SOBRE O BAPTISMO (MC)

DOCUMENTO DE LIMA

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

Artigo publicado no Portugal Evangélico em 1984

O Conselho Português de Igrejas Cristãs (COPIC) publicou há pouco tempo a versão portuguesa de um estudo do Conselho Ecuménico de Igrejas com o título Baptismo, Eucaristia, Ministério, conhecido também sob a designação de «Documento de Lima», por ter sido nesta cidade que foi aprovado, e por BEM, das iniciais do estudo.

O texto que se segue foi feito pelo autor a pedido da sua Igreja, que criou várias comissões para reflexão do BEM. A Manuel Cardoso coube integrar uma Comissão com o seu Colega Rev. José Leite que se ocupou do capítulo Baptismo.

Crendo que um tal tema deve ser do conhecimento de um número cada vez maior de irmãos, aqui o trazemos com a esperança que os leitores do P. E. possam reagir ao que aqui se diz.

 

1. O facto de este ano de 1984 se celebrar o 5.º centenário do nascimento de Zuínglio, sugere-me que comece este apontamento propondo que se repense o uso da palavra e do conceito sacramento.

A Zuínglio, como se sabe, repugnava o uso desta palavra por causa das associações supersticiosas que consigo arrastava. Para este Reformador, os ritos que os pais gregos designavam por mysterion e os pais latinos por sacramentum são, fundamentalmente, cerimónias de admissão no Pacto da Graça e um compromisso. «Os sacramentos - escreve Zuínglio - são sinais ou cerimónias (...) pelas quais os homens se apresentam à Igreja como discípulos ou soldados de Cristo».

Sacramento, evocando algo santo e sagrado, não é conhecido da Igreja Antiga, lembra constantemente o Reformador. E a interpelação de Zuínglio não deixa de manter muita actualidade como se vê pelo facto de a versão francesa do Novo Livro da Fé (1976) reconhecer a inadequação do conceito tanto católico romano, como luterano ou calvinista. Para este Nouveau Livre de la Foi, o baptismo e a Ceia são liturgias, como a Igreja Ortodoxa entende esta palavra. Quanto ao conceito de sacramento parece-nos mais de harmonia com a revelação bíblica este que o mesmo estudo propõe: «É a liturgia particular, fundada na morte e ressurreição de Jesus Cristo em que, sob a forma de uma acção sensível e do uma palavra explicativa, a palavra do Evangelho é dita a todos os reunidos e a cada um em particular, em razão da sua fé».

 

2. O baptismo cristão é herdeiro do baptismo de arrependimento de João Baptista ao qual o próprio Jesus se submeteu «para cumprir toda a lei» Mateus 3:14/15 e do «baptismo de prosélitos» praticado nos tempos de Jesus e muito antes. Mas a diferença essencial do baptismo cristão é que ele é ministrado em nome de Jesus ou das Três Pessoas da Trindade, tendo começado a ser ministrado, tanto quanto os textos bíblicos o permitem perceber só depois da Ressurreição.

Sendo «sinal da vida nova em Cristo» e fazendo os cristãos «participantes no mistério da morte e da ressurreição de Cristo», expressões de Documento de Lima, ele é, por isso um rito (ou liturgia) da entrada na Nova Aliança  Marcos 16:16;  Gálatas 3:27; 1ª Coríntios 12:13, razão porque não é inconsistente associá-lo à circuncisão dos judeus Colossenses 2:11.

Declaração pública e formal da nossa presença a Cristo, o Senhor, nossa identificação com Ele na sua morte Romanos 6:1/11, requer que aquele que vai ser baptizado seja adulto, em posse dos dons da razão que lhe permitem dizer sim à graça que Deus oferece.

 

3. O facto de no primeiro século a família, ou, mais rigorosamente, a casa (oikós) de que faziam parte até os escravos quando os havia, ser concebida como uma «personalidade colectiva», torna plausível a hipótese de que, quando o cabeça se torna cristão fosse com ele baptizada toda a sua casa. Menos aceitável é a hipótese de que nas diversas famílias e casas que foram colectivamente baptizadas, segundo o relato do N. T. não existissem quaisquer crianças Actos 10:44/48; Actos 16:15; Actos 16:33; Actos 18:8 e 1ª Coríntios 1:16.

O silêncio do N.T. relativamente ao baptismo de crianças pode ser entendido como a prova de que uma tal prática era evidente na época. Se tudo quanto o cristão possui muda de proprietário torna-se posse do «único Senhor» (kúrios, dono de escravos) porque não hão-de os filhos, propriedade dos pais na concepção judia (e não só), tornar-se posse de Jesus Cristo também?

Em todo o caso há testemunhos patrísticos de que no segundo século baptizavam-se crianças.

 

4. No entanto, porque ao baptismo infantil foram associadas, por um lado superstições que desfiguram a fé cristã (regeneração pelo baptismo, p. ex.) e, por outro fez-se dele simples acontecimento social, vazio de conteúdo cristão -- para além do facto de se ter passado a um conceito de família muito diferente do que vigorava nos primeiros séculos -- é desejável que a Igreja deixe de praticar o baptismo de crianças.

Essa decisão porém, deve ser tomada com grande prudência pastoral, já que não estão em jogo razões de tipo bíblico ou teológico fundamentais. Se o baptismo infantil for hoje, pelas razões aduzidas, inútil mais inúteis serão tensões criadas numa luta desesperada contra o pedobaptismo.

Seja qual for a posição que se tome relativamente ao baptismo de adultos ou de crianças, é evidente que, de um ponto de vista protestante, é errado empolar a importância deste rito, que não é condição de salvação.

O texto de Marcos 16:16, se é historicamente suspeito está teologicamente correcto: não diz que o homem é condenado por falta de baptismo, mas por recusa da fé.

 

5. Apesar da mudança operada no conceito de família, as crianças continuam a ser parte do Reino de Deus Marcos 10:14 e, quando sob o cuidado de crentes, estão realmente comprometidas com a Nova Aliança 1ª Coríntios 7:14. É necessário, por isso, que a Igreja preveja uma cerimónia que expresse essa realidade, tal como os filhos do povo da Antiga Aliança eram sujeitos à circuncisão Génesis 17:12s; Romanos 4:11; Colossenses 2:11/12. Os pais cristãos devem ser instruídos na possibilidade de substituírem o baptismo dos seus filhos por uma cerimónia que seja portadora da palavra bíblica de que as crianças são bênção para seus pais, são amadas pelo Senhor e pertencem ao Povo de Deus.

Uma tal cerimónia defenderá a Igreja de se parecer com um «Clube de Adultos» a que se tem acesso pela razão ou, pior ainda, como galardão por se ter fé, deixando esta de ser dom de Deus, mas obra humana. Mas seja sempre observado o princípio que dá sentido a qualquer cerimónia de acolhimento das crianças na Igreja, que as sejam filhas ou estejam sob a responsabilidade de pessoas já integradas no Corpo de Cristo.

 

6. No que se refere ao modo, embora a teologia do baptismo se mantenha usando-se a aspersão ou afusão (e na verdade, é difícil acreditar que tenham sido baptizados de outro modo os 3000 que segundo Actos 2:23/41, num dia se uniram à Igreja), também é desejável que se dê preferência à imersão.

Não apenas porque é esse efectivamente, o sentido mais usual da palavra original (baptizõ, bapto), mas também porque este modo expressa de forma mais clara a palavra de que este rito é portador, isto é, que «pelo baptismo os cristãos são imersos na morte libertadora de Cristo, onde os seus pecados são sepultados, onde o «velho Adão» é crucificado em Cristo e onde o poder do pecado é quebrado»

 

(Documento de Lima)

Também aqui se reconhece que não há necessidade de criar tensões dentro da Igreja por causa do modo do baptismo, já que se percebe que o valor de um símbolo não depende essencialmente da sua forma sensível mas do que se pretende dizer com ele. Mas cremos ser possível a mudança da aspersão para a imersão sem conflitos se se mantiver sublinhado o facto que ninguém é mais ou menos cristão por causa do modo do seu baptismo.

 

Manuel Pedro Cardoso

Figueira da Foz, Portugal

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas