portugal, onde existe, como congregação formada já em
1868. O fundador do Metodismo foi um cristão de elevada craveira intelectual e
de superiores dons de carácter, muito preocupado com as camadas pobres da
sociedade inglesa, com as crianças, com os doentes, com os escravos. Wilfred Monod, pastor protestante
francês, incluiu Wesley na sua obra de dois volumes sobre A nuvem de testemunhas mais notáveis da história da Igreja e,
depois de narrar os passos admiráveis da vida do grande servo de Deus, dedica
algumas linhas a descrever a sua morte, aos 88 anos:
“Seis dias antes da sua morte, John
Wesley encontrou energia para escrever a Wilberforce
(32) encorajando-o a “combater a escravatura, essa execrável infâmia, que é um
escândalo para a religião da Inglaterra”
“Dois dias depois, ficou por muito tempo
entorpecido. Ouviram-no pronunciar a meia voz: “Não há outro caminho para
entrar no lugar santíssimo senão o sangue de Cristo”.
Na terça-feira, véspera da sua morte,
cantou com uma voz fraca dois hinos do seu irmão Charles. Pediu uma caneta e
papel, mas as suas forças traíram-no. Perguntaram-lhe: ‘Que deseja escrever?’
Oh! Simplesmente: ‘Deus está connosco!’ “Mais tarde ele desejará orar. Depois,
tendo tentado em vão dirigir a palavra a um amigo, o moribundo conseguiu dizer:
“O melhor de tudo é que Deus está connosco!” Levantou os braços e repetiu com
uma convicção vitoriosa: “O melhor de tudo é que Deus está connosco!”
“Na quarta-feira de manhã, 2 de Março de
l791, Wesley voltou a suspirar: “Adeus!”, e rendeu o espírito. Nessa mesma hora
a estrela do terrorista Robespierre subia, ao céu sangrento da Revolução
francesa. Que Revolução diferente tinha Wesley feito! Este gigante calmo tinha
percorrido, evangelizando, perto de 500.000 km, pregado 40.000 sermões,
publicado 200 obras, compostas ou resumidas por sua mão, escrito montanhas de
cartas, multiplicado inumeráveis visitas, gerido os interesses de uma sociedade
religiosa fundada por ele - a Igreja Metodista - que contava, na Inglaterra e
na América 134.000 membros quando ele morreu; sem contar os milhares de almas
levadas a Deus pelo seu ministério e que o tinha precedido no mundo invisível”
(33).
O autor destas linhas deseja acrescentar
que, na sua experiência de 30 anos de ministério como pastor presbiteriano, tem
visto muitos casos de sereno e confiante acolhimento da morte entre muitos dos
seus irmãos e irmãs na fé. Foram vários os que manifestaram uma tranquilidade
semelhante à desse gigante intelectual e espiritual chamado Wesley, mesmo se,
na sua maioria, fossem modestos cristãos, sem voos teológicos. Os funerais que
tem celebrado nem sempre estão isentos de lágrimas aflitivas, e quando os
sobreviventes familiares não comungam da fé cristã do falecido não raro os
choros e desmaios lembram o espectáculo referido por João Crisóstomo. Quando,
porém, a fé não é apenas um formalismo, mas o esteio sincero de uma vida e de
uma família, parte serenamente aquele que a “irmã morte” veio buscar e ficam
serenos aqueles que o acompanharam ao lugar onde vai “dormir no Senhor”. Nesse
lugar gostamos de lembrar aos que estão de luto que a palavra cemitério vem do
grego e quer dizer “dormitório”.
Assim como sempre recordamos que no
Credo proclamamos: “Creio na
ressurreição do corpo e na vida eterna!” (34).
8. Tempo e eternidade
Justamente, a ideia de que o cadáver
ficará no túmulo “dormindo” até ao Dia da Ressurreição encontra resistência
dentro de nós. Se esse dia chegasse uma semana depois da inumação, talvez fosse
uma ideia aceitável. Mas sabemos que “desde o princípio do mundo” tem sido
sepultada tanta gente e a maioria dos corpos já foi transformada em pó, sem que
ninguém acordasse desse longo sono... Mesmo na vida de cada um de nós já nos
despedimos de tantos entes queridos que a morte levou. Se estão sem vida todos
estes anos, debaixo da terra, não será esta doutrina demasiado triste?
Há uma ilustração muito simples que
ajudará a compreender o que pode ser esta situação da morte e do tempo. Quem já
foi operado e sujeito a uma anestesia geral, lembrar-se-á que, se a anestesia
lhe foi feita, no quarto do hospital, antes de entrar no bloco operatório o
anestesista terá começado os preparativos e, como que por acaso, começou a
falar com o doente. Faz-lhe uma pergunta de circunstância e, quando o doente
vai responder, logo sente alguma confusão, ouve a enfermeira, debruçada, sobre
ele, na cama, perguntar: “Então? Sente-se bem?” Tenta sorrir. “Um pouco
agoniado. Quando serei operado?” A enfermeira ajeita-lhe a almofada e responde
tranquila: “Já foi. Foi operado esta manhã e correu tudo bem”. O doente
lembra-se de ter olhado o relógio quando o anestesista chegou: eram dez horas.
“Mas que horas são agora?” “Cinco da tarde”, responde a enfermeira. O doente
estivera inconsciente e sem qualquer sensação durante sete horas, desde o
momento que começou a responder ao anestesista, e foi como se nenhum tempo
tivesse passado! Recentemente, uma irmã do autor destas linhas beneficiou de
uma grave cirurgia que durou doze horas e esteve inconsciente mais vinte e
quatro horas. Quando retomou a consciência duvidava que já tivesse sido operada
e quando se convenceu sorriu aliviada e encantada por já não ter de esperar por
essa aterrorizante experiência.
É já do conhecimento geral que há uma relação
entre o tempo e o espaço. O dia é a medida de tempo correspondente ao espaço do movimento aparente do Sol em
volta da Terra. O ano é o tempo que leva a Terra a correr o espaço da sua rotação em volta do Sol.
Por hipótese, se tudo parasse, isto é, se não houvesse movimento, que é
deslocação no espaço, deixaria, de haver tempo. Mas a verdade é que no mundo
físico tudo está em movimento, e o nosso próprio corpo é um mundo em movimento.
Cada célula, cada molécula, cada átomo está em contínuo movimento.
Os desmaios ou as anestesias gerais, o
estado de coma mostra-nos que há também uma relação entre tempo e consciência.
E não nos parece por isso especulativo pensar que, se a consciência de alguém
fica, pela morte, “fora do tempo” (como se não passasse tempo algum), é apenas
para os vivos que ficará no túmulo vinte, cem, mil anos ou cem mil anos. Para o
protagonista da morte não houve espera alguma. Aquele que morre hoje,
ressuscita hoje. Pela morte, entramos na intemporalidade.
Intemporalidade, é sinónimo de eternidade. Como não há, sinónimos
absolutos, eternidade inclui significados mais ricos do que apenas esse que
subentende a ausência de tempo, e assim os especialistas dizem que o, hebraico
“om” do Antigo Testamento, e o grego “aiôn” e “aiónios”, do Novo T'estamento,
traduzidos por “eternidade”, implicam o sentido de quantidade de tempo e de
qualidade. A vida eterna é aquela que não acaba e é também a vida isenta das
limitações que o homem tem no tempo actual, no mundo do homem natural.
Podemos falar então de dois níveis: o
nível do tempo e o nível da eternidade. O nível do tempo é aquele em que
vivemos, que é também o nível da história. Tem um começo e terá um fim. É o
tempo em que se encontra a Criação. O tempo da eternidade é aquele em que está
Deus, que não tem começo nem fim. Deus não tem, portanto, idade, porque “habita
na eternidade” Isaías
57:15 Deus vive no eterno presente, e está no que para
nós é passado, presente e futuro. A tendência para imaginar Deus como um velho
de longas barbas brancas é um antropomorfismo grosseiro.
Se quiséssemos expressar graficamente
este conceito, fá-lo-íamos, forçosamente de um modo tosco, desenhando um
quadrado com “dois andares”: no andar de baixo “habitaria o homem, com as suas
limitações, envelhecendo adoecendo e morrendo; e no andar de cima “habitaria”
Deus. Mas esse andar de cima não teria paredes nem tectos, se quiséssemos
significar a ausência de restrições de Deus. Esta visão dos “dois andares” está
presente em toda a Bíblia, já que não havia outro modo de descrever a situação.
Deus está “lá em cima” e o homem está “cá em baixo”. Também na linguagem
popular se diz que quando morremos vamos “lá para cima”, porque entramos na
eternidade, saímos do tempo para a eternidade, passamos ao andar superior.
Percebemos como esta linguagem é inadequada, mas a natureza do próprio tema não
permite linguagem melhor. Temos de ter a sabedoria de perceber que toda a
linguagem é simbólica, uma convenção de símbolos, que não podem sempre ser
interpretados à letra.
Mas não estará Deus também no andar de
baixo? Numa visão primária da Divindade, Deus de vez em quando desce ao andar
de baixo, fala com o homem. Na visão cristã, mais avançada, Deus está em todo o
lado. A Sua habitação não tem limites (não tem paredes): Ele rodeia o homem –
“nele vivemos, e nos movemos e existimos”, disse Paulo em Atenas. Actos 17:28
Voltemos à metáfora dos dois andares. A
parede do lado esquerdo do andar onde habita o homem é o tempo do princípio, e
a parede do lado direito é o tempo do seu fim. Se não gostarmos deste símbolo
da casa, podemos usar uma estrada na qual o homem faz a sua peregrinação desde
o berço até ao túmulo. Por cima e em redor da estrada há “o céu”, o “lugar”
onde está Deus, a eternidade, que vem de antes de a estrada começar e continua
para além do túmulo, onde a estrada acaba. A parede da casa ou o fim da estrada
mostram que o homem, na perspectiva do tempo, está condenado: espera-o a morte.
Mas a proclamação fundamental de Jesus é
a de que ele tem a vida eterna e dá a vida eterna. João 3:16,
João
14:6,
João
10:10.
Dizer que tem a vida eterna é reivindicar a condição divina. Mais ainda: no
Novo Testamento é afirmado que quem adere a Jesus e à sua mensagem, passa a
experimentar desde logo o que é a vida eterna, entra no céu! João 5:24,
Colossenses
3:03,
1ª
João 3:14 É claro que se trata apenas de uma antecipação
pálida da eternidade, porque o cristão continua a ser um homem terreno,
simultaneamente justo e pecador, como lembrava Lutero (simul justus et peccator).
É nesse sentido que para o cristão a
morte pode ser chamada começo da realização total da sua personalidade. Se
antes da morte o cristão mantém a condição de pecador, ainda que pecador
perdoado e em aperfeiçoamento, é só na morte que ele pode experimentar a sua
plenitude de homem. Leonardo Boff diz que a morte “é
a cisão entre o tempo e a eternidade" (35). Quando chega a hora da morte,
quando chega ao fim da peregrinação terrestre, o homem entra na plenitude da
eternidade, alcança a estatura do homem perfeito que até então nunca conseguira.
Pode-se falar então da morte como uma libertação, não no sentido platónico que
via na morte a abertura das portas da prisão, que é o corpo, de onde a alma
saía para espaços celestiais, mas num sentido mais rico que vê na morte a
passagem à vida plena de ressuscitado.
Pode dizer-se que morrer é alcançar a
plena ressurreição. De facto, se pensarmos que morrer é sair do tempo,
percebemos que entramos no estado em que só há hoje. Aquele que morreu, por exemplo, cm 1996 vai ressuscitar no
Dia de Jesus Cristo, com todos os que “dormem no Senhor”, mas o tempo só passou
para os observadores vivos. Aquele que “espera” desde 1996 e aquele que morreu
no ano 50 ou no ano 2060 ou qualquer outro ressuscitam todos ao mesmo tempo, na
perspectiva bíblica. É portanto correcto, do ponto de vista, cristão, falar de
quem morreu como aquele que alcançou a ressurreição. E pode compreender-se
então o significado de uma palavra de Jesus quando agonizava no Calvário Lucas 23:43
Crucificado entre dois assaltantes,
Jesus ouviu de um deles, que ficou conhecido na tradição por “Ladrão
arrependido”, este pedido:
“Senhor, lembra-te
de mim, quando entrares no teu Reino!”
E Jesus respondeu-lhe:
“Na verdade, na
verdade te digo (expressão que
precede afirmações de especial solenidade): hoje
estarás comigo no Paraíso".
Sim, logo após o último suspiro, não
tendo, para o ladrão crucificado, passado tempo algum, mantendo-se o hoje, está
com Cristo num lugar de felicidade que é referido como Paraíso.
9. Corpo disperso
Não se pode ignorar que esta esperança
cristã de que os mortos ressuscitarão como Jesus ressuscitou soa a muitos como
uma esperança absurda. “Os corpos descem à terra. Alguns anos depois estão transformados
em cinza. Muitos foram destruídos pelo fogo, outros devorados por animais. Como
poderão todos os elementos dispersos, as cinzas, o mínimo que ficou dos corpos,
voltar de novo à vida?” Para evitar o escândalo alguns preferem ficar pelo
sentido simbólico da ressurreição; outros acham que se trata de uma doutrina
própria de povos primitivos e é disparate tentar mantê-la nos tempos modernos.
David F. Strauss (1808- 1874), que viveu num período em que a ciência se
arrogava a capacidade de explicar tudo, pretendeu fazer uma leitura que chamou
“sem mitos” do Cristianismo (36), que o tornasse uma religião aceitável para os
tempos em que o homem, graças ao progresso, está mais esclarecido. Por isso
rejeitou com firmeza a ideia da Ressurreição de Cristo, que supôs ter sido
invenção dos discípulos, e por consequência rejeitou igualmente a esperança da
Ressurreição dos últimos tempos. (36)
O século XIX é o século do triunfo da
visão físico-mecanicista do mundo. Muito dessa visão mantem-se em
contemporâneos nossos, mas cada vez mais se percebe que a oposição fé-ciência é
um mal-entendido. No que diz respeito ao nosso tema, a ressurreição dos corpos,
não se pode deixar de reconhecer a razoabilidade (depois de dois séculos de
enunciada a Lei de Lavoisier, que afirma nada da natureza se perder) de admitir
que as mais pequenas partículas do nosso corpo, por mais dispersas, podem ser
convocadas e, pelo poder do Espírito de Deus, ser recriado o novo corpo
imortal. Confrontamo-nos hoje com tantos prodígios saídos da mão do homem -
desde logo, enquanto escrevemos neste prodígio que é o computador, mas se
pensarmos na comunicação sem fios, na televisão a cores, nas experiências do
espaço - não parece razoável manter uma atitude parecida com a de Strauss neste
tempo muito mais avançado do que o dele. E se há invenções humanas que nos
espantam, mais razão há para nos maravilharmos com criações divinas, como o
corpo humano, por exemplo. Pense-se apenas no espanto de simplicidade e
complexidade simultânea que é o olho humano.
Como já vimos, há cientistas sem
filiação religiosa que têm chegado à conclusão, devido às suas observações
rigorosas, que nada na natureza acontece por acaso. Muitos reconhecem que há
como que um plano prévio no Universo. Os cientistas actuam no pressuposto de
que é a ordem e não o caos que reina no Universo. Não há lugar para o absurdo
na natureza. Mas poderíamos falar em absurdo se um ser que chegou ao estado tão
elevado como o homem, com tanto saber e tantas aspirações, terminasse na morte
de uma mameira tão desastrosa. Ao estado a que o homem chegou, tem de seguir-se
uma etapa mais exultante, a do alcance da “estatura do homem perfeito”, Jesus
Cristo. E isso é, repetimos, o que os cristãos esperam com a Ressurreição,
segundo a Escritura. Efésios 4:13
A maior dificuldade que se apresenta
para a crença na existência de uma vida depois da morte, está na constatação
que geralmente se faz de que a nossa vida psíquica e portanto a nossa
personalidade, está totalmente dependente do nosso cérebro e do sistema nervoso
a ele ligado. Cada expressão do funcionamento da nossa mente tem
correspondência com a actividade molecular do que chamamos “massa cinzenta”.
Nós somos fundamentalmente aquilo que a nossa memória guarda. Se perdermos a
capacidade de lembrar o nosso passado, o nosso nome, o que aprendemos,
passaremos a apenas vegetar, já não seremos pessoas. Como um filme está
totalmente dependente da fita de celulóide sobre o qual está gravado: se o fogo
queimar a fita, acaba o filme. Se o corpo do homem desce à terra e nela se
desfaz, tudo o que constituía a personalidade desse homem desaparece também.
O filósofo Henri Bergson
(1859 - 1941) procurou responder a essa questão avançando com a opinião de que
os sentidos não dependem do corpo, mas são-lhe anteriores. A nossa visão, por
exemplo, existe antes do órgão olho. Nós apenas nos servimos do órgão para o
exercício do sentido que existe independentemente do órgão. A visão está, por
assim dizer, provisoriamente dependente do órgão olho, mas no futuro, na fase
seguinte da evolução, pode ser independente.
Bergson
aceita a evolução aproximadamente na concepção de Darwin, acrescentando que
houve uma inserção do Espirito na matéria, sendo a nossa consciência expressão
desse Espírito e, portanto, independente do corpo (37).
A Igreja Católico-Romana veio a condenar
o pensamento de Bergson, e há, sem dúvida, aspectos
da sua reflexão que não se harmonizam com a fé cristã, fé que aliás o filósofo
não chegou a aceitar. Mas é bem provável que a nova compreensão da ciência e da
filosofia obrigue a rever as posições deste admirável judeu, que teve
influência em 'I'eillard de Chardin, outro nome que
está a voltar a ser estudado.
O pastor baptista americano Harry Emerson Fosdick, num livro
publicado em 1915 (38), comentou assim uma teoria aparentemente semelhante à de
Bergson mas que encontrara no livro “Brain and Personnality”,
do Doutor Tompson: “Esta sugestão, é inteiramente
pertinente para o problema da vida futura do homem. A contingência presente da
mente no cérebro nega a esperança da imortalidade apenas sob uma condição: que
o cérebro cria a mente. Se o eu invisível do honrem é condicionado pela
estrutura física, tal como a flor está condicionada pelo pedúnculo e pela
corola, nesse caso o seu desaparecimento é seguro; mas o que diremos se a
dependência da sua personalidade em relação ao seu sistema nervoso for como a
dependência de um telegrafista em relação aos seus instrumentos? (...) Um homem
não pode ver sem os olhos, mas os olhos não são o homem; não pode ver sem o
nervo óptico, mas o nervo óptico não é o homem; ele não pode ver sem o lobo
visual do cérebro, mas o lobo não é o homem. Porque não hão-de eles ser como
que instrumentos que o homem usa, sobre os quais as suas presentes actividades
estão contingentes, mas sem as quais ele ainda pode viver? Por tudo quanto a
ciência tem afirmado, este pode muito bem ser o caso. A ciência descobriu
apenas que para cada actividade da mente há uma mudança molecular
correspondente no cérebro, e isso continua a ser verdade tanto nós vejamos o
cérebro como um agente que cria a mente, corno um instrumento em que a mente
actua”.
É legítimo, assim, concluir que a recusa
da crença na vida depois da morte, baseada no argumento da nossa dependência do
cérebro, não é tão forte como parece à primeira vista. Pelo contrário, a
resposta encontrada por Bergson, Teillard
de Chardin e outros, dá mesmo mais força a esta crença. Mas, é verdade, que não fica provada cientificamente a existência da
vida depois da morte. (39) Como
também não há possibilidade de provar cientificamente que com a morte se acaba
definitivamente a existência humana.
Assim sendo, resta-nos a possibilidade
de fazer uma aposta.
10. Muitas probabilidades
Quando falamos em “aposta” estamos a
voltar a Pascal, o filósofo com que começámos. Esse homem genial, que passou
por uma profunda experiência de conversão a Jesus Cristo, teve o desejo,
natural em todos os cristãos, de partilhar com todos a sua fé. Pensou então em
escrever uma obra que mostrasse aos seus contemporâneos o caminho para Deus.
Planeou um livro que iria ter o título de “Apologia da Fé Cristã”, mas do qual
só ficou para a posteridade o conjunto de textos que, depois da sua morte, foram
publicados com o título “Pensamentos”. Aos seus leitores incrédulos ele propôs,
em resumo, este raciocínio: não é possível provar pela razão que Deus existe
nem que não existe. Eu proponho então que vocês estudem o assunto e depois
façam uma aposta em como ele existe. “Se vocês ganharem, ganham tudo, se
perderem, não perdem nada”. É um pensamento simples, mas muito profundo. Quem
aposta nesse sentido, o que é que ganha? Viverá com a segurança de quem sabe que a vida tem um sentido, que
todos os homens são seus irmãos, experimenta o conforto de saber que um Ser
Todo-Poderoso vela por si, e está convicto, mesmo nas horas mais sombrias da
vida, de que, em definitivo, não corre perigo (o que não significa ficar isento
de problemas, de dores, de derrotas em batalhas: mas a vitória final é de
Deus!). E vive na esperança de uma vida depois da morte. Mas se, por hipótese,
dado o último suspiro, não acorda em parte alguma, fica mesmo morto – não se
pode falar em ter perdido seja o que for. Viveu feliz e seguro, e não perde
nada porque nem sequer saberá que perdeu! E se há, realmente, vida depois da
morte - ganhou tudo. Ganha do “lado de cá”, pelas razões apontadas, e ganha do
“lado de lá”. Um português podia juntar este provérbio: “Quem não arrisca, não
petisca”.
Deve dizer-se que esse “ganhar”, se Deus
fosse claramente uma ilusão, não mereceria aceitação. Viver a “fazer de conta”
não seria digno de um ser responsável e adulto. Mas até aqui não hã modo de
fazer tal afirmação com razoabilidade. Assim é como se um homem que está
perdido no deserto, cheio de sede e só tem duas hipóteses para encontrar o
oásis com água: voltar à direita ou voltar à esquerda. Tem mesmo de fazer a
“aposta” ou atirar uma moeda ao ar. Se sair “caras” vai para a direita. Aqui
com a diferença: se acertou, salvou a vida; se não acertou, perdeu-a.
Entretanto, é preciso lembrar que Pascal fala em “aposta” mas sabe que são
imensas as probabilidades de estarmos certos quando “apostamos” que Deus
existe. Aliás, ele fala como um homem de fé, um homem que afirma a existência
de Deus não apenas como uma boa hipótese mas como uma realidade de que tem
experiência pessoal. O filósofo sabia que as provas tradicionais da existência
de Deus não são suficientes para levar alguém da incredulidade à fé. Os
argumentos da razão são úteis, mas insuficientes, porque Deus está acima da
razão humana, ou o homem não teria liberdade para aceitar ou recusar. Se Deus
fosse evidente não seria Deus. Para encontrar Deus, o homem tem também de
querer encontrá-Lo, isto é, tem de usar a sua liberdade, a sua vontade de O
encontrar. A aposta implica o decidir aceitar que Deus existe, embora haja
argumentos da razão que não provem essa existência. O que mostra ser uma aposta
inteligente, porque a vida ensina-nos que em muitas e importantes áreas da vida
é assim que temos de actuar. Pascal não o diz, mas poderíamos pensar como
analogia o que acontece no amor entre um homem e uma mulher. Um tal amor seria
impossível se os protagonistas estivessem teimosamente empenhados em usar a
razão apenas no seu relacionamento. “Esta mulher é bela, é inteligente, é
saudável, é honesta - casarei com ela”. Não se exclui o uso da razão, mas o que
mudará tudo é o sentimento (o coração) que entre ambos se manifestar. No amor,
os amantes compreendem-se melhor do que se apenas se observassem objectiva e
racionalmente, Também poderíamos falar da arte. A arte não é um produto da
razão, mas do sentido estético, da imaginação e da criatividade. Não sendo da
razão, não se pode dizer, no entanto, que ela é contra a razão, ou mesmo que
ela dispense a razão. Um arquitecto que projectasse um edifício desrespeitando
as regras da razão, que são as da adaptação à realidade, (por exemplo,
desejando que o edifício não tivesse o piso térreo e começasse no 1º andar!),
certamente não iria longe...
O que dizemos da aposta sobre a
existência de Deus aplica-se à questão da vida depois da morte. De resto os
dois temas são inseparáveis. Se aceitamos a existência de Deus, aceitamos que
Ele tem um propósito quando cria o homem, e seria absurdo pensar que o destino
do homem termina na morte. E se aceitamos que a vida continua para além do
túmulo, aceitamos que a vida não apareceu por acaso, mas há uma inteligência e
um poder pessoal, Deus, que explica a nossa existência.
Quem decide apostar que há vida para
além da morte, não toma uma atitude contra a razão, mas uma atitude que envolve
a razão mas também o sentimento, o coração. A parte do sentimento é aquela que
diz respeito à sua subjectividade e que leva a tomar em consideração, entre outros
valores, o testemunho da Fé Cristã que anuncia a Ressureição de Cristo e, por
ela, a vitória de Cristo sobre a morte. Com rigor, deve dizer-se que acreditar
na existência da vida depois da morte é só possível como afirmação de fé. (40)
A fé não estupidifica, como supõem
pessoas prisioneiras de uma visão estreita do mundo e da vida. Ela é mesmo um
elemento necessário para o aumento dos nossos conhecimentos e para o
desenvolvimento das nossas capacidades intelectuais. Um famoso teólogo
medieval, Anselmo de Cantuária, seguindo, aliás, o pensamento de Santo
Agostinho, cunhou a expressão latina Credo
ut intelligam (creio para compreender) e
demonstrou que a fé é condição prévia necessária para todo o conhecimento. No
dia-a-dia estamos sempre a encontrar situações que ilustram essa verdade.
Imagine o leitor que um amigo seu, pessoa honesta e inteligente, lhe diz: “Fui
à Ucrânia e visitei em Kiev a Catedral de Santa Sofia”. O leitor não foi a
Kiev, ou, se foi, não visitou essa bela catedral ortodoxa, e fica a escutar,
encantado, a descrição que o seu amigo dela faz. Confiando no seu amigo, ouve
com atenção o que ele conta, e aumenta desse modo os seus conhecimentos. Pode
dizer-se que isso é “fé na palavra do seu amigo”. Essa fé não estupidifica de
modo algum e ajuda-o a aumentar os seus conhecimentos. Obviamente, não fica a
saber da Catedral de Santa Sofia toda a realidade da sua beleza, ou melhor toda
a realidade como o leitor a veria (a realidade é realidade subjectiva, vista
por nós), mas é neste momento a única possibilidade que tem de saber alguma
coisa sobre aquela maravilha da arquitectura ucraniana. Pode dizer ao seu
amigo, quando ele inicia a sua descrição: “Cala-te lá, que eu só acredito que
há uma Catedral de Santa Sofia quando a vir com os meus próprios olhos!” Mas,
sem falar da grosseria que isso representa, propor-se acreditar apenas no que
os olhos vêem ou as mãos podem tocar é uma forma pouco sensata de viver. É uma
forma de viver que não permite o enriquecimento da personalidade.
As pessoas que se gabam dizendo: “Eu sou
como São Tomé: só acredito depois de ver e de tocar”, ignoram que o texto
bíblico que conta o episódio da dúvida desse apóstolo em relação à Ressurreição
de Cristo não é de elogio a Tomé, mas de repreensão. O desenvolvimento desta página
mostrará porquê.
A parábola do amigo que foi a Kiev,
ajuda a compreender o sentido mais simples de “fé” e serve para mostrar a
impropriedade de se falar numa “fé cega”. Quando se usa a expressão “a fé é
cega” é para significar que quem aceita alguma coisa por fé não tem em atenção
o conteúdo daquilo que aceita. Não importa se é ou não verdade, se está ou não
dentro do razoável. Mas pensar assim da fé é errado. Uma verdadeira fé não diz:
“Tenho a fé de que vou ser rico!” Nem se pode dizer que são actos de fé as auto-flagelações que pela semana santa muitos filipinos
fazem. A fé subentende sempre que alguma coisa foi dita, foi prometida
anteriormente por uma pessoa que nos merece confiança. O leitor acredita no seu
amigo que foi a Kiev se esse seu amigo anteriormente mostrou ser um homem
honesto e que não faz confusões com o que viu. Se costuma apanhá-lo em
mentiras, ou se já alguma vez confundiu Paris com Londres e uma catedral com um
arranha-céus, você ouvi-lo-á talvez pacientemente, por delicadeza, mas não
aceitará uma palavra do que disse. A “fé” no seu amigo é possível porque a sua
razão lhe diz previamente que ele é um homem digno de crédito. Mas aquele que
diz ter fé de vir a ser rico não se baseia em nada mais do que nos seus
desejos. Quando muito poderemos falar de uma “fezada”, como dizem os que
compram lotaria. E aqueles que se auto-flagelam na
Sexta-feira Santa fazem-no confiados nas suas próprias conclusões ou nas
conclusões de outros com tanta autoridade na matéria como eles próprios. Para
os cristãos, porém, fé é a confiança depositada, numa Palavra a que atribuem
superior autoridade. É a palavra de Deus, Jesus Cristo.
Um homem chamado Jesus, vindo de Nazaré
da Galileia, começou a falar aos seus contemporâneos. Ao conjunto da sua
mensagem e do seu próprio viver chamam o Evangelho, e nesse Evangelho o
essencial é isto: “Alegrai-vos porque eu vim para abrir o caminho para a vida
eterna”. Assegura que quem aderir a esta mensagem e se juntar a ele e com ele e
os irmãos formar a Igreja, receberá o perdão dos pecados, ficará “reconciliado”
com Deus, a Quem chamará Pai, e vencerá a morte. Martinho Lutero disse um dia
que o resumo de toda a Bíblia é João 3.16:
“Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu filho Unigénito para que todo o
que nele crê não morra, mas tenha a vida eterna”.
As promessas de Cristo são admiráveis.
Mas podemos acreditar neste homem que as faz? Os apóstolos, por um tempo,
enquanto tudo andava bem, acreditaram, mesmo que com alguma hesitação. Quando
ele foi crucificado por causa de andar a dizer essas coisas, hesitaram ainda
mais, mas, como já vimos, foi só por três dias que duvidaram. Logo em seguida,
quando a Ressurreição do crucificado provou que tudo quanto ele dissera era
verdade, então saíram à rua e começaram a dar testemunho e a dizer: “Não há que
duvidar: a palavra de Cristo merece mesmo confiança!” A sua fé foi apoiada pela
sua razão que mostrou que Cristo era digno de crédito.
Alguns dizem: “Eu só acreditaria que há
vida depois da morte se um morto viesse da região da morte e me aparecesse!”.
Isso explica por que o Espiritismo atrai algumas pessoas. Jesus, na parábola do
rico e de Lázaro ensinou que mesmo que um morto voltasse à terra as pessoas não
ficariam seriamente convencidas. Os apóstolos, judeus como Jesus, repudiariam o
Espiritismo tanto como o seu Mestre, mas a experiência que tiveram foi
realmente a de que Alguém regressara da região da morte! Não uma “alma do outro
mundo”, não “um fantasma”, mas um homem inteiro (corpo-alma-espírito). É disso
que eles dão testemunho: “O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, ao qual
vós matastes, suspendendo-o no madeiro. Deus, com a sua dextra, o elevou a
Príncipe e Salvador, para dar a Israel o arrependimento e a remissão dos
pecados. E nós somos testemunhas destas palavras, nós e também o Espírito
Santo, que Deus deu àqueles que lhe obedecem”. Actos
5:30/32
Como mostram estas palavras do apóstolo
Pedro diante do Sinédrio, o testemunho sobre a Ressurreição e, portanto, sobre
a credibilidade da mensagem de Cristo, não é feito apenas pela pregação
apostólica mas também pela acção interior do Espírito.
O
erro do apóstolo Tomé João
20:19/31 foi não confiar no testemunho dos seus irmãos. Ele
estivera ausente no dia da primeira aparição, e os colegas comunicaram-lhe com
júbilo: “Vimos o Senhor!” - e ele não acreditou nas suas palavras. Como se o
leitor dissesse ao seu amigo que foi a Kiev: “Se eu não vir com os meus olhos e
não tocar com as minhas mãos na Catedral de Santa Sofia, de maneira nenhuma
acreditarei”. Com a agravante que crer ou não na Boa Nova da Ressurreição de
Cristo pode ter resultados explosivos, para o bem ou para o mal, na vida das
pessoas. Felizmente, porém, no Domingo seguinte, Tomé teve a oportunidade de
encontrar-se com o Ressurrecto e crer: Mas teremos que pedir a Jesus Cristo que
ressuscite corporalmente todos os dias e permita ser visto e tocado por todos
aqueles a quem não bastar a pregação apostólica? E que apareça aos milhões e
milhões de pessoas espalhadas por toda a terra! Seria pedir de mais… E seria,
sobretudo, desnecessário, porque, não esqueçamos, Ele “ascendeu aos céus”, ou
seja, passou a estar sempre presente. Antes, nas limitações do corpo humano,
Jesus, se estava em Jerusalém, falando com os discípulos, não estava em Nazaré,
nem em Roma, nem em Antioquia ou outro lugar. Se tivesse havido apenas Ressurreição
sem a Ascensão, Cristo estaria hoje visível onde? Imaginemos que em Jerusalém,
numa casa para ele construída. Os cristãos de todo o mundo fariam viagens
aquela cidade e ele iria a uma varanda discursar ao povo. Para as companhias de
aviação, para os hotéis, para todo o turismo seria vantajoso, mas seria um
Cristo muito limitado. E os pobres, os seus amigos preferidos, como iriam eles
viajar até Jerusalém? E a mulher doente e desesperada no seu quarto de morte a
quem se dirigiria na sua angústia? Pela Ascensão, Jesus assumiu a condição
divina na sua totalidade, e é omnipresente. Cremos na sua Ressurreição pela
pregação apostólica, mas também pela experiência da comunhão com o Espírito de
Cristo.
O mesmo há-de acontecer com a crença na
vida depois da morte. Crê-se nela pelo ensino apostólico, pela reflexão, mas
também porque o Espírito de Cristo nos faz participar já hoje da vida eterna, a
qual, por ser eterna, dá-nos um pouco do sabor da plenitude de felicidade e de
duração. Quem tem uma experiência verdadeira de comunhão com o Espírito, quem
está “revestido do Espírito de Jesus” Romanos 13:14
, como diz a Bíblia, mesmo que não tenha estudado o assunto, mesmo que não
tenha ainda argumentos de ordem conceptual para provar que há vida depois da
morte, tem já hoje a convicção segura de que a morte não é o fim.
11. Satisfeita a velha aspiração
Povos de todos os tempos acreditaram numa
vida depois da morte, ainda que as suas representações da vida futura fossem em
geral confusas. Os hebreus tinham “um pressentimento” de que a morte não é o
fim. No ser humano existe uma sede de imortalidade e a revolta, o desespero, o
descontrolo que se observam nas almas simples e sem esperança quando lhes morre
um ente querido, mostram que a morte repugna ao ser humano e que é encarada
como um inimigo odiado.
Não provarão, a aspiração por
imortalidade e o horror natural à morte, que há em nós uma profunda intuição de
que a morte não tem direito a existir? Não quererão as reacções naturais à
morte dizer justamente que a morte não faz parte do destino mais verdadeiro do
ser humano? O Espírito da Vida que preside a toda a Criação, e leva o homem a
ter intuições geniais, clarividências, previsões, manifestações inexplicáveis,
não será a fonte dessa persistente aspiração à imortalidade? Os mitos das
diferentes civilizações não estarão para a humanidade como um todo como os
sonhos estão para o indivíduo, isto é, expressando aspectos escondidos da sua
natureza? Freud chamou à religião a grande ilusão, e não parece ter pensado que
muitos chamarão aos sonhos que temos enquanto dormimos simples ilusões. O que
ele não chamaria, pois nos sonhos ele sabia haver a verdade mais profunda do
homem. A religião está para a humanidade como o sonho para o indivíduo.
Diante dessas questões só podemos
avançar com a convicção de que tudo o que a humanidade mais intimamente sonha
que seja bom, puro e justo corresponde a realidades que acabarão por ser
concretizadas. Não teríamos pensado em Deus se Deus não fosse uma realidade que
se tem manifestado entre nós e que um dia veremos face a face. Não teríamos
pensado na imortalidade se ela não fosse a meta final da vida humana. Concordamos
com Jean Lyon que escreveu: “Entre as aspirações da pessoa, a mais expressiva é
a aspiração a não morrer. Talvez acontecerá mesmo que o homem se saiba imortal
antes de se saber mortal, e a morte apareça sempre à razão mais escandalosa do
que pavorosa” (41).
São Paulo, certo das consequências da
Ressurreição de Cristo, retoma uma palavra do profeta Oseias, e pergunta
desafiador. – Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde
está, ó Inferno a tua vitória? – para concluir com firmeza: Graças a Deus, que nos dá a vitória, por nosso Senhor Jesus
Cristo. 1ª
Coríntios 15:55/57 Oseias 13:14
A vitória é já uma realidade, mas é só com
a Parusia que ela terá a sua total manifestação. A palavra parusia, que outros grafam Parousia é a
transliteração do termo grego que no Novo Testamento em português é 22 vezes
traduzido por “vinda” e duas vezes por “presença”. Os teólogos usam essa palavra
para falar do tempo em que Cristo virá de novo, desta vez em glória, para
realizar a plenitude do Reino. Geralmente fala-se desse evento como a “Segunda
Vinda de Cristo”. É a escatologia da Fé Cristã, sendo também a palavra
escatologia de origem grega (eschatos, quer dizer “último”: é a doutrina das últimas
coisas). A fé bíblica tem uma dimensão escatológica, isto é, aponta para o
futuro, não é estática, nem vive da saudade do passado. São muitos os textos
bíblicos que anunciam essa Segunda Vinda de Cristo, mas limitamo-nos a citar um
dos mais conhecidos. Trata-se de um texto de S. Paulo, porventura o texto mais
antigo do Novo Testamento, e diz assim: Não quero,
irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos
entristeçais, como os demais que não têm esperança. Porque, se cremos que Jesus
morreu e ressuscitou assim, também, aos que em Jesus dormem, Deus os tornará a
trazer com ele. Dizemos-vos, pois, isto pela palavra do Senhor: que nós, os que
ficarmos vivos, para a vinda do Senhor, não precederemos os que dormem. Porque
o mesmo Senhor descerá dos céus, com alarido, e com voz de arcanjo, e com
trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois
nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles, nas
nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor.
Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras. Mas, irmãos, acerca
dos tempos e das estações, não necessitais de que vos escreva; porque vós mesos
sabeis que o dia do Senhor virá como ladrão de noite 1ª
Tessalonicenses 4:13/18
e 1ª
Tessalonicenses 5:1/2
Trata-se, portanto, de um texto escrito
num estilo apocalíptico e que não pode ser tomado à letra, mas serve para
indicar que a Fé Cristã espera que no Dia do Senhor os que estiverem mortos
retornarão à vida. Há outra nota clara de uma esperança triunfal e essa deve
ser persistentemente cultivada por cada cristão, para não serem “como os
demais, que não têm esperança”. Emil Brunner, um
teólogo protestante suíço que teve grande reputação na primeira metade do
século XX, escreveu estas palavras. “A Fé Cristã difere de todos os outros
credos pelo facto de saber: Deus vem. Como Deus vem ao seu povo, isso já
constitui o grande tema no Velho Testamento. No Novo Testamento a primeira
palavra é: Arrependei-vos, porque está próximo o Reino
dos céus Mateus
3:2
e Mateus
4:17
e a última é: Amém, vem, Senhor Jesus. Apocalipse 22:20
A pregação do Reino de Deus vindouro é o Evangelho, e a certeza da futura
redenção e da eterna consumação é a Fé Cristã” (42).
Os muitos textos neotestamentários que
falam do Segundo Advento ou Vinda de Cristo nem sempre coincidem nos seus
dados, o que é natural, pois o estilo apocalíptico não está preocupado com a
harmonização lógica, aproximando-se nesse aspecto da poesia. As correntes
religiosas que tentaram elaborar um discurso lógico, estabelecendo fases e
pormenores do que acontecerá então, acabaram por se desentender e dividir em
grupos que se guerreiam sem compreenderem que são os próprios textos que não
permitem uma interpretação unívoca. Mais sensato é limitarmo-nos a dizer:
“Creio que Jesus virá de novo, para julgar os vivos e os mortos!”
Sim, haverá um julgamento, o Juízo
Final. Qualquer tentativa para compreender o que isso poderá significar deve
ter como pensamento preliminar que Deus é Aquele que Jesus revela como o “Abba”, Pai. Imaginemos uma situação como esta: um jovem
termina o curso de Medicina, para júbilo de seus pais, principalmente do pai,
que é médico com muitos anos de exercício. Mas o novel médico, após pouco tempo
de estágio num hospital, decide abandonar a carreira e dedicar-se
exclusivamente à Música, que adora. Como classificaríamos seu pai se,
despeitado pela decisão do filho, o odiasse? Não o consideraríamos um bom pai,
pelo menos. Mesmo que a carreira da Música em Portugal, salvo para talentos
excepcionais, esteja longe de ser uma carreira materialmente proveitosa, um pai
normal respeitaria a escolha de seu filho. Deus trata-nos como o Pai que
respeita as escolhas dos filhos.
Haverá um Julgamento Final. Onde ele se
fará e os pormenores do cenário não é o que importa saber, mas interessa saber
quem é o Juiz. Se tivermos a infelicidade de ter que ser julgados num tribunal
humano (ninguém diga “desta água não beberei”, pois há gente honesta que se
senta no banco dos réus), tanto nos fará ser num edifício belo,
recém-construído, com projecto de Siza Vieira, como num velho pardieiro. A
beleza do edifício interessa-nos muito quando passeamos, livremente, na cidade.
Mas interessa-nos sobremaneira saber, se tivermos que ser julgados em tribunal
humano, quem é o Juiz. Se soubermos que se trata de Fulano, com reputação de se
deixar corromper por amizades e ofertas, suspeitamos à partida que venhamos a
ser vítimas de um julgamento injusto.
No Julgamento Final o Juiz é Jesus
Cristo. Quando se fala de Cristo como Juiz e se diz que todas as vidas serão
por Ele julgadas, a tendência, em geral, é de associar essas expressões ao
conceito de castigo. Mas é preciso sublinhar que, na Bíblia, os juízos divinos
são prioritariamente entendidos como retribuição de bênçãos. O pobre, o
marginalizado, o humilhado, a vítima da calúnia, todos esperam do Justo Juiz
que lhes faça justiça, isto é, que faça valer os seus direitos, que faça com
que lhe seja reconhecida a dignidade humana; e receber aquilo que lhe foi
tirado. A justiça de Deus é a expressão do Seu amor. Deuteronómio
32:36, Isaías 30:18,
Jeremias
30:11, Salmo
135:4, Lucas
18:1/8, Romanos 12:19,
2ª
Tessalonicenses 1:5/10, Apocalipse 6:10
Diremos o mesmo em relação ao Novo Testamento, para dizer com Karl Barth, outro
grande teólogo do século XX: “A justiça no Antigo Testamento, não é a justiça
do juiz que faz pagar o culpado, é, pelo contrário, a decisão do juiz que
reconhece no acusado um miserável que ele quer socorrer, levando-o ao caminho
correcto” (43). Barth foi acusado por correntes conservadoras de ser, do ponto
de vista escatológico, um universalista, designação que dão aos que defendem
que no fim todos são salvos por Deus. A frase acima parece dar razão aos
acusadores, e sem dúvida o teólogo está muito longe do pensamento cruel dos que
aguardam ansiosos que Deus esmague os pecadores (os outros, os que não têm
religião ou que são de outra confissão), mas o que ela realça verdadeiramente é
que o conceito de justiça, de julgamento e de juiz no contexto da fé tem de ver
acima de tudo com a oportunidade que o ser humano tem de em Deus, finalmente,
ter Quem seja capaz de o compreender:
Obviamente, não é errado associar a
ideia de castigo ao Julgamento de Deus. Erro é privilegiar a ideia do castigo.
Qualquer julgamento termina com uma sentença que pode ser classificada como
recompensa ou como castigo. Mas a recompensa e o castigo podem ter várias
expressões. Se um filho ama e respeita muito sua mãe, sentirá como recompensa
de um trabalho que lhe fez o simples sorriso da sua progenitora; se não a amar,
a recompensa com dinheiro ou uma jóia pode ser recebida sem gratidão nem
alegria. Para um filho carinhoso e respeitador de sua mãe, a expressão muda e
magoada dela, depois de uma má acção desse filho, dói mais que muitos ralhos ou
mesmo pancada.
Se Deus é o Criador de tudo quanto
existe, as nossas vidas pertencem-Lhe e é consequente que Ele não as abandone
nunca, mas acompanhe, interessado, como estamos a viver: O teólogo Paul Tillich viu a necessidade de se perceber que em Deus o
amor, o poder e a justiça são valores inseparáveis. Alguns cristãos têm
realçado em Deus a ideia do amor. Sublinham os textos bíblicos que falam do
amor de Deus e designam 1ª João 4:8
como o coração da revelação – “DEUS É AMOR” - mas não se dão conta de que se
Deus fosse apenas amor, sem poder e sem justiça, esse “amor seria reduzido à
sua qualidade afectiva ou ética”. (44) Mais ainda: “O amor não está para além
das exigências da justiça, mas é o princípio último da justiça. O amor reúne, a
justiça mantém o que deve estar unido. A justiça é a forma na qual e pela qual
o amor pode realizar a sua obra. No seu sentido último, a justiça é justiça
criadora, e a justiça criadora é a forma do amor reunificador”. (45)
É por Jesus Cristo, vitorioso, que o
juízo é exercido. Falar de Deus em Jesus Cristo como Juiz é reconhecer que
somos responsáveis pelos nossos actos, que somos levados a sério. Na morte,
encontramo-nos com o Deus Santo e a nossa vida ficará sob a luz intensa do seu
olhar de Pai/Mãe.
A Bíblia é muito comedida relativamente
a pormenores sobre o que acontecerá então. No entanto, o cristão pode ficar com
a tranquila esperança de que, por causa de Jesus Cristo, viverá eternamente. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor,
diz a Escritura. Romanos 14:8
Não há orgulho em o crente pensar que lhe está assegurada a sua salvação
eterna. Porque não se trata de algo que receberá como pagamento de coisas boas
que ele tenha feito, mas trata-se de um dom gratuito de Deus: Pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de
vós, é dom de Deus. Efésios 2:8
Entretanto, é verdade que, se não é
pelas boas obras que o cristão está destinado à vida eterna, a sua salvação
há-de manifestar-se numa vida de boas obras, de serviço ao próximo e a Deus. E,
de qualquer forma, a vida eterna, como já o lembrámos várias vezes neste
estudo, não começa depois da morte, mas desde o momento em que a pessoa se
converte a Cristo. Se há vida eterna numa pessoa, logo vida divina, é evidente
que essa pessoa faz o que é bom para o próximo, as tais boas obras. Confirma-se
que não há orgulho na segurança que o crente tiver de que depois da morte
viverá com Deus, pois aquele ou aquela que isso afirma tem em conta a sua
experiência já, “neste lado da vida”. Se hoje vives em comunhão com Cristo, se
respiras já hoje a atmosfera divina, como poderias imaginar que a morte pudesse
separar-te dele? Romanos
8:38/39 Duvidar disso não seria humildade: seria ausência
de fé. Um outro símil da fé pode ser dado com a imagem de dois amigos que
caminham por um lugar rodeado de abismos. Um deles é cego e depende
exclusivamente do companheiro que o guia. Se o invisual tem a certeza que o
companheiro é verdadeiramente seu amigo, tem boa vista, conhece bem o caminho,
é sensato e não se distrai, esse invisual segue tranquilo porque se sabe em
boas mãos. É nessa confiança que o cristão segue “pelo
vale da sombra da morte”, na expressão do Salmo 23.
Há um hino de letra simples cantado nas igrejas evangélicas que termina com
esta estrofe:
Não sei para onde vou;
Mas isto sei, Senhor;
Na Tua mão estou,
E Tu és todo amor!
12. E os não-cristãos?
Tudo o que escrevemos até aqui assegura
aos cristãos que a morte não tem poder sobre eles. Os que morreram, sendo fiéis
até ao fim, e os cristãos fiéis que estiverem vivos no Dia do Senhor, viverão
eternamente com Deus.
Mas falta saber o que acontecerá a
outros grupos de pessoas, tais como:
1º - As crianças que morreram antes da
idade da razão e aqueles que ficaram com atraso mental que não lhes permitiu
chegar à fé;
2º - Os adultos que se afirmam cristãos
por serem baptizados e frequentarem os serviços religiosos, mas negam Cristo na
prática, vivendo em padrões opostos aos de Cristo.
3º - Os que seguem outras religiões;
4º - Os ateus;
5º - Os agnósticos
É evidente que, considerando a Fé Cristã
que a revelação suprema de Deus é Jesus Cristo, …a
imagem do Deus invisível… Colossenses 1:15,
na expressão de São Paulo, as respostas que encontramos no Novo Testamento têm
de ver fundamentalmente com Cristo. O Novo Testamento foi escrito tendo como
referência o acontecimento testemunhado no meio do povo judeu há dois mil anos.
O primeiro destinatário é este povo que professa ter uma Aliança com Deus e por
isso assume ser o “Povo de Deus”, mas é interpelado pelo rabi Jesus da Galileia
que proclama ser o Messias esperado. A reivindicação central de todas as
páginas do Novo Testamento, escritas por autores judeus convertidos ao
Cristianismo, é clara e inequivocamente a de que no Calvário foi feito o
Sacrifício único e suficiente, sendo Jesus simultaneamente o sacerdote e a
vítima, através do qual Deus estabelece uma Nova Aliança (Novo Testamento tem
exactamente esse sentido). Todos os que, pela fé, entram nesta Nova Aliança,
tornam-se descendência de Abraão, Povo de Deus, e co-herdeiros do Reino.
É bem possível que os escritores do Novo
Testamento, se tivessem que escrever no contexto de outra religião e de outra
cultura, pusessem as coisas noutros termos, mas isso é apenas conjectura. Ainda
assim, é possível encontrar nas páginas do Novo Testamento ensinos que permitem
deduzir respostas, mesmo que não precisas, à questão do destino desses cinco
grupos acima mencionados.
Crianças
No Judaísmo em que Jesus nasceu, foi
educado e morreu, é só aos doze anos que o rapaz (e não também a rapariga, pois
a mulher desde o berço é discriminada) é considerado como “filho da Lei”, ou
seja, só então se torna responsável pessoalmente diante de Deus pela sua
relação com a Lei revelada através de Moisés. Antes disso, pode dizer-se que as
crianças não são responsáveis. Isso não significava que não pudessem ou não devessem
ser castigadas quando agissem mal, mas essa é outra questão.
Um dia, os discípulos de Jesus quiseram
saber quem era a pessoa mais importante no Reino de Deus e o Mestre colocou um
rapazinho no meio deles e disse: Em verdade vos digo
que, se não vos converterdes e vos não fizerdes como meninos, de modo algum
entrareis no Reino dos Céus. Mateus 18:3
E diz ainda mais claramente: Deixai vir a mim os
pequeninos, e não os impeçais, porque deles é o Reino de Deus Lucas 18:16. (46)
Daí a Igreja ter concluído desde o
princípio que, se uma criança, enquanto vive, é já do Reino de Deus, se morre nessa
idade não perde essa condição: àqueles quo morrem na infância Deus os acolhe no
Seu Reino.
O que veio perturbar alguns foi o
conceito do “pecado original”. Com esta expressão pretendeu-se apontar para o
relato bíblico da Queda: Adão e Eva pecaram e foram, por isso, expulsos do
Paraíso. A sua desobediência é o pecado de que, não só eles, mas todos os seus
descendentes se tornaram participantes. Nascemos já tocados pelo “pecado
original” e é por causa dele que, mesmo sem culpa nenhuma pessoal, somos pecadores.
Logo, nessa perspectiva, uma criança, ainda mesmo antes de ter consciência, já
está condenada, é pecadora - e como o pecado não pode entrar no Céu, ela estará
condenada.
Este é o desenvolvimento lógico da
compreensão da narrativa da Queda como um acontecimento histórico. Mas o
objectivo da alegoria de Adão e Eva é apontar para uma realidade que todos
podemos constatar no nosso dia-a-dia, que é o facto que todos somos pecadores.
A Bíblia não está interessada em fazer a especulação filosófica da ontologia do
pecado, mas como livro realista que é, nota que o drama do ser humano, o que
torna impossível a sua felicidade, é a pretensão de querer ser igual a Deus, de
dominar, de decidir por si mesmo o que é o bem e o mal. Os que crêem que Adão e
Eva foram um casal histórico, podem ficar por essa crença, mas seja ou não essa
a posição o que é fácil reconhecer é que uma criança, desde o nascimento pode
ser por vezes um ser difícil, com birras, com ciúmes, possessiva, violenta.
Tudo dando razão à visão bíblica de que somos imperfeitos (pecadores) desde a
concepção, mas, obviamente por não ter plena consciência das suas acções, a
criança pode ser ajudada com a educação dada pelos seus progenitores ou
substitutos, mas Deus seria cruel se condenasse a criança, por causa dessa
tendência natural para errar.
Não há indícios de que o destino das
crianças falecidas antes da idade da razão constituísse um problema para a
Igreja dos primeiros séculos. A ideia de que elas pertenciam ao Reino de Deus
estava ainda muito viva e as lápides das sepulturas dão prova de uma saudade
dorida, mas com a certeza do reencontro final.
Mas a Igreja foi aos poucos realçando a
vertente sacerdotal do seu ministério global e o sacramento do Baptismo veio a
ser entendido como indispensável à salvação. Já Jerónimo, teólogo e tradutor da
Bíblia (IV século) chega a afirmar: “Os que morrem depois do Baptismo, chegam
imediatamente ao Reino dos céus, e por isso nenhuma penitência se deve impor
aos baptizados pelos pecados passados”. Concluiu-se desde então que os não
baptizados, adultos ou crianças, “serão castigados com fogo eterno”. Mais
tarde, para suavizar o discurso, fala-se da existência do “Limbo dos pais”, e
do “Limbo das crianças”. O primeiro é o lugar para onde vão aqueles que
morreram antes de Cristo ter chegado e anunciado a fé; e o “Limbo das crianças”
o lugar destinado às crianças mortas sem terem recebido o Baptismo. O
Protestantismo rejeitou sempre esta ideia do Limbo, a que Calvino chamou uma
fábula. (47) Num livro de polémica anticatólica, os seus autores protestantes
escreveram há cem anos: “A doutrina do Limbo para as crianças não baptizadas
inverte toda a economia da graça em Cristo. Então seria preciso dizer que o
pecado de Adão e Eva tenha feito mais mal do que a graça de Jesus Cristo tenha
feito de bem; e que o Diabo venceu a Cristo. Não, cem vezes não! O Limbo das
crianças é uma impiedade”. (48)
As grandes Igrejas vindas da Reforma,
como a Igreja Luterana, a Igreja Presbiteriana (ou Reformada), a Igreja
Anglicana e a Igreja Metodista, entre outras, baptizam crianças, filhas de
cristãos professos, mas nenhuma crê num Limbo, nem duvida que todas as
crianças, baptizadas ou não, filhas de cristãos ou de não-cristãos, são
acolhidas pelo Deus de amor. E nos sectores da Igreja Católico-Romana mais
abertos ao ensino bíblico essa ideia do Limbo perde também apoio. No Dicionário
Teológico de Karl Rahner e Herbert Vorgrimler, cuja edição original é anterior ao Vaticano II,
já se lia este período na entrada Limbo: “A investigação científica, ainda não
terminada, trouxe a certeza de que não se pode falar de um consenso dos
teólogos acerca de tal problema em épocas anteriores.” (49) Os autores não se
referem particularmente ao “Limbo das crianças”, mas a dúvida alcança-o também
a ele. Nos nossos dias, Michel Quesnel, um padre e
teólogo que ensina em Paris com a aprovação de Roma, pode escrever: “Toda a
pessoa que morre, com ou sem Baptismo, criança ou adulta, é acolhida por um Pai
que a ama e a julga em função desse amor. Isto não implica que todo o homem
seja necessariamente salvo. Mas que Deus tem critérios muito diferentes dos
nossos; e não há dúvida que os Seus são bem melhores!” (50)
Cristãos hipócritas
A designação é perigosa. Quem classifica
outro de “cristão hipócrita”, julgar-se-á ele próprio um modelo de cristão? Mas
usamos esta expressão para falar de uma situação que não pode ser camuflada. Há
o cristão simultaneamente justo e pecador, que se esforça por seguir a Cristo,
tropeça, arrepende-se, avança mais um pouco e tem sempre consciência de que é
imperfeito e que só pode viver do perdão de Deus em Cristo. Esse não é um
cristão hipócrita, mas um cristão, simplesmente. E há também aquele que nasceu
numa família talvez cristã, criou laços que lhe dão a identidade de cristão, e
ele próprio o diz ser, por interesse material ou por falta de coragem de se
assumir como não-cristão - foi baptizado, casou-se numa igreja, frequenta
serviços religiosos, faz as suas ofertas - mas na sua carreira profissional,
mesmo na sua vida familiar, de cidadão, na acção política ou partidária, calca
aos pés, consciente e tranquilamente, os valores do Evangelho. De consciência
embotada, esse cristão de fachada (“hipócrita” vem do grego e quer dizer “homem
com máscara”, actor) no que menos acreditará é que haja vida depois da morte!
Aliás, se alguém quisesse provar-lhe que há vida depois da morte tal ideia
seria recebida com horror: a sua esperança é de que não haja mesmo nada depois
da morte, nem haja um Deus justo por cima de tudo! Morrer, não havendo nada
para além da morte, é ficar livre de problemas, é sair a rir desta comédia em
que esteve a representar. A Boa Nova para um cristão hipócrita seria esta:
“morto o homem, acaba-se tudo”.
O norueguês O. Hallesby
professor de Teologia, começa assim um pequeno livro que em português recebeu o
título Por que sou cristão: “Há dois
tipos de cépticos. Primeiro, estão aqueles que vivem na dúvida porque o seu
cepticismo lhes serve de escudo contra as acusações da consciência. Não estão
dispostos a abandonar a vida fundamentalmente egoísta que levam, quer ela se
expresse em pecados grosseiros e declarados, num amor vulgar por este mundo, ou
numa vida de auto-suficiência de moralidade exterior. Quando a consciência os
perturba, a dúvida é o melhor meio que têm de a acalmar. (51) O segundo tipo de
cépticos que Hallesby refere é dos que se sentem
perturbados por viverem na dúvida em relação a Deus. Chama-lhes “cépticos
honestos”, mas em relação aos primeiros, os hipócritas, o teólogo não mostra
ter grande esperança de os mudar:
Há, no entanto, vários graus de
hipocrisia. Pode dizer-se que há uma hipocrisia consciente e uma hipocrisia
inconsciente Mateus
6:16/34 e Mateus
7:1/15 Ao
lado de pessoas empedernidas no seu
fingimento, que se dizem católicos, ou ortodoxos, ou protestantes para
retirarem disso proveito material ou psicológico (incluindo dirigentes
eclesiásticos), haverá homens e mulheres que simplesmente nunca aprofundaram o
significado do Evangelho, que se deixam ir à tona, mais influenciados pela
sociedade de consumo, pelos valores errados da sua família e outros, que pelos
compromissos com Jesus Cristo. Um comerciante que rouba os clientes, um patrão
que explora os seus empregados, um advogado, um médico, um contabilista que
foge aos impostos; um tesoureiro que desvia fundos, um marido ou esposa que
adultera – e isto, quando se dizem cristãos, é hipocrisia. A gravidade da
situação não pode deixar de ser anunciada, se nos lembrarmos que as palavras
mais duras de Jesus nos Evangelhos são contra os hipócritas. Segundo Jesus, os
publicanos e as prostitutas que vieram a crer nele entram à frente dos fariseus
no Reino dos céus. Mateus 21:31.
Mas a dureza dos discursos de Jesus
contra a hipocrisia não precisa de ser vista numa perspectiva moralista. A
hipocrisia é capaz de ser menos prejudicial à sociedade que o roubo (salvo se o
hipócrita for também ladrão, claro). O combate de Jesus é em nome da realização
do ser humano. O hipócrita é o homem que não assume o seu próprio ser, não é
autenticamente humano. Sendo assim, percebe-se como o hipócrita está
naturalmente impedido de “entrar no Reino de Deus”.
Entretanto, é preciso ter presente que a
Bíblia não começa por julgar e condenar, mas por fazer esta afirmação
exultante: todos os homens e todas as mulheres, por mais baixo que tenham
descido, por mais repelentes crimes que tenham cometido, podem vir a viver no
mundo vindouro, fruir o júbilo do Reino de Deus! Se o hipócrita se deixar
convencer pelo amor de Deus e se se arrepender, que é abandonar o que sabe
errado, passar da vida em mentira para a vida na verdade, e adoptar um estilo
de vida do homem novo criado à imagem de Jesus Cristo, o Homem Novo por
excelência, estará com Cristo no Paraíso. Na década de 1970, Roger Garaudy, vindo do marxismo, falava do Cristianismo como
sendo, fundamentalmente, um estilo de vida. Apesar de acabar por se tornar
islâmico, Garaudy, acreditamos, estava a tocar num
ponto muito importante da mensagem do Novo Testamento.
E se o “cristão hipócrita” não se
arrepender, não tirar a máscara e não se converter? Segundo o Novo Testamento,
não há esperança para tal homem ou mulher. Se vos não
arrependerdes... morrereis – é a palavra solene de Jesus, Lucas 13:3
e uma das últimas advertências do livro de Apocalipse é a de que ficará de fora
do Reino eterno de Deus, entre outros, …qualquer que
comete a mentira Apocalipse 22:15.
O mentiroso é um hipócrita.
Jesus disse: Muitos
me dirão naquele dia (Dia do Juízo Final): Senhor,
Senhor! Não profetizámos nós em teu nome? E em teu nome não expulsámos
demónios? E em teu nome não fizemos maravilhas? E então lhes direi abertamente:
Nunca vos conheci: apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade. Mateus
7:22/23.
Seguidores de outras religiões
Não há que esconder: desde o princípio
da Igreja a atitude prioritária foi a de ver qualquer religião fora do
Cristianismo como um caminho que, por ser diferente do Caminho que é Jesus
Cristo, leva à perdição. Esta visão manteve-se ao longo dos séculos e explica
em parte movimentos como as cruzadas e as viagens missionárias. Concluiu-se
mesmo que o Cristianismo não é uma religião, pois estas seriam o produto do
esforço humano para encontrar o divino, e o Cristianismo é o resultado do
esforço de Deus para encontrar o homem.
Nos últimos séculos, o Catolicismo e a
Ortodoxia, talvez, na nossa opinião, por, na sua interpretação do Cristianismo,
terem sublinhado mais a vertente sacerdotal (e consequentemente o
sacramentalismo e o ritualismo), em detrimento da vertente profética, tiveram
muitas vezes uma atitude mais dialogante com as religiões não-cristãs, e não
admira que fosse dentro do Protestantismo (onde é a vertente profética que
impera) que se manifestasse uma maior reserva. Ainda no século XX, Karl Barth,
na sua obra de maior fôlego, a Dogmática
da Igreja, punha a um célebre parágrafo este título: A revelação de Deus como abolição da religião (52) Barth escrevia
em alemão e o seu tradutor francês escreveu “assunção” em lugar de “abolição”.
O autor destas linhas estudou minimamente o alemão mas encontra de facto no
dicionário daquela língua que a palavra usada por Barth, Aufhbung, tem os seguintes
correspondentes em português: abolição, anulação, supressão. (53) Esta posição
explica-se pela recusa que Barth faz do que chamamos a Teologia Natural. Para
ele não há a menor possibilidade de o homem, por si mesmo, encontrar Deus. Deus
é o totalmente outro: “Deus está lá em cima e tu estás aqui”. Esta posição
radical do famoso teólogo de Basileia foi útil quando o Nazismo procurava
misturar a fé cristã com a sua ideologia eivada de valores da velha mitologia
germânica pré-cristã, mas deixou de ser realçada depois dos anos 60. Os estudos
de religiões comparadas, os trabalhos extraordinários de Carl Jung na pesquisa do sentido da simbologia religiosa, e de Mircea Eliade, principalmente,
levaram a perceber o erro de uma atitude totalmente negativa em relação às
demais religiões, e sem negar a afirmação central do Novo Testamento que diz,
ser Jesus Cristo o Caminho, a Verdade e a Vida e que ninguém vem ao Pai senão
por ele João
14:6,
faz-se hoje uma releitura da revelação para reconhecer que diante do facto da
existência de religiões onde a dignidade humana for respeitada, onde os valores
da fraternidade e da liberdade estiverem presentes, os cristãos devem
recusar-se a fazer julgamentos definitivamente condenatórios. A luta da Igreja
primitiva (como a luta anterior dos profetas de Israel) contra outras religiões
não foi em abstracto, mas teve de ver com a natureza concreta de cada religião
que o Povo de Deus ia encontrando, religiões sempre com aspectos nocivos ao
homem, tais corno sacrifícios humanos, orgias, exploração do povo, com
superstições e tradições que procuravam manter o homem na servidão. Quando uma
religião não tiver nenhuma prática ou ensino que a própria moral comum reprova,
e pelo contrário, seja defensora de valores morais e espirituais que a Fé
Cristã aprova, os cristãos hoje sentem dever conviver e cooperar com os seus
seguidores. Sem nunca esquecer a sua afirmação central de que Cristo é o
Salvador e Juiz Universal.
Chegados aqui reconhecemos que não
encontramos no Novo Testamento resposta directa para a pergunta: Qual é o
destino dos que morrem dentro das religiões não-cristãs? Há um pormenor muito
significativo na descrição do Juízo Final de Apocalipse
20:11/15 que vale a pena sublinhar neste momento. Diante do
trono branco são abertos os livros. Um dos livros é o da vida. Os mortos são
julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, “…segundo as suas obras…”. Uns são lançados no lago do
fogo do Inferno, outros não – e uns e outros, como sublinhámos, “…segundo as suas obras…”.
Impõe-se, a propósito, a leitura de um
sermão de Jesus sobre as últimas coisas. (No dia do Julgamento Final) dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos
do meu Pai, possuí por herança o Reino que vos está preparado, desde a fundação
do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de
beber; era estrangeiro e hospedastes-me; estava nu e vestistes-me; adoeci e
visitastes-me; estive na prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe
responderão, dizendo: Senhor; quando te vimos com fome e te demos de comer? Ou
com sede e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro e te hospedámos? Ou
nu e te vestimos? Quando te vimos enfermo ou na prisão, e fomos ver-te? E
respondendo o Rei lhes dirá: Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um
destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” Mateus
25:34/40.
Não rejeitamos um dos princípios
fundamentais da Reforma – o que afirma que é apenas pela fé que somos
justificados: Sola fides,
baseado em Efésios
2:8
– mas lembramos aquela palavra de Jesus, porque ela mostra-nos que nesse dia
que nesse dia serão chamados a entrar alguns que pensavam não ter estado com
ele.
Outro texto significativo é este de S.
Paulo: Quando os gentios, que não têm Lei, fazem
naturalmente as coisas que são da Lei, não tendo eles Lei, para si mesmos são
Lei. Os quais mostram a obra da Lei escrita em seus corações, testificando
juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer
defendendo-os, no dia em que Deus há-de julgar os segredos dos homens, por
Jesus Cristo, segundo o meu evangelho. Romanos
2:14/16.
Ateus
Parece haver pouco a dizer sobre o que
pode esperar um ateu depois da sua morte. Independentemente do facto evidente
de o próprio acreditar que, dado o último suspiro, deixa de existir e nada mais
o espera a ele, como pessoa.
A Bíblia não diz nada sobre o destino
dos ateus após a morte, ou, pelo menos, não o diz directamente, o que se
explica por isto: o ateísmo era um fenómeno com que os escritores bíblicos não
se confrontaram. No Antigo Testamento há dois salmos onde soa uma afirmação que
pode vir de um ateu – …Não há Deus!... Salmo 14
e Salmo
53
- mas só é comentada para designar como “néscio” ou tolo o autor de tal frase.
No entanto a lógica de toda a revelação bíblica levaria à conclusão de que os
ateus não poderão vir a contemplar Deus. E não só a lógica da revelação. Um
ateu militante tem tanta dificuldade de conviver com um simples crente, quanto
mais com um mundo onde a santidade de Deus se reflecte na sua plenitude!
É claro que também há vários graus de
ateísmo. Há o ateu que nega a Deus a nível puramente das ideias, mas vive uma
vida exemptar de relação com os outros. Poderia dizer-se de muitos ateus que
“não têm religião mas têm espiritualidade”, aceitando-se a distinção que fez
Jean-Yves Leloup num livro de que é autor com Marie
de Hennezel, A
arte de morrer. Para este autor, “Uma religião representa um esforço
envidado por homens e mulheres para darem sentido ao seu sofrimento, à sua
morte e à sua existência” (54) E espiritualidade é “dar um passo mais além” na
aceitação da minha fadiga, na aceitação dos meus limites, limites da minha
inteligência, da minha incompreensão perante o sofrimento”. (55) Pode
reconhecer-se que há ateus com espiritualidade e certamente religiosos sem ela.
Há também o ateu que combate a ideia de
Deus e adopta o lema que “se há só uma vida, tenho de tirar dela o maior
proveito que puder, doa a quem doer”, Crê ser o ser o humano um simples bicho
da terra, estando todos envolvidos na luta pela sobrevivência e deduz ser
correcto que cada pessoa faça tudo o que puder para vencer sempre, seja de que
maneira for. E há o ateu sem pensamento muito definido, que é influenciado
pelas circunstâncias, por vezes ateu porque vem de uma família ateia e lidou
quase exclusivamente com ateus. Talvez faça algumas patifarias mas, em geral,
busca viver urna vida decente, segundo os padrões circundantes. Um ateu deste
tipo, que vive intensamente uma causa de solidariedade humana, será mesmo ateu
ou está a dar outro nome a Deus?
Há alguns anos, um dos mais destacados portugueses
do nosso tempo recebeu uma delegação de cinco eclesiásticos cristãos não
católicos, entre os quais o autor destas linhas. Fez perguntas sobre as crenças
de cada uma das Igrejas representadas, mostrando alguma ignorância na matéria,
mas com muito respeito pelas ideias expostas, e, por fim, com um sorriso,
disse: “Os senhores talvez saibam que eu não sou crente. Dizem que a fé é uma
graça de Deus... (o sorriso tornou-se um tanto irónico) - mas eu não recebi
essa graça”. Não nos lembramos como a delegação reagiu, se reagiu, ao dito
espirituoso, mas temos pensado nessa frase como um desafio aos cristãos. A
graça de Deus pode chegar aos homens quando Ele quer e da forma que quiser, mas
a Bíblia mostra-nos que em geral ela é veiculada por outros homens e mulheres.
S. Paulo diz que …a fé vem pelo ouvir a Palavra de
Deus. Romanos
10:17 e di-lo no
contexto da necessidade de haver pregadores enviados ao mundo para que os
homens cheguem ao conhecimento de Deus. Se Deus quisesse que as pessoas se
convertessem só pela acção do Espírito, por meio da graça, Jesus não teria
mandado evangelizar. Evangelizar não se faz sem a graça de Deus, mas essa graça
é canalizada através de homens e mulheres que dão testemunho da sua fé. Naquela
tarde, a graça de Deus estava presente diante do político nos dirigentes
cristãos que recebia. Não nos admira que muitos dos nossos contemporâneos, como
outros ateus do passado, neguem a Deus porque, por diversas circunstâncias, não
tem chegado a eles a proclamação fiel e inspirada da Palavra de Deus. As
Igrejas ficaram, aos olhos de muitos, desacreditadas por tomadas de posição
política retrógradas, pelas suas divisões, por comportamentos mesquinhos feitos
em seu nome, pelo obscurantismo que por vezes quiseram passar por “Palavra de
Deus” e, dessa maneira, empurraram muitas almas para o ateísmo, por vezes,
homens e mulheres que eram pessoas de escol nas suas gerações. Pensemos na
tragédia do grande poeta Antero de Quental, a quem Eça de Queirós chamou o
“Santo Antero” pela elevação do seu carácter, pela sua generosidade, pelo amor
pelos desprotegidos, pela vida simples que levou – e pela busca incessante que
fez de Deus. Mas que cooperação humana recebeu ele para poder encontrar o Deus
libertador? A Igreja que Antero conheceu nos anos fundamentais da sua formação,
período da juventude, a Católico-Romana, tinha à sua frente o papa Pio IX, que
ficou famoso pelas suas atitudes de oposição ao progresso e excêntricas. Nos
anos da sua maturidade, o poeta-filósofo esteve ao lado de todos os que lutavam
pelo avanço de Portugal, sendo combatido principalmente pelos ultramontanos
(católicos conservadores), em nome da fé cristã. Por coincidência, nesses
últimos anos da sua vida, que acabou tragicamente em suicídio (1891), começava
a existir o movimento protestante português - mas se ainda hoje ele vive quase
sem contacto com os intelectuais, nesses tempos pioneiros onde iria o poeta
descobrir os modestos pregadores da Reforma?
Antero de Quental, o homem que chegou a
clamar “Na mão de Deus, na sua mão direita / descansa afinal meu coração” dá-se
tragicamente a morte e “a mão direita de Deus”, que é Cristo, terá
experimentado novo Calvário nesse gesto louco.
Quantos dos nossos contemporâneos,
grandes intelectuais ou operários conscientes, governantes e pessoas de
profissões liberais, caminham pelas nossas ruas, cruzam-se connosco e não
encontram o Caminho porque lho não sabemos indicar, ou porque o indicamos sem
clareza, ou porque as nossas vidas obscurecem a mensagem de que somos
portadores. Não são muitos os cristãos que defendem a existência de estudos
teológicos sérios e profundos que possibilitem o diálogo com essas pessoas.
Também, naturalmente, há esperança para
o ateu que se arrepende, nem que seja no último minuto de vida, e se volta para
Deus. Certamente, isso terá acontecido com muitas pessoas ao longo dos séculos.
Já referimos o caso do homem que, nos últimos momentos de vida, teve um lampejo
de sabedoria e clamou para Jesus, aquele que agonizava sem ter cometido pecado
algum:
Senhor, lembra-te de mim
quando entrares no teu Reino! E Jesus disse-lhe:
Em verdade te digo que
estarás comigo, hoje, no Paraíso. Lucas
23:42/43
Agnósticos
A diferença entre o ateísmo e o
agnosticismo é que aquele nega pura e simplesmente a existência de Deus (diz
saber que não há Deus), e o agnosticismo afirma que a nossa consciência nada
pode saber (56) para além dos dados da experiência. O agnóstico não nega nem
afirma a existência de Deus e tem, por isso, uma atitude neutra na questão. Na
linguagem corrente considera-se agnóstica toda a pessoa que não se declara
seguidora de uma religião nem é filiada numa Igreja, mas não nega a existência
de Deus.
O agnóstico sente-se equidistante do
crente e do ateu. Provavelmente, é muitíssimo maior o número de agnósticos do
que o número de ateus. Pessoas que receberam uma formação religiosa na infância
e que, quando chegou a idade da razão, não chegaram a uma clara decisão pela
fé, mas também não encontraram razões para abertamente rejeitarem a formação
recebida, acabaram por ficar nesta área cinzenta, algumas vezes certamente
dolorosa, que é o agnosticismo. Há, sem dúvida, também nesta área, os que
tiveram dentro das Igrejas experiências desagradáveis que os fez tornar
cépticos, mas não o suficiente para abandonarem completamente Deus como uma
hipótese.
Muitos agnósticos participam de serviços
religiosos, para acompanhar a namorada, ou ela, agnóstica, acompanhar o crente;
ali casam, ali baptizam os filhos e ali acabarão por ter funeral religioso,
oficiado por um ministro da Igreja.
Há a tendência de se pensar que o
agnóstico é um passo em frente, positivo, em relação ao ateu. Dir-se-ia que
quem chega a ficar neutro é menos culpado do que aquele que toma uma posição
contra. Um governante ateu que possa impor a sua vontade fará tudo para acabar
com a ideia de Deus, mas um governante agnóstico ficará neutro e não se
envolverá no assunto. Mas estas ilações são de um tipo muito grosseiro e
utilitário que, de novo, fazem pensar em termos de o nosso destino ser qualquer
coisa de parecido com os prémios dados aos meninos que se portam bem e o
castigo aos meninos que se portam mal, quando o que está em jogo é o diálogo
dramático e elevado entre Deus e o homem que Ele criou …pouco
menor que um deus (eloím), e de glória e de honra o coroaste. Salmo
8:5
Quando pensamos no agnosticismo não
podemos deixar de trazer à memória uma palavra grave do livro de Apocalipse. É
uma palavra dirigida “ao anjo da Igreja de Laodiceia”
e diz assim: Eu sei as tuas obras, que nem és frio nem
quente: oxalá foras frio ou quente! Assim, porque és morno e não és frio ou
quente, vomitar-te-ei da minha boca Apocalipse
3:15/16 . Como a palavra “anjo” quer dizer “mensageiro de
Deus” alguns exegetas crêem que a carta se dirige ao pastor/bispo da Igreja,
outros ao ser espiritual que representa a Igreja, mas neste caso interessa mais
sublinhar como desgosta a Deus a situação do que não é nem deixa de ser, do
morno, equidistante entre o sim e o não. A metáfora é dura mas muito expressiva:
“Vomitar-te-ei da minha boca!”
Compreende-se como a neutralidade pode
fechar as portas do Reino. Se Deus é Amor, o Amor Total, não pode contentar-se
senão com o amor. É certamente isso que Boff quer
dizer com esta frase: “Com Deus ninguém convive se não for totalmente de Deus”
(57)
13 – Céu,
Inferno e Purgatório
Céu
Lembramo-nos de ter lido na imprensa, há
alguns anos, que um político norte-americano destacado, cremos que governador
de um Estado Federal, membro empenhado de uma Igreja, confrontando-se com uma
manifestação ecologista, disse qualquer coisa como isto: “A defesa tão
acalorada do ambiente é própria de quem só crê nesta vida e nesta Terra. Nós,
os crentes, esperamos que as nossas almas vão viver eternamente no céu, com
Deus, e por isso não nos agarrarmos às coisas da Terra”.
É impressionante ver que a velha
acusação feita por muitos de que o Cristianismo cultiva o desprezo pela vida
terrena encontra apoio em muitos cristãos. Mas nenhum cristão bom conhecedor da
Bíblia apoiaria a atitude desse político. Em políticos e outras pessoas que,
egoístas, só estão interessadas nas suas carreiras e nas suas carteiras e no
aumento das suas contas bancárias, compreende-se o uso desse argumento
falsamente espiritualista. Provavelmente, riem-se interiormente da crença num
céu e numa vida para além da morte, mas argumentam assim para justificarem as
suas posições anti-ecológicas que concorrem para a
ruína do nosso mundo. O seu alvo, ao falarem tão piedosamente, é receber votos
dos cristãos ingénuos. Podem, tais políticos, ser pais ou avós e nesse caso
estão também a atentar contra a saúde e mesmo a sobrevivência dos seus
descendentes, mas o provérbio de muitos deles deve ser este: “Vale mais um
pássaro na mão do que dois ou três a voar”. Dar cabo da Floresta Amazónica é um
crime e terá consequências funestas dentro de anos, mas eles já cá não estarão
para sofrer as consequências. Ou vivem longe da floresta (Ou, quem sabe?),
entretanto a ciência possa resolver o problema…
Verdade, verdade, é que o argumento
falsamente “espiritualista” que leva a desprezar “este lado de cá” da vida em
benefício do “lado de lá” é um argumento que não se harmoniza com o facto de
Deus nos ter chamado a uma vida de responsabilidade total pela Sua Criação. Uma
das imagens que a Bíblia dá do homem no contexto da Criação é a de mordomo de
Deus. Ora o mordomo tem como dever cuidar, vigiar, zelar pela propriedade
daquele a quem serve. Se o dono da propriedade for magnânimo, generoso e justo,
permitirá que o seu mordomo goze também dos bens dela. Quererá Deus menos do
homem que criou?
O cristão deve amar a Terra e tudo o que
de bom nela existe, porque a Terra pertence a Deus Salmo
24:1,
e porque o próprio Deus a ama também. Infelizmente, até nos nossos hinários há,
expressões vindas do maniqueísmo que apontam o mal nas coisas “materiais” e o
bem nas coisas “espirituais”, celestes. Mas já vimos que esta visão do mundo é
estranha à revelação bíblica. Chamar “materialistas” às pessoas que amam a vida
terrena é prova de uma leitura irreflectida da Bíblia. A este propósito um
autor de língua inglesa escreve: “O “materialismo” contemporâneo (se esta é a
palavra correcta neste caso) está muito mais de acordo com a apresentação
bíblica, na qual Deus não nega ou renega a Criação, mas afirma-a, identifica-se
a si próprio com ela, e actua dentro dela. Tanto quanto diz respeito
especialmente à Fé Cristã, a tradicional doutrina da “encarnação de Deus” neste
mundo devia ser uma razão mais e decisiva para a declaração da bondade
essencial da Criação material, incluindo o corpo humano, feito do tecido do
mundo material”. (58)
Quando a Bíblia diz que somos estrangeiros e peregrinos 1ª Pedro 2:11
na terra, é desta velha terra que fala, mas esta terra não está destinada a ser
destruída mas a ser uma “nova terra”. Haverá um novo céu e uma nova terra, Apocalipse 21:1
mas novo aqui não quer dizer que o velho é destruído ou abandonado, e sim que é
colocado num novo começo. Assim como o homem velho não tem de ser destruído,
mas torna-se novo tomando uma nova direcção; e assim como a Velha Aliança com
Abraão não é destruída nem abandonada mas em Jesus Cristo toma nova orientação,
numa linha totalmente nova e por isso se chama Nova Aliança (ou Novo
Testamento). Na velha Terra, em que caminhamos, das injustiças e da divisão, os
cristãos são estrangeiros e peregrinos, mas que trabalham para a chegada de
Jesus Cristo, aquele que diz: Eis que faço novas todas
as coisas Apocalipse 21:5
Essa espera não é passiva, de braços cruzados (ou simplesmente de mãos postas),
mas tem de ser servindo os homens, testemunhando da esperança, lutando pela
preservação das “penúltimas coisas” (59) enquanto não chegam as últimas. Uma
comparação que se pode fazer é lembrar que em Timor-Leste há hoje portugueses a
trabalhar (militares, professores, médicos, enfermeiros, etc).
Eles são estrangeiros lá, e essa condição dá-lhes a possibilidade de verem os
problemas talvez mais friamente do que os timorenses, mas não os exclui do
dever, que atiás aceitaram voluntariamente, de ajudar Timor-Leste a ser um país.
Esperar a Pátria celestial não pode impedir os cristãos de viverem solidários
com a pátria terrestre. De lutarem pela existência de um mundo mais justo e de
defender a integridade da Criação. A ecologia é também um dever dos cristãos.
É importante pensarmos que as obras boas
que os homens criaram não estão destinadas à destruição. As grandes obras de
arte, nascidas da inspiração do Espírito de Deus, mesmo quando os seus autores
não o percebiam, serão eternas, não apenas no sentido de ficarem na memória dos
homens, mas também porque estarão na vida vindoura. Os Lusíadas, a Nova Sinfonia
e a Paixão Segundo São Mateus, como
muitas outras obras-primas, não serão destruídas.
Uma concepção da vida demasiado dualista
(terra-céu e corpo-alma) pode levar ao desprezo pela vida terrena como o mostra
não tanto, talvez, o exemplo acima referido do político americano, que pode ser
hipócrita, mas o comportamento de muitos cristãos sinceros, incluindo grandes
místicos. Mas a Terra e o Céu estão destinados a estar unidos, caindo todas as
barreiras que os separavam. O céu não será mais “lá em cima”, mas descerá sobre
a Terra Apocalipse
21:2
É nesse sentido que é correcto recusar falar em “lugar” quando se fala do céu e
falar antes de uma “realidade transterrestre que
constitui a atmosfera de Deus, infinita, plena e sumamente realizadora de tudo
o que o homem pode sonhar e aspirar de grande, de belo, de reconciliador e de
purificador”, como escreve Boff. (60) Quando o
cristão se pergunta: “Como será o lugar para onde vão aqueles que, pela fé,
foram salvos?”, não precisa de ter uma resposta descritiva de um lugar, mas
experimentará júbilo se a resposta que chegar ao seu espírito for semelhante à
que viemos de enunciar, que não é, claro, uma resposta saída literalmente “da
boca de Deus”, mas saída da reflexão de um irmão, uma reflexão que é uma
tentativa de satisfazer a nossa humana curiosidade, porque, no fundo é disso
que se trata.
A Bíblia, no livro de Apocalipse,
descreve o céu como a Nova Jerusalém, que desce sobre a Terra. E toda a
descrição que dela faz serve para nos assegurar que a vida vindoura terá uma
beleza e um esplendor que ultrapassam tudo o que alguma vez já vimos e vivemos.
Usa também imagens como o banquete, jardim, lugar de delícias. Assim, tudo o
que o cristão pode afirmar é que sim, há vida feliz depois da morte, mas não há
revelação em pormenor de como essa vida será. Quaisquer tentativas para
descrever “como é o céu” seriam perigosas e certamente cairiam sob a condenação
do mandamento que proíbe fazer imagens do que há em
cima nos céus Êxodo 20:4
Condenação pelo menos por causa do ridículo que tais tentativas causam.
Lembramo-nos do riso provocado por cenas “passadas no além” de uma telenovela
brasileira que há anos foi emitida numa das nossas estações de televisão. Com
cenas desse tipo, qualquer pessoa inteligente repudia a crença na vida depois
da morte. Quando a, ficção literária, teatral, cinematográfica quiser falar
sobre o céu, faça como Jesus fez ao contar a parábola do rico e de Lázaro, que
se limitou a falar do Céu como “o seio de Abraão”, onde Lazaro é “consolado”, e
do Inferno ou Hades, onde o ex-rico está em
tormentos. Lucas
16:19/31 No teatro, no cinema, na televisão, tudo isto, se
se quiser descrever, pressupõe imagens muito concretas - e pôr-se-ão os que
estão no céu com roupas ou nuas?, pessoas novas ou velhas?, e com óculos e
calvos? Estas questões levam-nos a tirar duas conclusões: a primeira é que elas
explicam por que Deus não nos revela pormenores do que se passará então. Não há
termos da nossa experiência que nos ajudem a compreender essa realidade por
força totalmente diferente da nossa. A segunda lição é que os filmes que
pretendem ilustrar histórias da Bíblia, de uma maneira geral, adulteram a
mensagem bíblica, porque transformam em assunto para os olhos o que estava
destinado ao ouvido.
Inferno
Fala-se, pois, na Bíblia também de um
Inferno. Hades significa “O lugar sem visão” e é traduzido por “Inferno” em Mateus 11:23
Tu, cidade de cafarnaum, que te ergues até ao céu,
serás abatida até ao inferno e
Mateus
16:18 ….as portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja,
assim como em Lucas
16:23 E no Hades o rico ergueu os olhos… em Apocalipse 20:14
A Morte e o Hades, foram então lançados no lago de
fogo… e outros poucos lugares
do Novo Testamento. Em Mateus 16:18, Lucas 16:23 e em Apocalipse 20:14 é de um
lugar de tormentos que se fala.
É perfeitamente coerente com a ideia que
a Bíblia revela de Deus e do homem que nela também se fale da existência de “um
lugar de tormentos”. No nosso tempo a tendência é a de recusar a ideia de um
Diabo e de um Inferno onde os condenados sofrem. Parece que tal ideia é
totalmente oposta à ideia revelada por Jesus Cristo disto de um Deus que é Pai
e é Amor. Mas recusar a ideia do Diabo e do Inferno com tal argumento é
manifestar uma reflexão simplista e mesmo frívola, que só se justifica como
reacção ao modo intimidante como uma certa pregação e catequese tem falado
dessas realidades. A própria arte ocupou-se desse tema assustador e todos nós
conhecemos os espantosos quadros de Hieronimos Bosch, que podemos admirar no Museu de Arte antiga, em
Lisboa. Na literatura são imensos os trabalhos que abordam o mesmo assunto, com
destaque para a Divina Comédia, de Dante, onde o poeta descreve uma viagem aos
infernos.
Justifica-se a rejeição, não da
existência do Inferno mas do modo como ele tem sido apresentado e do modo
abusivo como se tem falado dele. Na verdade, se nos ativermos à Bíblia, veremos
que dele se pode dizer o mesmo que já dissemos em relação ao Céu: a Bíblia é
muito lacónica sobre esse assunto. Mas não deixa de o referir, como, aliás,
seria de esperar, pois, existindo, é indispensável que o homem seja alertado
para não cair nesse abismo.
Como também já o dissemos antes, na
Bíblia o ser humano é revelado como detentor de uma enorme dignidade. Pouco menor o fizeste do que um deus, diz o Salmo
8:5
Não se pode pensar dele como um “pobre diabo” que anda para aqui empurrado de
um lado para o outro, à mercê do destino, dos horóscopos, de forças cegas. Não
é uma criança crescida e irresponsável. Se a Bíblia diz que o ser humano foi
criado à imagem de Deus, o fundamental dessa imagem é a liberdade que lhe é
inerente, e que lhe permite dizer “sim” ou “não” a Deus. Mas como poderia dizer
“não”, se Deus, ao fim e ao cabo, o obrigasse a um único destino, a vida plena
com Ele? Seria como se um pai humano perguntasse a um filho: “Queres ir comigo
passear ou preferes ficar a jogar no computador?”, e quando o filho respondesse
preferindo ficar a jogar, o pai o obrigasse a acompanhá-lo! Seria ridículo
ainda que o pai propusesse essa escolha e em casa não houvesse sequer um
computador... A comparação é singela, mas esperamos que dê para perceber quo se
Deus quer respeitar a liberdade que deu ao homem tem de lhe dar alternativa.
Classificámos como singelo e frívolo o
argumento de que a existência de um inferno é incompatível com a ideia de um
Deus de amor, porque esse raciocínio não leva o homem a sério. Um autor escreve
a este propósito: “Se as opções do homem não têm consequências eternas, não têm
finalmente nenhuma importância, visto que tudo se arranjará e retomará o seu
curso anterior. Se a existência de uma pessoa não deve deixar traços
permanentes, nada do que ela cumpriu agora tem sentido e grandeza. Uma
liberdade que não se reflecte no eterno é apenas um epifenómeno, isto é, uma
ilusão; é por isso que recusar o ensino sobre o Inferno é recusar o valor da
pessoa humana”. (61)
Para que o Universo seja perfeito é
preciso que a ideia de Deus tenha como contraposição a ideia do anti-Deus (o Diabo); o Bem tenha como contraposição o Mal,
o Céu tenha como contraposição o Inferno. Como singela ilustração podemos dizer
que uma folha de papel, para ter face tem também de ter verso.
Tem havido exageros quando se fala do
Diabo em termos mitológicos, imaginando-o uma figura de chifres e de pés de
cabra, aparentemente com quase tantos poderes como Deus; e descrevendo o
Inferno igualmente em termos tão concretos como se alguém de lá, já cá tivesse
vindo para descrever os pormenores. O dualismo é condenável, mas o dualismo é
falar do Diabo como o deus do mal, e não como um servo do mal, como o apresenta
a Bíblia.
Há um Inferno: devemos saber que existe
e aguarda os que recusam o amor de Deus, mas nada mais sabemos sobre ele, senão
que é um lugar de tormentos. Não é Deus quem nos envia para o Inferno: Ele
apenas respeita a escolha que fizermos. Mas antes de chegar a essa
situação-limite, Deus, incansavelmente, de muitas maneiras, tenta
conquistar-nos, para nos evitar tal destino.
Purgatório
E
Purgatório? Haverá um Purgatório? A Reforma protestante do século XVI e
seus continuadores rejeitam o ensino católico-romano da existência de um lugar
ou estado de tormento após a morte para expiação dos pecados de pessoas boas
que não se purificaram convenientemente aqui, sendo essas almas ajudadas pelas
missas, orações, esmolas e outras boas obras feitas em seu favor pelos vivos.
Era esse o ensino do Cardeal Belarmino, tido como voz inspirada, e é ensino
oficial da Igreja de Roma pelo Concílio de Trento, que declara anátema contra
quem disser o contrário.
A ideia de um Purgatório, em si parece simpática,
se tivermos em vista o que acabámos de dizer acima sobre o Céu e o Inferno. É
simpático conceber que Deus dá uma segunda oportunidade ao homem. Mas um ensino
para merecer ser reconhecido como cristão tem de ter fundamento bíblico, que é
outra maneira de dizer tem de ter a ratificação apostólica. Se referimos entre
as marcas da Igreja a sua apostolicidade temos
de manter como princípio fundamental que o ensino a confessar tenha a
confirmação dos apóstolos, os quais o receberam, por sua vez, do Autor e
Consumador da, nossa fé, Jesus Cristo. Ora, o que é desde logo evidente é que
não há nenhum texto bíblico canónico que apoie tal doutrina. Exegetas
católico-romanos têm apresentado 1ª
Coríntios 3:15, mas a simples leitura, do texto e seu
contexto mostra o infundado do argumento. Fala realmente de um fogo no Dia do
Juízo, mas não de um fogo purificador. Será um fogo destruidor que porá à
mostra o carácter falso das obras apresentadas. Também se tem apontado Mateus 12:32
como fundamento para a crença no Purgatório. O texto diz que os pecados feitos
contra o Espírito Santo não serão perdoados nem neste
tempo, nem no futuro. Poderia subentender-se que há pecados que poderão
ser perdoados no tempo vindouro, após a morte? Calvino e todo o Protestantismo
rejeita essa interpretação e vê aí um sério alerta a que os homens não sejam
rebeldes contra Deus com uma malícia deliberada.
Um texto que também é usado para
justificar a ideia do Purgatório é 2ª
Macabeus 12:42/45 , mas este texto não foi reconhecido
pela Igreja primitiva como texto canónico, sendo por isso designado como
“deuterocanónico” e apócrifo. Seria muito estranho que para uma doutrina de
tantas implicações houvesse apenas um texto e este sem firme canonicidade.
Pelo contrário, é possível apontar
textos bíblicos que não dão nenhuma possibilidade a tal crença. Ocupar-nos-ia
muito espaço a transcrição de vários textos bíblicos que não se harmonizam com
essa doutrina, pelo que nos limitaremos a chamar a atenção para um texto muito
esclarecedor: Disse Jesus. Em verdade, em verdade vos
digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem avida
eterna e não incorre em condenação, mas passou da morte para a vida João 5:24.
Outros textos são: Romanos 8:1,
Romanos
8:33/34, 2ª
Coríntios 5:8, 1ª João 1:7.
Na parábola do rico e de Lázaro, que já citámos a outro propósito, Jesus
ilustra a vida depois da morte com apenas dois lugares - o “seio de Abraão”,
que é o lugar onde Lázaro se encontra feliz, e o Hades ou Inferno, onde está o
rico em tormento. É verdade que uma parábola não serve de fundamento para fazer
doutrina, e pode admitir-se que para os propósitos desta parábola as duas
ideias antitéticas, Céu e Inferno, eram suficientes, mas não deixa de ser
estranho que Jesus nem aqui nem em nenhuma outra parte do seu ensino tenha
referido esse lugar de uma “segunda oportunidade”, se ela existisse.
Na verdade, o ensino sobre o Purgatório
é contraditório em relação ao conjunto do ensino cristão. A Boa Nova fica
ensombrada se se introduz a ideia de um tempo ou lugar de expiação de pecados
por tempo indeterminado. Como se pode dizer que os cristãos são chamados à
liberdade se sobre eles se mantiver esta espada da dúvida sobre o que os
espera? Parecendo ser uma oportunidade que Deus estaria a oferecer ao homem,
seria, na verdade, um fardo pesado que lhe colocaria sobre os ombros. Pensamos
que esta doutrina é o resultado de um esforço consciente ou inconsciente que
surgiu na Igreja para manter os cristãos num estado de dúvida quanto ao seu
destino e, desse modo, mais dependentes do clero. Quem é que pode, acreditando
num Purgatório, voltar a dizer como-Paulo: De ambos os
lados estou em aperto, tendo desejo de partir e estar com Cristo, porque isto é
ainda melhor? Filipenses 1:23
Os condenados no Purgatório, segundo
essa doutrina, beneficiam das missas aqui celebradas em sua intenção, das
orações, das boas obras. Mas quando estarão “pagos” os pecados dos que partiram?
Esta ideia do Purgatório ilustra bem uma concepção mercantilista de Deus: desde
que alguém pague, haverá perdão. Sabemos que a explicação não é “desde que
alguém pague”, mas desde que alguém mostre o seu empenho fazendo a sua oferta,
fazendo um sacrifício, mas na prática o crente só pensa no pagamento. A questão
das indulgências tem de ver com esta doutrina, como se sabe. A doutrina do
Purgatório foi desconhecida da Igreja nos primeiros seis séculos e nunca foi
reconhecida pela Igreja Grega, tendo-se tornado artigo de fé apenas no século
décimo, quando muitas superstições já tinham invadido a Igreja.
Leonardo Boff,
quando ainda recebia o apoio da sua Igreja Católico-Romana, tentou conciliar a
ideia do Purgatório com uma visão lúcida da Fé Cristã e fê-lo pela assunção de
que na nossa morte acontece ao mesmo tempo a nossa ressurreição e o Juízo
Final. “O Purgatório significa a graciosa possibilidade que Deus concede ao
homem de poder e dever na morte madurar radicalmente. O Purgatório é esse
processo doloroso, como todos os processos de ascensão e educação, no qual o
homem, na morte, actualiza todas as suas possibilidades, se purifica de todas
pregas que a alienação pecaminosa foi estigmatizando à vida, pela história do
pecado e suas consequências (mesmo após o seu perdão) e pelos mecanismos dos
maus hábitos adquiridos ao longo da vida”. (62) Esta concepção de Purgatório,
porém, pouco tem de ver com o que oficialmente se ensina no Catolicismo. E na
verdade o que Boff diz pode até dispensar a palavra e
o conceito Purgatório, como faz a Bíblia. Basta falar da morte como a grande
oportunidade dada ao homem para madurar radicalmente.
Há uma questão ligada à doutrina do
Purgatório que devemos também abordar: Trata-se de saber o que podemos fazer
pelos que morreram. As missas pelas almas, que a doutrina do Purgatório
justifica, dão aos familiares e aos amigos o sentimento confortante de que de
alguma maneira estão a cooperar para o bem-estar eterno desses queridos que a
morte levou. Se pudermos dedicar os nossos pequenos ou grandes sacrifícios a um
querido falecido a vida terá mais sentido, os nossos queridos parece ficarem
mais perto de nós. Se nos dizem: “Não há nada a fazer por quem morreu”, é como
se abandonássemos os nossos queridos, como se os desprezássemos.
Sim, é preciso dizê-lo mas com alegria:
os nossos mortos já não precisam de nós. Entregues ao amor de Deus, sabemos que
não poderiam estar em melhores mãos e descansamos. Temos a tendência de querer
fazer coisas e gostaríamos até que fosse possível talvez verter um pouco de
sangue por cada um dos nossos queridos que parte. Mas o homem de fé deve
simplesmente descansar em Deus. O Senhor o deu, o
Senhor o levou. Bendito seja o nome do Senhor. Job 1:21
Muitas vezes queremos fazer coisas em
favor de alguém porque não sabemos amar. Damos muitas prendas e julgamos que
estamos a amar, mas a melhor prenda é mesmo o amor, que é atenção, que é
paciência, que é partilha da vida, que é solidariedade nos bons e nos maus
dias. Quando estamos desejosos de fazer grandes sacrifícios em intenção de quem
morreu (um funeral mais caro do que as nossas posses o justificam, uma
cerimónia pomposa etc.), não será porque temos consciência de que não amámos
verdadeiramente essa pessoa?
Não precisamos de fazer nada em favor de
quem morreu, mas precisamos de não os esquecer. É correcto cultivar a memória
dos que amámos e já partiram desta vida. Seja o ente amado sepultado ou
incinerado o que dele restar deve ser venerado, a memória dos seus bons actos,
da sua amizade, do que ele ou ela pôde ser na vida. As Igrejas protestantes,
que não fazem orações pelos mortos, celebram, no entanto, “Cultos em memória”,
geralmente só em atenção a grandes personagens falecidas, por razões práticas,
pois seria complicado fazer um culto em memória de cada crente comum que morre.
A escolha de um dia no ano para um culto em memória de todos os crentes de uma
comunidade falecidos nesse ano é uma possibilidade que aliás já existe no
chamado Dia de Todos-os-santos. “Santos” nesta
expressão são os Cristãos chamados para Deus. O objectivo do culto em memória
de um cristão não é interceder por ele (“pela sua alma”); mas dar graças a Deus
por essa vida, lembrar o que essa pessoa significou, manter viva a memória da
sua passagem por este mundo. Numa capela ortodoxa portuguesa vimos um dia numa
mesinha à entrada cartões que um diácono nos mostrou. Eram cartões que
pertenciam aos vários crentes daquela comunidade. Cada um escrevia de um lado
do cartão os nomes das pessoas vivas do seu agregado familiar, que na concepção
daquela Igreja portuguesa faziam parte da comunidade, e na página da esquerda
nomes dos familiares que tinham morrido nos anos recentes. Segundo nos disse o
diácono, aqueles cartões eram levados todos os Domingos solenemente ao altar
para, deste modo, expressarem a ideia de que a comunidade tinha presente a
memória dos seus queridos falecidos.
O que não é desejável é que se esqueçam
os mortos e se abandonem os seus restos mortais. É a civilização do desencanto
e do vazio espiritual que assim faz. Esta civilização que tem medo da morte
porque se recusa a crer que a morte já foi vencida por Jesus Cristo.
14 – Tempo de preparação
Um homem de uns quarenta anos, partidário
da ideia, de que nos devemos esforçar por encarar tudo com humor (embora, tanto
quanto parecia, confundisse humor com brejeirice), falando-se um dia na sua
presença de um programa de estudos bíblicos para um grupo de idosos, troçou:
“Com um tal grupo só há uma coisa a fazer: prepará-los para morrer!”
Estava, porém enganado. Se as pessoas
chegam ao que chamam a Terceira Idade sem estar ainda “preparadas para morrer”
dificilmente aceitarão começar essa preparação. Dizemos “dificilmente”, pois
sabemos que não é totalmente impossível, mas a tendência do ser humano é que,
na velhice, se consolide a orientação que veio de muito antes. O jovem frívolo
que não quis ou não foi ajudado a encarar a vida com seriedade, nem passou por
uma crise na idade madura que o mudasse, tem muitas hipóteses de chegar a velho
sem sabedoria, medroso, simplório.
Na verdade a preparação para a morte é,
no fundo, preparação para a vida, porque é também preparação para todas as
crises da vida e preparação para saber viver a sua velhice. Deve começar o mais
cedo possível, mas não é inútil que o idoso atente também para essa preparação,
para a qual apontamos algumas pistas, que são conclusões lógicas da reflexão
que fizemos nos capítulos precedentes.
Não
fuja da realidade
Se a morte faz parte, como é evidente,
da realidade da nossa vida é da maior conveniência enfrentar essa realidade.
Não procuremos pretextos para evitar participar de funerais de familiares,
amigos e conhecidos, porque o pretexto aparentemente mais razoável pode ser
apenas uma expressão de fuga. Seria caso de alarme alguém gostar de ir a um
funeral, pois poderia ser manifestação de sadismo ou masoquismo. Um funeral é
uma cerimónia que sempre causará dor espiritual e nem que seja apenas por
solidariedade humana nunca pode dar prazer a uma pessoa normal. Mas o facto de
provocar dor não é motivo para evitar estar presente. Tome bem consciência
deste acontecimento, porque é uma forma de “olhar a morte nos olhos”, e não se
intimidar com ela. Se a experiência lhe causar perturbação excessiva, consulte
um especialista que o ajude a enfrentar os problemas (psiquiatra, psicólogo,
conselheiro cristão). Não evite conversas nem leituras que abordem o tema da
morte, desde que não caiam no excesso mórbido.
A Bíblia é o livro que fala da vida e
fala da morte. A sua leitura feita com regularidade, como estudo e como
devoção, ajuda a adquirir uma visão tranquila da existência e a aumentar o
sentido da sua dimensão espiritual.
Abandone
a idolatria
Dito assim, parece que estamos a aconselhar
a deixar de ajoelhar e orar diante de imagens religiosas. É verdade que a
Bíblia condena isso num dos Dez Mandamentos, justamente por causa do conceito
referido num capítulo deste livro segundo o qual Deus é o IAWHEH, Aquele que existe por si
mesmo e não é visível. Mas neste momento do que estamos a falar é de uma
idolatria mais subtil. Trata-se do modo idolátrico como tantas vezes amamos
certas pessoas - a mulher, o filho, o pai, a mãe, um irmão. Pode chamar-se
idolatria um tal tipo de amor sempre que esse amor se tornar obsessivo, a ponto
de ser a referência determinante da nossa vida. O ser amado torna-se assim
aquilo que Tillich chamou o “Ultimate concern”
(Aquilo que nos preocupa em última análise), ou seja, o ser amado toma o lugar
de Deus. Pode acontecer que o próprio “eu” seja o objecto da adoração, o “ultimate concern” de uma vida.
Num caso ou outro, essa vida fica sem transcendência. E a morte, encarada como
extinção, um horror insuportável. Abandonar a idolatria ou o amor idolátrico é
difícil numa cultura em que se vê esse amor como uma virtude, e onde se supõe
que abandoná-lo é substituí-lo pela indiferença, senão mesmo pela inimizade.
Mas numa perspectiva cristã só há uma substituição possível, que é amar com
amor-serviço. A palavra grega que no Novo Testamento em português é traduzida
por amor (e anteriormente era traduzida por caridade) é agape, que tem sempre conotações
com “servir, ajudar, promover, libertar”. É nesse sentido que Jesus apresenta o
seu Mandamento: Um novo mandamento vos dou: que vos
ameis uns aos outros. Como eu vos amei a vós, que também vós vos ameis uns aos
outros. João
13:34 Este amor deve estar presente sempre no
relacionamento entre as pessoas, e é ele apenas que há-de assinalar o novo
mundo que Cristo anuncia. É um amor em que aquele que ama não espera
retribuição, não requer nada, pois o verdadeiro amor não procura a sua
felicidade mas a do outro. Como eu vos amei,
disse Jesus. O seu amor manifestou-se na obra da salvação, na sua entrega, na
sua morte na cruz. É com este amor que não apenas aquele que ama é livre, como
deixa livre o ser amado. Jean-Yves Leloup, co-autor
com Marie de Hennezel de um livro sobre este tema da
morte, questionado sobre as palavras que poderão ajudar a amar sem ter medo de
perder, responde assim: “Uma das palavras, ou falas, consiste precisamente em
poder dizer ao outro (que vai morrer): “Vai... vai ao encontro de ti mesmo”. É
o que diz Abraão Génesis 12:1
Aprender a amar é aprender a perder...” (63) É aprender a estar pronto para dar
mão do ser que se ama. Kahlil Gibran, o grande poeta
místico, escreveu sobre os filhos: “Os vossos filhos não são vossos filhos (...)
Vós sois o arco do qual os vossos filhos, como flechas, são lançados”. (64)
Tudo o que amamos, amemos com esta sábia visão de que não nos pertence.
Passaram por nós para seguirem a sua própria trajectória. A nossa felicidade
consiste em sermos cooperadores de Deus na realização de outras vidas.
Aprenda
a perder
Jesus disse: Quem
quiser ganhar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de
mim, a salvará. Lucas 9:24
Receamos a morte porque ela nos parece derrota. Vivemos tão centrados em nós
próprios que vemos com horror um acontecimento, a morte, que ameaça
aniquilar-nos. Aniquilar o nosso “eu” que queremos sempre vitorioso.
A imagem singela entre gente piedosa é a
de um trono existente “no nosso coração”, no qual o nosso “eu” se senta
petulante para daí dar ordens. Defendemo-nos bravamente de tudo e todos que nos
queiram tirar esse lugar. A conversão consiste em retirarmo-nos do trono e
entregá-lo a Cristo. Isso também se chama “morrer para o pecado”, porque a
essência do pecado é, precisamente, o homem viver fechado sobre si (incurvatus in se), como disse Lutero. Morrer,
perder a vida, por amor de Cristo, é abandonar o seu egocentrismo e viver agora
em Cristocentrismo, junto dos irmãos e irmãs que
formam o Corpo de Cristo, a Igreja. Alguns dizem: “aceito Cristo, mas não
nenhuma das Igrejas”. São, dizem, “cristãos sem denominação”. Seria uma forma
estranha de seguir Cristo, ele que aceitou ser baptizado por João Baptista, juntando-se
aos pecadores, não pode ter como discípulos quem se recuse a juntar-se a uma
Igreja por a achar insuficientemente boa para merecer a sua companhia.
Viver “em Cristo” implica viver em
comunidade. O espírito comunitário é indispensável na preparação para a vida e
para a morte. Já dissemos antes que a morte assusta mais aqueles que não
viveram autenticamente - e não há vida autêntica onde a existência não é
partilhada com os outros. Partilhar a vida com os outros começa por ser estar
com os outros, ouvir as suas razões, os seus sonhos, as suas decepções. É
partilhar do nosso tempo, da nossa solidariedade, do nosso esforço, da nossa
esperança, e claro, dos nossos bens materiais, quando for necessário. É dar a
cooperação possível e empenhada na construção de um mundo mais fraterno, mais
justo, mais verdadeiro.
Acorde
a criança que há em si
O pensador português Agostinho da Silva,
professor universitário e autor de muitas obras, nos últimos anos da sua vida
encantou o País com entrevistas que a Televisão emitiu durante algum tempo. Em
várias delas fez uma exortação muito própria de quem, como ele, era leitor
apaixonado dos Evangelhos. A exortação que o pensador fazia aos seus
telespetadores era esta: “Acordem a criança que está dentro de vocês”.
Agostinho da Silva tinha autoridade para
fazer tal exortação. O seu sorriso quase infantil, apesar dos oitenta e alguns
anos que então tinha, mostrava que ele próprio convivia continuamente com o
menino que fora. Curiosidade, interesse vivo por tudo o que o rodeava,
simplicidade, boa-vontade para com todos, pareciam ser características
evidentes nesse homem notável, e são sem dúvidas características das crianças.
Pelo menos das crianças que os adultos não estragaram com violências verbais ou
físicas, com más influências, com falta ou excesso de carinhos.
Jesus disse que das crianças é o Reino
dos Céus e, por isso, acordar a criança que há em nós é prepararmo-nos para
começar a viver já hoje a vida a que a morte não pode pôr fim. A dificuldade
parece ser como acordar a criança! Os Evangelhos não ensinam. O facto de não
ensinarem, se calhar, é porque não e preciso ensinar, é porque nós o saberemos
espontaneamente. Há uma pista interessante: se Jesus disse …se vos não fizerdes como uma criança… Mateus 18:3
é porque afinal, ao contrário do que podíamos pensar, a criança não
desapareceu, não está extinta em nós. Por isso Agostinho dizia: “Acordem-na”. A
criança que fomos está lá, ainda que adormecida. Acordar a criança é dar a
prioridade no nosso viver ao que é característico da criança e que devia
permanecer em nós até ao fim, mas que fica escondido por causa do medo que o
adulto tem de ser posto a ridículo, de ser humilhado, de ficar a perder. Uma
criança fala com simplicidade dos seus medos, das suas aspirações, dos seus
fracassos. Aceita as suas limitações, sem medo de ser fraca. E não tem receio
nenhum de fazer perguntas quando não sabe. É interessante notar que os fariseus
do Evangelho não fazem perguntas para se informar, mas para apanharem Cristo em
armadilha. Também se nota isso em muitos sectários religiosos ou políticos dos
nossos dias. Nunca fazem perguntas para aprender, como as crianças, mas para
tentar esmagar o outro com a sua sabedoria.
Outra das características das crianças
normais é a confiança que põem nas outras pessoas. Sem terem em conta a
apresentação dessas pessoas, a cor da sua pele, o país a que pertencem. À
partida, enquanto, pelo menos, quem com a criança convive não mostrar falsidade,
a criança aceita todos.
Dir-nos-ão: “Sim, mas a criança não tem
experiência, e em princípio não é exposta aos perigos de lidar com velhacos
como nós, adultos, temos de lidar no dia a dia, nos empregos, na política, até
nas igrejas. Se não nos protegermos com um alerta constante, seremos
cilindrados - e mesmo assim, muitas vezes o somos”. No entanto, não se pode
esconder que a criação de um clima de sistemática desconfiança envenena a vida,
impossibilita-nos de partilhar a nossa vida com os outros, e infelicita-nos.
Jesus disse aos seus discípulos ao enviá-los ao mundo: Eis
que vos envio como ovelhas ao meio de lobos. Portanto, sede prudentes como
serpentes e símplices como as pombas. Mateus 10:16
Jesus não seria, partidário de um optimismo antropológico do tipo “não há
pessoas más” (e nesse aspecto não concordaria com Agostinho da Silva, que no
livro “Educação de Portugal” manifesta apoio à ideia da bondade natural do
homem, embora diga também: “Nenhum adulto foi bom em tempo algum, com excepção
dos santos”). Jesus disse: ...Ninguém é bom senão Deus.
Lucas
18:19, mas ensinou a não pagar mal com mal e, portanto, a
encarar os outros não como inimigos a abater mas como o próximo a quem se deve
amar. Amar não o esqueçamos, quer dizer servir, ajudar, promover. E não quer
dizer “fechar os olhos”, fingir que tudo é bom. Aliás, o próprio perdão não é
um encolher de ombros diante da patifaria. Isso não ajudaria o patife. É
preciso interpelar o prevaricador ajudá-lo a compreender a dimensão do mal que
cometer, ajudá-lo a corrigir-se.
Neste item queremos ainda salientar uma
característica da criança desejável no adulto. É o à-vontade com que ela fala
da morte. Beatriz, uma menina de seis anos, perdeu recentemente a avó paterna.
Falando com o avô materno disse, sorrindo com tranquilidade: “O próximo a
morrer vais ser tu; depois é a avó (materna), depois é o avô V. (paterno),
depois é o papá, depois é a mamã e por fim sou eu”. O avô estremeceu ante as
últimas referências, e achou desnecessário rejeitar a ordem cronológica usada
pela pequenita, mas o dito serve para ilustrar como uma criança que recebe uma
educação em que a morte não é tabu pode aceitar com serenidade este
acontecimento na família.
Conte
com a morte
A morte não acontece só aos outros.
Inclua-a como um acontecimento seguro a ter lugar também na sua vida. Porque há-de
alguém pensar no curso que vai fazer, na profissão que seguirá, na casa que
habitará, no cônjuge que terá, no seguro de vida, na aposentação, e não há-de
planear nada em relação a esse acontecimento, que não é o último mas o
acontecimento inevitável para passar à plenitude da vida?
Mesmo que lhe pareça muito cedo, por se
sentir novo e saudável, vá tomando as disposições que ajudarão os seus
familiares na hora da sua partida. Conhecemos famílias que tiveram graves
desentendimentos depois da morte de um pai ou mãe que não estabeleceu o modo de
distribuir os bens deixados. Podemos achar escandaloso que tais casos
aconteçam, mas são factos contra os quais não há argumentos, Por mais modesto
que seja o espólio, deixe indicações precisas e justas que facilitem a situação
dos que ficarem. Nem hesite em falar ou escrever sobre o modo como quer o seu
funeral. Não é mórbido tratar desse assunto, se ele for importante para si.
Faça saber quais são as suas preferências relativamente à cerimónia. Uma
senhora de fé evangélica, com uns setenta anos, em Lisboa, foi um dia com seu
marido a casa de um pastor seu conhecido e disse-lhe com tranquilidade:
“Pastor, vou ser operada na próxima semana. O problema que me leva a esta
operação é grave e posso morrer durante ela. Vinha, por isso, pedir que fosse o
senhor a celebrar o meu funeral”. O ministro do Evangelho conhecia bem o colega
que pastoreava a congregação daquela senhora, sabia que ela apreciava muito
esse pastor e admirou-se que lhe fizesse tal pedido. “A razão do meu pedido é
simples. Tenho assistido a vários funerais celebrados pelo senhor e gosto muito
do modo digno, discreto e simples como os celebra. Há pastores evangélicos que
parecem ver no funeral uma oportunidade para massacrarem os ouvintes com longas
orações e longos sermões evangelísticos, quando do que as famílias precisam é
de uma calma afirmação da vitória de Jesus Cristo”.
A operação da senhora foi bem sucedida e
ela só veio a morrer com perto de 90 anos. Com liturgia a seu gosto ou não,
desconhecemos, mas a conversa que teve quase vinte anos antes com um pastor
mostra que era uma cristã sem receio de falar da sua morte.
Seja-nos permitido terminar este
capítulo sério com uma história engraçada que nos contou uma secretária da
Universidade de Lausanne há muitos anos. A Faculdade de Letras dessa
Universidade organizava, e organiza, durante o verão, cursos de língua francesa
para estrangeiros. Uma jovem italiana escreveu do seu país a manifestar o
desejo de se inscrever num curso para quem já tinha alguns conhecimentos da
língua, e pedia informações de pormenor. Escreveu a carta no seu francês
incorrecto, provavelmente com recurso ao dicionário, e pediu que lhe fosse
alugado um quarto para habitar em Lausanne durante o curso. Terminou com uma
pergunta: “A senhora acha necessário que eu leve comigo uma mortalha?” A
secretária arrepiou-se. Está bem que uma pessoa conte com a morte na sua vida,
mas uma jovem ter a morbidez de viajar com a mortalha na mala, parecia
excessivo! Sobretudo deslocando-se para a pacífica Suíça. Afinal, fora erro na
palavra usada: a jovem queria falar da necessidade ou não de levar lençol (drap, em francês)
e escreveu mortalha (linceul),
que é, como se sabe, o tecido com que se envolve o cadáver, que vai ser
sepultado. O problema é que a palavra italiana para lençol (lenzuolo) é quase igual à
francesa para “mortalha”.
15 – Acreditar cem por cento
As sondagens com aparato científico e a
simples observação que qualquer um de nós pode fazer mostram que a crença na
continuação da vida depois da morte não é partilhada pela maioria das pessoas
nas sociedades modernas. Norman Pittenger fala da
“perda da crença na vida depois da morte” e faz esta constatação: “Eu diria que
mesmo entre aqueles que são regulares frequentadores de igrejas e que poderiam
ser classificados como homens e mulheres cristãos, não há convicções seguras
acerca da vida depois da morte”. (65)
Muitos admiram-se de que pessoas que se
afirmam crentes em Deus e na vida após a morte manifestem dor quando lhes morre
alguém e medo de enfrentar a sua própria morte. Outros apontam o fado de o papa
João Pauto II viajar num carro à prova de bala e sempre acompanhado de
guarda-costas. “Se ele cresse verdadeiramente na continuação da vida, -
comentam – não tomaria precauções contra a morte”.
Não duvidamos que algumas manifestações
de frequentadores de igrejas em relação à morte revelem, de facto, ausência de
fé, mas é cruel e injusto duvidar da fé de alguém que verte sentidas lágrimas
pela morte de sua mãe, de seu pai, do cônjuge, de um filho, de um irmão, de um
amigo. Toda a separação é dolorosa, mesmo quando temos consciência de que
voltaremos a encontrar a pessoa de quem nos Separamos. Num cais de embarque
ninguém se admirará de ver lenços limpando lágrimas furtivas. Adiante diremos algo
mais que permitirá perceber que o sofrimento perante a morte pode conciliar-se
com a existência de uma fé sincera.
Quanto à preocupação do papa por,
preservar a sua vida, compreendemo-la se tivermos em conta a complexidade a que
chegou a estrutura da Igreja-católica Romana e do Estado do Vaticano. Quem
aceita ser eleito papa é porque concorda no essencial com o sistema e deseja
preservá-lo. E mesmo se desejar, protagonizar grandes mudanças na Igreja tem
também de preservar a sua vida, pois, como diz o provérbio
americano, “Homem morto não conta histórias”. Sendo certo que há neste mundo
fanáticos capazes de assassinar aquele que for o primeiro responsável de uma
orientação por eles, fanáticos, odiada, o papa e os que velam pela manutenção
do seu pontificado, têm a obrigação de não facilitar a acção aos potenciais
assassinos. Provavelmente, não se trata tanto de evitar a morte do papa mas de
evitar as graves consequências do assassinato de quem ocupa aquele cargo. O
mesmo se pode dizer de qualquer chefe de Estado ou primeiro-ministro cujo
assassinato poderia lançar o seu país numa anarquia ou guerra civil, com a
morte de muitos inocentes. Mesmo um homem corajoso, desprendido e humilde, ao
aceitar um cargo deste tipo tem de ter a sensatez de não expor inutilmente a
sua vida. O autor destas linhas prefere num modelo mais democrático e sem
poderes temporais. Então não haverá um chefe supremo com poderes decisivos cuja
morte violenta possa trazer perturbação à Igreja e ao mundo.
De qualquer forma, é preciso lembrar que
Jesus chorou junto do túmulo de Lázaro. João 11:35
E ainda que estivesse pronto para levar
o seu amor ao Pai e aos homens seus irmãos até à dádiva da sua própria vida,
por duas vezes afastou-se quando o quiseram matar. João 7:1
e João
11:54 Uma coisa é
dar a vida para cumprir um alvo nobre e supremo (a salvação da Humanidade, no
caso de Cristo) e outra é ser assassinado sem benefício para nenhuma causa.
O receio que por vezes surge num crente
em relação à sua própria morte, explica-se muitas vezes, além da presença de
uma percentagem de dúvida, pela existência de factores de ordem social que não
facilitam o processo. Um homem novo, com filhos menores, que sente aproximar-se
a hora da morte há-de experimentar perturbação por temer que a sua ausência vá
resultar em grandes dificuldades materiais para essas crianças. Lembramo-nos de
um casal muito dedicado aos ensinos de Cristo e à Igreja que tinha um único
filho já adulto e mongolóide. Sem mais família, o pai dizia-nos um dia com
grande tristeza: “Agora o nosso filho é feliz. É uma criança feliz. Mas quando
eu e a minha mulher morrermos, quem cuidará dele?” Dificilmente haverá uma
sociedade humana que resolva todos os problemas, mas num mundo mais justo, com
instituições preparadas para proteger os cidadãos mais vulneráveis e mais
desprotegidos, angústias deste tipo não se poriam. Eis mais um motivo para os
cristãos se interessarem pela criação de uma sociedade democrática e solidária,
denunciando as injustiças, votando e aceitando ser eleitos quando necessário.
Há ainda outro ponto que deve ser
abordado. Trata-se de realçar o que em páginas atrás dissemos da natureza da
própria crença na vida depois da morte. É preciso ter bem presente esta verdade
quase lapalissiana: a crença na vida depois da morte
não pode ser uma certeza absoluta, do tipo das certezas da matemática, por
exemplo. Em matemática pode chegar-se, tanto como um simples observador supõe a
obter certezas que podem chamar-se indiscutíveis. Mas isso não acontece em
outros ramos da ciência e da vida. Obviamente, não pode acontecer também na
área que é objecto do nosso estudo, a morte. Deve mesmo sublinhar-se que a
incerteza, tratando-se de afirmações sobre Deus ou sobre a vida futura é
condição indispensável para que se mantenha a liberdade do ser humano. Como
poderia alguém recusar Deus se Deus se apresentasse à mente como uma certeza
absoluta? Como poderia recusar a vida com Deus, depois da morte, se a sua
existência se impusesse como certeza absoluta? Embora numa esfera diferente,
Armindo Rodrigues tinha razão quando rescreveu:
Só
na certeza
da
incerteza
há
horizonte. (66)
Roger Mehl
concluiu assim uma sua brilhante reflexão bíblica e teológica sobre a
possibilidade ou não de ter certezas sobre a vida depois da morte: “A vitória
sobre a morte não pode ser estabelecida de uma maneira positiva e racional; o
crente não a pode demonstrar”. (67) Não a pode demonstrar empiricamente,
esclareça-se. Foi por isso que acabámos por propor; nas pisadas de Pascal que
fosse feita a “aposta” na vida depois da morte. Se essa vida vem após a morte,
no intemporal, e nós, observadores, estamos no tempo, não há forma de se fazer
a demonstração empírica. O médico que assiste aos momentos finais de uma vida
terrena, verificará todos os factores mensuráveis, físicos, que lhe permitirão
afirmar a morte do seu paciente, mas está completamente impotente para seguir
além na sua pesquisa. Como médico, em nome da ciência e da técnica, não pode
senão falar da cessação da vida física.
Por mais de uma vez temos ouvido
seguidores das doutrinas espíritas afirmarem que as suas crenças são baseadas
em experiências científicas. Se o fossem os próprios cientistas teriam de se
curvar às suas afirmações, mas tal não acontece. Na verdade, trata-se de uma
religião e por sinal uma religião que, apesar das pretensões de Alan Kardec,
está em oposição ao Cristianismo. A sua antropologia claramente dualista,
privilegia a alma e rejeita a
doutrina da ressurreição do corpo. Contrariamente ao Cristianismo, o
Espiritismo crê na comunicação com os mortos e usa médiuns. Temos ouvido e lido
testemunhos sobre fenómenos manifestados em sessões espíritas, em que pessoas
honestas dizem ter ouvido afirmações sobre factos que só podiam ser conhecidos
do morto mas lhes são comunicadas “do além” pela boca dos médiuns. Alguns
cristãos classificam tais fenómenos como manifestações diabólicas. Mas pode
admitir-se que o médium é alguém com a capacidade, talvez inconsciente, da
clarividência e consegue, pelo menos algumas vezes, em transe, ler o pensamento
de quem o consulta. Nisto não há transcendência.
Por outro lado, têm sido feitos estudos
dos casos de “ressurreições clínicas” com a intenção de recolher “provas
materiais” da existência da vida depois da morte. São bem conhecidas as
pesquisas nessa área, nos Estados Unidos, de Raymond Moody,
Elisabeth Kubler-Ross e outros. Não são destituídos
de interesse tais estudos, mas manda a verdade dizer que também eles, a1ém de
subentenderem, como a religião espírita, um dualismo de tipo grego diferente do
conceito bíblico do homem, veiculam uma hipótese de existência post-mortem, que
não se concilia com a esperança na ressurreição. Se estiver certa essa hipótese
agora estudada, está errada a crença milenar judaico-cristã da ressurreição dos
últimos dias. Não aceitando que essas pesquisas são simples ilusão, pode
supor-se que não se trata de verdadeiros casos de morte, mas apenas de morte
aparente, próxima das situações de desmaio e anestesia a que nos referimos
noutro lugar: Aliás, os relatos não são de pessoas que morreram, mas que
“roçaram a morte”, ou “quase-morte”.
Uma reflexão séria sobre este tema
obriga-nos e concluir que não é possível chegar a acreditar, para usar uma
medida de fácil compreensão, cem por
cento na existência da vida depois da morte. E se bem pensarmos são mínimas
as situações em que se pode acreditar cem por cento seja no for: Por exemplo:
um lavrador lança a semente à terra. Poderá ele afirmar que acredita a cem por
cento que dessa semente vai nascer fruto? Há várias contingências que podem
fazer com que a semente não vingue. Sentas-te ao volante de um automóvel e
dizes: “Vou ao Porto”. Conheces bem o carro, sabes conduzir com segurança,
conheces bem o caminho – mas poderás assegurar cem por cento, sem margem de
dúvida, que chegarás ao Porto? Os especialistas estudaram os terrenos do
Terreiro do Paço e decidiram que ali haveria uma estação do metropolitano. Pode
afirmar-se com certeza absoluta que assim será? Na altura que escrevemos estas
linhas parece que o plano inicial tem de ser abandonado. E não é só em
Portugal, nem só numa ou outra área da actividade humana: a verdade é que as
certezas absolutas, se existem, são raras.
Ter certezas absolutas pode mesmo ser
muito perigoso. Na religião temos ilustrações trágicas desse perigo. A
Inquisição só foi possível porque existia um conjunto de doutrinas que alguns
em nome da Igreja classificaram como o verdadeiro Cristianismo, que todos
tinham de aceitar. Foi grande o número de crimes que se fizeram com a intenção
de preservar os dogmas de que a autoridade eclesiástica tinha a certeza
absoluta constituírem a Verdade. A mancha triste na imagem de João Calvino foi
o deixar ser executado pela fogueira Miguel Servet,
para defender o dogma da Trindade de que o médico espanhol duvidava. Também no
mundo das ideologias políticas tem sido desastrosa a convicção de se ter
chegado a certezas absolutas. Um dos méritos de Roger Garaudy
foi o perceber e denunciar que o Estalinismo foi o resultado natural de se ter
considerado como “científico” o socialismo saído da reflexão de Marx e Engels e
estruturado por Lenine. Se o que é científico corresponde a uma realidade
indiscutível, quem questiona é inimigo a abater ou louco a merecer hospício. Os
fanáticos da religião ou da política são aqueles que, por força de hábeis
manipulações ou lavagens ao cérebro, ficaram convencidos que a sua seita ou o
seu partido são a última instância da verdade e quem expressar a menor dúvida é
herege perigoso.
No que diz respeito à certeza absoluta
que alguns sentem ter acerca da continuação da vida depois da morte, também não
faltam exemplos dos seus perigos. Os aviadores-suicidas japoneses da Segunda
Guerra Mundial estavam tão seguros de continuar a viver depois da morte que não
hesitavam um só momento em lançarem-se com seus aviões cheios de explosivos
sobre o inimigo, o mesmo acontecendo nos nossos dias com fanáticos de vários
credos. Muitos pacatos e inocentes cidadãos têm encontrado a morte e muitas
famílias têm experimentado grande sofrimento porque fanáticos
político-religiosos, com bombas em volta da cintura, buscaram a sua própria
morte, na certeza absoluta de que o seu deus os favoreceria com a
bem-aventurança no céu, desde que arrastassem consigo desprezíveis infiéis.
As certezas absolutas num assunto que
não pode ser sujeito a prova só podem surgir em cabeças doentes. Na perspectiva
bíblica não é com essas certezas que o homem deve caminhar. Tem de caminhar
como Abraão, pai dos crentes, que sendo chamado por Deus, “partiu sem saber
para onde ia”, diz a Escritura em Génesis
12:1/4 e
Hebreus
11:8
Esta é a melhor ilustração do sentido da caminhada da fé na perspectiva
bíblica. Ela implica sempre um risco, porque ter fé é esperar algo que está
prometido, mas ainda não se vê, de que se não tem provas inabaláveis. Isso não
quer dizer que caminhe hesitante e a medo, mas com uma segurança sem
arrogância, consciente de que, como diz um dos primeiros hinos da Igreja, não deve pensar em si apenas, mas também nos outros, e
comportar-se com os outros como fez Jesus Cristo, ele que era de condição
divina e não teve como objectivo igualar-se a Deus, mas despojou-se a si mesmo
e tomou a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens e pelo seu
aspecto era reconhecido como um homem. Foi humilhado, sendo obediente até à
morte, e morte de cruz. Filipenses
2:4/8
Crer que a vida continua para, além da
morte é aceitar que a vida tem um sentido. Que Deus nos criou para Si, e para
Ele caminhamos, como caminhou o Seu Povo durante quarenta anos pelo deserto em
direcção à Terra Prometida. A viagem através do deserto é o símbolo da
caminhada da nossa vida. Que não é uma caminhada fácil. Mas que se torna
apaixonante quando aceitamos o anúncio de que Deus caminha connosco e estará
connosco eternamente.
Crer que há vida depois da morte não
precisa nem será bom que seja a cem por cento. Mas pode ser a convicção
tranquila e exultante de cada ser humano, que vê na morte, não a extinção da
vida mas, antes pelo contrário, a oportunidade da vida alcançar a sua mais
elevada expressão. Só somos plenamente nós mesmos quando cessam todas as
limitações que a vida presente comporta. Como escreve Leonardo Boff: “Na passagem deste tempo para a eternidade, na morte, pois (nem antes nem depois),
nessa concentração intensíssima do tempo, o homem chega totalmente a si mesmo”
(68) Seremos semelhantes a Cristo, diz a Sagrada Escritura:
“Amados,
agora somos filhos de Deus,
e
ainda não é manifesto
o
que havemos de ser.
Mas
sabemos que,
quando
ele se manifestar
Seremos
semelhantes a ele;
Porque
assim como é o veremos”
1ª
João 3:2
16 - Conclusão
Disse Jesus aos seus discípulos:
-“Que
aproveita ao homem ganhar o mundo
Inteiro
se perder a sua vida? Ou que dará
O
homem em troca da sua vida?” Mateus 16:26
(Tradução da Boa Nova ou Bíblia para todos)
Quando o autor deste estudo se preparava
para obter a licença de condução de veículos andava já pelos trinta anos e não
manifestava grande habilidade. O velho instrutor, vendo-nos tão inseguro nas
lições, um dia sentenciou: “O meu amigo só merecerá ter carta de condução
quando for o senhor mesmo a dominar o carro e não o carro a dominá-lo a si”.
Como pregador, acontece-nos várias vezes
usar como metáfora a condução automóvel para ilustrar sermões, e, ao
concluirmos este livro, ocorreu-nos essa frase sábia do experimentado
instrutor. Desajeitado no lidar com máquinas e sem interesse pela condução de
carros, ficávamos tenso sempre que nos sentávamos ao volante para as
indispensáveis lições do Sr. Cação, e nesse estado de espírito o medo
tolhia-nos os movimentos e a capacidade de decisão. Não controlávamos a
velocidade, não travávamos quando se impunha e nem sequer lográvamos segurar
tranquila e firmemente o volante. Não fora o carro ter também direcção do
próprio instrutor, ter-nos-íamos morto ou teríamos morto inocentes transeuntes
numa dessas primeiras lições. Felizmente, porém, nos trinta e alguns anos de
muita condução posterior nunca tivemos acidente com danos pessoais.
A metáfora da condução pode ser aplicada
à vida nesta perspectiva: idealmente, um homem ou uma mulher só vive quando for
ele ou ela a dominar as situações e não estas a imporem-se. Vive-se
autenticamente quando se segue seguro na estrada da vida, não empurrado pelos
acontecimentos, mas segundo o itinerário escolhido pelo próprio viajante. Esta
é a situação ideal, não a real, porque vivemos num mundo injusto, onde a
maioria é, dominada por minorias privilegiadas, mas é por um mundo justo que
devemos esperar e trabalhar.
Tem-se falado, com razão, em pessoas que
agem e pessoas que reagem. Os verdadeiros dirigentes (nos últimos anos
designados pelo anglicismo “líderes”) são aqueles que actuam por escolha
própria, que analisam as situações e encontram neles próprios a decisão
considerada necessária. As pessoas vulgares limitam-se a dar a resposta
habitual, ouvida de outros, recebida da tradição, ou a reacção instintiva ao
acontecimento. Odeias-me? Pago-te da mesma moeda! És simpático comigo? Sê-lo-ei
contigo! Jesus Cristo manifesta a sua, condição de Condutor por excelência
(condutor é outra palavra portuguesa para “leader”) quando, no Sermão da
Montanha, propõe tomadas de posição que vão contra a corrente.
A reflexão sobre a morte, sobre o que
nos espera para além dela, leva-nos necessariamente à conclusão de que, sendo a
morte a plenitude da vida, é indispensável conduzirmos
a nossa vida de tal maneira que, ao transpormos, pela morte, as portas da
eternidade, possamos fruir das venturas prometidas. Ou seja: a reflexão sobre a
morte obriga-nos a olhar com maior atenção para a vida. No livro de Apocalipse
o Espírito diz: … Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a
coroa da vida. Apocalipse 2:10
A coroa da vida é a vida vindoura, a plenitude da condição de ser humano.
O grande poeta místico de origem
libanesa Kahlil Gibran (1883-í931), no seu livro “The Prophet” põe a personagem Almitra a pedir: “Gostaríamos agora de te perguntar sobre a
morte”, e o Profeta responde: “Vós gostaríeis de saber o segredo da morte. Mas
como o achareis se o não buscardes no coração dar vida?” E pouco depois diz:
“Porque a vida e a morte são uma, assim como um é o rio e o mar.” (69)
Seguir pela vida com segurança é saber,
desde logo, quão elevada e a dignidade da vida humana, e é saber que a vida não
é uma via que tenha de ser assinalada com o símbolo convencionado no Código da
Estrada para “caminho sem saída”. Avida não é um caminho sem saída, mas um
caminho que continua por paisagens mais exultantes.
A morte não é o fim. Di-lo a mais
profunda intuição humana, essa intuição que, ainda antes de Abraão, de Moisés e
de Jesus Cristo, já inspirava a esperança na sobrevivência; di-lo a razão, que
observa a existência de uma inteligente ordem de causa e efeito no Universo sem
lugar para o acaso nem para o absurdo; di-lo a Igreja de Cristo (da qual são ramos
as diferentes confissões e denominações) no testemunho fiel passado de geração
em geração e iniciado por aqueles que, na manhã da primeira Páscoa cristã,
proclamaram: “O Senhor ressuscitou!”; e dizem-no todos aqueles e aquelas que,
pela oração, pela leitura da Bíblia, pela participação no culto, pelo convívio
e pelo amor aos irmãos e irmãs, têm regularmente a comunhão do Espírito de
Deus, cuja acção interior confirma a esperança na perpetuidade da vida.
Porque a morte não é o fim, a vida não é
um absurdo mas a oportunidade a ser usada com inteligência, com determinação,
com fé. Voltaremos a encontrar aqueles que amamos e que agora “dormem no
Senhor”.
De que servirá à Humanidade ter tão
estrondosos progressos nas suas actividades, criar um admirável mundo de
espantosos êxitos científicos e técnicos se a morte continuar a aterroriza-la e
a atormentar os seus passos?
Concluamos com esta palavra da
Escritura, no seu estilo solene e ao mesmo tempo simples:
Os céus e a terra tomo hoje, por testemunhas contra vós, que vos
tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição: escolhe, pois a vida,
para que vivas, tu e a tua descendência, amando ao Senhor teu Deus, dando
ouvidos à sua voz e chegando-te a ele: pois ele é a tua vida e a longura dos
teus dias; para que fiques na terra que o Senhor jurou aos teus pais, a Abraão,
a Isaac e a Jacob, que lhes havia de dar. Deuteronómio
30:19/20
Figueira
da Foz, Junho de 2013
NOTAS
1 Blaise Pascal, Pensées,
p. 156
2 Charles Spielberger,
Tensão e Ansiedade, p. 31, 32, 35, 116-117
3 As melhores poesias brasileiras, p. 160
4 Notre vie et notre mort, p. 9
5 Op. Cit. p. 189-216
6 A matter of life and death p. 27
7 O homem perante a morte, II Vol. P. 327
8 Vieillissement
et la mort, p. 72
9 Pensées, p.
156
10 Ancien
Testament, p. 1443
11 Cit. por Jean
Lyon, Et après? P. 19
12 Cf.
José Leite de Vasconcelos, As religiões da Lusitânia, I e II Volume, 1897
13 Vida
para além da morte, p. 31
14 Vocabulário
Bíblico p. 200
15 Robert Martin Achard,
De la mort à la réssurrecion
d’apres l’Ancien Testament, p. 85
16 Adonai
é a palavra hebraica que traduzimos em português por “Senhor” e era usada pelos
israelitas para evitar o nome sagrado de IAHWEH
17 Amílcar Paulo, Os judeus secretos em
Portugal p.89
18 Talbot, Mohan, Your Bereavement, p. 33
19 Vida para além da morte, p. 77
20 Vida para além da morte, p. 82
21 Michael Ramsey, The Ressurrection of
Christ, p. 9
22 Confissão de Fé de La Rochelle
1º Artigo.
23 No rol das hipóteses não incluímos, por
absurda, aquela que fala de uma conspiração de amigos de Jesus, que teriam
roubado o corpo ainda vivo do crucificado e tratado dele. Fugido do túmulo,
Jesus ter-se-ia refugiado junto dos essénios, casou com Maria Madalena e teve
vários filhos e netos, vindo a morrer em Massada em 73 DC. É uma história
mirabolante que um Donavan Joyce escreveu com o
título “A outra história de Jesus”, uma fraude que tem entretido ingénuos.
24 Cristianismo puro e simples, p.
125-127
25 Michel Quesnel,
Jesus Cristo, p. 112
26 Super
Interessante, nº 27. Julho 2000
27 Benjamim Scott, As catacumbas de Roma, p.
85 (Itálico de B. Scott)
28 Benjamim Scott, As catacumbas de Roma, p.
88 (Itálico de B. Scott)
29 J. G. Davies, La
vie quotidienne des premiers chrétiens,
p. 120-121
30 A. Hamann, A
vida quotidiana dos primeiros cristãos, p. 241-242
31 The World’s Great Sermons, Vol. 1, p. 31, Compiled by Grenville
Kleiser
32 Filantropo que dirigiu grandes campanhas
com o objective de pôr fim à escravatura
33 Wilfred Monod, La nuée de témoins, p. 57-59 (II Vol.)
34 As novas versões do Credo dizem: “Creio na
ressurreição do corpo”. Mas a palavra original é “carne”, que é o homem
corpo-alma, sob o signo do pecado. É a este homem que Deus em Cristo promete a
ressurreição e a vida eterna.
35 Leonardo Boff,
Vida para além da morte, p. 46
36 David F. Strauss, A velha e a nova fé, p.
117-120
37 Henri Bergson, L’évolution créatice, p. 157, Encylopedie Larouse, art. “Bergson”
38 Harry Emerson Fosdick, The assurance os
immortality.p. 83
39 Ver parte final do Capítulo 2 –Pergunta e
resposta.
40 Guy Lazorthes,
em “Crença e Razão”, distingue “fé” de “crença”. A fé, para ele, é a aceitação
cega e a crença comporta dúvida. Nós preferimos usar fé no sentido bíblico, que
é confiança e não dispensa a razão (não há “fé cega”) e crença como “acto ou
efeito de acreditar”, por vezes como sinónimo de fé.
41 Jean Lyon, Et aprés?, p. 37-38
42 Emil Brunner,
Nossa Fé, p. 111
43 Karl Barth, Esquisse d’une Dogmatique, p. 117
44 Paul
Tillich, Amor, poder e justiça, p. 27
45
Ibid. P. 85
46 Neste
versículo Lucas
18:17, o leitor já percebeu por certo, que dizer “Reino
dos Céus” ou “Reino de Deus” se refere à mesma realidade. Importa também dizer
que “Reino” (Basileia em grego) aqui significa “reinado” ou “governo”. Esperamos
um tempo em que Deus finalmente governará, Ele mesmo, toda a humanidade, ou
seja, em que a Sua vontade libertadora e justa se cumprirá.
47 Institutas,
Livro II, Capítulo XVI, 9
48 L. de Sanctis e
G. Moreno, Compêndio de Controvérsia entre a Palavra de Deus e a Theologia Romana, p. 167
49 Op. Cit. p. 391
50 Pastoral e doutrina do Baptismo, p. 17
51 Op.
Cit. p. 19
52 Dogmatique, Vol.
1 Cap. 17
53 Albin Eduard Beau, Langenscheidt
Dicionário de Bolso
54 A arte de morrer, p. 21
55 idem, p. 22-23
56 A palavra agnosticismo vem do grego e tem
como raiz gnosis,
que significa “saber”. Ser agnóstico é afirmar não saber.
57 Vida para além da morte, p. 56
58 Norman Pittenger, After Death Life in
God, p. 15
59 A ideia da luta dos cristãos para defesa
das “penúltimas coisas” é de Dietrich Bonhoffer,
mártir do nazismo. Teólogo e homem de oração. Ele lembrou aos seus concidadãos,
cristãos apáticos, que não podiam dicar impávidos e serenos enquanto a barbárie
nazi destruía tudo em seu redor.
60 Vida para além da morte, p. 68
61 A. Brien, Verité et Vie,
nº 357, cit. por Jean Lyon, Et Aprés?
p. 113
62 Vida para além da morte, p. 56
63 Arte de
Morrer, p. 78
64 Gibran, Kahil. The Prophet, p. 20
65 After death life in God, p. 11
66 Obra
Poética, Vol. VII
67 Notre vie et notre
mort, p. 90
68 A vida
para além da morte, p. 40-41 (sublinhado de Boff)
69 Op. cit. p. 93
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas