HÁ VIDA DEPOIS DA MORTE (MC)

 

 

0 - Apresentação

 

O estudo que se segue foi publicado no ano 2000, sob a forma de livro, pelo Seminário Evangélico de Teologia, de Lisboa. Demos-lhe então como título uma pergunta: A morte é o fim?, título que se manteve na tradução para inglês (Is Death the End?), na edição que foi feita nos Estados Unidos, em 2004 (tradução do Dr. John Theodore Brothers).

Acreditando o meu amigo e irmão na fé Eng.º Camilo Coelho que esta reflexão sobre a morte não perdeu a atualidade, propôs-me publicar este estudo na sua página Estudos Bíblicos sem Fronteiras Teológicas, da net, considerando que a edição em livro está praticamente esgotada. Acolhi a sugestão com prazer, limitando-me agora a pequenas atualizações e correções do texto original. Aqui deixo os meus agradecimentos ao Eng.º Camilo Coelho pela sugestão e pelo muito trabalho que chamou a si para preparar o material, pois eu próprio, autor, não guardei suporte informático do estudo. Agradeço de novo àqueles que leram o livro e me honraram com a sua crítica e seu apoio.

O novo título que damos a esta edição pela net é uma afirmação convicta – HÁ VIDA DEPOIS DA MORTE! – e corresponde à maturação que em mim, entretanto, se fez da doutrina das últimas coisas (Escatologia) da Fé Cristã. A morte, em 2010, de um neto adolescente abalou profundamente a minha alma e fez-me reler com dor a minha reflexão sobre a esperança cristã. Ilustrando-se assim o princípio de que é a vida, com as suas dores e as suas alegrias, quando assumida com verdade, que nos faz aprofundar a Palavra de Deus João 18:37. A edição em livro fora dedicada à memória do meu irmão Fernando, falecido em 1996; esta edição é dedicada à memória do querido João Francisco.  

Manuel Pedro da Silva Cardoso

 

1 - A questão suprema

 

Pascal, o célebre filósofo francês, matemático e criador da primeira máquina de calcular, reunia em si as características de acção com as do homem prático e o místico. Nos seus Pensamentos observou:

“A imortalidade da alma é uma coisa que tanta importância tem para nós, que nos toca tão profundamente, que é preciso ter perdido todo o sentimento para ficar na indiferença para saber de que se trata. Todas as nossas acções e os nossos pensamentos devem tomar direcções tão diferentes, se houver bens eternos a esperar ou não, que é impossível fazer uma caminhada com sentido e inteligência senão regulando-a tendo em vista este ponto, que deve ser o nosso último objectivo” (1).

Mais adiante, neste estudo, veremos que a expressão “imortalidade da alma” usada por Pascal e por muitos outros escritores, precisa de ser estudada tendo em vista o ensino da Bíblia, mas por enquanto contentemo-nos com reconhecer que as palavras do pensador cristão são expressão de puro bom senso. Vivendo todo o ser humano sob o desígnio de passar pela morte, o seu modo de estar na vida tem que, forçosamente, ser muito diferente se estiver convencido de que esse acontecimento, a morte, é o fim absoluto, ou se acreditar que se trata de uma passagem a outro estágio da vida. Se só há uma vida, esta que agora vivemos, e tudo acaba com o estertor da morte, têm razão aqueles que dizem, numa tradução simplificada de Epicuro: “comamos e bebamos que amanhã morreremos”, frase que o apóstolo São Paulo cita no contexto da discussão sobre este tema da vida depois da morte. 1ª Coríntios 15:32 e, nesse caso, o hedonismo justifica-se: o prazer é a finalidade da vida. E o consumismo do nosso tempo também: que mais podemos pedir à vida senão que possamos usufruir dos bens que o dinheiro nos pode dar? Mas se há vida depois da morte, viver como um hedonista ou como um consumista é insensatez.

Não ignoramos que com o pensamento contrário se tem também feito muita insensatez. Concluindo-se que a vida presente é apenas a preparação para uma vida após a morte, essa sim, a vida verdadeira, aceitam-se todos os sacrifícios atuais, todas as humilhações, todas as indignidades mesmo, com vista a essa vida futura. A história do Cristianismo tem muitos exemplos dessa insensatez - como também tem a história política, se nos lembrarmos dos sacrifícios enormes feitos por gerações que esperavam sempre adiadas auroras ridentes.

Foi como insensatez que Jesus Cristo classificou a atitude de uma personagem que defendia uma concepção de vida de onde a morte estava ausente. Lucas 12:13/21 É bem possível quo o nosso mundo actual mereça ser globalmente classificado por insensato pelo facto de nele se manifestar uma grande tendência para se fugir de pensar na morte.

E não se trata apenas da nossa morte, morte como acontecimento em que tu és o sujeito, mas também, e para muitas sensibilidades sobretudo, da morte daqueles que nos são queridos. Uma mulher jovem disse a uma amiga: “Vivo sempre assaltada pelo receio de que o meu filho possa ficar gravemente doente e morrer. Qualquer momento de felicidade é manchado com essa ideia”. Todos temos experiências desse tipo. Quando alguém que amamos viaja, se ouvimos falar de um desastre, se à hora em que prometeu telefonar não recebemos o telefonema, ficamos inquietos, pensamos no pior e nem sequer ousamos descrever a quem está connosco que é uma terrível notícia o que tememos receber.

E há também os que se inquietam com a sua própria morte pensando nos outros. Um homem sensível, já na chamada terceira idade, confidenciou a um amigo: “Se eu não tivesse constituído família, nesta altura corria o perigo de me deixar ficar na cama e esperar a morte, embora não tenha nenhuma doença grave. A verdade é que me sinto cansado da monotonia da vida. A minha própria morte não me desagradaria nada. Seria como o trabalhador cansado que finalmente vai ter o gosto de se deitar o dormir. Mas temo esse momento por causa dos meus filhos e netos, principalmente. Sei que me amam e ficarão inconsoláveis por muito tempo”. É significativo que, numa lista de acontecimentos causadores de tensão, elaborada nos Estados Unidos na década de 1970 por Thomas H. Homes (2), a morte de um ente amado alcança o que ali se chama Unidades de Mudança de Vida (UMV) muito elevadas. Acreditava--se então que a pessoa podia ser vítima de uma doença grave se totalizasse 300 pontos de UMV, numa lista em que a morte do cônjuge representa 100 UMV e a morte de um amigo íntimo 37 UMV. Aqueles que já perderam um ou ambos os pais, um irmão, outra pessoa íntima, sabem como pode ser terrível o peso da morte. Os médicos alertam para a possibilidade de uma depressão vir em breve atormentar a vida daquele que sofreu o golpe da morte de um ente amado. Muitas pessoas que perderam um familiar querido, ficam feridas psicologicamente por anos, algumas até ao fim de seus dias. A morte de uma criança ou de um adolescente na família tem provocado as mais pungentes dores morais. Dores a que um grande poeta brasileiro, Vicente de Carvalho, inspirou um sentido poema com o título “Pequenino morto”, de que transcrevemos a primeira das doze estrofes.

 

“Tange o sino, tange, numa voz de choro,

Numa voz de choro… tão desconsolado…

No caixão dourado, como em berço de ouro,

Pequenino, levam-te dormindo… Acorda!

Olha que te levam para o mesmo lado

De onde o sino tange numa voz de choro

Pequenino, acorda!” (3)

 

É a sensibilidade romântica do século XIX? É a dor de sempre, ainda que hoje a recalquemos mais, com maior prejuízo sem dúvida. Esta dor da morte de um ente querido ou o temor da nossa própria morte não podem ser ignoradas. Temos de enfrentar a verdade de que a morte existe e pode surpreender-nos a qualquer momento, sendo, por isso, necessário ter uma resposta para esta questão suprema: há ou não vida depois da morte?

Há muitos anos, um dirigente religioso com responsabilidade afirmou tranquilamente num grupo: “A morte é um falso problema”. Sê-lo-ia para ele, mas não se pode chamar falso problema a um acontecimento que atemoriza tanto as pessoas que preferem nem sequer falar dele.

A sabedoria dos povos tem referido a necessidade de termos a morte presente na nossa reflexão, sendo constante o clamor “Memento moris!”; lembra-te da morte!, porque se percebe que é quando se tem viva consciência de que nos espera esse acontecimento que mais sensatamente podemos viver. É quando o homem mais consciente está de que ele e aqueles que ama estão destinados a passar pela morte, que ele melhor pode deslumbrar-se diante do dom da vida e descobrir' a importância do momento que passa.

Quase todos temos conhecimento de casos em que um homem nervoso, inquieto, conflituoso em família, e por isso infeliz, foi atingido por doença grave que o pôs diante da ideia da morte, e se transformou num homem tranquilo, paciente, amável. Não por fingimento ou receio infantil, mas porque a proximidade da morte o fez perceber a inutilidade de muitas das nossas lutas e inquietações. Uma mulher que esteve casada mais de trinta anos com um homem inquieto disse: “Os dias mais felizes do nosso casamento, por estranho que pareça, foram aqueles em que ele, já desenganado pelos médicos, sabia que ia morrer”.

Para uma pessoa se sentir viver autenticamente precisa de ter encontrado um sentido para a vida, e esse sentido não é encontrado se não se tiver em conta a morte. Como escreveu o teólogo protestante de Estrasburgo, Roger Mehl: “A morte faz parte da definição da nossa existência, não apenas porque ela constitui o seu limite, mas também porque a morte projecta a sua sombra sobre toda a nossa vida” (4).

Pode parecer mórbido ocupar o nosso pensamento com a morte, mas, na verdade, é um exercício mental saudável, como o é todo o esforço de olhar de frente seja o que for que consideremos desagradável e intimidante. Os estudiosos dizem ao tímido que receia atravessar uma praça sob a observação de outros: “Se receia isso, avance! Atravesse a praça mesmo que o tema muito, faça-o tantas vezes quantas puder e ficará curado do seu medo!” O mesmo para viajar de avião, para conduzir um automóvel, etc.. Há quem não visite ninguém doente, dizendo que fica muito impressionado - pois nesse caso deve visitar ainda mais vezes, até que vença a sua sensibilidade exagerada. E há quem nunca vá a funerais pela mesma razão. Ou se vai a um funeral, evite ver o cadáver. Faz mal. Tal atitude revela medo da morte - e é necessário que esse medo seja vencido, ou a sua vida não será plenamente fruída. A reverência, o respeito diante da morte é normal e desejável, mas o medo ou o pavor são expressões de desarranjo espiritual.

É lícito duvidar-se que haja autêntica vida no indivíduo ou na sociedade que procura ignorar a existência da morte. Mesmo que a consciência da sua existência cause angústia, sendo ela a “desmancha-prazeres” da nossa caminhada, é útil que nela se pense, porque ela faz parte da realidade integral.

É interessante observar que Aldous Huxley no seu famoso romance Admirável Mundo Novo imagina nessa sociedade avançada (com a qual nos vamos parecendo) a existência de um Hospital para Moribundos, de onde saem “carros fúnebres aéreos, de cores alegres” e onde os doentes em fase terminal aguardam a morte, sem o saber, em quartos perfumados, com televisão emitida ininterruptamente. Um lugar solitário, ignorado da população em geral, onde se morre sem consciência disso. (5)

Na verdade, a tendência das sociedades mais “avançadas” de fazer da morte um tema sobre o qual não se fala nem se pensa (tema tabu) terá muito de ver com a desvalorização das relações pessoais que nelas se verifica. O filósofo judeu Martin Buber referiu-se às relações de tipo “Eu-Tu” e às relações “Eu-coisa”, caracterizando-se as primeiras como aquelas em que o homem se sente amado e ama ou se sente odiado e odeia ou se sente interpelado e interpela. Ele sente-se pessoa e sente o outro como pessoa também. São essas relações que nos enriquecem e deviam ser as do homem com Deus e com o seu próximo. São elas que nos humanizam. Infelizmente, porém, constata Buber, temos, em geral, relações “Eu-coisa”: o outro é visto como um objecto de que nos servimos, que é útil ou não, que cumpre uma função, mas cujos sentimentos, vontade, sonhos, frustrações, não interessam. O outro pode ser até o pai ou a mãe, o cônjuge, os filhos, os empregados, os colegas de trabalho, toda a gente - e até Deus, se a relação for do tipo “dá-me isto, dá-me aquilo”, como na história da lâmpada de Aladino, um Deus ao serviço do homem, é uma coisa, não uma pessoa que amamos e por Quem nos deixamos interpelar.

 

É possível que, se cultivarmos o tipo de relações “Eu – coisa” a morte perca muito do seu horror (ou o horror será recalcado). No que diz respeito à morte dos outros pode ser que o acontecimento não nós afecte muito, se a nossa relação é desse tipo, e isso explica o motivo por que hoje há muitos funerais em que até membros chegados da família estão ausentes. Aparentemente, esta situação é tranquilizadora.

Se cultivarmos o distanciamento em relação aos outros, se não amarmos ninguém, se nos limitarmos a viver centrados em nós próprios, evitamos a dor que a morte de um íntimo noutras condições nos faria. Pelo menos no que diz respeito à morte dos outros, cultivar as relações “Eu-coisa” seria uma vitória sobre a dor. O problema é que esta “vitória sobre a morte” é o que se pode chamar “uma vitória de Pirro”. Ela pode pôr fim ao horror da morte de um ente querido, mas porá também, simultaneamente, fim ao gosto de viver! Porque cultivar o estilo “Eu-coisa” é não ter com os outros o relacionamento que dá sabor à vida. Relações desse tipo são relações que não tocarão a nossa afectividade. Avida tornar-se-á um deserto afectivo. Um casal que, para se prevenir contra a dor da morte que os separará, evitasse todo o gesto, toda a palavra que desse força ao amor, acabaria por sentir, ao fim de algum tempo, um vazio tão profundo, que a vida em comum passaria a ser, só por isso, um inferno. Imaginemos também uma família em que as pessoas mal se falam, mal comunicam e tocam-se apenas no indispensável. Se um filho se cruza no corredor com o pai dá um grunhido que parece significar “olá”, e o pai responde no mesmo estilo. Em casa reina o silêncio. As pessoas não se acariciam, não trocam impressões, nem sequer discutem. Quando um deles morrer pode acontecer que não haja lágrimas nem dor. Mas é duvidoso que viver numa família assim seja mesmo viver... E sobretudo, é duvidoso que não sobrevenha uma depressão, como resultado de sentimentos de culpabilidade.

Em relação à sua própria morte, o cultivo do distanciamento nas relações humanas não pode trazer qualquer alívio. Antes pelo contrário: o distanciamento, o vivermos num mundo em que a amizade e a fraternidade humanas são desvalorizadas, como acontece no mundo actual, traduz-se por um estilo de vida de qualidade inferior e nessa situação a morte alheia pode ser olhada sem emoção, mas a morte do próprio é vista pelo protagonista com horror e um horror tão grande que nem nela quer pensar. Quem tem assistido a moribundos sabe que o bispo anglicano John Taylor tem razão quando observa: “O pensamento da morte é mais horroroso para aqueles que nunca viveram plenamente” (6).

Philippe Ariés, o historiador francês que se tornou uma autoridade no estudo do comportamento das sociedades em relação à morte, fala do fenómeno do nosso tempo da “morte interdita”, e cita o inglês Geoffrey Gorer como tendo sido o primeiro a chamar a atenção para a particularidade de hoje a morte substituir o sexo como principal interdito. Diz Ariés, expondo o pensamento de Gorer, que as crianças “hoje em dia são iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia do amor mas, quando deixam de ver o avô e manifestam o seu espanto, dizem-lhe que ele repousa entre flores de um belo jardim” (7). Um interdito substitui outro interdito, comenta o historiador.

Esta situação de interdito é fácil de constatar. Ainda nos anos 40 em Lisboa era comum as crianças assistirem a funerais. Sobretudo quando morria um colega de escola (e nesses anos a mortalidade infantil era muito elevada), lá estava a turma, com os seus bibes, acompanhada pela respectiva professora, a seguir o pequeno esquife branco até à sepultura. Hoje acharíamos chocante essa presença. “Têm tempo para saber da existência da morte”, diz-se. Como antigamente se pensava da educação sexual. Era preciso chegar a adulto para conhecer os mistérios dessa área da vida.

Aos adultos, nesses tempos, era impensável não acompanharem uma família das suas relações num velório e nas cerimónias fúnebres. E igualmente impensável, não usarem, por um tempo estabelecido, sinais exteriores de luto: a simples gravata negra para acompanhar o amigo ao cemitério, mas entre os familiares a braçadeira ou fumo, os vestidos, as meias negras, etc. É evidente que muitos, quem sabe se a maioria, cumpriam todas essas formalidades sem convicção e contra a sua vontade, mas o que procuramos mostrar é apenas que, de facto, houve uma mudança radical até na sociedade portuguesa, tanto na rural como na urbana, em relação à morte. Isso não significará que haja hoje um maior amor à vida do que havia outrora, ou que haja mais sinceridade e, portanto, se rejeitem essas convenções por isso, mas certamente quer dizer que as relações humanas hoje são menos calorosas e é maior o medo da morte.

O citado Roger Mehl já em 1955, num outro livro escrevia: “É possível que uma civilização em que o homem perdesse toda a dignidade individual (por exemplo uma civilização técnica onde o homem não tivesse outra existência senão a de agente produtor) perderia a preocupação e por assim dizer o gosto pela vida depois da morte” (8).

Pode ser essa também outra das explicações do comportamento actual diante da morte e da impopularidade de uma reflexão sobre a vida depois da morte.

Fecharemos este capítulo com a voz com que o abrimos, a de Pascal, que terminou assim o pensamento sobre a necessidade de meditar acerca da morte: “O nosso primeiro interesse e o nosso primeiro dever é esclarecermo-nos sobre este assunto de que depende a nossa conduta” (9).

 

 

2 - Pergunta e resposta

 

No mundo de influência cristã chama-se Antigo Testamento a um conjunto de livros considerados de inspiração divina e a que o povo judeu chamava simplesmente Escrituras. “Testamento” nessa expressão traduz a ideia de Aliança. O povo que está no centro dessas Escrituras e a quem elas eram dirigidas considera que o seu fundador, Abraão, fez uma Aliança com Deus, renovada depois sob Moisés no Monte Sinai, e por ela foi feito “Povo de Deus”. Nessas mesmas Escrituras é várias vezes anunciado que virá um tempo em que Deus fará uma Nova Aliança (Novo Testamento), uma Aliança que terá como característica principal o ser “inscrita no coração dos homens” e não na pedra, como a de Moisés, isto é, nela não será a letra que reinará (não será uma religião de leis) mas Deus dirigirá o Seu povo através do Espírito.

Para os cristãos, esse tempo chegou com Jesus Cristo, que é ainda maior do que Abraão e Moisés, e que, depois de ter convidado os seus ouvintes a aceitarem-no como o Enviado de Deus, fez a “aliança do seu sangue”, morrendo crucificado. É assim inaugurada a Nova Aliança ou Novo Testamento. O Novo em Deus não significa a rejeição do Velho ou Antigo, mas sim o cumprimento daquilo que no Velho existe em promessa.

Entre os 39 livros que formam o Antigo Testamento há um chamado Livro de Job. O objectivo do livro de Job - assinala a introdução que lhe é feita na tradução ecuménica francesa conhecida por TOB (Traduction Oecuménique de la Bible) não é explicar, como geralmente se pensa, o enigma do sofrimento injusto, nem resolver o problema do mal. É antes uma tentativa de o homem perturbado se situar em relação ao Deus Santo e Todo-Poderoso (10).

É nesse contexto que aparece a questão fundamental que nos ocupa. Na sua, dor, Job pergunta-se: Morrendo o homem, porventura tornará a viver?... Job 14:14 A resposta que Job obtém para a sua pergunta vem poucos capítulos depois, e diz assim: Eu sei que o meu redentor vive e que, por fim, se levantará sobre a terra. E, depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos e não outros o verão. Job 19:25/27. Esta resposta, porém, não lhe vem de fora, não lhe é dada por nenhum homem, nem a recebe de nenhum anjo; é ele próprio, Job, que a enuncia, como se a si mesmo quisesse consolar com a palavra que desejava ouvir. É um texto muito importante e a que teremos de voltar, mas por enquanto o que queremos sublinhar é a pertinência desta questão: haverá vida depois da, morte?

A questão tem acompanhado o homem ao longo dos tempos. A investigação arqueológica tem mostrado que já nas mais antigas sociedades humanas a morte era considerada um assunto de grande atenção. A circunstância de as escavações mostrarem a existência de sepulturas nas idades mais antigas e de haver também nesses tempos longínquos indícios de crença na sobrevivência não pode deixar de ser tomada em consideração na nossa reflexão. Lecomte de Nouy observou com justeza no seu livro “L’avenir de l'Esprit” (O futuro do Espírito): “Não somente o homem de Neandertal enterra os seus mortos, mas por vezes reúne-os, como o testemunha o sepulcro das crianças na Gruta das Crianças, perto de Menton. Aí não se trata mais do instinto. Trata-se da aurora do pensamento humano (que se manifesta, por uma espécie de revolta contra a morte)” (11).

As escavações arqueológicas também têm encontrado em muitos lugares sepulturas com alimentos e objectos colocados junto de restos mortais humanos, o que se sabe significar a crença de que os mortos partiam para algures, numa viagem em que precisavam de se alimentar e continuar acções iguais às que faziam em vida. Também a arte rupestre deixou um sem número de provas da crença na vida para além do túmulo. Entre muitos primitivos praticava-se o culto dos antepassados, acreditando-se que os seus mortos continuavam vivos e do além protegiam os seus descendentes.

As famosas pirâmides e a soberba arte funerária do Egipto têm de ver com a convicção reinante nessa civilização da existência de vida para além da morte. Osíris, o deus que, na religião desse povo, presidia ao destino dos mortos, era a sua mais popular divindade. Na Pérsia, na Índia, na China, no Japão, na Grécia, em Roma e entre outros povos da Europa, incluindo os que habitavam no território que hoje chamamos Portugal (12), assim como nas sociedades primitivas das Américas, de Africa e da Oceania, a crença na imortalidade estava sempre presente. Dedicaremos uma atenção especial ao caso do povo hebreu, mas queremos neste momento sublinhar o facto de a crença de uma vida depois da morte se ter vindo a manifestar ao longo de milénios entre os diversos povos. Não é, bem o sabemos, um argumento decisivo em favor dessa crença, mas é um aspecto digno de reflexão. Assim como o é a circunstância de ser quase geral a convicção entre os grandes homens que se notabilizaram na história a esperança de que, ao morrerem, iriam continuar a viver, ainda que num estilo diferente. Conhecem-se, é verdade, já na Antiguidade, alguns sábios que denegam a vida post-mortem, como Demócrito, Epicuro e Lucrécio, mas são casos raríssimos. É só a partir do século XVII da nossa era que essa crença negativa começa a ganhar mais adeptos. Dir-se-á que tal se deve ao grande progresso que se observou entretanto na ciência, mas a verdade é que não se regista nenhuma descoberta desde a Revolução Francesa que tenha trazido razões concretas para se não aceitar a crença na vida depois da morte. O que surgiu foi uma forte convicção do poder da ciência, a convicção de que ela poderia resolver todos os problemas, e a criação de uma oposição artificial entre ciência e fé. Desenvolve-se uma visão tecnicista do mundo. Muitas vezes a culpa dessa oposição foi das próprias igrejas que usaram textos bíblicos para contrariar afirmações científicas, uso de todo impróprio para os propósitos da Bíblia. Ao totalitarismo da fé usado na Idade Média e ainda depois dela, tentou-se impor um totalitarismo da ciência, com a mesma arrogante pretensão de responder a todas as questões. Essa oposição entre fé e ciência é falsa, porque cada uma delas tem a sua própria especificidade. Só o preconceito de um lado e de outro explicam que muitos ainda mantenham tal visão.

Entretanto, apesar de nestes últimos séculos se ter desenvolvido uma espécie de idolatria da ciência, que levou muitos a rejeitarem a crença da vida depois da morte com o argumento de que “não há provas científicas disso”, é longa a lista das grandes personagens deste período “cientista” que sustentam tranquilamente essa crença. As ideias que faziam dessa vida depois da morte não eram sempre coincidentes, mas não cremos que esse aspecto seja muito importante para a pesquisa que estamos a fazer. A verdade que importa realçar é que um número enorme de pessoas manteve a esperança de que o túmulo, ao contrário do que parece, não é a última morada. Tal esperança não é manifestação de infantilismo, como veremos, e tem sido a tranquila convicção com que viveram muitos homens e mulheres cuja elevada capacidade intelectual e moral não é posta em causa. Na grande nuvem dos que, nos últimos séculos, creram na vida depois da morte há nomes tão ilustres como Newton, Leibnitz, Kepler, Voltaire, Goethe, Pascal, Kant, Bach, Benjamim Franklin, Napoleão Bonaparte, Bismark, Victor-Hugo, Florence Nightingale, Ibsen, Lincoln, Gladstone, Kierkgaard, Tolstoi, Alexandre Herculano (para citar um português), Pasteur, Marie Curie, Gandhi, Einstein e Soljenitsine. Não falando, naturalmente, dos homens e mulheres de Igreja, pastores, padres, teólogos, bispos, religiosos, que também esperaram viver depois da morte.

O autor do presente estudo sabe que, nem mesmo uma lista de milhares, milhões de crentes na vida para além do túmulo serviria como argumento decisivo em favor dessa crença. A verdade não pode ser sufragada pelo número de votos. Um homem sozinho pode estar certo contra milhões. Mas é bom constatar nesta pesquisa que muitos encontraram uma resposta positiva à pergunta formulada por Job: “Morrendo o homem, porventura tornará a viver?”

 

 

3 – A esperança de Israel

 

Pode perguntar-se qual é o motivo por que se há-de dedicar uma atenção especial ao que pensava o povo israelita sobre a morte. A resposta é simples. Se alguém escrever sobre o desenvolvimento do pensamento filosófico, é obrigado a falar da Grécia. Foi na Grécia que se registou, em certa altura, uma verdadeira revolução na Filosofia, com o surgimento de uma especulação que é uma rotura com o que até aí se fazia nesta área. Chama-se a isso “o milagre grego”. Pode dizer-se que houve também “o milagre israelita”, se falarmos na área do pensamento religioso. Os povos da Terra tinham a intuição de que há uma Mente por detrás de tudo quanto existe. Criaram as suas religiões por causa dessa profunda intuição. Essa intuição resultava do facto que o ser humano ter em si a imagem dessa Mente suprema (Imago Dei, Imagem de Deus). A forma mais singela dessas religiões foi o animismo, atribuindo às coisas, às árvores, aos rios, uma alma. Teve-se também uma visão panteísta, que via a tal Mente ou Divindade encarnada em tudo. Outra forma que a religião tomou foi a politeísta, divinizando forças da natureza, vendo em cada uma um deus. Na área geográfica que se chama Israel, junto do Monte Sinai, de súbito o homem teve conhecimento de algo muito importante: aqueles deuses todos que eram adorados, no fundo, não esgotavam o mistério da Mente que está por trás de tudo. Os deuses dos povos são falsos: há um “Deus para além dos deuses”. Não são os israelitas que O descobrem: é Ele que se revela (revela-se continuando a ser “o Deus escondido"). E revela-se como IAHWEH (leia-se Iavé), termo que os israelitas não pronunciavam, justamente porque O que está acima de todas as coisas e acima da nossa compreensão não pode ser prisioneiro de um nome. Dar nome é dominar. O povo israelita alcançara a então mais evoluída compreensão de Deus. É por isso que nos interessa tanto saber como é que esse povo, o povo de IAHWEH, via a morte. Alguns autores têm afirmado que os israelitas não acreditavam na existência da vida depois da morte. Tal afirmação, contudo, carece de análise cuidadosa.

É um facto que, para o Antigo Testamento, as Escrituras dos israelitas, o homem é um ser destinado à morte. Génesis 2:7 e Salmo 8:4 A imortalidade é um atributo exclusivo de Deus. Além disso, o homem é uma unidade, nada havendo nele que tenha a condição de imortal. É possível falar da existência nele de um corpo, uma alma e um espírito (ou apenas de um corpo e um espírito), mas sem que estes elementos tenham vida autónoma. Isto é, não há á possibilidade de a “alma” ou de o “espírito” sair do corpo e voar para um lugar no momento da, morte.

É por isso que, numa perspectiva bíblica, deve pôr-se em questão, como fizemos na primeira página deste estudo, ao citarmos Pascal, a expressão “imortalidade da alma”. O facto não diminui a importância do alerta do grande cristão, nem põe em questão o essencial do que ele nos dirá sobre o assunto, mas é uma verdade que, desde muito cedo no Ocidente cristão, começou a haver um afastamento da antropologia bíblica e uma aproximação da antropologia grega, e muitos famosos teólogos falaram da alma como uma realidade autónoma, prisioneira do corpo, do qual é libertada pela morte. Mas isto é pensamento grego e não judaico-cristão. Embora consideremos as chamadas “Testemunhas de Jeová” um movimento com uma mensagem contrária ao fundamental da Bíblia, neste ponto temos de lhes dar razão: não podemos, para sermos fiéis ao pensamento bíblico, falar da “imortalidade da alma”. Quando usamos esta expressão devemos subentender que do que estamos a falar, como Pascal, é da crença na vida depois da morte, o que é possível imaginar de modo diferente à vida autónoma de uma alma. E quando falarmos de “alma” é do homem inteiro que falamos. Se o homem é mortal e uma unidade, tudo nele é mortal.

Não é sem razão que devemos abandonar essa concepção do homem em três partes (corpo, alma, espírito) susceptíveis de se separarem. A visão bíblica que o vê como uma unidade está mesmo mais de acordo com o conceito moderno do homem do que a grega, como sublinha Leonardo Boff: “A mentalidade bíblica está muito mais próxima da compreensão moderna” (13), embora tenhamos de ver com muita atenção o que Boff quer dizer quando acrescenta: “Era na terra e na carne que o homem louvava e se alegrava com Deus. Toda a perspectiva do Antigo Testamento é profundamente terrena”.

O importante, neste momento, é sublinhar que para o Antigo Testamento só Deus, repetimos, é imortal. Esse Deus que aliás não se chama Deus, porque é o Inominável, o que não tem nome, e se revela como IAHWEH, forma do verbo ahwah, significando “Aquele que é”, e pode ser traduzido por “O Eterno” Êxodo 3:14/15 Isaías 43:10

Nas narrativas da Criação, no livro de Génesis, não se diz que Deus tenha formado com pó da terra o corpo do homem mas o homem (ser humano, na sua totalidade psicossomática), basar, que é, em seguida, animado pelo sopro divino, o espírito. O sopro divino é, em hebraico, ruach e o elemento das capacidades psíquicas é o nephesh. Na nossa cultura ocidental, herdeira da Grécia, os termos equivalentes são soma (corpo), psyché (alma) e pneuma (espírito). O livro de Eclesiastes afirma que, na morte, o pó (não apenas o corpo, mas o corpo-alma), volta à terra e o espírito regressa a Deus, que o deu. Eclesiastes 12:7 Mas não há, aí especulação sobre o que fará o espírito junto de Deus. Não seria abusivo concluir-se, se um só versículo fizesse doutrina, que o Antigo Testamento não anuncia a existência de via depois da morte. A dissolução total do corpo-alma sepultados poderia ser a visão sombria do autor de Eclesiastes. Contudo, o mesmo livro bíblico termina com uma afirmação carregada de consequências: “Deus há-de trazer a juízo toda a obra e até tudo o que está encoberto, quer seja bom, quer seja mau”. Eclesiastes 12:14 Se espera a cada vida um julgamento feito por Deus, e se esse julgamento não está a ser feito antes da morte, segue-se que, para Eclesiastes, a morte não é o fim. Eclesiastes 3:17 e Eclesiastes 11:9  

Objectar-se-á que Eclesiastes tem indícios de ter sido escrito depois do regresso do Exílio e que, portanto, há nele influências estranhas ao pensamento de Israel. Este argumento não convence porque quando falamos do Antigo Testamento falamos dele como um todo, sem privilegiar qualquer período ou autor. Haverá afirmações da fé que a experiência fará dizer com maior ênfase num período do que noutro, mas sem que haja contradição. A mensagem de Eclesiastes é um alerta severo que tem o seu paralelo no Salmo 49, e tira a mesma conclusão que o salmista: “Deus remirá a minha alma do poder da sepultura, pois me receberá”. Todo o Antigo Testamento se revê nesta exclamação de Isaías 25:8  Aniquilará a morte para sempre, e assim enxugará o Senhor IAHWEH as lágrimas de todos os rostos.

Não se pode negar que, embora seja sóbrio no que diz respeito ao que acontece aos mortos, o Antigo Testamento reconhece que a morte não pode ter a última palavra. Serão meros “pressentimentos”, como escreve Von Allmen (14), mas estão lá. De resto, esta esperança é inevitável, considerando o próprio conceito que a fé israelita tem de Deus, “um Deus justo que salva” Isaías 45:21 que é o Todo-Poderoso, o Shaddai  Génesis 17:01 Êxodo 06:03  A morte é derrota e o crente percebe que a vitória final tem de ser de Deus: Não deixarás a minha alma no inferno (Sheol, lugar dos mortos), nem permitirás que o teu santo veja a corrupção. Salmo 16:10

Essa esperança explica a preocupação do israelita de dar uma sepultura condigna aos seus mortos e a sua crença de que Deus voltará a dar vida aos que morreram. Como já se disse, não há no Antigo Testamento uma esperança na “imortalidade da alma”, mas, em harmonia com a sua antropologia, há uma esperança na ressurreição dos corpos. Também sobre esta esperança não há muitas referências nas páginas das Escrituras, nem há pormenores sobre o como será essa ressurreição, mas é essa a resposta que o crente israelita tem para a questão da morte, como mostra o exemplo de Job. Para a pergunta angustiante – “Porventura, morrendo o homem voltará a viver? - Job tem esta resposta, mas ela vem sem explicação, com a solenidade de uma Declaração de Fé: Eu sei que o meu Redentor vive e que, por fim, se levantará sobre a terra. E, depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros, o verão Job 19:25/27

Há outros lugares do Antigo Testamento que anunciam a ressurreição dos mortos. Em Isaías, por exemplo: Os teus mortos viverão, os teus mortos ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho será como o orvalho das ervas, e a terra lançará os seus mortos. Isaías 26:19 A tradição tem indicado a visão de Ezequiel no vale dos ossos Ezequiel 37 como um texto comprovativo da esperança israelita na ressurreição dos mortos. Os especialistas, no entanto, consideram que se trata de uma visão que anuncia a restauração de Israel. Mas não é deslocado citar Ezequiel entre os textos desta esperança na ressurreição, seguindo o pensamento de Martin-Achard: “O profeta não se ocupa da ressurreição dos mortos enquanto tal, mas os símbolos que ele utiliza puseram sem dúvida entre os judeus o problema da renovação da vida para os defuntos, e foi nesse sentido que a tradição, tanto judaica como cristã, releu este capítulo. Ezequiel fundamenta a sua segurança sobre a soberania do Deus de Israel em relação à vida, soberania que se manifestou em particular quando da formação do homem. Ele ousa esperar a renovação do seu povo, porque crê em IAHWEH tal como Ele se revelou a Si mesmo a Israel. A tradição do seu povo como a sua experiência pessoal permitem-lhe afirmar que o Deus vivo é capaz de repetir o milagre da criação a favor dos Seus” (15).

Um outro texto que fala da ressurreição é o livro de Daniel. Trata-se de uma visão apocalíptica que aponta para a vinda do Messias, em grego o Cristo: Naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta pelos filhos do teu povo, e haverá um tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação, até àquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que se achar escrito no livro. E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para avida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno Daniel 12:1/2 Independentemente de, nesta última passagem, o estilo apocalíptico ser, como sempre, de difícil leitura, é indubitável que a crença na ressurreição dos corpos está aí bem clara.

É talvez mais fácil aceitar, como acreditavam os gregos, que o nosso corpo mortal é o cárcere de uma alma imortal, a qual, no momento da morte, sai liberta para lugares celestiais, onde, finalmente, pode ser feliz. Mas, fácil ou difícil, a verdade é que, no que diz respeito ao Antigo Testamento, a resposta que encontramos para o enigma da morte é esta: ela existe por causa do pecado, e chegará o dia em que o Senhor chamará de novo à vida todos os que dormem nos sepulcros, ressuscitando uns para a felicidade eterna e outros para o castigo eterno.

A crença na ressurreição foi a grande esperança dos judeus, mesmo depois da sua expulsão da Palestina. Uma oração dos judeus portugueses, que professavam clandestinamente a sua fé, dizendo-se católicos para escaparem a graves perigos, diz assim: “Dormi em paz, vós todos que Adonai (16) chamou para Si, até à época anunciada pelos profetas, em que os filhos serão reunidos aos pais e os pais aos filhos, até ao dia bendito em que soará a trombeta da Ressurreição e em que vós saireis dos vossos túmulos. Senhor! Tu cumprirás a Tua promessa. Tu abrirás os túmulos e insuflarás um novo espírito de vida a todos os que estão deitados, dormindo o sono da morte. Bendito sejas Tu, Adonai, que chamas novamente os mortos à vida” (17).

 

 

4 – Cristo ressuscitou

 

Quando Jesus iniciou o seu ministério, a atitude do povo judeu em relação à morte era, na sua maioria, igual à descrita no capítulo anterior. Das três correntes religiosas do tempo, formadas, respectivamente, pelos fariseus, os saduceus e os essénios, só os segundos não acreditavam na ressurreição. Mas os saduceus eram uma minoria, de linha aristocrática e conservadora, com pouca influência no pensamento do conjunto da população. O facto, porém, de os saduceus não crerem na ressurreição não os tornava heréticos aos olhos das outras correntes judaicas, o que prova que a crença na ressurreição não era matéria de muita gravidade.

A pregação de Jesus e os seus sinais despertaram em alguns dos ouvintes uma maior atenção para as promessas das Escrituras, mas os Evangelhos mostram-nos que nem mesmo os seus discípulos mais íntimos iam muito além do “pressentimento” habitual quanto à doutrina da ressurreição. Poderiam dizer como Marta, irmã de Lázaro: “Eu sei que meu irmão há-de ressuscitar na ressurreição do último dia”, João 11:24 mas fariam essa declaração sem grande convicção, como muitos hoje repetem sem grande convicção no Credo: “Creio na ressurreição do corpo.”

A crença formal de Marta e dos demais discípulos vai em breve transformar-se numa convicção exultante, a ponto de levar muitos cristãos a perder a sua vida por testemunharem publicamente de Cristo, o proscrito.

Como se explica a mudança operada na convicção dos discípulos, que passou do “pressentimento” à afirmação ousada? Não vemos melhor explicação do que a própria ressurreição de Jesus Cristo!

O próprio Lázaro que referimos acima foi ressuscitado por Cristo, pouco depois do diálogo com Marta. Há também nos Evangelhos as narrativas da ressurreição do filho da viúva de Naím, a ressurreição da filha de Jairo e muitas outras ressurreições anónimas Mateus 11:05, Marcos 5:21/43, Lucas 7:11/17, João 11:01/45 mas não foram essas ressurreições que reforçaram e animaram a esperança na ressurreição dos últimos dias. Porque a ressurreição de Lázaro e dos outros apenas pode servir para mostrar a misericórdia de Deus, mas esses ressurectos voltaram para continuar a sua vida habitual - e envelhecer, adoecer e morrer. A morte neles fora apenas adiada. Talvez seja, por isso, mais adequado falar nestes casos de reanimações do que de ressurreições. Os corpos que voltaram da morte eram ainda corpos mortais. Mas a ressurreição de Cristo tem uma natureza diferente. Não é a simples reanimação de um cadáver. É verdade que as testemunhas perceberam que a ressurreição de Cristo tinha provocado algumas mudanças no seu corpo. Ele apareceu-lhes visível ainda com as marcas da crucifixão, mas agora sem as limitações que o corpo mortal tem. Jesus ressuscitou com “um corpo glorioso” Filipenses 3:21 O que era mortal revestiu-se de imortalidade. 1ª Coríntios 15:54 O Ressurrecto tem a capacidade de entrar numa sala onde as portas estão fechadas, e quando segue com dois dos seus discípulos João 20:19 a caminho de Emaús não é imediatamente reconhecido por eles.

Com a Ressurreição de Cristo os discípulos não apenas perceberam melhor o que estava implícito nas promessas do Antigo Testamento, quando aí se alude à ressurreição, como ganharam a certeza de que eles próprios e todos os que passarem pela crise da conversão terão “no dia final” a mesma experiência. São Paulo reflecte essa convicção quando escreve: Cristo ressuscitou dos mortos e foi feito as primícias dos que dormem, afirmação que a versão em português corrente traduz assim: Cristo ressuscitou dos mortos e é garantia de ressurreição dos mortos. 1ª Coríntios 15:20 E ainda podia ter esta tradução: Cristo ressuscitou dos mortos e tornou-se pioneiro dos que estão mortos e hão-de ressuscitar também.

Há quem procure ver nas palavras neotestamentárias sobre a ressurreição apenas um sentido metafórico e moral. Vêem na esperança de uma outra vida depois da, morte a “suprema alienação” e procuram demonstrar que o Cristianismo verdadeiro quando fala em ressurreição está a falar da possibilidade que é dada ao homem, que não vive autenticamente, de encontrar na mensagem de Cristo motivos para sair da sua morte e passar a viver. Estar morto, nessa perspectiva, é não ter esperança, não participar da festa da vida em solidariedade com os outros homens, seus irmãos. O Cristianismo é um humanismo, nesta perspectiva.

Não se pode nem se quer negar que há aspectos biblicamente correctos na posição que vê a ressurreição como uma metáfora. O próprio Jesus Cristo qualificou como “mortos” homens que estavam de pé, respiravam, trabalhavam, movimentavam-se. Ele disse um dia: Deixa os mortos enterrar os seus mortos. Mateus 8:22 e Lucas 9:60 Na Carta aos Romanos, Paulo refere-se à humanidade como estando morta para a lei, e noutro lugar fala do cristão como alguém já ressuscitado Romanos 7:4, 2ª Coríntios 5:17. Há sem dúvida, um modo metafórico de usar a palavra ressurreição e seus derivados, mas é mais correcto dizer com Talbot Mohan: “Não temos de esperar pela ressurreição (depois da morte) para fruirmos a vida de ressuscitados. Jesus é muito específico quando ensina sobre isso, Ele anunciou que todo aquele que recebe a sua mensagem e crê na oferta que Deus faz em Jesus Cristo tem a vida eterna desde então. O Pai e o Filho são um na grande obra da redenção. Aqueles que aceitam o que Jesus cumpriu por nós recebem imediatamente (...) as primícias da grande colheita que está por vir. Estamos unidos a Cristo e não podemos portanto ser dele separados nem mesmo pela morte João 5:24. São Paulo tira a conclusão óbvia de que se nós partilhamos a vida com Jesus, partilhamos também das suas bênçãos. Os nossos tesouros estão nos céus, e os nossos corações estão aí também Colossenses 3:1/2. São Paulo vai mais longe ainda e, falando de si próprio, diz que não é ele que vive, mas é Cristo que nele vive Gálatas 2:20. Se Cristo vive em nós, ele mostrar-se-á a si mesmo através das nossas vidas, manifestando a verdade da afirmação de que a vida da ressurreição pode ser comunicada durante esta vida pelo poder do Salvador ressurrecto”. 1ª Coríntios 15:19 (18).

Realçar apenas a importância da “vida vindoura” e viver obcecado com esse tempo por chegar, pode ser, de facto, a “alienação suprema”, mas reduzir o Cristianismo a um humanismo fechado nos limites desta vida é tentar remediar um mal com outro. O apóstolo Paulo disse de uma forma muito clara: “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens”, e disse-o para se opor aos que então punham em dúvida a ressurreição dos mortos.

É por isso que a ressurreição de Jesus Cristo – “garantia da ressurreição dos que já morreram e da ressurreição dos que vão morrer” - é o ponto central da pregação dos apóstolos. Jesus Cristo “veio, não apenas para nos mostrar como deve ser a existência humana mas também qual é a meta da vida (céu) “ como devemos e podemos alcançá-lo”, escreve Leonardo Boff (19). O teólogo brasileiro precisa depois o que entende por “céu”: “O céu não é fruto de especulações árduas para a inteligência e para a fantasia. É a potencialização daquilo que já na terra experimentamos. Sempre que na terra fizemos a experiência do bem, da felicidade, da amizade, da Paz, do amor, já estamos vivendo, em forma precária mas real, a realidade do céu” (20).

É interessante notar que Boff era, na altura em que escreveu estas palavras, um teólogo católico, sacerdote, plenamente integrado na sua Igreja, e o que diz do céu lembra um singelo hino protestante que tem estrofes como esta:

 

Depois que Cristo me salvou,

Em céu o mundo se tornou.

Até no meio do sofrer

É céu a Cristo conhecer.

 

 

5. A ressurreição é possível?

 

Ao longo dos séculos, na celebração mais importante dos cristãos - o serviço divino do Domingo de Páscoa – o presidente da assembleia reunida inicia com esta proclamação solene, tirada do Evangelho:

 

 - “Verdadeiramente, o Senhor ressuscitou!”

E a assembleia responde exultante:

- “Aleluia!

                     

É esta convicção que dá sentido à fé dos cristãos e aos cultos que Domingo após Domingo celebram. Aliás, a ousadia de terem passado a juntar-se para a adoração no primeiro dia da semana, a que começaram a chamar “Dia do Senhor” (Dies Dominicus), e não no Sábado da Lei, mostra como é na Ressurreição de Jesus, ocorrida no primeiro dia da semana, que a sua fé se fundamenta. Como se compreende bem Paulo na sua exclamação atrás citada: “Se Cristo não ressuscitou é vã a vossa fé”!

Se Cristo não tivesse ressuscitado, nada disso teria sentido. O culto cristão seria um ajuntamento irrelevante e uma perda de tempo. Valeria mesmo a pena ir à igreja para ouvir discursos, que seriam apenas moralistas, ou de “conscientização” política, ou ainda exortações piedosas sobre fraternidade e boas acções? Mesmo que esses discursos fossem curtos e os hinos cantados tivessem letras e músicas elevadas, o que nem sempre acontece...

Mesmo entre aqueles que participam assiduamente dos serviços religiosos, é sem dúvida verdade que há muitos cuja presença far-se-á por mera rotina, por dever social, para acompanhar a família, ou por qualquer outro motivo igualmente diferente do essencial - a Ressurreição de Cristo - mas em geral tais pessoas, explícita ou implicitamente, consideram o culto uma grande maçada, bocejam, adormecem e, logo que podem e encontram pretexto, fogem dele.

É por isso que é de extrema importância saber se, de facto, Jesus ressuscitou mesmo ou se se trata de um modo de falar de outra coisa. A ressurreição de Cristo tem o lugar central nos Evangelhos, e se a não compreendermos não compreenderemos nada dos Evangelhos. Estamos inteiramente de acordo com Michael Ramsey, que foi ilustre arcebispo de Cantuária, autor de um notável estudo sobre este tema da ressurreição, de onde transcrevemos esta constatação: “Para os primeiros discípulos, o Evangelho sem a Ressurreição não era, apenas um Evangelho sem o seu capítulo final: simplesmente não era um Evangelho” (21)

Dizem alguns que a Ressurreição de Jesus não pode ser provada, que não é um acontecimento histórico, mas uma proclamação da fé. O famoso teólogo Rudolf Bultmann ia nessa direcção. Para a sua escola, a Ressurreição deve ser interpretada, não como um facto histórico, mas como o sentido que a comunidade da fé dá à morte de Jesus na cruz. Bultmann e a sua escola reagiam, a meu ver com excesso, a outro excesso que os precedera, que consistia em esgravatar a história no esforço de reconstituir a figura histórica de Jesus e acabava por fazer de Jesus um simples homem bom que vivera há perto de 2.000 anos. Mas uma proclamação da fé que não tenha apoio histórico dá razão àqueles que dizem que a fé é cega e estupidifica. Convém-nos, pois, examinar com cuidado e ver se há ou não elementos que justifiquem a fé na Ressurreição.

Para urna reflexão correcta sobre este tema, pensamos ser bom começar por colocar a pergunta se é razoável ou não acreditar que Deus possa ressuscitar um morto. De nada serve pormo-nos a procurar provas de que Jesus terá mesmo ressuscitado se, em abstrato e à partida, considerarmos que a ressurreição de um homem é impossível. Em vão procuraríamos provas se a própria ideia em si fosse inadmissível.

A fé cristã afirma que Jesus Cristo foi ressuscitado por Deus. E do que é que falamos quando falamos de Deus? Um famoso texto da Reforma, a Confissão de La Rochelle, de 1559, começa assim: Cremos e confessamos que há um só Deus, que é uma só e simples essência, espiritual, eterna, invisível, imutável, infinita, incompreensível, inefável, que pode todas as coisas, que é totalmente sábia, totalmente boa, totalmente justa, e totalmente misericordiosa. (22)

Ainda que a linguagem deste artigo seja da filosofia, ao falar da essência de Deus, qualquer cristão poderia subscrever esta afirmação, mesmo que num ou noutro ponto as interpretações possam diferir. O que aliás acontecerá também se nos cingirmos a usar textos bíblicos, como a palavra que fala de Deus como o “Criador de toda a terra” e “Aquele que não se cansa nem se fatiga” Isaías 40:28, ou esta palavra dirigida a Moisés: “Eu sou IAHWEH, e eu apareci a Abraão, a Isaac e a Jacob, como o Deus Todo-Poderoso” Êxodo 6:02/03 A expressão hebraica que aqui é traduzida por “Deus Todo-Poderoso” é El-Shaddai, estando a partícula El, (Deus) conotada com “poder”, como é traduzida em algumas passagens Génesis 31:29 “poder (el) havia na minha mão”). Quanto à palavra, Shaddai, embora haja variedade de opinião entre os exegetas, não se conhecendo com segurança a sua raiz, há consenso na aceitação de que o título El-Shaddai aponta para o poder infinito de Deus. As únicas barreiras para Ele são aquelas da sua própria natureza. Por exemplo: o Deus Santo não peca. Seria uma contradição de termos, dizer que Deus peca. Como dizer que a luz tem comunhão com as trevas.

Pascal distinguiu o Deus da fé revelado nas Escrituras, o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”, do “Deus dos filósofos”, isto é, distinguiu o Deus revelado da ideia de Deus que os filósofos podem congeminar. Mas há um ponto em que crentes e filósofos não crentes podem estar de acordo, que é este: quando usamos a palavra “Deus” estamos a falar de uma entidade que é considerada causa necessária e fim último de tudo o que existe, perfeito e regulador do universo.

Esta, definição singela, mas que cremos suficiente para os propósitos da nossa pesquisa, permite-nos acreditar que é perfeitamente razoável a quem fala em Deus aceitar a possibilidade da ressurreição dos mortos, mesmo que esta não seja fácil de compreender. Tem razão a Confissão de La Rochelle ao reconhecer que Deus é “incompreensível”, pois se pudéssemos dizer que tudo em Deus pode ser por nós compreendido, estaríamos de alguma maneira a dizer que n'Ele não há nada que nos transcenda - o que seria negar a Sua condição de Deus. É consequente que quem crê na existência de Deus possa afirmar: “A Deus nada é impossível” – palavra que o Evangelho põe na boca de Jesus. Lucas 1:37 Não há motivo para duvidar que o Todo-Poderoso possa ser mais forte do que a morte e possa trazer de volta à vida o que descera ao túmulo.

Pode alguém dizer: “Em termos abstratos, como hipótese académica, pode aceitar-se a ideia da ressurreição, mas no domínio do concreto, da ciência, será uma hipótese impossível de provar, logo inaceitável”.

No que, concerne à Ressurreição de Cristo, lembramos que é legítimo reconhecê-la como, além de afirmação de fé, um acontecimento histórico. A própria continuação da actividade dos discípulos é um forte indício que nenhum historiador honesto pode desprezar. É evidente que houve um acontecimento inesperado depois da sexta-feira da crucifixão de Jesus que é a explicação da mudança radical do comportamento dos discípulos de Jesus. Os únicos documentos que possuímos sobre a actividade e ensino de Jesus são os Evangelhos, escritos muitos anos depois dos acontecimentos, mas não há razões para duvidar que esses documentos, embora não sendo trabalhos de história tal como a entendemos hoje, reflectem bem o espírito de exultação que trouxe à comunidade cristã primitiva a notícia, da Ressurreição de Cristo.

 

Que outras explicações podem ser dadas que justifiquem o modo ousado como os discípulos medrosos, tendo o seu chefe sido crucificado, em lugar de fugirem e mergulharem no anonimato de que Jesus os tirara, saíram para a rua a anunciar que o crucificado vencera a morte? Poderia aventar-se esta hipótese: os apóstolos tomaram consciência nesses dias que a mensagem de fraternidade proclamada por Jesus era revolucionária, não podia ser vencida, pela morte - e foi isso que anunciaram. “Mataram Jesus, mas nós continuaremos a sua Obra”. Não se trataria da Ressurreição de Jesus, mas da ressurreição da sua mensagem do teimoso regresso do seu projecto. Como diriam revolucionários do nosso século:

- “Mataram Che Guevara, mas nós continuaremos a sua revolução”. Mas crer nisso é pôr na cabeça de homens do primeiro século pensamentos de gerações que leram Feurbach, Marx e Lenine. Que a mensagem de Jesus também é revolucionária no sentido potítico-social não duvidamos; que se possa dizer de Jesus que ele foi apenas um revolucionário desse tipo é hipótese inconsistente.

Outra hipótese: despeitados pela derrota, os apóstolos decidiram mentir, dizendo que Jesus ressuscitara. Dessa maneira, livravam a face do ridículo de terem seguido um falso Messias e podiam continuar na sua actividade de pregadores. A ser verdade, esta teria sido a maior das fraudes da história. É porém uma fraca hipótese, convenhamos. É provavelmente fácil que três ou quatro pessoas inventem uma história e mantenham a mentira entre elas, sem quebra do seu segredo. Mas o número de pessoas que afirmava ter visto o Ressurrecto quando Paulo escrevia a 1ª Coríntios 15:1/6  era de mais de quinhentas - e teria de ser uma conspiração muito bem orquestrada para manter o segredo entre tanta gente. E se pensarmos como eram poderosos os inimigos da nova fé, e como estariam interessados em descobrir o menor indício de impostura com que pudessem desacreditar a seita, mais difícil se torna aceitar esta hipótese. E ainda é necessário pensar nos benefícios que os alegados inventores de tal fraude tiveram: a perseguição, a prisão, a tortura e a morte. Se a notícia da Ressurreição de Cristo fosse uma invenção dos discípulos, num primeiro momento, ela acabaria por ser desmentida logo que o martírio tivesse começado e hoje nada, ou quase nada saberíamos desse grupelho. Ao longo da história tem havido pequenos grupos anunciando visões e acontecimentos transcendentes que a razão humana tem dificuldade em crer - mas quando eles têm sucesso, quando as visões são declaradas verdadeiras, isso deve-se ao apoio maciço que o pequeno grupo de videntes recebeu da grande instituição, deve-se a cumplicidades sagazes, a auxílios fortes vindos de muitos interesses em jogo. Nada disso se podia passar com o frágil grupo inicial que proclamou a Ressurreição de Jesus Cristo.

Uma hipótese derradeira (23): os discípulos eram bem intencionados, mas foram vítimas de uma alucinação colectiva. Viveram tão intensamente a morte de Jesus que acabaram por julgar que o viram de novo vivo. Parece que sim, que há “alucinações colectivas”, não exactamente do tipo que permitem ver o que não existe, mas que permitem experimentar sentimentos que a pessoa individualmente não chegaria a sentir. Um orador hábil pode levar uma multidão a tomar posições radicais que muitos, senão a totalidade dos ouvintes, em separado, não tomaria. Mas seria excessivo acreditar que, sucessivamente, grupos de discípulos tivessem a ilusão de ver Jesus, sem que não houvesse entre eles ninguém menos influenciável quo os alertasse. Uma ilusão pode convencer-nos num momento, mas em seguida, dias depois ou nas semanas seguintes, com a “cabeça fria”, começamos a duvidar da objectividade do que “vimos” ou “ouvimos”, e mesmo que a ilusão não passe totalmente deixamos de dar muito por ela. As testemunhas da Ressurreição de Cristo, porém, mantiveram-se firmes e felizes na sua convicção, crendo na objectividade do que viam e ouviram do Ressurrecto até ao fim dos seus dias.

Acreditar que Deus possa ressuscitar uma pessoa, como o fez com Jesus Cristo, é de difícil aceitação para uma mente habituada a acreditar apenas naquilo que a ciência pode confirmar. Mas a história é também um ramo da ciência, e a história já ultrapassou o estágio em que só reconhecia, como facto histórico, aquele que pudesse ser provado com documento, escrito ou de outro tipo (ruínas arqueológicas, por exemplo). Os historiadores de linha tradicional tinham como princípio que o que não pode ser documentado não existe. Essa atitude é clara no positivismo que dominou o século XIX e ainda tem influência no nosso tempo. Ora como documento sobre a Ressurreição temos apenas o Novo Testamento, e nessa perspectiva para a crítica positivista o Novo Testamento não ó suficiente, porque tem como origem “a parte interessada” na divulgação da notícia da Ressurreição.

Além disso, as narrativas da Ressurreição de Cristo divergem nos vários Evangelhos. Como se pode aceitar como documentos para estudo histórico textos que entre eles dão informação diferente do mesmo acontecimento? Há muito que se sabe que os Evangelhos não são biografias de Jesus, mas testemunhos sobre os seus ensinos e actos. Os acontecimentos e discursos não estão colocados numa ordem sempre cronológica, mas na ordem que mais interessava aos propósitos específicos do evangelista. Não há possibilidade hoje de saber exactamente como se deu a Ressurreição, mas os passos essenciais estão aí narrados e o Novo Testamento merece toda a confiança.

Para a Igreja primitiva, uma das provas da Ressurreição de Cristo era o túmulo vazio. Mas não era a mais importante. A mais importante era a da vivência que a cada momento tinha da presença de Jesus Cristo, Vivo, na vida de cada discípulo e na condução da Igreja. Se estava Vivo era evidente que tinha vencido a morte. Porque há um aspecto que deve ser acrescentado: tal como Jesus anunciara, aqueles que aceitam a sua mensagem e o aceitam como o Messias, nascem de novo, pelo Espírito João 3:01/16 , tomam uma nova natureza que lhes permite viver a realidade da presença do Ressurrecto nas suas vidas. C. S. Lewis, que teve o mérito de apresentar o Cristianismo numa forma simples e inteligente, falou do Homem Novo como a etapa seguinte da evolução. O próprio Cristo é o “primeiro exemplo” do Homem Novo, sendo os cristãos homens novos em crescimento espiritual progressivo (mas nem todos caminhando “ao mesmo passo”) (24).

O cristão, pela acção do Espírito, vai sendo aperfeiçoado até chegar à estatura do Homem Perfeito, que é Cristo Efésios 4:13, o que só acontecerá no Dia da Parusia de Cristo (2ª vinda), quando os que “dormem no Senhor” forem ressuscitados.

Por causa dessa experiência de comunhão com o Cristo Vivo e dessa esperança na ressurreição final é que, nos seus ajuntamentos, os cristãos podem proclamar com ênfase:

Verdadeiramente, o Senhor ressuscitou! Aleluia!

 

 

6. A essência do Evangelho

 

 A palavra evangelho vem do grego euangelion, palavra usada para referir o prémio que se dava a um mensageiro portador de uma boa notícia. Era equivalente à nossa palavra alvíssaras. Como na frase: “Dão-se alvíssaras a quem der informações que ajudem a encontrar a pessoa desaparecida”. Evangelho tornou-se termo técnico para falar das Boas Novas ou Boas Notícias anunciadas por Jesus Cristo e pelos apóstolos.

A Boa Nova é que em Jesus Cristo o ser humano encontra a salvação. Mas o que é a salvação? Michel Quesnel observa com razão: “Afirmar que Deus nos salva provoca logo, e de maneira legítima, a pergunta: “De quê?” Porque não há salvação absoluta, sem passagem de uma situação má para uma situação boa. Por isso, quando o cristão se afirma salvo por Jesus Cristo, tem de esforçar-se por esclarecer a situação pouco invejável da qual o seu Salvador o faz sair”. Em seguida, Quesnel reflecte sobre a pouca eficácia de se associar hoje salvação apenas a libertação do pecado. Não se nega essa verdade que Jesus salva do poder do pecado, mas é um facto que ao homem e à mulher modernos, como nós próprios somos, não soa a verdadeira boa nova de alegria dizer-lhe: “Vai em paz, os teus pecados te são perdoados” (25).

Também é certo que Jesus nos salva da prisão do egocentrismo. Mas teremos clara consciência de quanto isso nos escraviza para podermos perceber nessa libertação a notícia alvissareira? E que diremos da salvação em termos sociais e políticos? O mesmo Quesnel faz referência à Teologia da Libertação, da América Latina, que chamou a atenção para a necessidade de se tomar em conta as implicações do Evangelho na mudança das estruturas do mundo da exploração do homem pelo homem num mundo de justiça e partilha. Mas se tal vertente não pode ser descurada (mas continua a ser!), é um facto que ela não corresponde totalmente à Boa Nova de Jesus Cristo. Se tivéssemos já um mundo com governos só nas mãos de pessoas honradas, competentes e justas, com a pobreza erradicada e onde todos tivessem as mesmas oportunidades e acesso aos bens essenciais, mesmo assim haveria algo ainda de que o ser humano precisaria de ouvir e a que pudesse chamar claramente Boa Nova. Isto não diz Quesnel, mas é o que qualquer um de nós pode dizer, mesmo sem ser filósofo ou teólogo. No limite, a Boa Nova para o ser humano é esta: “A morte está derrotada!”

Imagine-se que um homem chega junto de um amigo e diz: “Houve um incêndio e a tua casa ficou totalmente destruída!” A má notícia faz empalidecer o homem que perdeu a casa. Com voz angustiada pergunta: “Estava alguém em casa?” “Não, não. Tua mulher e tua filha felizmente tinham saído”. A casa fora comprada com muito esforço, graças a muitos sacrifícios, e é duro receber aquela notícia, mas a segunda informação, por contraste, é já uma boa nova. Tudo tem remédio, costuma dizer-se, menos a morte. Na história bíblica de Jacob que quis casar com Raquel, tão sensivelmente posta em soneto pelo grande Camões, o pastor, para ganhar a sua amada, serviu Labão, pai de Raquel, por catorze anos, e disse: “mais serviria se não fora / para tão grande amor tão curta a vida!”. Sim, a Boa Nova, sendo tudo isso que já referimos (perdão dos pecados, libertação do egocentrismo, construção de um mundo de fraternidade, de amor, de paz e justiça), tem de incluir também, para ser Boa Nova integral, este anúncio: “Depois da morte há vida!

A ciência pode anunciar o aumento admirável da média de vida humana nos próximos anos, especialmente nos países ricos, e a vitória sobre um número crescente de doenças, o que para muita gente são notícias muito agradáveis. Mas nenhuma notícia será mais exultante do que a de que a morte não é o fim. Há em nós uma sede de imortalidade que nos leva a ver na morte um “desmancha-prazeres”, e por isso há em tantos o esforço enorme para não pensar nela, fazendo de conta que ela não existe, para não sofrerem com o pensamento horrível de que ela, inflexível e inexorável, espera no fim da caminhada.

Essa Boa Nova, porém, não pode ser dada pela ciência. Se a ciência não pode senão falar do que é objecto de observação, medição, comprovação, experimentação; como pode ela pronunciar-se sobre o que se passa depois da morte? Mesmo que, por hipótese absurda, a Ressurreição de Cristo tivesse sido filmada no local, registados os depoimentos das testemunhas, não seria possível falar da vida depois da morte em termos científicos. Poder-se-ia, nesse caso, falar da “ressurreição de Jesus”, um caso que não provava por si que se repetiria com todos os que cressem em Cristo. Com filmagens, gravações e todos os exames que se tivessem feito ao Ressurrecto Jesus de Nazaré não estaríamos com mais possibilidades de esperar viver depois da nossa morte do que estamos com as simples narrativas dos Evangelhos.

Na altura em que escrevemos esta página, a revista “Super Interessante” publica um curioso artigo com chamada na primeira página sobre ciência e religião, e refere os entendimentos que cada vez mais se registam entre estes dois ramos do saber humano. Cita, entre outros, o cientista Chet Raymo que diz: “Abandonámos a época dos milagres, mas não a capacidade de nos surpreendermos com o mistério. A nossa pretensão de nos encontrarmos com o Absoluto decorre da nossa procura de respostas. Somos cientistas peregrinos, empoleirados no parapeito da eternidade, curiosos e atentos”. E cita também Enrique Miret Magadalena, teólogo e químico, que está convencido de que “a reflexão científica torna mais razoável pensar que existe Deus do que o contrário”. E um cientista australiano, Paul Davies, que afirma: “Pertenço ao grupo de cientistas que não subscrevem uma religião convencional, mas negam que o universo seja um acidente inquestionável. Creio que o cosmos foi talhado com uma dose de engenho tão surpreendente que não posso aceitá-lo, simplesmente, como um facto brutal. Tem de haver um nível mais profundo de explicação. Se se quiser chamar Deus a esse nível, trata-se de uma questão de gosto e de definição”. A hesitação deste cientista no uso do nome de Deus terá a sua justificação, considerando que há muitos que usam e abusam deste Nome. E terminamos as referências a este artigo da “Super Interessante” com a citação de um Prémio Nobel, Charles Townes, que é físico e cristão católico: “As recentes descobertas sobre o universo encaixam com a ideia de um Deus criador, em forma de uma inteligência superior que se encarnou nas leis naturais”(26).

Quem diz “Deus criador” e fala em “inteligência superior”' crê que a vida humana, com as suas lutas, as suas dores, as suas aspirações, tem sentido, o que não aconteceria se a morte fosse o fim.

 

 

7. Sem temor da morte

 

Há um velho hino, outrora muito usado nos funerais, que tem esta estrofe:

 

                    Presente estás nas trevas e na luz:

                    Não há perigo andando com Jesus!

                    A morte e o túmulo não aterrarão,

                    Onde meu Deus fizer habitação.

 

A convicção profunda que os cristãos podem ter da vitória sobre a morte explica este uso de cânticos nos funerais e o clima de esperança que neles se vive. Era esta a, situação que se sabe ter existido entre os primeiros cristãos. Os estudos que têm sido feitos, com o auxílio de achados arqueológicos, de pedras tumulares com as suas inscrições, têm comparado o desespero reinante nos funerais pagãos e a esperança presente nos funerais cristãos. Num livro que foi lido com muito interesse já no princípio do século XX, As Catacumbas de Roma, de Benjamin Scott, há este período: “Em nada é a diferença entre os dois sistemas (Paganismo e Cristianismo) tão surpreendente como no espírito em que a morte é encarada pelos seguidores das duas crenças. Para o pagão, a morte é a terminação de tudo que é desejável, manifestando-se em cada pagão um sentimento de desânimo ou de vingança contra o Grande Autor da vida e da morte; para o cristão tudo é paz, esperança, previsão de felicidade e indicação de triunfo” (27). Em seguida Scott transcreve alguns epitáfios pagãos e cristãos que ilustram bem as suas palavras:

 

Epitáfio pagão: EU, PROCÓPIA, LEVANTO AS MINHAS MÃOS CONTRA DEUS QUE ME LEVOU INOCENTE. ELA VIVEU VINTE ANOS. PROCLUS EREGEU ESTE.

Epitáfio cristão: DEUS O DEU... O TIROU... BENDITO!... DO SENHOR, QUE VIVEU... ANOS DE PAZ, NO CONSULADO DE…

Epitáfio pagão: ENQUANTO VIVI, VIVI BEM, MEU DRAMA TERMINOU: BREVE TERMINARÁ O TEU, ADEUS E APLAUDI-ME.

Epitáfio cristão: NICEFORO: UMA DOCE ALMA EM DESCANSO (28).

 

Um outro autor, valendo-se de textos dos primeiros séculos da nossa era, reconstitui um cortejo fúnebre cristão nestes termos: “O corpo do defunto é colocado sobre uma padiola pelos parentes e amigos vestidos de branco; outros agitam tochas acesas ou ramos de palmeira. Nada de cânticos fúnebres à maneira pagã, nada de carpideiras profissionais, nada de mercenários para levarem a padiola. O que há é uma procissão triunfal porque “tragada foi a morte na vitória” (29). A. Hamann cita um famoso diálogo entre um procônsul romano e um cristão preso por causa da sua fé e por isso condenado ao martírio, no qual o oficial romano reage ao testemunho do cristão dizendo: “Com essas ideias, Apolónios, amas a morte? Apolónios responde: “Eu amo a vida, Perennis, mas o amor da vida não me faz recear a morte. Nada é melhor do que a vida, mas a vida eterna” (30). Na igreja primitiva, e em princípio para os cristãos de qualquer época, crer na sobrevivência não é uma forma de alienação da vida presente.

A diferença entre o comportamento do pagão e do cristão em face da morte, o primeiro de desespero e o segundo de esperança, veio a diminuir com o tempo. À medida que o Cristianismo se tornou religião oficial, com seus privilégios, sua ligação aos poderes, sua institucionalização, regressaram os comportamentos tradicionais, os medos ancestrais, o velho sentimento de terror diante da morte. Uma prova disso é um sermão sobre 1ª Tessalonicenses 4:13 do grande orador sagrado João, chamado “O Crisóstomo” (O Boca de Ouro, em grego), que viveu na segunda metade do século IV e princípios de século V. Nesse sermão, João Crisóstomo interpela os seus ouvintes pela falta de esperança com que enfrentam a morte, e diz a certo passo: “Crede-me, sinto-me corar de vergonha ao ver indecorosos grupos de mulheres (que acompanham o cortejo fúnebre) passarem junto do mercado arrancando os seus cabelos, arranhando os braços e batendo nos seus rostos - e isto sob o olhar dos gregos (pagãos). O que é que eles não dirão? O que é que eles não hão-de declarar em relação a nós? São estas as pessoas que falam acerca de uma ressurreição? É espantoso! Quão pobremente as suas acções concordam com as suas opiniões! Em palavras, falam acerca da ressurreição: mas actuam tal e qual como aqueles que não acreditam numa ressurreição. Se eles plenamente acreditassem numa ressurreição, não actuariam assim. Se estivessem realmente convencidos de que um amigo falecido tinha partido para um estado melhor, não teriam tal choro. Coisas como estas e ainda piores dirão os descrentes quando ouvem estes lamentos. Tenhamos, pois vergonha e sejamos mais moderados e não demos ocasião a tão grande dano a nós próprios e aos que nos estão a observar” (31).

Nos séculos seguintes e até aos nossos dias tem sido sempre possível encontrar esta mesma situação em largos sectores da Igreja. Ao lado de um número reduzido de cristãos que cultivam com firmeza a esperança da ressurreição, tem existido uma grande multidão dos que repetem o comportamento de desespero próprio dos que não vêem na morte senão tragédia. Uma boa parte da culpa deste comportamento, desta falta de esperança, deve-se aos próprios dirigentes da Igreja que deixaram a mensagem simples do Evangelho ser constantemente adulterada por influências estranhas ao pensamento bíblico. É como se de uma fonte generosa, na encosta de um monte, tivesse jorrado água cristalina que, descendo cantante em direcção ao mar, fosse recebendo aqui e ali minúsculos poluentes e, perto do mar, a água do rio já traga em si elementos que, se ainda não fazem dela líquido letal, perdeu, pelo menos, o sabor puro que apetece degustar. Mas tem havido momentos na história em que a água dada a beber como Cristianismo foi líquido pestilento literalmente mortífero... Caso das Cruzadas, da Inquisição, das Guerras Religiosas, por exemplo. Mas, para nos concentrarmos no tema da morte, é um facto que, apesar de tudo, a par de comportamentos de pavor desmedido, ou de mórbida atracção entre muitos formalmente cristãos, sempre houve homens e mulheres que assumiram a atitude de tranquilo e salutar acolhimento, na esperança de que ela não tem a última palavra.

A história do Cristianismo está repleta de ilustrações desse modo como grandes cristãos morreram. Escolhemos a morte de John Wesley para ilustrar o que acabámos de dizer. Wesley (1703-1791), inglês, foi pastor anglicano, passou por uma profunda experiência de conversão e iniciou um movimento de evangelização que passou a ser conhecido conto “Metodismo”. Não tendo recebido o apoio da Igreja Anglicana para a sua nova actividade, o Movimento, que não parou de crescer, veio a tornar-se uma nova denominação protestante com a designação de Igreja Metodista, espalhada por todo o mundo, incluindo Portugal, onde existe, como congregação formada já em 1868. O fundador do Metodismo foi um cristão de elevada craveira intelectual e de superiores dons de carácter, muito preocupado com as camadas pobres da sociedade inglesa, com as crianças, com os doentes, com os escravos. Wilfred Monod, pastor protestante francês, incluiu Wesley na sua obra de dois volumes sobre A nuvem de testemunhas mais notáveis da história da Igreja e, depois de narrar os passos admiráveis da vida do grande servo de Deus, dedica algumas linhas a descrever a sua morte, aos 88 anos:

“Seis dias antes da sua morte, John Wesley encontrou energia para escrever a Wilberforce (32) encorajando-o a “combater a escravatura, essa execrável infâmia, que é um escândalo para a religião da Inglaterra”

“Dois dias depois, ficou por muito tempo entorpecido. Ouviram-no pronunciar a meia voz: “Não há outro caminho para entrar no lugar santíssimo senão o sangue de Cristo”.

Na terça-feira, véspera da sua morte, cantou com uma voz fraca dois hinos do seu irmão Charles. Pediu uma caneta e papel, mas as suas forças traíram-no. Perguntaram-lhe: ‘Que deseja escrever?’ Oh! Simplesmente: ‘Deus está connosco!’ “Mais tarde ele desejará orar. Depois, tendo tentado em vão dirigir a palavra a um amigo, o moribundo conseguiu dizer: “O melhor de tudo é que Deus está connosco!” Levantou os braços e repetiu com uma convicção vitoriosa: “O melhor de tudo é que Deus está connosco!”

“Na quarta-feira de manhã, 2 de Março de l791, Wesley voltou a suspirar: “Adeus!”, e rendeu o espírito. Nessa mesma hora a estrela do terrorista Robespierre subia, ao céu sangrento da Revolução francesa. Que Revolução diferente tinha Wesley feito! Este gigante calmo tinha percorrido, evangelizando, perto de 500.000 km, pregado 40.000 sermões, publicado 200 obras, compostas ou resumidas por sua mão, escrito montanhas de cartas, multiplicado inumeráveis visitas, gerido os interesses de uma sociedade religiosa fundada por ele - a Igreja Metodista - que contava, na Inglaterra e na América 134.000 membros quando ele morreu; sem contar os milhares de almas levadas a Deus pelo seu ministério e que o tinha precedido no mundo invisível” (33).

O autor destas linhas deseja acrescentar que, na sua experiência de 30 anos de ministério como pastor presbiteriano, tem visto muitos casos de sereno e confiante acolhimento da morte entre muitos dos seus irmãos e irmãs na fé. Foram vários os que manifestaram uma tranquilidade semelhante à desse gigante intelectual e espiritual chamado Wesley, mesmo se, na sua maioria, fossem modestos cristãos, sem voos teológicos. Os funerais que tem celebrado nem sempre estão isentos de lágrimas aflitivas, e quando os sobreviventes familiares não comungam da fé cristã do falecido não raro os choros e desmaios lembram o espectáculo referido por João Crisóstomo. Quando, porém, a fé não é apenas um formalismo, mas o esteio sincero de uma vida e de uma família, parte serenamente aquele que a “irmã morte” veio buscar e ficam serenos aqueles que o acompanharam ao lugar onde vai “dormir no Senhor”. Nesse lugar gostamos de lembrar aos que estão de luto que a palavra cemitério vem do grego e quer dizer “dormitório”.

Assim como sempre recordamos que no Credo proclamamos: “Creio na ressurreição do corpo e na vida eterna!” (34).

 

 

8. Tempo e eternidade

 

Justamente, a ideia de que o cadáver ficará no túmulo “dormindo” até ao Dia da Ressurreição encontra resistência dentro de nós. Se esse dia chegasse uma semana depois da inumação, talvez fosse uma ideia aceitável. Mas sabemos que “desde o princípio do mundo” tem sido sepultada tanta gente e a maioria dos corpos já foi transformada em pó, sem que ninguém acordasse desse longo sono... Mesmo na vida de cada um de nós já nos despedimos de tantos entes queridos que a morte levou. Se estão sem vida todos estes anos, debaixo da terra, não será esta doutrina demasiado triste?

Há uma ilustração muito simples que ajudará a compreender o que pode ser esta situação da morte e do tempo. Quem já foi operado e sujeito a uma anestesia geral, lembrar-se-á que, se a anestesia lhe foi feita, no quarto do hospital, antes de entrar no bloco operatório o anestesista terá começado os preparativos e, como que por acaso, começou a falar com o doente. Faz-lhe uma pergunta de circunstância e, quando o doente vai responder, logo sente alguma confusão, ouve a enfermeira, debruçada, sobre ele, na cama, perguntar: “Então? Sente-se bem?” Tenta sorrir. “Um pouco agoniado. Quando serei operado?” A enfermeira ajeita-lhe a almofada e responde tranquila: “Já foi. Foi operado esta manhã e correu tudo bem”. O doente lembra-se de ter olhado o relógio quando o anestesista chegou: eram dez horas. “Mas que horas são agora?” “Cinco da tarde”, responde a enfermeira. O doente estivera inconsciente e sem qualquer sensação durante sete horas, desde o momento que começou a responder ao anestesista, e foi como se nenhum tempo tivesse passado! Recentemente, uma irmã do autor destas linhas beneficiou de uma grave cirurgia que durou doze horas e esteve inconsciente mais vinte e quatro horas. Quando retomou a consciência duvidava que já tivesse sido operada e quando se convenceu sorriu aliviada e encantada por já não ter de esperar por essa aterrorizante experiência.

 

É já do conhecimento geral que há uma relação entre o tempo e o espaço. O dia é a medida de tempo correspondente ao espaço do movimento aparente do Sol em volta da Terra. O ano é o tempo que leva a Terra a correr o espaço da sua rotação em volta do Sol. Por hipótese, se tudo parasse, isto é, se não houvesse movimento, que é deslocação no espaço, deixaria, de haver tempo. Mas a verdade é que no mundo físico tudo está em movimento, e o nosso próprio corpo é um mundo em movimento. Cada célula, cada molécula, cada átomo está em contínuo movimento.

Os desmaios ou as anestesias gerais, o estado de coma mostra-nos que há também uma relação entre tempo e consciência. E não nos parece por isso especulativo pensar que, se a consciência de alguém fica, pela morte, “fora do tempo” (como se não passasse tempo algum), é apenas para os vivos que ficará no túmulo vinte, cem, mil anos ou cem mil anos. Para o protagonista da morte não houve espera alguma. Aquele que morre hoje, ressuscita hoje. Pela morte, entramos na intemporalidade.

Intemporalidade, é sinónimo de eternidade. Como não há, sinónimos absolutos, eternidade inclui significados mais ricos do que apenas esse que subentende a ausência de tempo, e assim os especialistas dizem que o, hebraico “om” do Antigo Testamento, e o grego “aiôn” e “aiónios”, do Novo T'estamento, traduzidos por “eternidade”, implicam o sentido de quantidade de tempo e de qualidade. A vida eterna é aquela que não acaba e é também a vida isenta das limitações que o homem tem no tempo actual, no mundo do homem natural.

Podemos falar então de dois níveis: o nível do tempo e o nível da eternidade. O nível do tempo é aquele em que vivemos, que é também o nível da história. Tem um começo e terá um fim. É o tempo em que se encontra a Criação. O tempo da eternidade é aquele em que está Deus, que não tem começo nem fim. Deus não tem, portanto, idade, porque “habita na eternidade” Isaías 57:15 Deus vive no eterno presente, e está no que para nós é passado, presente e futuro. A tendência para imaginar Deus como um velho de longas barbas brancas é um antropomorfismo grosseiro.

Se quiséssemos expressar graficamente este conceito, fá-lo-íamos, forçosamente de um modo tosco, desenhando um quadrado com “dois andares”: no andar de baixo “habitaria o homem, com as suas limitações, envelhecendo adoecendo e morrendo; e no andar de cima “habitaria” Deus. Mas esse andar de cima não teria paredes nem tectos, se quiséssemos significar a ausência de restrições de Deus. Esta visão dos “dois andares” está presente em toda a Bíblia, já que não havia outro modo de descrever a situação. Deus está “lá em cima” e o homem está “cá em baixo”. Também na linguagem popular se diz que quando morremos vamos “lá para cima”, porque entramos na eternidade, saímos do tempo para a eternidade, passamos ao andar superior. Percebemos como esta linguagem é inadequada, mas a natureza do próprio tema não permite linguagem melhor. Temos de ter a sabedoria de perceber que toda a linguagem é simbólica, uma convenção de símbolos, que não podem sempre ser interpretados à letra.

Mas não estará Deus também no andar de baixo? Numa visão primária da Divindade, Deus de vez em quando desce ao andar de baixo, fala com o homem. Na visão cristã, mais avançada, Deus está em todo o lado. A Sua habitação não tem limites (não tem paredes): Ele rodeia o homem – “nele vivemos, e nos movemos e existimos”, disse Paulo em Atenas. Actos 17:28

Voltemos à metáfora dos dois andares. A parede do lado esquerdo do andar onde habita o homem é o tempo do princípio, e a parede do lado direito é o tempo do seu fim. Se não gostarmos deste símbolo da casa, podemos usar uma estrada na qual o homem faz a sua peregrinação desde o berço até ao túmulo. Por cima e em redor da estrada há “o céu”, o “lugar” onde está Deus, a eternidade, que vem de antes de a estrada começar e continua para além do túmulo, onde a estrada acaba. A parede da casa ou o fim da estrada mostram que o homem, na perspectiva do tempo, está condenado: espera-o a morte.

Mas a proclamação fundamental de Jesus é a de que ele tem a vida eterna e dá a vida eterna. João 3:16, João 14:6, João 10:10. Dizer que tem a vida eterna é reivindicar a condição divina. Mais ainda: no Novo Testamento é afirmado que quem adere a Jesus e à sua mensagem, passa a experimentar desde logo o que é a vida eterna, entra no céu! João 5:24, Colossenses 3:03, 1ª João 3:14 É claro que se trata apenas de uma antecipação pálida da eternidade, porque o cristão continua a ser um homem terreno, simultaneamente justo e pecador, como lembrava Lutero (simul justus et peccator).

É nesse sentido que para o cristão a morte pode ser chamada começo da realização total da sua personalidade. Se antes da morte o cristão mantém a condição de pecador, ainda que pecador perdoado e em aperfeiçoamento, é só na morte que ele pode experimentar a sua plenitude de homem. Leonardo Boff diz que a morte “é a cisão entre o tempo e a eternidade" (35). Quando chega a hora da morte, quando chega ao fim da peregrinação terrestre, o homem entra na plenitude da eternidade, alcança a estatura do homem perfeito que até então nunca conseguira. Pode-se falar então da morte como uma libertação, não no sentido platónico que via na morte a abertura das portas da prisão, que é o corpo, de onde a alma saía para espaços celestiais, mas num sentido mais rico que vê na morte a passagem à vida plena de ressuscitado.

Pode dizer-se que morrer é alcançar a plena ressurreição. De facto, se pensarmos que morrer é sair do tempo, percebemos que entramos no estado em que só há hoje. Aquele que morreu, por exemplo, cm 1996 vai ressuscitar no Dia de Jesus Cristo, com todos os que “dormem no Senhor”, mas o tempo só passou para os observadores vivos. Aquele que “espera” desde 1996 e aquele que morreu no ano 50 ou no ano 2060 ou qualquer outro ressuscitam todos ao mesmo tempo, na perspectiva bíblica. É portanto correcto, do ponto de vista, cristão, falar de quem morreu como aquele que alcançou a ressurreição. E pode compreender-se então o significado de uma palavra de Jesus quando agonizava no Calvário Lucas 23:43 

Crucificado entre dois assaltantes, Jesus ouviu de um deles, que ficou conhecido na tradição por “Ladrão arrependido”, este pedido:

Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino!

E Jesus respondeu-lhe:

Na verdade, na verdade te digo (expressão que precede afirmações de especial solenidade): hoje estarás comigo no Paraíso".

Sim, logo após o último suspiro, não tendo, para o ladrão crucificado, passado tempo algum, mantendo-se o hoje, está com Cristo num lugar de felicidade que é referido como Paraíso.

 

 

9. Corpo disperso

 

Não se pode ignorar que esta esperança cristã de que os mortos ressuscitarão como Jesus ressuscitou soa a muitos como uma esperança absurda. “Os corpos descem à terra. Alguns anos depois estão transformados em cinza. Muitos foram destruídos pelo fogo, outros devorados por animais. Como poderão todos os elementos dispersos, as cinzas, o mínimo que ficou dos corpos, voltar de novo à vida?” Para evitar o escândalo alguns preferem ficar pelo sentido simbólico da ressurreição; outros acham que se trata de uma doutrina própria de povos primitivos e é disparate tentar mantê-la nos tempos modernos. David F. Strauss (1808- 1874), que viveu num período em que a ciência se arrogava a capacidade de explicar tudo, pretendeu fazer uma leitura que chamou “sem mitos” do Cristianismo (36), que o tornasse uma religião aceitável para os tempos em que o homem, graças ao progresso, está mais esclarecido. Por isso rejeitou com firmeza a ideia da Ressurreição de Cristo, que supôs ter sido invenção dos discípulos, e por consequência rejeitou igualmente a esperança da Ressurreição dos últimos tempos. (36)

O século XIX é o século do triunfo da visão físico-mecanicista do mundo. Muito dessa visão mantem-se em contemporâneos nossos, mas cada vez mais se percebe que a oposição fé-ciência é um mal-entendido. No que diz respeito ao nosso tema, a ressurreição dos corpos, não se pode deixar de reconhecer a razoabilidade (depois de dois séculos de enunciada a Lei de Lavoisier, que afirma nada da natureza se perder) de admitir que as mais pequenas partículas do nosso corpo, por mais dispersas, podem ser convocadas e, pelo poder do Espírito de Deus, ser recriado o novo corpo imortal. Confrontamo-nos hoje com tantos prodígios saídos da mão do homem - desde logo, enquanto escrevemos neste prodígio que é o computador, mas se pensarmos na comunicação sem fios, na televisão a cores, nas experiências do espaço - não parece razoável manter uma atitude parecida com a de Strauss neste tempo muito mais avançado do que o dele. E se há invenções humanas que nos espantam, mais razão há para nos maravilharmos com criações divinas, como o corpo humano, por exemplo. Pense-se apenas no espanto de simplicidade e complexidade simultânea que é o olho humano.

Como já vimos, há cientistas sem filiação religiosa que têm chegado à conclusão, devido às suas observações rigorosas, que nada na natureza acontece por acaso. Muitos reconhecem que há como que um plano prévio no Universo. Os cientistas actuam no pressuposto de que é a ordem e não o caos que reina no Universo. Não há lugar para o absurdo na natureza. Mas poderíamos falar em absurdo se um ser que chegou ao estado tão elevado como o homem, com tanto saber e tantas aspirações, terminasse na morte de uma mameira tão desastrosa. Ao estado a que o homem chegou, tem de seguir-se uma etapa mais exultante, a do alcance da “estatura do homem perfeito”, Jesus Cristo. E isso é, repetimos, o que os cristãos esperam com a Ressurreição, segundo a Escritura. Efésios 4:13

A maior dificuldade que se apresenta para a crença na existência de uma vida depois da morte, está na constatação que geralmente se faz de que a nossa vida psíquica e portanto a nossa personalidade, está totalmente dependente do nosso cérebro e do sistema nervoso a ele ligado. Cada expressão do funcionamento da nossa mente tem correspondência com a actividade molecular do que chamamos “massa cinzenta”. Nós somos fundamentalmente aquilo que a nossa memória guarda. Se perdermos a capacidade de lembrar o nosso passado, o nosso nome, o que aprendemos, passaremos a apenas vegetar, já não seremos pessoas. Como um filme está totalmente dependente da fita de celulóide sobre o qual está gravado: se o fogo queimar a fita, acaba o filme. Se o corpo do homem desce à terra e nela se desfaz, tudo o que constituía a personalidade desse homem desaparece também.

O filósofo Henri Bergson (1859 - 1941) procurou responder a essa questão avançando com a opinião de que os sentidos não dependem do corpo, mas são-lhe anteriores. A nossa visão, por exemplo, existe antes do órgão olho. Nós apenas nos servimos do órgão para o exercício do sentido que existe independentemente do órgão. A visão está, por assim dizer, provisoriamente dependente do órgão olho, mas no futuro, na fase seguinte da evolução, pode ser independente.

Bergson aceita a evolução aproximadamente na concepção de Darwin, acrescentando que houve uma inserção do Espirito na matéria, sendo a nossa consciência expressão desse Espírito e, portanto, independente do corpo (37).

A Igreja Católico-Romana veio a condenar o pensamento de Bergson, e há, sem dúvida, aspectos da sua reflexão que não se harmonizam com a fé cristã, fé que aliás o filósofo não chegou a aceitar. Mas é bem provável que a nova compreensão da ciência e da filosofia obrigue a rever as posições deste admirável judeu, que teve influência em 'I'eillard de Chardin, outro nome que está a voltar a ser estudado.

O pastor baptista americano Harry Emerson Fosdick, num livro publicado em 1915 (38), comentou assim uma teoria aparentemente semelhante à de Bergson mas que encontrara no livro “Brain and Personnality”, do Doutor Tompson: “Esta sugestão, é inteiramente pertinente para o problema da vida futura do homem. A contingência presente da mente no cérebro nega a esperança da imortalidade apenas sob uma condição: que o cérebro cria a mente. Se o eu invisível do honrem é condicionado pela estrutura física, tal como a flor está condicionada pelo pedúnculo e pela corola, nesse caso o seu desaparecimento é seguro; mas o que diremos se a dependência da sua personalidade em relação ao seu sistema nervoso for como a dependência de um telegrafista em relação aos seus instrumentos? (...) Um homem não pode ver sem os olhos, mas os olhos não são o homem; não pode ver sem o nervo óptico, mas o nervo óptico não é o homem; ele não pode ver sem o lobo visual do cérebro, mas o lobo não é o homem. Porque não hão-de eles ser como que instrumentos que o homem usa, sobre os quais as suas presentes actividades estão contingentes, mas sem as quais ele ainda pode viver? Por tudo quanto a ciência tem afirmado, este pode muito bem ser o caso. A ciência descobriu apenas que para cada actividade da mente há uma mudança molecular correspondente no cérebro, e isso continua a ser verdade tanto nós vejamos o cérebro como um agente que cria a mente, corno um instrumento em que a mente actua”.

É legítimo, assim, concluir que a recusa da crença na vida depois da morte, baseada no argumento da nossa dependência do cérebro, não é tão forte como parece à primeira vista. Pelo contrário, a resposta encontrada por Bergson, Teillard de Chardin e outros, dá mesmo mais força a esta crença. Mas, é verdade, que não fica provada cientificamente a existência da vida depois da morte. (39) Como também não há possibilidade de provar cientificamente que com a morte se acaba definitivamente a existência humana.

Assim sendo, resta-nos a possibilidade de fazer uma aposta.

 

 

10. Muitas probabilidades

 

Quando falamos em “aposta” estamos a voltar a Pascal, o filósofo com que começámos. Esse homem genial, que passou por uma profunda experiência de conversão a Jesus Cristo, teve o desejo, natural em todos os cristãos, de partilhar com todos a sua fé. Pensou então em escrever uma obra que mostrasse aos seus contemporâneos o caminho para Deus. Planeou um livro que iria ter o título de “Apologia da Fé Cristã”, mas do qual só ficou para a posteridade o conjunto de textos que, depois da sua morte, foram publicados com o título “Pensamentos”. Aos seus leitores incrédulos ele propôs, em resumo, este raciocínio: não é possível provar pela razão que Deus existe nem que não existe. Eu proponho então que vocês estudem o assunto e depois façam uma aposta em como ele existe. “Se vocês ganharem, ganham tudo, se perderem, não perdem nada”. É um pensamento simples, mas muito profundo. Quem aposta nesse sentido, o que é que ganha? Viverá com a segurança de quem sabe que a vida tem um sentido, que todos os homens são seus irmãos, experimenta o conforto de saber que um Ser Todo-Poderoso vela por si, e está convicto, mesmo nas horas mais sombrias da vida, de que, em definitivo, não corre perigo (o que não significa ficar isento de problemas, de dores, de derrotas em batalhas: mas a vitória final é de Deus!). E vive na esperança de uma vida depois da morte. Mas se, por hipótese, dado o último suspiro, não acorda em parte alguma, fica mesmo morto – não se pode falar em ter perdido seja o que for. Viveu feliz e seguro, e não perde nada porque nem sequer saberá que perdeu! E se há, realmente, vida depois da morte - ganhou tudo. Ganha do “lado de cá”, pelas razões apontadas, e ganha do “lado de lá”. Um português podia juntar este provérbio: “Quem não arrisca, não petisca”.

Deve dizer-se que esse “ganhar”, se Deus fosse claramente uma ilusão, não mereceria aceitação. Viver a “fazer de conta” não seria digno de um ser responsável e adulto. Mas até aqui não hã modo de fazer tal afirmação com razoabilidade. Assim é como se um homem que está perdido no deserto, cheio de sede e só tem duas hipóteses para encontrar o oásis com água: voltar à direita ou voltar à esquerda. Tem mesmo de fazer a “aposta” ou atirar uma moeda ao ar. Se sair “caras” vai para a direita. Aqui com a diferença: se acertou, salvou a vida; se não acertou, perdeu-a. Entretanto, é preciso lembrar que Pascal fala em “aposta” mas sabe que são imensas as probabilidades de estarmos certos quando “apostamos” que Deus existe. Aliás, ele fala como um homem de fé, um homem que afirma a existência de Deus não apenas como uma boa hipótese mas como uma realidade de que tem experiência pessoal. O filósofo sabia que as provas tradicionais da existência de Deus não são suficientes para levar alguém da incredulidade à fé. Os argumentos da razão são úteis, mas insuficientes, porque Deus está acima da razão humana, ou o homem não teria liberdade para aceitar ou recusar. Se Deus fosse evidente não seria Deus. Para encontrar Deus, o homem tem também de querer encontrá-Lo, isto é, tem de usar a sua liberdade, a sua vontade de O encontrar. A aposta implica o decidir aceitar que Deus existe, embora haja argumentos da razão que não provem essa existência. O que mostra ser uma aposta inteligente, porque a vida ensina-nos que em muitas e importantes áreas da vida é assim que temos de actuar. Pascal não o diz, mas poderíamos pensar como analogia o que acontece no amor entre um homem e uma mulher. Um tal amor seria impossível se os protagonistas estivessem teimosamente empenhados em usar a razão apenas no seu relacionamento. “Esta mulher é bela, é inteligente, é saudável, é honesta - casarei com ela”. Não se exclui o uso da razão, mas o que mudará tudo é o sentimento (o coração) que entre ambos se manifestar. No amor, os amantes compreendem-se melhor do que se apenas se observassem objectiva e racionalmente, Também poderíamos falar da arte. A arte não é um produto da razão, mas do sentido estético, da imaginação e da criatividade. Não sendo da razão, não se pode dizer, no entanto, que ela é contra a razão, ou mesmo que ela dispense a razão. Um arquitecto que projectasse um edifício desrespeitando as regras da razão, que são as da adaptação à realidade, (por exemplo, desejando que o edifício não tivesse o piso térreo e começasse no 1º andar!), certamente não iria longe...

O que dizemos da aposta sobre a existência de Deus aplica-se à questão da vida depois da morte. De resto os dois temas são inseparáveis. Se aceitamos a existência de Deus, aceitamos que Ele tem um propósito quando cria o homem, e seria absurdo pensar que o destino do homem termina na morte. E se aceitamos que a vida continua para além do túmulo, aceitamos que a vida não apareceu por acaso, mas há uma inteligência e um poder pessoal, Deus, que explica a nossa existência.

Quem decide apostar que há vida para além da morte, não toma uma atitude contra a razão, mas uma atitude que envolve a razão mas também o sentimento, o coração. A parte do sentimento é aquela que diz respeito à sua subjectividade e que leva a tomar em consideração, entre outros valores, o testemunho da Fé Cristã que anuncia a Ressureição de Cristo e, por ela, a vitória de Cristo sobre a morte. Com rigor, deve dizer-se que acreditar na existência da vida depois da morte é só possível como afirmação de fé. (40)

A fé não estupidifica, como supõem pessoas prisioneiras de uma visão estreita do mundo e da vida. Ela é mesmo um elemento necessário para o aumento dos nossos conhecimentos e para o desenvolvimento das nossas capacidades intelectuais. Um famoso teólogo medieval, Anselmo de Cantuária, seguindo, aliás, o pensamento de Santo Agostinho, cunhou a expressão latina Credo ut intelligam (creio para compreender) e demonstrou que a fé é condição prévia necessária para todo o conhecimento. No dia-a-dia estamos sempre a encontrar situações que ilustram essa verdade. Imagine o leitor que um amigo seu, pessoa honesta e inteligente, lhe diz: “Fui à Ucrânia e visitei em Kiev a Catedral de Santa Sofia”. O leitor não foi a Kiev, ou, se foi, não visitou essa bela catedral ortodoxa, e fica a escutar, encantado, a descrição que o seu amigo dela faz. Confiando no seu amigo, ouve com atenção o que ele conta, e aumenta desse modo os seus conhecimentos. Pode dizer-se que isso é “fé na palavra do seu amigo”. Essa fé não estupidifica de modo algum e ajuda-o a aumentar os seus conhecimentos. Obviamente, não fica a saber da Catedral de Santa Sofia toda a realidade da sua beleza, ou melhor toda a realidade como o leitor a veria (a realidade é realidade subjectiva, vista por nós), mas é neste momento a única possibilidade que tem de saber alguma coisa sobre aquela maravilha da arquitectura ucraniana. Pode dizer ao seu amigo, quando ele inicia a sua descrição: “Cala-te lá, que eu só acredito que há uma Catedral de Santa Sofia quando a vir com os meus próprios olhos!” Mas, sem falar da grosseria que isso representa, propor-se acreditar apenas no que os olhos vêem ou as mãos podem tocar é uma forma pouco sensata de viver. É uma forma de viver que não permite o enriquecimento da personalidade. 

As pessoas que se gabam dizendo: “Eu sou como São Tomé: só acredito depois de ver e de tocar”, ignoram que o texto bíblico que conta o episódio da dúvida desse apóstolo em relação à Ressurreição de Cristo não é de elogio a Tomé, mas de repreensão. O desenvolvimento desta página mostrará porquê.

A parábola do amigo que foi a Kiev, ajuda a compreender o sentido mais simples de “fé” e serve para mostrar a impropriedade de se falar numa “fé cega”. Quando se usa a expressão “a fé é cega” é para significar que quem aceita alguma coisa por fé não tem em atenção o conteúdo daquilo que aceita. Não importa se é ou não verdade, se está ou não dentro do razoável. Mas pensar assim da fé é errado. Uma verdadeira fé não diz: “Tenho a fé de que vou ser rico!” Nem se pode dizer que são actos de fé as auto-flagelações que pela semana santa muitos filipinos fazem. A fé subentende sempre que alguma coisa foi dita, foi prometida anteriormente por uma pessoa que nos merece confiança. O leitor acredita no seu amigo que foi a Kiev se esse seu amigo anteriormente mostrou ser um homem honesto e que não faz confusões com o que viu. Se costuma apanhá-lo em mentiras, ou se já alguma vez confundiu Paris com Londres e uma catedral com um arranha-céus, você ouvi-lo-á talvez pacientemente, por delicadeza, mas não aceitará uma palavra do que disse. A “fé” no seu amigo é possível porque a sua razão lhe diz previamente que ele é um homem digno de crédito. Mas aquele que diz ter fé de vir a ser rico não se baseia em nada mais do que nos seus desejos. Quando muito poderemos falar de uma “fezada”, como dizem os que compram lotaria. E aqueles que se auto-flagelam na Sexta-feira Santa fazem-no confiados nas suas próprias conclusões ou nas conclusões de outros com tanta autoridade na matéria como eles próprios. Para os cristãos, porém, fé é a confiança depositada, numa Palavra a que atribuem superior autoridade. É a palavra de Deus, Jesus Cristo.

Um homem chamado Jesus, vindo de Nazaré da Galileia, começou a falar aos seus contemporâneos. Ao conjunto da sua mensagem e do seu próprio viver chamam o Evangelho, e nesse Evangelho o essencial é isto: “Alegrai-vos porque eu vim para abrir o caminho para a vida eterna”. Assegura que quem aderir a esta mensagem e se juntar a ele e com ele e os irmãos formar a Igreja, receberá o perdão dos pecados, ficará “reconciliado” com Deus, a Quem chamará Pai, e vencerá a morte. Martinho Lutero disse um dia que o resumo de toda a Bíblia é João 3.16: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu filho Unigénito para que todo o que nele crê não morra, mas tenha a vida eterna”.

As promessas de Cristo são admiráveis. Mas podemos acreditar neste homem que as faz? Os apóstolos, por um tempo, enquanto tudo andava bem, acreditaram, mesmo que com alguma hesitação. Quando ele foi crucificado por causa de andar a dizer essas coisas, hesitaram ainda mais, mas, como já vimos, foi só por três dias que duvidaram. Logo em seguida, quando a Ressurreição do crucificado provou que tudo quanto ele dissera era verdade, então saíram à rua e começaram a dar testemunho e a dizer: “Não há que duvidar: a palavra de Cristo merece mesmo confiança!” A sua fé foi apoiada pela sua razão que mostrou que Cristo era digno de crédito.

Alguns dizem: “Eu só acreditaria que há vida depois da morte se um morto viesse da região da morte e me aparecesse!”. Isso explica por que o Espiritismo atrai algumas pessoas. Jesus, na parábola do rico e de Lázaro ensinou que mesmo que um morto voltasse à terra as pessoas não ficariam seriamente convencidas. Os apóstolos, judeus como Jesus, repudiariam o Espiritismo tanto como o seu Mestre, mas a experiência que tiveram foi realmente a de que Alguém regressara da região da morte! Não uma “alma do outro mundo”, não “um fantasma”, mas um homem inteiro (corpo-alma-espírito). É disso que eles dão testemunho: “O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, ao qual vós matastes, suspendendo-o no madeiro. Deus, com a sua dextra, o elevou a Príncipe e Salvador, para dar a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. E nós somos testemunhas destas palavras, nós e também o Espírito Santo, que Deus deu àqueles que lhe obedecem”. Actos 5:30/32

Como mostram estas palavras do apóstolo Pedro diante do Sinédrio, o testemunho sobre a Ressurreição e, portanto, sobre a credibilidade da mensagem de Cristo, não é feito apenas pela pregação apostólica mas também pela acção interior do Espírito.

 O erro do apóstolo Tomé João 20:19/31 foi não confiar no testemunho dos seus irmãos. Ele estivera ausente no dia da primeira aparição, e os colegas comunicaram-lhe com júbilo: “Vimos o Senhor!” - e ele não acreditou nas suas palavras. Como se o leitor dissesse ao seu amigo que foi a Kiev: “Se eu não vir com os meus olhos e não tocar com as minhas mãos na Catedral de Santa Sofia, de maneira nenhuma acreditarei”. Com a agravante que crer ou não na Boa Nova da Ressurreição de Cristo pode ter resultados explosivos, para o bem ou para o mal, na vida das pessoas. Felizmente, porém, no Domingo seguinte, Tomé teve a oportunidade de encontrar-se com o Ressurrecto e crer: Mas teremos que pedir a Jesus Cristo que ressuscite corporalmente todos os dias e permita ser visto e tocado por todos aqueles a quem não bastar a pregação apostólica? E que apareça aos milhões e milhões de pessoas espalhadas por toda a terra! Seria pedir de mais… E seria, sobretudo, desnecessário, porque, não esqueçamos, Ele “ascendeu aos céus”, ou seja, passou a estar sempre presente. Antes, nas limitações do corpo humano, Jesus, se estava em Jerusalém, falando com os discípulos, não estava em Nazaré, nem em Roma, nem em Antioquia ou outro lugar. Se tivesse havido apenas Ressurreição sem a Ascensão, Cristo estaria hoje visível onde? Imaginemos que em Jerusalém, numa casa para ele construída. Os cristãos de todo o mundo fariam viagens aquela cidade e ele iria a uma varanda discursar ao povo. Para as companhias de aviação, para os hotéis, para todo o turismo seria vantajoso, mas seria um Cristo muito limitado. E os pobres, os seus amigos preferidos, como iriam eles viajar até Jerusalém? E a mulher doente e desesperada no seu quarto de morte a quem se dirigiria na sua angústia? Pela Ascensão, Jesus assumiu a condição divina na sua totalidade, e é omnipresente. Cremos na sua Ressurreição pela pregação apostólica, mas também pela experiência da comunhão com o Espírito de Cristo.

O mesmo há-de acontecer com a crença na vida depois da morte. Crê-se nela pelo ensino apostólico, pela reflexão, mas também porque o Espírito de Cristo nos faz participar já hoje da vida eterna, a qual, por ser eterna, dá-nos um pouco do sabor da plenitude de felicidade e de duração. Quem tem uma experiência verdadeira de comunhão com o Espírito, quem está “revestido do Espírito de Jesus” Romanos 13:14 , como diz a Bíblia, mesmo que não tenha estudado o assunto, mesmo que não tenha ainda argumentos de ordem conceptual para provar que há vida depois da morte, tem já hoje a convicção segura de que a morte não é o fim.

 

 

11. Satisfeita a velha aspiração

 

Povos de todos os tempos acreditaram numa vida depois da morte, ainda que as suas representações da vida futura fossem em geral confusas. Os hebreus tinham “um pressentimento” de que a morte não é o fim. No ser humano existe uma sede de imortalidade e a revolta, o desespero, o descontrolo que se observam nas almas simples e sem esperança quando lhes morre um ente querido, mostram que a morte repugna ao ser humano e que é encarada como um inimigo odiado.

Não provarão, a aspiração por imortalidade e o horror natural à morte, que há em nós uma profunda intuição de que a morte não tem direito a existir? Não quererão as reacções naturais à morte dizer justamente que a morte não faz parte do destino mais verdadeiro do ser humano? O Espírito da Vida que preside a toda a Criação, e leva o homem a ter intuições geniais, clarividências, previsões, manifestações inexplicáveis, não será a fonte dessa persistente aspiração à imortalidade? Os mitos das diferentes civilizações não estarão para a humanidade como um todo como os sonhos estão para o indivíduo, isto é, expressando aspectos escondidos da sua natureza? Freud chamou à religião a grande ilusão, e não parece ter pensado que muitos chamarão aos sonhos que temos enquanto dormimos simples ilusões. O que ele não chamaria, pois nos sonhos ele sabia haver a verdade mais profunda do homem. A religião está para a humanidade como o sonho para o indivíduo.

Diante dessas questões só podemos avançar com a convicção de que tudo o que a humanidade mais intimamente sonha que seja bom, puro e justo corresponde a realidades que acabarão por ser concretizadas. Não teríamos pensado em Deus se Deus não fosse uma realidade que se tem manifestado entre nós e que um dia veremos face a face. Não teríamos pensado na imortalidade se ela não fosse a meta final da vida humana. Concordamos com Jean Lyon que escreveu: “Entre as aspirações da pessoa, a mais expressiva é a aspiração a não morrer. Talvez acontecerá mesmo que o homem se saiba imortal antes de se saber mortal, e a morte apareça sempre à razão mais escandalosa do que pavorosa” (41).

São Paulo, certo das consequências da Ressurreição de Cristo, retoma uma palavra do profeta Oseias, e pergunta desafiador. – Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó Inferno a tua vitória? – para concluir com firmeza: Graças a Deus, que nos dá a vitória, por nosso Senhor Jesus Cristo. 1ª Coríntios 15:55/57 Oseias 13:14

A vitória é já uma realidade, mas é só com a Parusia que ela terá a sua total manifestação. A palavra parusia, que outros grafam Parousia é a transliteração do termo grego que no Novo Testamento em português é 22 vezes traduzido por “vinda” e duas vezes por “presença”. Os teólogos usam essa palavra para falar do tempo em que Cristo virá de novo, desta vez em glória, para realizar a plenitude do Reino. Geralmente fala-se desse evento como a “Segunda Vinda de Cristo”. É a escatologia da Fé Cristã, sendo também a palavra escatologia de origem grega (eschatos, quer dizer “último”: é a doutrina das últimas coisas). A fé bíblica tem uma dimensão escatológica, isto é, aponta para o futuro, não é estática, nem vive da saudade do passado. São muitos os textos bíblicos que anunciam essa Segunda Vinda de Cristo, mas limitamo-nos a citar um dos mais conhecidos. Trata-se de um texto de S. Paulo, porventura o texto mais antigo do Novo Testamento, e diz assim: Não quero, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais, como os demais que não têm esperança. Porque, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou assim, também, aos que em Jesus dormem, Deus os tornará a trazer com ele. Dizemos-vos, pois, isto pela palavra do Senhor: que nós, os que ficarmos vivos, para a vinda do Senhor, não precederemos os que dormem. Porque o mesmo Senhor descerá dos céus, com alarido, e com voz de arcanjo, e com trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles, nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras. Mas, irmãos, acerca dos tempos e das estações, não necessitais de que vos escreva; porque vós mesos sabeis que o dia do Senhor virá como ladrão de noite 1ª Tessalonicenses 4:13/18  e  1ª Tessalonicenses 5:1/2

Trata-se, portanto, de um texto escrito num estilo apocalíptico e que não pode ser tomado à letra, mas serve para indicar que a Fé Cristã espera que no Dia do Senhor os que estiverem mortos retornarão à vida. Há outra nota clara de uma esperança triunfal e essa deve ser persistentemente cultivada por cada cristão, para não serem “como os demais, que não têm esperança”. Emil Brunner, um teólogo protestante suíço que teve grande reputação na primeira metade do século XX, escreveu estas palavras. “A Fé Cristã difere de todos os outros credos pelo facto de saber: Deus vem. Como Deus vem ao seu povo, isso já constitui o grande tema no Velho Testamento. No Novo Testamento a primeira palavra é: Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos céus Mateus 3:2 e Mateus 4:17 e a última é: Amém, vem, Senhor Jesus. Apocalipse 22:20 A pregação do Reino de Deus vindouro é o Evangelho, e a certeza da futura redenção e da eterna consumação é a Fé Cristã” (42).    

Os muitos textos neotestamentários que falam do Segundo Advento ou Vinda de Cristo nem sempre coincidem nos seus dados, o que é natural, pois o estilo apocalíptico não está preocupado com a harmonização lógica, aproximando-se nesse aspecto da poesia. As correntes religiosas que tentaram elaborar um discurso lógico, estabelecendo fases e pormenores do que acontecerá então, acabaram por se desentender e dividir em grupos que se guerreiam sem compreenderem que são os próprios textos que não permitem uma interpretação unívoca. Mais sensato é limitarmo-nos a dizer: “Creio que Jesus virá de novo, para julgar os vivos e os mortos!”

Sim, haverá um julgamento, o Juízo Final. Qualquer tentativa para compreender o que isso poderá significar deve ter como pensamento preliminar que Deus é Aquele que Jesus revela como o “Abba”, Pai. Imaginemos uma situação como esta: um jovem termina o curso de Medicina, para júbilo de seus pais, principalmente do pai, que é médico com muitos anos de exercício. Mas o novel médico, após pouco tempo de estágio num hospital, decide abandonar a carreira e dedicar-se exclusivamente à Música, que adora. Como classificaríamos seu pai se, despeitado pela decisão do filho, o odiasse? Não o consideraríamos um bom pai, pelo menos. Mesmo que a carreira da Música em Portugal, salvo para talentos excepcionais, esteja longe de ser uma carreira materialmente proveitosa, um pai normal respeitaria a escolha de seu filho. Deus trata-nos como o Pai que respeita as escolhas dos filhos.

Haverá um Julgamento Final. Onde ele se fará e os pormenores do cenário não é o que importa saber, mas interessa saber quem é o Juiz. Se tivermos a infelicidade de ter que ser julgados num tribunal humano (ninguém diga “desta água não beberei”, pois há gente honesta que se senta no banco dos réus), tanto nos fará ser num edifício belo, recém-construído, com projecto de Siza Vieira, como num velho pardieiro. A beleza do edifício interessa-nos muito quando passeamos, livremente, na cidade. Mas interessa-nos sobremaneira saber, se tivermos que ser julgados em tribunal humano, quem é o Juiz. Se soubermos que se trata de Fulano, com reputação de se deixar corromper por amizades e ofertas, suspeitamos à partida que venhamos a ser vítimas de um julgamento injusto.

No Julgamento Final o Juiz é Jesus Cristo. Quando se fala de Cristo como Juiz e se diz que todas as vidas serão por Ele julgadas, a tendência, em geral, é de associar essas expressões ao conceito de castigo. Mas é preciso sublinhar que, na Bíblia, os juízos divinos são prioritariamente entendidos como retribuição de bênçãos. O pobre, o marginalizado, o humilhado, a vítima da calúnia, todos esperam do Justo Juiz que lhes faça justiça, isto é, que faça valer os seus direitos, que faça com que lhe seja reconhecida a dignidade humana; e receber aquilo que lhe foi tirado. A justiça de Deus é a expressão do Seu amor. Deuteronómio 32:36, Isaías 30:18, Jeremias 30:11, Salmo 135:4, Lucas 18:1/8, Romanos 12:19, 2ª Tessalonicenses 1:5/10, Apocalipse 6:10 Diremos o mesmo em relação ao Novo Testamento, para dizer com Karl Barth, outro grande teólogo do século XX: “A justiça no Antigo Testamento, não é a justiça do juiz que faz pagar o culpado, é, pelo contrário, a decisão do juiz que reconhece no acusado um miserável que ele quer socorrer, levando-o ao caminho correcto” (43). Barth foi acusado por correntes conservadoras de ser, do ponto de vista escatológico, um universalista, designação que dão aos que defendem que no fim todos são salvos por Deus. A frase acima parece dar razão aos acusadores, e sem dúvida o teólogo está muito longe do pensamento cruel dos que aguardam ansiosos que Deus esmague os pecadores (os outros, os que não têm religião ou que são de outra confissão), mas o que ela realça verdadeiramente é que o conceito de justiça, de julgamento e de juiz no contexto da fé tem de ver acima de tudo com a oportunidade que o ser humano tem de em Deus, finalmente, ter Quem seja capaz de o compreender:

Obviamente, não é errado associar a ideia de castigo ao Julgamento de Deus. Erro é privilegiar a ideia do castigo. Qualquer julgamento termina com uma sentença que pode ser classificada como recompensa ou como castigo. Mas a recompensa e o castigo podem ter várias expressões. Se um filho ama e respeita muito sua mãe, sentirá como recompensa de um trabalho que lhe fez o simples sorriso da sua progenitora; se não a amar, a recompensa com dinheiro ou uma jóia pode ser recebida sem gratidão nem alegria. Para um filho carinhoso e respeitador de sua mãe, a expressão muda e magoada dela, depois de uma má acção desse filho, dói mais que muitos ralhos ou mesmo pancada.

Se Deus é o Criador de tudo quanto existe, as nossas vidas pertencem-Lhe e é consequente que Ele não as abandone nunca, mas acompanhe, interessado, como estamos a viver: O teólogo Paul Tillich viu a necessidade de se perceber que em Deus o amor, o poder e a justiça são valores inseparáveis. Alguns cristãos têm realçado em Deus a ideia do amor. Sublinham os textos bíblicos que falam do amor de Deus e designam 1ª João 4:8 como o coração da revelação – “DEUS É AMOR” - mas não se dão conta de que se Deus fosse apenas amor, sem poder e sem justiça, esse “amor seria reduzido à sua qualidade afectiva ou ética”. (44) Mais ainda: “O amor não está para além das exigências da justiça, mas é o princípio último da justiça. O amor reúne, a justiça mantém o que deve estar unido. A justiça é a forma na qual e pela qual o amor pode realizar a sua obra. No seu sentido último, a justiça é justiça criadora, e a justiça criadora é a forma do amor reunificador”. (45)

É por Jesus Cristo, vitorioso, que o juízo é exercido. Falar de Deus em Jesus Cristo como Juiz é reconhecer que somos responsáveis pelos nossos actos, que somos levados a sério. Na morte, encontramo-nos com o Deus Santo e a nossa vida ficará sob a luz intensa do seu olhar de Pai/Mãe.

A Bíblia é muito comedida relativamente a pormenores sobre o que acontecerá então. No entanto, o cristão pode ficar com a tranquila esperança de que, por causa de Jesus Cristo, viverá eternamente. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor, diz a Escritura. Romanos 14:8 Não há orgulho em o crente pensar que lhe está assegurada a sua salvação eterna. Porque não se trata de algo que receberá como pagamento de coisas boas que ele tenha feito, mas trata-se de um dom gratuito de Deus: Pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus. Efésios 2:8

Entretanto, é verdade que, se não é pelas boas obras que o cristão está destinado à vida eterna, a sua salvação há-de manifestar-se numa vida de boas obras, de serviço ao próximo e a Deus. E, de qualquer forma, a vida eterna, como já o lembrámos várias vezes neste estudo, não começa depois da morte, mas desde o momento em que a pessoa se converte a Cristo. Se há vida eterna numa pessoa, logo vida divina, é evidente que essa pessoa faz o que é bom para o próximo, as tais boas obras. Confirma-se que não há orgulho na segurança que o crente tiver de que depois da morte viverá com Deus, pois aquele ou aquela que isso afirma tem em conta a sua experiência já, “neste lado da vida”. Se hoje vives em comunhão com Cristo, se respiras já hoje a atmosfera divina, como poderias imaginar que a morte pudesse separar-te dele? Romanos 8:38/39 Duvidar disso não seria humildade: seria ausência de fé. Um outro símil da fé pode ser dado com a imagem de dois amigos que caminham por um lugar rodeado de abismos. Um deles é cego e depende exclusivamente do companheiro que o guia. Se o invisual tem a certeza que o companheiro é verdadeiramente seu amigo, tem boa vista, conhece bem o caminho, é sensato e não se distrai, esse invisual segue tranquilo porque se sabe em boas mãos. É nessa confiança que o cristão segue “pelo vale da sombra da morte”, na expressão do Salmo 23. Há um hino de letra simples cantado nas igrejas evangélicas que termina com esta estrofe:

 

Não sei para onde vou;

Mas isto sei, Senhor;

Na Tua mão estou,

E Tu és todo amor!

 

         

12. E os não-cristãos?

 

Tudo o que escrevemos até aqui assegura aos cristãos que a morte não tem poder sobre eles. Os que morreram, sendo fiéis até ao fim, e os cristãos fiéis que estiverem vivos no Dia do Senhor, viverão eternamente com Deus.

Mas falta saber o que acontecerá a outros grupos de pessoas, tais como:

 

1º - As crianças que morreram antes da idade da razão e aqueles que ficaram com atraso mental que não lhes permitiu chegar à fé;

 

2º - Os adultos que se afirmam cristãos por serem baptizados e frequentarem os serviços religiosos, mas negam Cristo na prática, vivendo em padrões opostos aos de Cristo.

 

3º - Os que seguem outras religiões;

 

4º - Os ateus;

 

5º - Os agnósticos

 

É evidente que, considerando a Fé Cristã que a revelação suprema de Deus é Jesus Cristo, …a imagem do Deus invisível… Colossenses 1:15, na expressão de São Paulo, as respostas que encontramos no Novo Testamento têm de ver fundamentalmente com Cristo. O Novo Testamento foi escrito tendo como referência o acontecimento testemunhado no meio do povo judeu há dois mil anos. O primeiro destinatário é este povo que professa ter uma Aliança com Deus e por isso assume ser o “Povo de Deus”, mas é interpelado pelo rabi Jesus da Galileia que proclama ser o Messias esperado. A reivindicação central de todas as páginas do Novo Testamento, escritas por autores judeus convertidos ao Cristianismo, é clara e inequivocamente a de que no Calvário foi feito o Sacrifício único e suficiente, sendo Jesus simultaneamente o sacerdote e a vítima, através do qual Deus estabelece uma Nova Aliança (Novo Testamento tem exactamente esse sentido). Todos os que, pela fé, entram nesta Nova Aliança, tornam-se descendência de Abraão, Povo de Deus, e co-herdeiros do Reino.

É bem possível que os escritores do Novo Testamento, se tivessem que escrever no contexto de outra religião e de outra cultura, pusessem as coisas noutros termos, mas isso é apenas conjectura. Ainda assim, é possível encontrar nas páginas do Novo Testamento ensinos que permitem deduzir respostas, mesmo que não precisas, à questão do destino desses cinco grupos acima mencionados.

 

Crianças

 

No Judaísmo em que Jesus nasceu, foi educado e morreu, é só aos doze anos que o rapaz (e não também a rapariga, pois a mulher desde o berço é discriminada) é considerado como “filho da Lei”, ou seja, só então se torna responsável pessoalmente diante de Deus pela sua relação com a Lei revelada através de Moisés. Antes disso, pode dizer-se que as crianças não são responsáveis. Isso não significava que não pudessem ou não devessem ser castigadas quando agissem mal, mas essa é outra questão.

Um dia, os discípulos de Jesus quiseram saber quem era a pessoa mais importante no Reino de Deus e o Mestre colocou um rapazinho no meio deles e disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e vos não fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Mateus 18:3 E diz ainda mais claramente: Deixai vir a mim os pequeninos, e não os impeçais, porque deles é o Reino de Deus Lucas 18:16. (46)

Daí a Igreja ter concluído desde o princípio que, se uma criança, enquanto vive, é já do Reino de Deus, se morre nessa idade não perde essa condição: àqueles quo morrem na infância Deus os acolhe no Seu Reino.

O que veio perturbar alguns foi o conceito do “pecado original”. Com esta expressão pretendeu-se apontar para o relato bíblico da Queda: Adão e Eva pecaram e foram, por isso, expulsos do Paraíso. A sua desobediência é o pecado de que, não só eles, mas todos os seus descendentes se tornaram participantes. Nascemos já tocados pelo “pecado original” e é por causa dele que, mesmo sem culpa nenhuma pessoal, somos pecadores. Logo, nessa perspectiva, uma criança, ainda mesmo antes de ter consciência, já está condenada, é pecadora - e como o pecado não pode entrar no Céu, ela estará condenada.

Este é o desenvolvimento lógico da compreensão da narrativa da Queda como um acontecimento histórico. Mas o objectivo da alegoria de Adão e Eva é apontar para uma realidade que todos podemos constatar no nosso dia-a-dia, que é o facto que todos somos pecadores. A Bíblia não está interessada em fazer a especulação filosófica da ontologia do pecado, mas como livro realista que é, nota que o drama do ser humano, o que torna impossível a sua felicidade, é a pretensão de querer ser igual a Deus, de dominar, de decidir por si mesmo o que é o bem e o mal. Os que crêem que Adão e Eva foram um casal histórico, podem ficar por essa crença, mas seja ou não essa a posição o que é fácil reconhecer é que uma criança, desde o nascimento pode ser por vezes um ser difícil, com birras, com ciúmes, possessiva, violenta. Tudo dando razão à visão bíblica de que somos imperfeitos (pecadores) desde a concepção, mas, obviamente por não ter plena consciência das suas acções, a criança pode ser ajudada com a educação dada pelos seus progenitores ou substitutos, mas Deus seria cruel se condenasse a criança, por causa dessa tendência natural para errar.

Não há indícios de que o destino das crianças falecidas antes da idade da razão constituísse um problema para a Igreja dos primeiros séculos. A ideia de que elas pertenciam ao Reino de Deus estava ainda muito viva e as lápides das sepulturas dão prova de uma saudade dorida, mas com a certeza do reencontro final.

Mas a Igreja foi aos poucos realçando a vertente sacerdotal do seu ministério global e o sacramento do Baptismo veio a ser entendido como indispensável à salvação. Já Jerónimo, teólogo e tradutor da Bíblia (IV século) chega a afirmar: “Os que morrem depois do Baptismo, chegam imediatamente ao Reino dos céus, e por isso nenhuma penitência se deve impor aos baptizados pelos pecados passados”. Concluiu-se desde então que os não baptizados, adultos ou crianças, “serão castigados com fogo eterno”. Mais tarde, para suavizar o discurso, fala-se da existência do “Limbo dos pais”, e do “Limbo das crianças”. O primeiro é o lugar para onde vão aqueles que morreram antes de Cristo ter chegado e anunciado a fé; e o “Limbo das crianças” o lugar destinado às crianças mortas sem terem recebido o Baptismo. O Protestantismo rejeitou sempre esta ideia do Limbo, a que Calvino chamou uma fábula. (47) Num livro de polémica anticatólica, os seus autores protestantes escreveram há cem anos: “A doutrina do Limbo para as crianças não baptizadas inverte toda a economia da graça em Cristo. Então seria preciso dizer que o pecado de Adão e Eva tenha feito mais mal do que a graça de Jesus Cristo tenha feito de bem; e que o Diabo venceu a Cristo. Não, cem vezes não! O Limbo das crianças é uma impiedade”. (48)

As grandes Igrejas vindas da Reforma, como a Igreja Luterana, a Igreja Presbiteriana (ou Reformada), a Igreja Anglicana e a Igreja Metodista, entre outras, baptizam crianças, filhas de cristãos professos, mas nenhuma crê num Limbo, nem duvida que todas as crianças, baptizadas ou não, filhas de cristãos ou de não-cristãos, são acolhidas pelo Deus de amor. E nos sectores da Igreja Católico-Romana mais abertos ao ensino bíblico essa ideia do Limbo perde também apoio. No Dicionário Teológico de Karl Rahner e Herbert Vorgrimler, cuja edição original é anterior ao Vaticano II, já se lia este período na entrada Limbo: “A investigação científica, ainda não terminada, trouxe a certeza de que não se pode falar de um consenso dos teólogos acerca de tal problema em épocas anteriores.” (49) Os autores não se referem particularmente ao “Limbo das crianças”, mas a dúvida alcança-o também a ele. Nos nossos dias, Michel Quesnel, um padre e teólogo que ensina em Paris com a aprovação de Roma, pode escrever: “Toda a pessoa que morre, com ou sem Baptismo, criança ou adulta, é acolhida por um Pai que a ama e a julga em função desse amor. Isto não implica que todo o homem seja necessariamente salvo. Mas que Deus tem critérios muito diferentes dos nossos; e não há dúvida que os Seus são bem melhores!” (50)

 

Cristãos hipócritas

 

A designação é perigosa. Quem classifica outro de “cristão hipócrita”, julgar-se-á ele próprio um modelo de cristão? Mas usamos esta expressão para falar de uma situação que não pode ser camuflada. Há o cristão simultaneamente justo e pecador, que se esforça por seguir a Cristo, tropeça, arrepende-se, avança mais um pouco e tem sempre consciência de que é imperfeito e que só pode viver do perdão de Deus em Cristo. Esse não é um cristão hipócrita, mas um cristão, simplesmente. E há também aquele que nasceu numa família talvez cristã, criou laços que lhe dão a identidade de cristão, e ele próprio o diz ser, por interesse material ou por falta de coragem de se assumir como não-cristão - foi baptizado, casou-se numa igreja, frequenta serviços religiosos, faz as suas ofertas - mas na sua carreira profissional, mesmo na sua vida familiar, de cidadão, na acção política ou partidária, calca aos pés, consciente e tranquilamente, os valores do Evangelho. De consciência embotada, esse cristão de fachada (“hipócrita” vem do grego e quer dizer “homem com máscara”, actor) no que menos acreditará é que haja vida depois da morte! Aliás, se alguém quisesse provar-lhe que há vida depois da morte tal ideia seria recebida com horror: a sua esperança é de que não haja mesmo nada depois da morte, nem haja um Deus justo por cima de tudo! Morrer, não havendo nada para além da morte, é ficar livre de problemas, é sair a rir desta comédia em que esteve a representar. A Boa Nova para um cristão hipócrita seria esta: “morto o homem, acaba-se tudo”.

O norueguês O. Hallesby professor de Teologia, começa assim um pequeno livro que em português recebeu o título Por que sou cristão: “Há dois tipos de cépticos. Primeiro, estão aqueles que vivem na dúvida porque o seu cepticismo lhes serve de escudo contra as acusações da consciência. Não estão dispostos a abandonar a vida fundamentalmente egoísta que levam, quer ela se expresse em pecados grosseiros e declarados, num amor vulgar por este mundo, ou numa vida de auto-suficiência de moralidade exterior. Quando a consciência os perturba, a dúvida é o melhor meio que têm de a acalmar. (51) O segundo tipo de cépticos que Hallesby refere é dos que se sentem perturbados por viverem na dúvida em relação a Deus. Chama-lhes “cépticos honestos”, mas em relação aos primeiros, os hipócritas, o teólogo não mostra ter grande esperança de os mudar:

Há, no entanto, vários graus de hipocrisia. Pode dizer-se que há uma hipocrisia consciente e uma hipocrisia inconsciente Mateus 6:16/34  e Mateus 7:1/15 Ao lado de  pessoas empedernidas no seu fingimento, que se dizem católicos, ou ortodoxos, ou protestantes para retirarem disso proveito material ou psicológico (incluindo dirigentes eclesiásticos), haverá homens e mulheres que simplesmente nunca aprofundaram o significado do Evangelho, que se deixam ir à tona, mais influenciados pela sociedade de consumo, pelos valores errados da sua família e outros, que pelos compromissos com Jesus Cristo. Um comerciante que rouba os clientes, um patrão que explora os seus empregados, um advogado, um médico, um contabilista que foge aos impostos; um tesoureiro que desvia fundos, um marido ou esposa que adultera – e isto, quando se dizem cristãos, é hipocrisia. A gravidade da situação não pode deixar de ser anunciada, se nos lembrarmos que as palavras mais duras de Jesus nos Evangelhos são contra os hipócritas. Segundo Jesus, os publicanos e as prostitutas que vieram a crer nele entram à frente dos fariseus no Reino dos céus. Mateus 21:31.     

Mas a dureza dos discursos de Jesus contra a hipocrisia não precisa de ser vista numa perspectiva moralista. A hipocrisia é capaz de ser menos prejudicial à sociedade que o roubo (salvo se o hipócrita for também ladrão, claro). O combate de Jesus é em nome da realização do ser humano. O hipócrita é o homem que não assume o seu próprio ser, não é autenticamente humano. Sendo assim, percebe-se como o hipócrita está naturalmente impedido de “entrar no Reino de Deus”.

Entretanto, é preciso ter presente que a Bíblia não começa por julgar e condenar, mas por fazer esta afirmação exultante: todos os homens e todas as mulheres, por mais baixo que tenham descido, por mais repelentes crimes que tenham cometido, podem vir a viver no mundo vindouro, fruir o júbilo do Reino de Deus! Se o hipócrita se deixar convencer pelo amor de Deus e se se arrepender, que é abandonar o que sabe errado, passar da vida em mentira para a vida na verdade, e adoptar um estilo de vida do homem novo criado à imagem de Jesus Cristo, o Homem Novo por excelência, estará com Cristo no Paraíso. Na década de 1970, Roger Garaudy, vindo do marxismo, falava do Cristianismo como sendo, fundamentalmente, um estilo de vida. Apesar de acabar por se tornar islâmico, Garaudy, acreditamos, estava a tocar num ponto muito importante da mensagem do Novo Testamento.

E se o “cristão hipócrita” não se arrepender, não tirar a máscara e não se converter? Segundo o Novo Testamento, não há esperança para tal homem ou mulher. Se vos não arrependerdes... morrereis – é a palavra solene de Jesus, Lucas 13:3 e uma das últimas advertências do livro de Apocalipse é a de que ficará de fora do Reino eterno de Deus, entre outros, …qualquer que comete a mentira Apocalipse 22:15. O mentiroso é um hipócrita.

Jesus disse: Muitos me dirão naquele dia (Dia do Juízo Final): Senhor, Senhor! Não profetizámos nós em teu nome? E em teu nome não expulsámos demónios? E em teu nome não fizemos maravilhas? E então lhes direi abertamente: Nunca vos conheci: apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade. Mateus 7:22/23.  

 

Seguidores de outras religiões

 

Não há que esconder: desde o princípio da Igreja a atitude prioritária foi a de ver qualquer religião fora do Cristianismo como um caminho que, por ser diferente do Caminho que é Jesus Cristo, leva à perdição. Esta visão manteve-se ao longo dos séculos e explica em parte movimentos como as cruzadas e as viagens missionárias. Concluiu-se mesmo que o Cristianismo não é uma religião, pois estas seriam o produto do esforço humano para encontrar o divino, e o Cristianismo é o resultado do esforço de Deus para encontrar o homem.

Nos últimos séculos, o Catolicismo e a Ortodoxia, talvez, na nossa opinião, por, na sua interpretação do Cristianismo, terem sublinhado mais a vertente sacerdotal (e consequentemente o sacramentalismo e o ritualismo), em detrimento da vertente profética, tiveram muitas vezes uma atitude mais dialogante com as religiões não-cristãs, e não admira que fosse dentro do Protestantismo (onde é a vertente profética que impera) que se manifestasse uma maior reserva. Ainda no século XX, Karl Barth, na sua obra de maior fôlego, a Dogmática da Igreja, punha a um célebre parágrafo este título: A revelação de Deus como abolição da religião (52) Barth escrevia em alemão e o seu tradutor francês escreveu “assunção” em lugar de “abolição”. O autor destas linhas estudou minimamente o alemão mas encontra de facto no dicionário daquela língua que a palavra usada por Barth, Aufhbung, tem os seguintes correspondentes em português: abolição, anulação, supressão. (53) Esta posição explica-se pela recusa que Barth faz do que chamamos a Teologia Natural. Para ele não há a menor possibilidade de o homem, por si mesmo, encontrar Deus. Deus é o totalmente outro: “Deus está lá em cima e tu estás aqui”. Esta posição radical do famoso teólogo de Basileia foi útil quando o Nazismo procurava misturar a fé cristã com a sua ideologia eivada de valores da velha mitologia germânica pré-cristã, mas deixou de ser realçada depois dos anos 60. Os estudos de religiões comparadas, os trabalhos extraordinários de Carl Jung na pesquisa do sentido da simbologia religiosa, e de Mircea Eliade, principalmente, levaram a perceber o erro de uma atitude totalmente negativa em relação às demais religiões, e sem negar a afirmação central do Novo Testamento que diz, ser Jesus Cristo o Caminho, a Verdade e a Vida e que ninguém vem ao Pai senão por ele João 14:6, faz-se hoje uma releitura da revelação para reconhecer que diante do facto da existência de religiões onde a dignidade humana for respeitada, onde os valores da fraternidade e da liberdade estiverem presentes, os cristãos devem recusar-se a fazer julgamentos definitivamente condenatórios. A luta da Igreja primitiva (como a luta anterior dos profetas de Israel) contra outras religiões não foi em abstracto, mas teve de ver com a natureza concreta de cada religião que o Povo de Deus ia encontrando, religiões sempre com aspectos nocivos ao homem, tais corno sacrifícios humanos, orgias, exploração do povo, com superstições e tradições que procuravam manter o homem na servidão. Quando uma religião não tiver nenhuma prática ou ensino que a própria moral comum reprova, e pelo contrário, seja defensora de valores morais e espirituais que a Fé Cristã aprova, os cristãos hoje sentem dever conviver e cooperar com os seus seguidores. Sem nunca esquecer a sua afirmação central de que Cristo é o Salvador e Juiz Universal.

Chegados aqui reconhecemos que não encontramos no Novo Testamento resposta directa para a pergunta: Qual é o destino dos que morrem dentro das religiões não-cristãs? Há um pormenor muito significativo na descrição do Juízo Final de Apocalipse 20:11/15 que vale a pena sublinhar neste momento. Diante do trono branco são abertos os livros. Um dos livros é o da vida. Os mortos são julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, “…segundo as suas obras…”. Uns são lançados no lago do fogo do Inferno, outros não – e uns e outros, como sublinhámos, “…segundo as suas obras…”.

Impõe-se, a propósito, a leitura de um sermão de Jesus sobre as últimas coisas. (No dia do Julgamento Final) dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos do meu Pai, possuí por herança o Reino que vos está preparado, desde a fundação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era estrangeiro e hospedastes-me; estava nu e vestistes-me; adoeci e visitastes-me; estive na prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor; quando te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro e te hospedámos? Ou nu e te vestimos? Quando te vimos enfermo ou na prisão, e fomos ver-te? E respondendo o Rei lhes dirá: Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestesMateus 25:34/40.

Não rejeitamos um dos princípios fundamentais da Reforma – o que afirma que é apenas pela fé que somos justificados: Sola fides, baseado em Efésios 2:8 – mas lembramos aquela palavra de Jesus, porque ela mostra-nos que nesse dia que nesse dia serão chamados a entrar alguns que pensavam não ter estado com ele.

Outro texto significativo é este de S. Paulo: Quando os gentios, que não têm Lei, fazem naturalmente as coisas que são da Lei, não tendo eles Lei, para si mesmos são Lei. Os quais mostram a obra da Lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os, no dia em que Deus há-de julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho. Romanos 2:14/16.

 

Ateus

 

Parece haver pouco a dizer sobre o que pode esperar um ateu depois da sua morte. Independentemente do facto evidente de o próprio acreditar que, dado o último suspiro, deixa de existir e nada mais o espera a ele, como pessoa.

A Bíblia não diz nada sobre o destino dos ateus após a morte, ou, pelo menos, não o diz directamente, o que se explica por isto: o ateísmo era um fenómeno com que os escritores bíblicos não se confrontaram. No Antigo Testamento há dois salmos onde soa uma afirmação que pode vir de um ateu – …Não há Deus!... Salmo 14 e Salmo 53 - mas só é comentada para designar como “néscio” ou tolo o autor de tal frase. No entanto a lógica de toda a revelação bíblica levaria à conclusão de que os ateus não poderão vir a contemplar Deus. E não só a lógica da revelação. Um ateu militante tem tanta dificuldade de conviver com um simples crente, quanto mais com um mundo onde a santidade de Deus se reflecte na sua plenitude!

É claro que também há vários graus de ateísmo. Há o ateu que nega a Deus a nível puramente das ideias, mas vive uma vida exemptar de relação com os outros. Poderia dizer-se de muitos ateus que “não têm religião mas têm espiritualidade”, aceitando-se a distinção que fez Jean-Yves Leloup num livro de que é autor com Marie de Hennezel, A arte de morrer. Para este autor, “Uma religião representa um esforço envidado por homens e mulheres para darem sentido ao seu sofrimento, à sua morte e à sua existência” (54) E espiritualidade é “dar um passo mais além” na aceitação da minha fadiga, na aceitação dos meus limites, limites da minha inteligência, da minha incompreensão perante o sofrimento”. (55) Pode reconhecer-se que há ateus com espiritualidade e certamente religiosos sem ela.

Há também o ateu que combate a ideia de Deus e adopta o lema que “se há só uma vida, tenho de tirar dela o maior proveito que puder, doa a quem doer”, Crê ser o ser o humano um simples bicho da terra, estando todos envolvidos na luta pela sobrevivência e deduz ser correcto que cada pessoa faça tudo o que puder para vencer sempre, seja de que maneira for. E há o ateu sem pensamento muito definido, que é influenciado pelas circunstâncias, por vezes ateu porque vem de uma família ateia e lidou quase exclusivamente com ateus. Talvez faça algumas patifarias mas, em geral, busca viver urna vida decente, segundo os padrões circundantes. Um ateu deste tipo, que vive intensamente uma causa de solidariedade humana, será mesmo ateu ou está a dar outro nome a Deus?

Há alguns anos, um dos mais destacados portugueses do nosso tempo recebeu uma delegação de cinco eclesiásticos cristãos não católicos, entre os quais o autor destas linhas. Fez perguntas sobre as crenças de cada uma das Igrejas representadas, mostrando alguma ignorância na matéria, mas com muito respeito pelas ideias expostas, e, por fim, com um sorriso, disse: “Os senhores talvez saibam que eu não sou crente. Dizem que a fé é uma graça de Deus... (o sorriso tornou-se um tanto irónico) - mas eu não recebi essa graça”. Não nos lembramos como a delegação reagiu, se reagiu, ao dito espirituoso, mas temos pensado nessa frase como um desafio aos cristãos. A graça de Deus pode chegar aos homens quando Ele quer e da forma que quiser, mas a Bíblia mostra-nos que em geral ela é veiculada por outros homens e mulheres. S. Paulo diz que …a fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus. Romanos 10:17  e di-lo no contexto da necessidade de haver pregadores enviados ao mundo para que os homens cheguem ao conhecimento de Deus. Se Deus quisesse que as pessoas se convertessem só pela acção do Espírito, por meio da graça, Jesus não teria mandado evangelizar. Evangelizar não se faz sem a graça de Deus, mas essa graça é canalizada através de homens e mulheres que dão testemunho da sua fé. Naquela tarde, a graça de Deus estava presente diante do político nos dirigentes cristãos que recebia. Não nos admira que muitos dos nossos contemporâneos, como outros ateus do passado, neguem a Deus porque, por diversas circunstâncias, não tem chegado a eles a proclamação fiel e inspirada da Palavra de Deus. As Igrejas ficaram, aos olhos de muitos, desacreditadas por tomadas de posição política retrógradas, pelas suas divisões, por comportamentos mesquinhos feitos em seu nome, pelo obscurantismo que por vezes quiseram passar por “Palavra de Deus” e, dessa maneira, empurraram muitas almas para o ateísmo, por vezes, homens e mulheres que eram pessoas de escol nas suas gerações. Pensemos na tragédia do grande poeta Antero de Quental, a quem Eça de Queirós chamou o “Santo Antero” pela elevação do seu carácter, pela sua generosidade, pelo amor pelos desprotegidos, pela vida simples que levou – e pela busca incessante que fez de Deus. Mas que cooperação humana recebeu ele para poder encontrar o Deus libertador? A Igreja que Antero conheceu nos anos fundamentais da sua formação, período da juventude, a Católico-Romana, tinha à sua frente o papa Pio IX, que ficou famoso pelas suas atitudes de oposição ao progresso e excêntricas. Nos anos da sua maturidade, o poeta-filósofo esteve ao lado de todos os que lutavam pelo avanço de Portugal, sendo combatido principalmente pelos ultramontanos (católicos conservadores), em nome da fé cristã. Por coincidência, nesses últimos anos da sua vida, que acabou tragicamente em suicídio (1891), começava a existir o movimento protestante português - mas se ainda hoje ele vive quase sem contacto com os intelectuais, nesses tempos pioneiros onde iria o poeta descobrir os modestos pregadores da Reforma?

Antero de Quental, o homem que chegou a clamar “Na mão de Deus, na sua mão direita / descansa afinal meu coração” dá-se tragicamente a morte e “a mão direita de Deus”, que é Cristo, terá experimentado novo Calvário nesse gesto louco.

Quantos dos nossos contemporâneos, grandes intelectuais ou operários conscientes, governantes e pessoas de profissões liberais, caminham pelas nossas ruas, cruzam-se connosco e não encontram o Caminho porque lho não sabemos indicar, ou porque o indicamos sem clareza, ou porque as nossas vidas obscurecem a mensagem de que somos portadores. Não são muitos os cristãos que defendem a existência de estudos teológicos sérios e profundos que possibilitem o diálogo com essas pessoas.

Também, naturalmente, há esperança para o ateu que se arrepende, nem que seja no último minuto de vida, e se volta para Deus. Certamente, isso terá acontecido com muitas pessoas ao longo dos séculos. Já referimos o caso do homem que, nos últimos momentos de vida, teve um lampejo de sabedoria e clamou para Jesus, aquele que agonizava sem ter cometido pecado algum:

Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino! E Jesus disse-lhe:

Em verdade te digo que estarás comigo, hoje, no Paraíso. Lucas 23:42/43

 

Agnósticos

 

A diferença entre o ateísmo e o agnosticismo é que aquele nega pura e simplesmente a existência de Deus (diz saber que não há Deus), e o agnosticismo afirma que a nossa consciência nada pode saber (56) para além dos dados da experiência. O agnóstico não nega nem afirma a existência de Deus e tem, por isso, uma atitude neutra na questão. Na linguagem corrente considera-se agnóstica toda a pessoa que não se declara seguidora de uma religião nem é filiada numa Igreja, mas não nega a existência de Deus.

O agnóstico sente-se equidistante do crente e do ateu. Provavelmente, é muitíssimo maior o número de agnósticos do que o número de ateus. Pessoas que receberam uma formação religiosa na infância e que, quando chegou a idade da razão, não chegaram a uma clara decisão pela fé, mas também não encontraram razões para abertamente rejeitarem a formação recebida, acabaram por ficar nesta área cinzenta, algumas vezes certamente dolorosa, que é o agnosticismo. Há, sem dúvida, também nesta área, os que tiveram dentro das Igrejas experiências desagradáveis que os fez tornar cépticos, mas não o suficiente para abandonarem completamente Deus como uma hipótese.

Muitos agnósticos participam de serviços religiosos, para acompanhar a namorada, ou ela, agnóstica, acompanhar o crente; ali casam, ali baptizam os filhos e ali acabarão por ter funeral religioso, oficiado por um ministro da Igreja.

Há a tendência de se pensar que o agnóstico é um passo em frente, positivo, em relação ao ateu. Dir-se-ia que quem chega a ficar neutro é menos culpado do que aquele que toma uma posição contra. Um governante ateu que possa impor a sua vontade fará tudo para acabar com a ideia de Deus, mas um governante agnóstico ficará neutro e não se envolverá no assunto. Mas estas ilações são de um tipo muito grosseiro e utilitário que, de novo, fazem pensar em termos de o nosso destino ser qualquer coisa de parecido com os prémios dados aos meninos que se portam bem e o castigo aos meninos que se portam mal, quando o que está em jogo é o diálogo dramático e elevado entre Deus e o homem que Ele criou …pouco menor que um deus (eloím), e de glória e de honra o coroaste. Salmo 8:5

Quando pensamos no agnosticismo não podemos deixar de trazer à memória uma palavra grave do livro de Apocalipse. É uma palavra dirigida “ao anjo da Igreja de Laodiceia” e diz assim: Eu sei as tuas obras, que nem és frio nem quente: oxalá foras frio ou quente! Assim, porque és morno e não és frio ou quente, vomitar-te-ei da minha boca Apocalipse 3:15/16 . Como a palavra “anjo” quer dizer “mensageiro de Deus” alguns exegetas crêem que a carta se dirige ao pastor/bispo da Igreja, outros ao ser espiritual que representa a Igreja, mas neste caso interessa mais sublinhar como desgosta a Deus a situação do que não é nem deixa de ser, do morno, equidistante entre o sim e o não. A metáfora é dura mas muito expressiva: “Vomitar-te-ei da minha boca!”

Compreende-se como a neutralidade pode fechar as portas do Reino. Se Deus é Amor, o Amor Total, não pode contentar-se senão com o amor. É certamente isso que Boff quer dizer com esta frase: “Com Deus ninguém convive se não for totalmente de Deus” (57)

 

 

13 – Céu, Inferno e Purgatório

 

Céu

Lembramo-nos de ter lido na imprensa, há alguns anos, que um político norte-americano destacado, cremos que governador de um Estado Federal, membro empenhado de uma Igreja, confrontando-se com uma manifestação ecologista, disse qualquer coisa como isto: “A defesa tão acalorada do ambiente é própria de quem só crê nesta vida e nesta Terra. Nós, os crentes, esperamos que as nossas almas vão viver eternamente no céu, com Deus, e por isso não nos agarrarmos às coisas da Terra”.

É impressionante ver que a velha acusação feita por muitos de que o Cristianismo cultiva o desprezo pela vida terrena encontra apoio em muitos cristãos. Mas nenhum cristão bom conhecedor da Bíblia apoiaria a atitude desse político. Em políticos e outras pessoas que, egoístas, só estão interessadas nas suas carreiras e nas suas carteiras e no aumento das suas contas bancárias, compreende-se o uso desse argumento falsamente espiritualista. Provavelmente, riem-se interiormente da crença num céu e numa vida para além da morte, mas argumentam assim para justificarem as suas posições anti-ecológicas que concorrem para a ruína do nosso mundo. O seu alvo, ao falarem tão piedosamente, é receber votos dos cristãos ingénuos. Podem, tais políticos, ser pais ou avós e nesse caso estão também a atentar contra a saúde e mesmo a sobrevivência dos seus descendentes, mas o provérbio de muitos deles deve ser este: “Vale mais um pássaro na mão do que dois ou três a voar”. Dar cabo da Floresta Amazónica é um crime e terá consequências funestas dentro de anos, mas eles já cá não estarão para sofrer as consequências. Ou vivem longe da floresta (Ou, quem sabe?), entretanto a ciência possa resolver o problema…

Verdade, verdade, é que o argumento falsamente “espiritualista” que leva a desprezar “este lado de cá” da vida em benefício do “lado de lá” é um argumento que não se harmoniza com o facto de Deus nos ter chamado a uma vida de responsabilidade total pela Sua Criação. Uma das imagens que a Bíblia dá do homem no contexto da Criação é a de mordomo de Deus. Ora o mordomo tem como dever cuidar, vigiar, zelar pela propriedade daquele a quem serve. Se o dono da propriedade for magnânimo, generoso e justo, permitirá que o seu mordomo goze também dos bens dela. Quererá Deus menos do homem que criou?

O cristão deve amar a Terra e tudo o que de bom nela existe, porque a Terra pertence a Deus Salmo 24:1, e porque o próprio Deus a ama também. Infelizmente, até nos nossos hinários há, expressões vindas do maniqueísmo que apontam o mal nas coisas “materiais” e o bem nas coisas “espirituais”, celestes. Mas já vimos que esta visão do mundo é estranha à revelação bíblica. Chamar “materialistas” às pessoas que amam a vida terrena é prova de uma leitura irreflectida da Bíblia. A este propósito um autor de língua inglesa escreve: “O “materialismo” contemporâneo (se esta é a palavra correcta neste caso) está muito mais de acordo com a apresentação bíblica, na qual Deus não nega ou renega a Criação, mas afirma-a, identifica-se a si próprio com ela, e actua dentro dela. Tanto quanto diz respeito especialmente à Fé Cristã, a tradicional doutrina da “encarnação de Deus” neste mundo devia ser uma razão mais e decisiva para a declaração da bondade essencial da Criação material, incluindo o corpo humano, feito do tecido do mundo material”. (58)

Quando a Bíblia diz que somos estrangeiros e peregrinos 1ª Pedro 2:11 na terra, é desta velha terra que fala, mas esta terra não está destinada a ser destruída mas a ser uma “nova terra”. Haverá um novo céu e uma nova terra, Apocalipse 21:1 mas novo aqui não quer dizer que o velho é destruído ou abandonado, e sim que é colocado num novo começo. Assim como o homem velho não tem de ser destruído, mas torna-se novo tomando uma nova direcção; e assim como a Velha Aliança com Abraão não é destruída nem abandonada mas em Jesus Cristo toma nova orientação, numa linha totalmente nova e por isso se chama Nova Aliança (ou Novo Testamento). Na velha Terra, em que caminhamos, das injustiças e da divisão, os cristãos são estrangeiros e peregrinos, mas que trabalham para a chegada de Jesus Cristo, aquele que diz: Eis que faço novas todas as coisas Apocalipse 21:5 Essa espera não é passiva, de braços cruzados (ou simplesmente de mãos postas), mas tem de ser servindo os homens, testemunhando da esperança, lutando pela preservação das “penúltimas coisas” (59) enquanto não chegam as últimas. Uma comparação que se pode fazer é lembrar que em Timor-Leste há hoje portugueses a trabalhar (militares, professores, médicos, enfermeiros, etc). Eles são estrangeiros lá, e essa condição dá-lhes a possibilidade de verem os problemas talvez mais friamente do que os timorenses, mas não os exclui do dever, que atiás aceitaram voluntariamente, de ajudar Timor-Leste a ser um país. Esperar a Pátria celestial não pode impedir os cristãos de viverem solidários com a pátria terrestre. De lutarem pela existência de um mundo mais justo e de defender a integridade da Criação. A ecologia é também um dever dos cristãos.

É importante pensarmos que as obras boas que os homens criaram não estão destinadas à destruição. As grandes obras de arte, nascidas da inspiração do Espírito de Deus, mesmo quando os seus autores não o percebiam, serão eternas, não apenas no sentido de ficarem na memória dos homens, mas também porque estarão na vida vindoura. Os Lusíadas, a Nova Sinfonia e a Paixão Segundo São Mateus, como muitas outras obras-primas, não serão destruídas.

Uma concepção da vida demasiado dualista (terra-céu e corpo-alma) pode levar ao desprezo pela vida terrena como o mostra não tanto, talvez, o exemplo acima referido do político americano, que pode ser hipócrita, mas o comportamento de muitos cristãos sinceros, incluindo grandes místicos. Mas a Terra e o Céu estão destinados a estar unidos, caindo todas as barreiras que os separavam. O céu não será mais “lá em cima”, mas descerá sobre a Terra Apocalipse 21:2 É nesse sentido que é correcto recusar falar em “lugar” quando se fala do céu e falar antes de uma “realidade transterrestre que constitui a atmosfera de Deus, infinita, plena e sumamente realizadora de tudo o que o homem pode sonhar e aspirar de grande, de belo, de reconciliador e de purificador”, como escreve Boff. (60) Quando o cristão se pergunta: “Como será o lugar para onde vão aqueles que, pela fé, foram salvos?”, não precisa de ter uma resposta descritiva de um lugar, mas experimentará júbilo se a resposta que chegar ao seu espírito for semelhante à que viemos de enunciar, que não é, claro, uma resposta saída literalmente “da boca de Deus”, mas saída da reflexão de um irmão, uma reflexão que é uma tentativa de satisfazer a nossa humana curiosidade, porque, no fundo é disso que se trata.

A Bíblia, no livro de Apocalipse, descreve o céu como a Nova Jerusalém, que desce sobre a Terra. E toda a descrição que dela faz serve para nos assegurar que a vida vindoura terá uma beleza e um esplendor que ultrapassam tudo o que alguma vez já vimos e vivemos. Usa também imagens como o banquete, jardim, lugar de delícias. Assim, tudo o que o cristão pode afirmar é que sim, há vida feliz depois da morte, mas não há revelação em pormenor de como essa vida será. Quaisquer tentativas para descrever “como é o céu” seriam perigosas e certamente cairiam sob a condenação do mandamento que proíbe fazer imagens do que há em cima nos céus Êxodo 20:4 Condenação pelo menos por causa do ridículo que tais tentativas causam. Lembramo-nos do riso provocado por cenas “passadas no além” de uma telenovela brasileira que há anos foi emitida numa das nossas estações de televisão. Com cenas desse tipo, qualquer pessoa inteligente repudia a crença na vida depois da morte. Quando a, ficção literária, teatral, cinematográfica quiser falar sobre o céu, faça como Jesus fez ao contar a parábola do rico e de Lázaro, que se limitou a falar do Céu como “o seio de Abraão”, onde Lazaro é “consolado”, e do Inferno ou Hades, onde o ex-rico está em tormentos. Lucas 16:19/31 No teatro, no cinema, na televisão, tudo isto, se se quiser descrever, pressupõe imagens muito concretas - e pôr-se-ão os que estão no céu com roupas ou nuas?, pessoas novas ou velhas?, e com óculos e calvos? Estas questões levam-nos a tirar duas conclusões: a primeira é que elas explicam por que Deus não nos revela pormenores do que se passará então. Não há termos da nossa experiência que nos ajudem a compreender essa realidade por força totalmente diferente da nossa. A segunda lição é que os filmes que pretendem ilustrar histórias da Bíblia, de uma maneira geral, adulteram a mensagem bíblica, porque transformam em assunto para os olhos o que estava destinado ao ouvido.

 

Inferno

Fala-se, pois, na Bíblia também de um Inferno. Hades significa “O lugar sem visão” e é traduzido por “Inferno” em Mateus 11:23 Tu, cidade de cafarnaum, que te ergues até ao céu, serás abatida até ao inferno e Mateus 16:18 ….as portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja, assim como em Lucas 16:23  E no Hades o rico ergueu os olhos… em Apocalipse 20:14 A Morte e o Hades, foram então lançados no lago de fogo… e outros poucos lugares do Novo Testamento. Em Mateus 16:18, Lucas 16:23 e em Apocalipse 20:14 é de um lugar de tormentos que se fala.  

É perfeitamente coerente com a ideia que a Bíblia revela de Deus e do homem que nela também se fale da existência de “um lugar de tormentos”. No nosso tempo a tendência é a de recusar a ideia de um Diabo e de um Inferno onde os condenados sofrem. Parece que tal ideia é totalmente oposta à ideia revelada por Jesus Cristo disto de um Deus que é Pai e é Amor. Mas recusar a ideia do Diabo e do Inferno com tal argumento é manifestar uma reflexão simplista e mesmo frívola, que só se justifica como reacção ao modo intimidante como uma certa pregação e catequese tem falado dessas realidades. A própria arte ocupou-se desse tema assustador e todos nós conhecemos os espantosos quadros de Hieronimos Bosch, que podemos admirar no Museu de Arte antiga, em Lisboa. Na literatura são imensos os trabalhos que abordam o mesmo assunto, com destaque para a Divina Comédia, de Dante, onde o poeta descreve uma viagem aos infernos.

Justifica-se a rejeição, não da existência do Inferno mas do modo como ele tem sido apresentado e do modo abusivo como se tem falado dele. Na verdade, se nos ativermos à Bíblia, veremos que dele se pode dizer o mesmo que já dissemos em relação ao Céu: a Bíblia é muito lacónica sobre esse assunto. Mas não deixa de o referir, como, aliás, seria de esperar, pois, existindo, é indispensável que o homem seja alertado para não cair nesse abismo.

Como também já o dissemos antes, na Bíblia o ser humano é revelado como detentor de uma enorme dignidade. Pouco menor o fizeste do que um deus, diz o Salmo 8:5 Não se pode pensar dele como um “pobre diabo” que anda para aqui empurrado de um lado para o outro, à mercê do destino, dos horóscopos, de forças cegas. Não é uma criança crescida e irresponsável. Se a Bíblia diz que o ser humano foi criado à imagem de Deus, o fundamental dessa imagem é a liberdade que lhe é inerente, e que lhe permite dizer “sim” ou “não” a Deus. Mas como poderia dizer “não”, se Deus, ao fim e ao cabo, o obrigasse a um único destino, a vida plena com Ele? Seria como se um pai humano perguntasse a um filho: “Queres ir comigo passear ou preferes ficar a jogar no computador?”, e quando o filho respondesse preferindo ficar a jogar, o pai o obrigasse a acompanhá-lo! Seria ridículo ainda que o pai propusesse essa escolha e em casa não houvesse sequer um computador... A comparação é singela, mas esperamos que dê para perceber quo se Deus quer respeitar a liberdade que deu ao homem tem de lhe dar alternativa.

Classificámos como singelo e frívolo o argumento de que a existência de um inferno é incompatível com a ideia de um Deus de amor, porque esse raciocínio não leva o homem a sério. Um autor escreve a este propósito: “Se as opções do homem não têm consequências eternas, não têm finalmente nenhuma importância, visto que tudo se arranjará e retomará o seu curso anterior. Se a existência de uma pessoa não deve deixar traços permanentes, nada do que ela cumpriu agora tem sentido e grandeza. Uma liberdade que não se reflecte no eterno é apenas um epifenómeno, isto é, uma ilusão; é por isso que recusar o ensino sobre o Inferno é recusar o valor da pessoa humana”. (61)

Para que o Universo seja perfeito é preciso que a ideia de Deus tenha como contraposição a ideia do anti-Deus (o Diabo); o Bem tenha como contraposição o Mal, o Céu tenha como contraposição o Inferno. Como singela ilustração podemos dizer que uma folha de papel, para ter face tem também de ter verso.

Tem havido exageros quando se fala do Diabo em termos mitológicos, imaginando-o uma figura de chifres e de pés de cabra, aparentemente com quase tantos poderes como Deus; e descrevendo o Inferno igualmente em termos tão concretos como se alguém de lá, já cá tivesse vindo para descrever os pormenores. O dualismo é condenável, mas o dualismo é falar do Diabo como o deus do mal, e não como um servo do mal, como o apresenta a Bíblia.

Há um Inferno: devemos saber que existe e aguarda os que recusam o amor de Deus, mas nada mais sabemos sobre ele, senão que é um lugar de tormentos. Não é Deus quem nos envia para o Inferno: Ele apenas respeita a escolha que fizermos. Mas antes de chegar a essa situação-limite, Deus, incansavelmente, de muitas maneiras, tenta conquistar-nos, para nos evitar tal destino.

 

Purgatório

E Purgatório? Haverá um Purgatório? A Reforma protestante do século XVI e seus continuadores rejeitam o ensino católico-romano da existência de um lugar ou estado de tormento após a morte para expiação dos pecados de pessoas boas que não se purificaram convenientemente aqui, sendo essas almas ajudadas pelas missas, orações, esmolas e outras boas obras feitas em seu favor pelos vivos. Era esse o ensino do Cardeal Belarmino, tido como voz inspirada, e é ensino oficial da Igreja de Roma pelo Concílio de Trento, que declara anátema contra quem disser o contrário.

A ideia de um Purgatório, em si parece simpática, se tivermos em vista o que acabámos de dizer acima sobre o Céu e o Inferno. É simpático conceber que Deus dá uma segunda oportunidade ao homem. Mas um ensino para merecer ser reconhecido como cristão tem de ter fundamento bíblico, que é outra maneira de dizer tem de ter a ratificação apostólica. Se referimos entre as marcas da Igreja a sua apostolicidade temos de manter como princípio fundamental que o ensino a confessar tenha a confirmação dos apóstolos, os quais o receberam, por sua vez, do Autor e Consumador da, nossa fé, Jesus Cristo. Ora, o que é desde logo evidente é que não há nenhum texto bíblico canónico que apoie tal doutrina. Exegetas católico-romanos têm apresentado 1ª Coríntios 3:15, mas a simples leitura, do texto e seu contexto mostra o infundado do argumento. Fala realmente de um fogo no Dia do Juízo, mas não de um fogo purificador. Será um fogo destruidor que porá à mostra o carácter falso das obras apresentadas. Também se tem apontado Mateus 12:32 como fundamento para a crença no Purgatório. O texto diz que os pecados feitos contra o Espírito Santo não serão perdoados nem neste tempo, nem no futuro. Poderia subentender-se que há pecados que poderão ser perdoados no tempo vindouro, após a morte? Calvino e todo o Protestantismo rejeita essa interpretação e vê aí um sério alerta a que os homens não sejam rebeldes contra Deus com uma malícia deliberada.

Um texto que também é usado para justificar a ideia do Purgatório é 2ª Macabeus 12:42/45 , mas este texto não foi reconhecido pela Igreja primitiva como texto canónico, sendo por isso designado como “deuterocanónico” e apócrifo. Seria muito estranho que para uma doutrina de tantas implicações houvesse apenas um texto e este sem firme canonicidade.

Pelo contrário, é possível apontar textos bíblicos que não dão nenhuma possibilidade a tal crença. Ocupar-nos-ia muito espaço a transcrição de vários textos bíblicos que não se harmonizam com essa doutrina, pelo que nos limitaremos a chamar a atenção para um texto muito esclarecedor: Disse Jesus. Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem avida eterna e não incorre em condenação, mas passou da morte para a vida João 5:24. Outros textos são: Romanos 8:1, Romanos 8:33/34, 2ª Coríntios 5:8, 1ª João 1:7. Na parábola do rico e de Lázaro, que já citámos a outro propósito, Jesus ilustra a vida depois da morte com apenas dois lugares - o “seio de Abraão”, que é o lugar onde Lázaro se encontra feliz, e o Hades ou Inferno, onde está o rico em tormento. É verdade que uma parábola não serve de fundamento para fazer doutrina, e pode admitir-se que para os propósitos desta parábola as duas ideias antitéticas, Céu e Inferno, eram suficientes, mas não deixa de ser estranho que Jesus nem aqui nem em nenhuma outra parte do seu ensino tenha referido esse lugar de uma “segunda oportunidade”, se ela existisse.       

Na verdade, o ensino sobre o Purgatório é contraditório em relação ao conjunto do ensino cristão. A Boa Nova fica ensombrada se se introduz a ideia de um tempo ou lugar de expiação de pecados por tempo indeterminado. Como se pode dizer que os cristãos são chamados à liberdade se sobre eles se mantiver esta espada da dúvida sobre o que os espera? Parecendo ser uma oportunidade que Deus estaria a oferecer ao homem, seria, na verdade, um fardo pesado que lhe colocaria sobre os ombros. Pensamos que esta doutrina é o resultado de um esforço consciente ou inconsciente que surgiu na Igreja para manter os cristãos num estado de dúvida quanto ao seu destino e, desse modo, mais dependentes do clero. Quem é que pode, acreditando num Purgatório, voltar a dizer como-Paulo: De ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de partir e estar com Cristo, porque isto é ainda melhor? Filipenses 1:23

Os condenados no Purgatório, segundo essa doutrina, beneficiam das missas aqui celebradas em sua intenção, das orações, das boas obras. Mas quando estarão “pagos” os pecados dos que partiram? Esta ideia do Purgatório ilustra bem uma concepção mercantilista de Deus: desde que alguém pague, haverá perdão. Sabemos que a explicação não é “desde que alguém pague”, mas desde que alguém mostre o seu empenho fazendo a sua oferta, fazendo um sacrifício, mas na prática o crente só pensa no pagamento. A questão das indulgências tem de ver com esta doutrina, como se sabe. A doutrina do Purgatório foi desconhecida da Igreja nos primeiros seis séculos e nunca foi reconhecida pela Igreja Grega, tendo-se tornado artigo de fé apenas no século décimo, quando muitas superstições já tinham invadido a Igreja.

Leonardo Boff, quando ainda recebia o apoio da sua Igreja Católico-Romana, tentou conciliar a ideia do Purgatório com uma visão lúcida da Fé Cristã e fê-lo pela assunção de que na nossa morte acontece ao mesmo tempo a nossa ressurreição e o Juízo Final. “O Purgatório significa a graciosa possibilidade que Deus concede ao homem de poder e dever na morte madurar radicalmente. O Purgatório é esse processo doloroso, como todos os processos de ascensão e educação, no qual o homem, na morte, actualiza todas as suas possibilidades, se purifica de todas pregas que a alienação pecaminosa foi estigmatizando à vida, pela história do pecado e suas consequências (mesmo após o seu perdão) e pelos mecanismos dos maus hábitos adquiridos ao longo da vida”. (62) Esta concepção de Purgatório, porém, pouco tem de ver com o que oficialmente se ensina no Catolicismo. E na verdade o que Boff diz pode até dispensar a palavra e o conceito Purgatório, como faz a Bíblia. Basta falar da morte como a grande oportunidade dada ao homem para madurar radicalmente.

Há uma questão ligada à doutrina do Purgatório que devemos também abordar: Trata-se de saber o que podemos fazer pelos que morreram. As missas pelas almas, que a doutrina do Purgatório justifica, dão aos familiares e aos amigos o sentimento confortante de que de alguma maneira estão a cooperar para o bem-estar eterno desses queridos que a morte levou. Se pudermos dedicar os nossos pequenos ou grandes sacrifícios a um querido falecido a vida terá mais sentido, os nossos queridos parece ficarem mais perto de nós. Se nos dizem: “Não há nada a fazer por quem morreu”, é como se abandonássemos os nossos queridos, como se os desprezássemos.

Sim, é preciso dizê-lo mas com alegria: os nossos mortos já não precisam de nós. Entregues ao amor de Deus, sabemos que não poderiam estar em melhores mãos e descansamos. Temos a tendência de querer fazer coisas e gostaríamos até que fosse possível talvez verter um pouco de sangue por cada um dos nossos queridos que parte. Mas o homem de fé deve simplesmente descansar em Deus. O Senhor o deu, o Senhor o levou. Bendito seja o nome do Senhor. Job 1:21

Muitas vezes queremos fazer coisas em favor de alguém porque não sabemos amar. Damos muitas prendas e julgamos que estamos a amar, mas a melhor prenda é mesmo o amor, que é atenção, que é paciência, que é partilha da vida, que é solidariedade nos bons e nos maus dias. Quando estamos desejosos de fazer grandes sacrifícios em intenção de quem morreu (um funeral mais caro do que as nossas posses o justificam, uma cerimónia pomposa etc.), não será porque temos consciência de que não amámos verdadeiramente essa pessoa?

Não precisamos de fazer nada em favor de quem morreu, mas precisamos de não os esquecer. É correcto cultivar a memória dos que amámos e já partiram desta vida. Seja o ente amado sepultado ou incinerado o que dele restar deve ser venerado, a memória dos seus bons actos, da sua amizade, do que ele ou ela pôde ser na vida. As Igrejas protestantes, que não fazem orações pelos mortos, celebram, no entanto, “Cultos em memória”, geralmente só em atenção a grandes personagens falecidas, por razões práticas, pois seria complicado fazer um culto em memória de cada crente comum que morre. A escolha de um dia no ano para um culto em memória de todos os crentes de uma comunidade falecidos nesse ano é uma possibilidade que aliás já existe no chamado Dia de Todos-os-santos. “Santos” nesta expressão são os Cristãos chamados para Deus. O objectivo do culto em memória de um cristão não é interceder por ele (“pela sua alma”); mas dar graças a Deus por essa vida, lembrar o que essa pessoa significou, manter viva a memória da sua passagem por este mundo. Numa capela ortodoxa portuguesa vimos um dia numa mesinha à entrada cartões que um diácono nos mostrou. Eram cartões que pertenciam aos vários crentes daquela comunidade. Cada um escrevia de um lado do cartão os nomes das pessoas vivas do seu agregado familiar, que na concepção daquela Igreja portuguesa faziam parte da comunidade, e na página da esquerda nomes dos familiares que tinham morrido nos anos recentes. Segundo nos disse o diácono, aqueles cartões eram levados todos os Domingos solenemente ao altar para, deste modo, expressarem a ideia de que a comunidade tinha presente a memória dos seus queridos falecidos.

O que não é desejável é que se esqueçam os mortos e se abandonem os seus restos mortais. É a civilização do desencanto e do vazio espiritual que assim faz. Esta civilização que tem medo da morte porque se recusa a crer que a morte já foi vencida por Jesus Cristo.

 

 

14 – Tempo de preparação

 

Um homem de uns quarenta anos, partidário da ideia, de que nos devemos esforçar por encarar tudo com humor (embora, tanto quanto parecia, confundisse humor com brejeirice), falando-se um dia na sua presença de um programa de estudos bíblicos para um grupo de idosos, troçou: “Com um tal grupo só há uma coisa a fazer: prepará-los para morrer!”

Estava, porém enganado. Se as pessoas chegam ao que chamam a Terceira Idade sem estar ainda “preparadas para morrer” dificilmente aceitarão começar essa preparação. Dizemos “dificilmente”, pois sabemos que não é totalmente impossível, mas a tendência do ser humano é que, na velhice, se consolide a orientação que veio de muito antes. O jovem frívolo que não quis ou não foi ajudado a encarar a vida com seriedade, nem passou por uma crise na idade madura que o mudasse, tem muitas hipóteses de chegar a velho sem sabedoria, medroso, simplório.

Na verdade a preparação para a morte é, no fundo, preparação para a vida, porque é também preparação para todas as crises da vida e preparação para saber viver a sua velhice. Deve começar o mais cedo possível, mas não é inútil que o idoso atente também para essa preparação, para a qual apontamos algumas pistas, que são conclusões lógicas da reflexão que fizemos nos capítulos precedentes. 

 

Não fuja da realidade

 

Se a morte faz parte, como é evidente, da realidade da nossa vida é da maior conveniência enfrentar essa realidade. Não procuremos pretextos para evitar participar de funerais de familiares, amigos e conhecidos, porque o pretexto aparentemente mais razoável pode ser apenas uma expressão de fuga. Seria caso de alarme alguém gostar de ir a um funeral, pois poderia ser manifestação de sadismo ou masoquismo. Um funeral é uma cerimónia que sempre causará dor espiritual e nem que seja apenas por solidariedade humana nunca pode dar prazer a uma pessoa normal. Mas o facto de provocar dor não é motivo para evitar estar presente. Tome bem consciência deste acontecimento, porque é uma forma de “olhar a morte nos olhos”, e não se intimidar com ela. Se a experiência lhe causar perturbação excessiva, consulte um especialista que o ajude a enfrentar os problemas (psiquiatra, psicólogo, conselheiro cristão). Não evite conversas nem leituras que abordem o tema da morte, desde que não caiam no excesso mórbido.

A Bíblia é o livro que fala da vida e fala da morte. A sua leitura feita com regularidade, como estudo e como devoção, ajuda a adquirir uma visão tranquila da existência e a aumentar o sentido da sua dimensão espiritual.

 

Abandone a idolatria

 

Dito assim, parece que estamos a aconselhar a deixar de ajoelhar e orar diante de imagens religiosas. É verdade que a Bíblia condena isso num dos Dez Mandamentos, justamente por causa do conceito referido num capítulo deste livro segundo o qual Deus é o IAWHEH, Aquele que existe por si mesmo e não é visível. Mas neste momento do que estamos a falar é de uma idolatria mais subtil. Trata-se do modo idolátrico como tantas vezes amamos certas pessoas - a mulher, o filho, o pai, a mãe, um irmão. Pode chamar-se idolatria um tal tipo de amor sempre que esse amor se tornar obsessivo, a ponto de ser a referência determinante da nossa vida. O ser amado torna-se assim aquilo que Tillich chamou o Ultimate concern (Aquilo que nos preocupa em última análise), ou seja, o ser amado toma o lugar de Deus. Pode acontecer que o próprio “eu” seja o objecto da adoração, o “ultimate concern” de uma vida. Num caso ou outro, essa vida fica sem transcendência. E a morte, encarada como extinção, um horror insuportável. Abandonar a idolatria ou o amor idolátrico é difícil numa cultura em que se vê esse amor como uma virtude, e onde se supõe que abandoná-lo é substituí-lo pela indiferença, senão mesmo pela inimizade. Mas numa perspectiva cristã só há uma substituição possível, que é amar com amor-serviço. A palavra grega que no Novo Testamento em português é traduzida por amor (e anteriormente era traduzida por caridade) é agape, que tem sempre conotações com “servir, ajudar, promover, libertar”. É nesse sentido que Jesus apresenta o seu Mandamento: Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei a vós, que também vós vos ameis uns aos outros. João 13:34 Este amor deve estar presente sempre no relacionamento entre as pessoas, e é ele apenas que há-de assinalar o novo mundo que Cristo anuncia. É um amor em que aquele que ama não espera retribuição, não requer nada, pois o verdadeiro amor não procura a sua felicidade mas a do outro. Como eu vos amei, disse Jesus. O seu amor manifestou-se na obra da salvação, na sua entrega, na sua morte na cruz. É com este amor que não apenas aquele que ama é livre, como deixa livre o ser amado. Jean-Yves Leloup, co-autor com Marie de Hennezel de um livro sobre este tema da morte, questionado sobre as palavras que poderão ajudar a amar sem ter medo de perder, responde assim: “Uma das palavras, ou falas, consiste precisamente em poder dizer ao outro (que vai morrer): “Vai... vai ao encontro de ti mesmo”. É o que diz Abraão Génesis 12:1 Aprender a amar é aprender a perder...” (63) É aprender a estar pronto para dar mão do ser que se ama. Kahlil Gibran, o grande poeta místico, escreveu sobre os filhos: “Os vossos filhos não são vossos filhos (...) Vós sois o arco do qual os vossos filhos, como flechas, são lançados”. (64) Tudo o que amamos, amemos com esta sábia visão de que não nos pertence. Passaram por nós para seguirem a sua própria trajectória. A nossa felicidade consiste em sermos cooperadores de Deus na realização de outras vidas.

 

Aprenda a perder

 

Jesus disse: Quem quiser ganhar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, a salvará. Lucas 9:24 Receamos a morte porque ela nos parece derrota. Vivemos tão centrados em nós próprios que vemos com horror um acontecimento, a morte, que ameaça aniquilar-nos. Aniquilar o nosso “eu” que queremos sempre vitorioso.

A imagem singela entre gente piedosa é a de um trono existente “no nosso coração”, no qual o nosso “eu” se senta petulante para daí dar ordens. Defendemo-nos bravamente de tudo e todos que nos queiram tirar esse lugar. A conversão consiste em retirarmo-nos do trono e entregá-lo a Cristo. Isso também se chama “morrer para o pecado”, porque a essência do pecado é, precisamente, o homem viver fechado sobre si (incurvatus in se), como disse Lutero. Morrer, perder a vida, por amor de Cristo, é abandonar o seu egocentrismo e viver agora em Cristocentrismo, junto dos irmãos e irmãs que formam o Corpo de Cristo, a Igreja. Alguns dizem: “aceito Cristo, mas não nenhuma das Igrejas”. São, dizem, “cristãos sem denominação”. Seria uma forma estranha de seguir Cristo, ele que aceitou ser baptizado por João Baptista, juntando-se aos pecadores, não pode ter como discípulos quem se recuse a juntar-se a uma Igreja por a achar insuficientemente boa para merecer a sua companhia.

Viver “em Cristo” implica viver em comunidade. O espírito comunitário é indispensável na preparação para a vida e para a morte. Já dissemos antes que a morte assusta mais aqueles que não viveram autenticamente - e não há vida autêntica onde a existência não é partilhada com os outros. Partilhar a vida com os outros começa por ser estar com os outros, ouvir as suas razões, os seus sonhos, as suas decepções. É partilhar do nosso tempo, da nossa solidariedade, do nosso esforço, da nossa esperança, e claro, dos nossos bens materiais, quando for necessário. É dar a cooperação possível e empenhada na construção de um mundo mais fraterno, mais justo, mais verdadeiro.

 

Acorde a criança que há em si

 

O pensador português Agostinho da Silva, professor universitário e autor de muitas obras, nos últimos anos da sua vida encantou o País com entrevistas que a Televisão emitiu durante algum tempo. Em várias delas fez uma exortação muito própria de quem, como ele, era leitor apaixonado dos Evangelhos. A exortação que o pensador fazia aos seus telespetadores era esta: “Acordem a criança que está dentro de vocês”.

Agostinho da Silva tinha autoridade para fazer tal exortação. O seu sorriso quase infantil, apesar dos oitenta e alguns anos que então tinha, mostrava que ele próprio convivia continuamente com o menino que fora. Curiosidade, interesse vivo por tudo o que o rodeava, simplicidade, boa-vontade para com todos, pareciam ser características evidentes nesse homem notável, e são sem dúvidas características das crianças. Pelo menos das crianças que os adultos não estragaram com violências verbais ou físicas, com más influências, com falta ou excesso de carinhos.

Jesus disse que das crianças é o Reino dos Céus e, por isso, acordar a criança que há em nós é prepararmo-nos para começar a viver já hoje a vida a que a morte não pode pôr fim. A dificuldade parece ser como acordar a criança! Os Evangelhos não ensinam. O facto de não ensinarem, se calhar, é porque não e preciso ensinar, é porque nós o saberemos espontaneamente. Há uma pista interessante: se Jesus disse …se vos não fizerdes como uma criança… Mateus 18:3 é porque afinal, ao contrário do que podíamos pensar, a criança não desapareceu, não está extinta em nós. Por isso Agostinho dizia: “Acordem-na”. A criança que fomos está lá, ainda que adormecida. Acordar a criança é dar a prioridade no nosso viver ao que é característico da criança e que devia permanecer em nós até ao fim, mas que fica escondido por causa do medo que o adulto tem de ser posto a ridículo, de ser humilhado, de ficar a perder. Uma criança fala com simplicidade dos seus medos, das suas aspirações, dos seus fracassos. Aceita as suas limitações, sem medo de ser fraca. E não tem receio nenhum de fazer perguntas quando não sabe. É interessante notar que os fariseus do Evangelho não fazem perguntas para se informar, mas para apanharem Cristo em armadilha. Também se nota isso em muitos sectários religiosos ou políticos dos nossos dias. Nunca fazem perguntas para aprender, como as crianças, mas para tentar esmagar o outro com a sua sabedoria.

Outra das características das crianças normais é a confiança que põem nas outras pessoas. Sem terem em conta a apresentação dessas pessoas, a cor da sua pele, o país a que pertencem. À partida, enquanto, pelo menos, quem com a criança convive não mostrar falsidade, a criança aceita todos.

Dir-nos-ão: “Sim, mas a criança não tem experiência, e em princípio não é exposta aos perigos de lidar com velhacos como nós, adultos, temos de lidar no dia a dia, nos empregos, na política, até nas igrejas. Se não nos protegermos com um alerta constante, seremos cilindrados - e mesmo assim, muitas vezes o somos”. No entanto, não se pode esconder que a criação de um clima de sistemática desconfiança envenena a vida, impossibilita-nos de partilhar a nossa vida com os outros, e infelicita-nos. Jesus disse aos seus discípulos ao enviá-los ao mundo: Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos. Portanto, sede prudentes como serpentes e símplices como as pombas. Mateus 10:16 Jesus não seria, partidário de um optimismo antropológico do tipo “não há pessoas más” (e nesse aspecto não concordaria com Agostinho da Silva, que no livro “Educação de Portugal” manifesta apoio à ideia da bondade natural do homem, embora diga também: “Nenhum adulto foi bom em tempo algum, com excepção dos santos”). Jesus disse: ...Ninguém é bom senão Deus. Lucas 18:19, mas ensinou a não pagar mal com mal e, portanto, a encarar os outros não como inimigos a abater mas como o próximo a quem se deve amar. Amar não o esqueçamos, quer dizer servir, ajudar, promover. E não quer dizer “fechar os olhos”, fingir que tudo é bom. Aliás, o próprio perdão não é um encolher de ombros diante da patifaria. Isso não ajudaria o patife. É preciso interpelar o prevaricador ajudá-lo a compreender a dimensão do mal que cometer, ajudá-lo a corrigir-se.

Neste item queremos ainda salientar uma característica da criança desejável no adulto. É o à-vontade com que ela fala da morte. Beatriz, uma menina de seis anos, perdeu recentemente a avó paterna. Falando com o avô materno disse, sorrindo com tranquilidade: “O próximo a morrer vais ser tu; depois é a avó (materna), depois é o avô V. (paterno), depois é o papá, depois é a mamã e por fim sou eu”. O avô estremeceu ante as últimas referências, e achou desnecessário rejeitar a ordem cronológica usada pela pequenita, mas o dito serve para ilustrar como uma criança que recebe uma educação em que a morte não é tabu pode aceitar com serenidade este acontecimento na família.

 

Conte com a morte

 

A morte não acontece só aos outros. Inclua-a como um acontecimento seguro a ter lugar também na sua vida. Porque há-de alguém pensar no curso que vai fazer, na profissão que seguirá, na casa que habitará, no cônjuge que terá, no seguro de vida, na aposentação, e não há-de planear nada em relação a esse acontecimento, que não é o último mas o acontecimento inevitável para passar à plenitude da vida?

Mesmo que lhe pareça muito cedo, por se sentir novo e saudável, vá tomando as disposições que ajudarão os seus familiares na hora da sua partida. Conhecemos famílias que tiveram graves desentendimentos depois da morte de um pai ou mãe que não estabeleceu o modo de distribuir os bens deixados. Podemos achar escandaloso que tais casos aconteçam, mas são factos contra os quais não há argumentos, Por mais modesto que seja o espólio, deixe indicações precisas e justas que facilitem a situação dos que ficarem. Nem hesite em falar ou escrever sobre o modo como quer o seu funeral. Não é mórbido tratar desse assunto, se ele for importante para si. Faça saber quais são as suas preferências relativamente à cerimónia. Uma senhora de fé evangélica, com uns setenta anos, em Lisboa, foi um dia com seu marido a casa de um pastor seu conhecido e disse-lhe com tranquilidade: “Pastor, vou ser operada na próxima semana. O problema que me leva a esta operação é grave e posso morrer durante ela. Vinha, por isso, pedir que fosse o senhor a celebrar o meu funeral”. O ministro do Evangelho conhecia bem o colega que pastoreava a congregação daquela senhora, sabia que ela apreciava muito esse pastor e admirou-se que lhe fizesse tal pedido. “A razão do meu pedido é simples. Tenho assistido a vários funerais celebrados pelo senhor e gosto muito do modo digno, discreto e simples como os celebra. Há pastores evangélicos que parecem ver no funeral uma oportunidade para massacrarem os ouvintes com longas orações e longos sermões evangelísticos, quando do que as famílias precisam é de uma calma afirmação da vitória de Jesus Cristo”.

A operação da senhora foi bem sucedida e ela só veio a morrer com perto de 90 anos. Com liturgia a seu gosto ou não, desconhecemos, mas a conversa que teve quase vinte anos antes com um pastor mostra que era uma cristã sem receio de falar da sua morte.

 

Seja-nos permitido terminar este capítulo sério com uma história engraçada que nos contou uma secretária da Universidade de Lausanne há muitos anos. A Faculdade de Letras dessa Universidade organizava, e organiza, durante o verão, cursos de língua francesa para estrangeiros. Uma jovem italiana escreveu do seu país a manifestar o desejo de se inscrever num curso para quem já tinha alguns conhecimentos da língua, e pedia informações de pormenor. Escreveu a carta no seu francês incorrecto, provavelmente com recurso ao dicionário, e pediu que lhe fosse alugado um quarto para habitar em Lausanne durante o curso. Terminou com uma pergunta: “A senhora acha necessário que eu leve comigo uma mortalha?” A secretária arrepiou-se. Está bem que uma pessoa conte com a morte na sua vida, mas uma jovem ter a morbidez de viajar com a mortalha na mala, parecia excessivo! Sobretudo deslocando-se para a pacífica Suíça. Afinal, fora erro na palavra usada: a jovem queria falar da necessidade ou não de levar lençol (drap, em francês) e escreveu mortalha (linceul), que é, como se sabe, o tecido com que se envolve o cadáver, que vai ser sepultado. O problema é que a palavra italiana para lençol (lenzuolo) é quase igual à francesa para “mortalha”.

 

 

15 – Acreditar cem por cento

 

As sondagens com aparato científico e a simples observação que qualquer um de nós pode fazer mostram que a crença na continuação da vida depois da morte não é partilhada pela maioria das pessoas nas sociedades modernas. Norman Pittenger fala da “perda da crença na vida depois da morte” e faz esta constatação: “Eu diria que mesmo entre aqueles que são regulares frequentadores de igrejas e que poderiam ser classificados como homens e mulheres cristãos, não há convicções seguras acerca da vida depois da morte”. (65)

Muitos admiram-se de que pessoas que se afirmam crentes em Deus e na vida após a morte manifestem dor quando lhes morre alguém e medo de enfrentar a sua própria morte. Outros apontam o fado de o papa João Pauto II viajar num carro à prova de bala e sempre acompanhado de guarda-costas. “Se ele cresse verdadeiramente na continuação da vida, - comentam – não tomaria precauções contra a morte”.

Não duvidamos que algumas manifestações de frequentadores de igrejas em relação à morte revelem, de facto, ausência de fé, mas é cruel e injusto duvidar da fé de alguém que verte sentidas lágrimas pela morte de sua mãe, de seu pai, do cônjuge, de um filho, de um irmão, de um amigo. Toda a separação é dolorosa, mesmo quando temos consciência de que voltaremos a encontrar a pessoa de quem nos Separamos. Num cais de embarque ninguém se admirará de ver lenços limpando lágrimas furtivas. Adiante diremos algo mais que permitirá perceber que o sofrimento perante a morte pode conciliar-se com a existência de uma fé sincera.

Quanto à preocupação do papa por, preservar a sua vida, compreendemo-la se tivermos em conta a complexidade a que chegou a estrutura da Igreja-católica Romana e do Estado do Vaticano. Quem aceita ser eleito papa é porque concorda no essencial com o sistema e deseja preservá-lo. E mesmo se desejar, protagonizar grandes mudanças na Igreja tem também de preservar a sua vida, pois, como diz o provérbio americano, “Homem morto não conta histórias”. Sendo certo que há neste mundo fanáticos capazes de assassinar aquele que for o primeiro responsável de uma orientação por eles, fanáticos, odiada, o papa e os que velam pela manutenção do seu pontificado, têm a obrigação de não facilitar a acção aos potenciais assassinos. Provavelmente, não se trata tanto de evitar a morte do papa mas de evitar as graves consequências do assassinato de quem ocupa aquele cargo. O mesmo se pode dizer de qualquer chefe de Estado ou primeiro-ministro cujo assassinato poderia lançar o seu país numa anarquia ou guerra civil, com a morte de muitos inocentes. Mesmo um homem corajoso, desprendido e humilde, ao aceitar um cargo deste tipo tem de ter a sensatez de não expor inutilmente a sua vida. O autor destas linhas prefere num modelo mais democrático e sem poderes temporais. Então não haverá um chefe supremo com poderes decisivos cuja morte violenta possa trazer perturbação à Igreja e ao mundo.

De qualquer forma, é preciso lembrar que Jesus chorou junto do túmulo de Lázaro. João 11:35

E ainda que estivesse pronto para levar o seu amor ao Pai e aos homens seus irmãos até à dádiva da sua própria vida, por duas vezes afastou-se quando o quiseram matar. João 7:1 e João 11:54 Uma coisa é dar a vida para cumprir um alvo nobre e supremo (a salvação da Humanidade, no caso de Cristo) e outra é ser assassinado sem benefício para nenhuma causa.

O receio que por vezes surge num crente em relação à sua própria morte, explica-se muitas vezes, além da presença de uma percentagem de dúvida, pela existência de factores de ordem social que não facilitam o processo. Um homem novo, com filhos menores, que sente aproximar-se a hora da morte há-de experimentar perturbação por temer que a sua ausência vá resultar em grandes dificuldades materiais para essas crianças. Lembramo-nos de um casal muito dedicado aos ensinos de Cristo e à Igreja que tinha um único filho já adulto e mongolóide. Sem mais família, o pai dizia-nos um dia com grande tristeza: “Agora o nosso filho é feliz. É uma criança feliz. Mas quando eu e a minha mulher morrermos, quem cuidará dele?” Dificilmente haverá uma sociedade humana que resolva todos os problemas, mas num mundo mais justo, com instituições preparadas para proteger os cidadãos mais vulneráveis e mais desprotegidos, angústias deste tipo não se poriam. Eis mais um motivo para os cristãos se interessarem pela criação de uma sociedade democrática e solidária, denunciando as injustiças, votando e aceitando ser eleitos quando necessário.

Há ainda outro ponto que deve ser abordado. Trata-se de realçar o que em páginas atrás dissemos da natureza da própria crença na vida depois da morte. É preciso ter bem presente esta verdade quase lapalissiana: a crença na vida depois da morte não pode ser uma certeza absoluta, do tipo das certezas da matemática, por exemplo. Em matemática pode chegar-se, tanto como um simples observador supõe a obter certezas que podem chamar-se indiscutíveis. Mas isso não acontece em outros ramos da ciência e da vida. Obviamente, não pode acontecer também na área que é objecto do nosso estudo, a morte. Deve mesmo sublinhar-se que a incerteza, tratando-se de afirmações sobre Deus ou sobre a vida futura é condição indispensável para que se mantenha a liberdade do ser humano. Como poderia alguém recusar Deus se Deus se apresentasse à mente como uma certeza absoluta? Como poderia recusar a vida com Deus, depois da morte, se a sua existência se impusesse como certeza absoluta? Embora numa esfera diferente, Armindo Rodrigues tinha razão quando rescreveu:

 

Só na certeza

da incerteza

há horizonte.  (66)

 

Roger Mehl concluiu assim uma sua brilhante reflexão bíblica e teológica sobre a possibilidade ou não de ter certezas sobre a vida depois da morte: “A vitória sobre a morte não pode ser estabelecida de uma maneira positiva e racional; o crente não a pode demonstrar”. (67) Não a pode demonstrar empiricamente, esclareça-se. Foi por isso que acabámos por propor; nas pisadas de Pascal que fosse feita a “aposta” na vida depois da morte. Se essa vida vem após a morte, no intemporal, e nós, observadores, estamos no tempo, não há forma de se fazer a demonstração empírica. O médico que assiste aos momentos finais de uma vida terrena, verificará todos os factores mensuráveis, físicos, que lhe permitirão afirmar a morte do seu paciente, mas está completamente impotente para seguir além na sua pesquisa. Como médico, em nome da ciência e da técnica, não pode senão falar da cessação da vida física.

Por mais de uma vez temos ouvido seguidores das doutrinas espíritas afirmarem que as suas crenças são baseadas em experiências científicas. Se o fossem os próprios cientistas teriam de se curvar às suas afirmações, mas tal não acontece. Na verdade, trata-se de uma religião e por sinal uma religião que, apesar das pretensões de Alan Kardec, está em oposição ao Cristianismo. A sua antropologia claramente dualista, privilegia a alma e rejeita a doutrina da ressurreição do corpo. Contrariamente ao Cristianismo, o Espiritismo crê na comunicação com os mortos e usa médiuns. Temos ouvido e lido testemunhos sobre fenómenos manifestados em sessões espíritas, em que pessoas honestas dizem ter ouvido afirmações sobre factos que só podiam ser conhecidos do morto mas lhes são comunicadas “do além” pela boca dos médiuns. Alguns cristãos classificam tais fenómenos como manifestações diabólicas. Mas pode admitir-se que o médium é alguém com a capacidade, talvez inconsciente, da clarividência e consegue, pelo menos algumas vezes, em transe, ler o pensamento de quem o consulta. Nisto não há transcendência.

Por outro lado, têm sido feitos estudos dos casos de “ressurreições clínicas” com a intenção de recolher “provas materiais” da existência da vida depois da morte. São bem conhecidas as pesquisas nessa área, nos Estados Unidos, de Raymond Moody, Elisabeth Kubler-Ross e outros. Não são destituídos de interesse tais estudos, mas manda a verdade dizer que também eles, a1ém de subentenderem, como a religião espírita, um dualismo de tipo grego diferente do conceito bíblico do homem, veiculam uma hipótese de existência post-mortem, que não se concilia com a esperança na ressurreição. Se estiver certa essa hipótese agora estudada, está errada a crença milenar judaico-cristã da ressurreição dos últimos dias. Não aceitando que essas pesquisas são simples ilusão, pode supor-se que não se trata de verdadeiros casos de morte, mas apenas de morte aparente, próxima das situações de desmaio e anestesia a que nos referimos noutro lugar: Aliás, os relatos não são de pessoas que morreram, mas que “roçaram a morte”, ou “quase-morte”.

Uma reflexão séria sobre este tema obriga-nos e concluir que não é possível chegar a acreditar, para usar uma medida de fácil compreensão, cem por cento na existência da vida depois da morte. E se bem pensarmos são mínimas as situações em que se pode acreditar cem por cento seja no for: Por exemplo: um lavrador lança a semente à terra. Poderá ele afirmar que acredita a cem por cento que dessa semente vai nascer fruto? Há várias contingências que podem fazer com que a semente não vingue. Sentas-te ao volante de um automóvel e dizes: “Vou ao Porto”. Conheces bem o carro, sabes conduzir com segurança, conheces bem o caminho – mas poderás assegurar cem por cento, sem margem de dúvida, que chegarás ao Porto? Os especialistas estudaram os terrenos do Terreiro do Paço e decidiram que ali haveria uma estação do metropolitano. Pode afirmar-se com certeza absoluta que assim será? Na altura que escrevemos estas linhas parece que o plano inicial tem de ser abandonado. E não é só em Portugal, nem só numa ou outra área da actividade humana: a verdade é que as certezas absolutas, se existem, são raras.

Ter certezas absolutas pode mesmo ser muito perigoso. Na religião temos ilustrações trágicas desse perigo. A Inquisição só foi possível porque existia um conjunto de doutrinas que alguns em nome da Igreja classificaram como o verdadeiro Cristianismo, que todos tinham de aceitar. Foi grande o número de crimes que se fizeram com a intenção de preservar os dogmas de que a autoridade eclesiástica tinha a certeza absoluta constituírem a Verdade. A mancha triste na imagem de João Calvino foi o deixar ser executado pela fogueira Miguel Servet, para defender o dogma da Trindade de que o médico espanhol duvidava. Também no mundo das ideologias políticas tem sido desastrosa a convicção de se ter chegado a certezas absolutas. Um dos méritos de Roger Garaudy foi o perceber e denunciar que o Estalinismo foi o resultado natural de se ter considerado como “científico” o socialismo saído da reflexão de Marx e Engels e estruturado por Lenine. Se o que é científico corresponde a uma realidade indiscutível, quem questiona é inimigo a abater ou louco a merecer hospício. Os fanáticos da religião ou da política são aqueles que, por força de hábeis manipulações ou lavagens ao cérebro, ficaram convencidos que a sua seita ou o seu partido são a última instância da verdade e quem expressar a menor dúvida é herege perigoso.

No que diz respeito à certeza absoluta que alguns sentem ter acerca da continuação da vida depois da morte, também não faltam exemplos dos seus perigos. Os aviadores-suicidas japoneses da Segunda Guerra Mundial estavam tão seguros de continuar a viver depois da morte que não hesitavam um só momento em lançarem-se com seus aviões cheios de explosivos sobre o inimigo, o mesmo acontecendo nos nossos dias com fanáticos de vários credos. Muitos pacatos e inocentes cidadãos têm encontrado a morte e muitas famílias têm experimentado grande sofrimento porque fanáticos político-religiosos, com bombas em volta da cintura, buscaram a sua própria morte, na certeza absoluta de que o seu deus os favoreceria com a bem-aventurança no céu, desde que arrastassem consigo desprezíveis infiéis.

 

As certezas absolutas num assunto que não pode ser sujeito a prova só podem surgir em cabeças doentes. Na perspectiva bíblica não é com essas certezas que o homem deve caminhar. Tem de caminhar como Abraão, pai dos crentes, que sendo chamado por Deus, “partiu sem saber para onde ia”, diz a Escritura em Génesis 12:1/4 e Hebreus 11:8 Esta é a melhor ilustração do sentido da caminhada da fé na perspectiva bíblica. Ela implica sempre um risco, porque ter fé é esperar algo que está prometido, mas ainda não se vê, de que se não tem provas inabaláveis. Isso não quer dizer que caminhe hesitante e a medo, mas com uma segurança sem arrogância, consciente de que, como diz um dos primeiros hinos da Igreja, não deve pensar em si apenas, mas também nos outros, e comportar-se com os outros como fez Jesus Cristo, ele que era de condição divina e não teve como objectivo igualar-se a Deus, mas despojou-se a si mesmo e tomou a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens e pelo seu aspecto era reconhecido como um homem. Foi humilhado, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Filipenses 2:4/8

Crer que a vida continua para, além da morte é aceitar que a vida tem um sentido. Que Deus nos criou para Si, e para Ele caminhamos, como caminhou o Seu Povo durante quarenta anos pelo deserto em direcção à Terra Prometida. A viagem através do deserto é o símbolo da caminhada da nossa vida. Que não é uma caminhada fácil. Mas que se torna apaixonante quando aceitamos o anúncio de que Deus caminha connosco e estará connosco eternamente.

Crer que há vida depois da morte não precisa nem será bom que seja a cem por cento. Mas pode ser a convicção tranquila e exultante de cada ser humano, que vê na morte, não a extinção da vida mas, antes pelo contrário, a oportunidade da vida alcançar a sua mais elevada expressão. Só somos plenamente nós mesmos quando cessam todas as limitações que a vida presente comporta. Como escreve Leonardo Boff: “Na passagem deste tempo para a eternidade, na morte, pois (nem antes nem depois), nessa concentração intensíssima do tempo, o homem chega totalmente a si mesmo” (68) Seremos semelhantes a Cristo, diz a Sagrada Escritura:

 

Amados, agora somos filhos de Deus,

e ainda não é manifesto

o que havemos de ser.

Mas sabemos que,

quando ele se manifestar

Seremos semelhantes a ele;

Porque assim como é o veremos  1ª João 3:2

 

 

16 - Conclusão

 

Disse Jesus aos seus discípulos:

 

-“Que aproveita ao homem ganhar o mundo

Inteiro se perder a sua vida? Ou que dará

O homem em troca da sua vida?             Mateus 16:26 (Tradução da Boa Nova ou Bíblia para todos)

 

Quando o autor deste estudo se preparava para obter a licença de condução de veículos andava já pelos trinta anos e não manifestava grande habilidade. O velho instrutor, vendo-nos tão inseguro nas lições, um dia sentenciou: “O meu amigo só merecerá ter carta de condução quando for o senhor mesmo a dominar o carro e não o carro a dominá-lo a si”.

Como pregador, acontece-nos várias vezes usar como metáfora a condução automóvel para ilustrar sermões, e, ao concluirmos este livro, ocorreu-nos essa frase sábia do experimentado instrutor. Desajeitado no lidar com máquinas e sem interesse pela condução de carros, ficávamos tenso sempre que nos sentávamos ao volante para as indispensáveis lições do Sr. Cação, e nesse estado de espírito o medo tolhia-nos os movimentos e a capacidade de decisão. Não controlávamos a velocidade, não travávamos quando se impunha e nem sequer lográvamos segurar tranquila e firmemente o volante. Não fora o carro ter também direcção do próprio instrutor, ter-nos-íamos morto ou teríamos morto inocentes transeuntes numa dessas primeiras lições. Felizmente, porém, nos trinta e alguns anos de muita condução posterior nunca tivemos acidente com danos pessoais.

A metáfora da condução pode ser aplicada à vida nesta perspectiva: idealmente, um homem ou uma mulher só vive quando for ele ou ela a dominar as situações e não estas a imporem-se. Vive-se autenticamente quando se segue seguro na estrada da vida, não empurrado pelos acontecimentos, mas segundo o itinerário escolhido pelo próprio viajante. Esta é a situação ideal, não a real, porque vivemos num mundo injusto, onde a maioria é, dominada por minorias privilegiadas, mas é por um mundo justo que devemos esperar e trabalhar.

Tem-se falado, com razão, em pessoas que agem e pessoas que reagem. Os verdadeiros dirigentes (nos últimos anos designados pelo anglicismo “líderes”) são aqueles que actuam por escolha própria, que analisam as situações e encontram neles próprios a decisão considerada necessária. As pessoas vulgares limitam-se a dar a resposta habitual, ouvida de outros, recebida da tradição, ou a reacção instintiva ao acontecimento. Odeias-me? Pago-te da mesma moeda! És simpático comigo? Sê-lo-ei contigo! Jesus Cristo manifesta a sua, condição de Condutor por excelência (condutor é outra palavra portuguesa para “leader”) quando, no Sermão da Montanha, propõe tomadas de posição que vão contra a corrente.

A reflexão sobre a morte, sobre o que nos espera para além dela, leva-nos necessariamente à conclusão de que, sendo a morte a plenitude da vida, é indispensável conduzirmos a nossa vida de tal maneira que, ao transpormos, pela morte, as portas da eternidade, possamos fruir das venturas prometidas. Ou seja: a reflexão sobre a morte obriga-nos a olhar com maior atenção para a vida. No livro de Apocalipse o Espírito diz: … Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida. Apocalipse 2:10 A coroa da vida é a vida vindoura, a plenitude da condição de ser humano.

O grande poeta místico de origem libanesa Kahlil Gibran (1883-í931), no seu livro “The Prophet” põe a personagem Almitra a pedir: “Gostaríamos agora de te perguntar sobre a morte”, e o Profeta responde: “Vós gostaríeis de saber o segredo da morte. Mas como o achareis se o não buscardes no coração dar vida?” E pouco depois diz: “Porque a vida e a morte são uma, assim como um é o rio e o mar.” (69)

Seguir pela vida com segurança é saber, desde logo, quão elevada e a dignidade da vida humana, e é saber que a vida não é uma via que tenha de ser assinalada com o símbolo convencionado no Código da Estrada para “caminho sem saída”. Avida não é um caminho sem saída, mas um caminho que continua por paisagens mais exultantes.

A morte não é o fim. Di-lo a mais profunda intuição humana, essa intuição que, ainda antes de Abraão, de Moisés e de Jesus Cristo, já inspirava a esperança na sobrevivência; di-lo a razão, que observa a existência de uma inteligente ordem de causa e efeito no Universo sem lugar para o acaso nem para o absurdo; di-lo a Igreja de Cristo (da qual são ramos as diferentes confissões e denominações) no testemunho fiel passado de geração em geração e iniciado por aqueles que, na manhã da primeira Páscoa cristã, proclamaram: “O Senhor ressuscitou!”; e dizem-no todos aqueles e aquelas que, pela oração, pela leitura da Bíblia, pela participação no culto, pelo convívio e pelo amor aos irmãos e irmãs, têm regularmente a comunhão do Espírito de Deus, cuja acção interior confirma a esperança na perpetuidade da vida.

Porque a morte não é o fim, a vida não é um absurdo mas a oportunidade a ser usada com inteligência, com determinação, com fé. Voltaremos a encontrar aqueles que amamos e que agora “dormem no Senhor”.

De que servirá à Humanidade ter tão estrondosos progressos nas suas actividades, criar um admirável mundo de espantosos êxitos científicos e técnicos se a morte continuar a aterroriza-la e a atormentar os seus passos?

Concluamos com esta palavra da Escritura, no seu estilo solene e ao mesmo tempo simples:

 

Os céus e a terra tomo hoje, por testemunhas contra vós, que vos tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição: escolhe, pois a vida, para que vivas, tu e a tua descendência, amando ao Senhor teu Deus, dando ouvidos à sua voz e chegando-te a ele: pois ele é a tua vida e a longura dos teus dias; para que fiques na terra que o Senhor jurou aos teus pais, a Abraão, a Isaac e a Jacob, que lhes havia de dar. Deuteronómio 30:19/20

 

Manuel Pedro da Silva Cardoso

Figueira da Foz, Junho de 2013

 

 

 

 

 NOTAS

 

1        Blaise Pascal, Pensées, p. 156

2        Charles Spielberger, Tensão e Ansiedade, p. 31, 32, 35, 116-117

3        As melhores poesias brasileiras, p. 160

4        Notre vie et notre mort, p. 9

5        Op. Cit. p. 189-216

6        A matter of life and death p. 27

7        O homem perante a morte, II Vol. P. 327

8        Vieillissement et la mort, p. 72

9        Pensées, p. 156

10      Ancien Testament, p. 1443

11      Cit. por Jean Lyon, Et après? P. 19

12      Cf. José Leite de Vasconcelos, As religiões da Lusitânia, I e II Volume, 1897

13      Vida para além da morte, p. 31

14      Vocabulário Bíblico p. 200

15      Robert Martin Achard, De la mort à la réssurrecion d’apres l’Ancien Testament, p. 85

16      Adonai é a palavra hebraica que traduzimos em português por “Senhor” e era usada pelos israelitas para evitar o nome sagrado de IAHWEH

17      Amílcar Paulo, Os judeus secretos em Portugal p.89

18      Talbot, Mohan, Your Bereavement, p. 33 

19      Vida para além da morte, p. 77

20      Vida para além da morte, p. 82

21      Michael Ramsey, The Ressurrection of Christ, p. 9              

22      Confissão de Fé de La Rochelle 1º Artigo.

23      No rol das hipóteses não incluímos, por absurda, aquela que fala de uma conspiração de amigos de Jesus, que teriam roubado o corpo ainda vivo do crucificado e tratado dele. Fugido do túmulo, Jesus ter-se-ia refugiado junto dos essénios, casou com Maria Madalena e teve vários filhos e netos, vindo a morrer em Massada em 73 DC. É uma história mirabolante que um Donavan Joyce escreveu com o título “A outra história de Jesus”, uma fraude que tem entretido ingénuos.

24      Cristianismo puro e simples, p. 125-127  

25      Michel Quesnel, Jesus Cristo, p. 112

26      Super Interessante, nº 27. Julho 2000

27      Benjamim Scott, As catacumbas de Roma, p. 85 (Itálico de B. Scott)

28      Benjamim Scott, As catacumbas de Roma, p. 88 (Itálico de B. Scott)

29      J. G. Davies, La vie quotidienne des premiers chrétiens, p. 120-121

30      A. Hamann, A vida quotidiana dos primeiros cristãos, p. 241-242

31      The World’s Great Sermons, Vol. 1, p. 31, Compiled by Grenville Kleiser

32      Filantropo que dirigiu grandes campanhas com o objective de pôr fim à escravatura

33      Wilfred Monod, La nuée de témoins, p. 57-59 (II Vol.)

34      As novas versões do Credo dizem: “Creio na ressurreição do corpo”. Mas a palavra original é “carne”, que é o homem corpo-alma, sob o signo do pecado. É a este homem que Deus em Cristo promete a ressurreição e a vida eterna.

35      Leonardo Boff, Vida para além da morte, p. 46

36      David F. Strauss, A velha e a nova fé, p. 117-120

37      Henri Bergson, L’évolution créatice, p. 157, Encylopedie Larouse, art. Bergson 

38      Harry Emerson Fosdick, The assurance os immortality.p. 83

39      Ver parte final do Capítulo 2 –Pergunta e resposta.

40      Guy Lazorthes, em “Crença e Razão”, distingue “fé” de “crença”. A fé, para ele, é a aceitação cega e a crença comporta dúvida. Nós preferimos usar fé no sentido bíblico, que é confiança e não dispensa a razão (não há “fé cega”) e crença como “acto ou efeito de acreditar”, por vezes como sinónimo de fé.

41      Jean Lyon, Et aprés?,  p. 37-38

42      Emil Brunner, Nossa Fé, p. 111

43      Karl Barth, Esquisse d’une Dogmatique, p. 117

44      Paul Tillich, Amor, poder e justiça, p. 27

45      Ibid. P. 85

46      Neste versículo Lucas 18:17, o leitor já percebeu por certo, que dizer “Reino dos Céus” ou “Reino de Deus” se refere à mesma realidade. Importa também dizer que “Reino” (Basileia em grego) aqui significa “reinado” ou “governo”. Esperamos um tempo em que Deus finalmente governará, Ele mesmo, toda a humanidade, ou seja, em que a Sua vontade libertadora e justa se cumprirá.

47      Institutas, Livro II, Capítulo XVI, 9

48      L. de Sanctis e G. Moreno, Compêndio de Controvérsia entre a Palavra de Deus e a Theologia Romana, p. 167   

49      Op. Cit. p. 391

50      Pastoral e doutrina do Baptismo, p. 17

51      Op. Cit. p. 19

52      Dogmatique, Vol. 1 Cap. 17

53      Albin Eduard Beau, Langenscheidt Dicionário de Bolso

54      A arte de morrer, p. 21

55      idem, p. 22-23

56      A palavra agnosticismo vem do grego e tem como raiz gnosis, que significa “saber”. Ser agnóstico é afirmar não saber.

57      Vida para além da morte, p. 56

58      Norman Pittenger, After Death Life in God, p. 15

59      A ideia da luta dos cristãos para defesa das “penúltimas coisas” é de Dietrich Bonhoffer, mártir do nazismo. Teólogo e homem de oração. Ele lembrou aos seus concidadãos, cristãos apáticos, que não podiam dicar impávidos e serenos enquanto a barbárie nazi destruía tudo em seu redor.

60      Vida para além da morte, p. 68

61      A. Brien, Verité et Vie, nº 357, cit. por Jean Lyon, Et Aprés? p. 113

62      Vida para além da morte, p. 56

63      Arte de Morrer, p. 78

64      Gibran, Kahil. The Prophet, p. 20

65      After death life in God, p. 11

66      Obra Poética, Vol. VII

67      Notre vie et notre mort, p. 90

68      A vida para além da morte, p. 40-41 (sublinhado de Boff)

69      Op. cit. p. 93

 

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas