Filho pródigo e filho
mais velho (CC)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Introdução
Embora
a expressão “Filho pródigo” não
apareça na Bíblia, é este o nome mais vulgar desta parábola que Jesus contou.
Qual o cristão, católico, protestante, evangélico ou ortodoxo que não conhece a
parábola do filho pródigo?! No entanto, decidi dar a esta parábola o título de
“Filho pródigo e filho mais velho”
pois iremos meditar nestes dois personagens em vez de, como é habitual, a nossa
atenção se concentrar somente no filho mais novo. Até o nome tradicional de
“Parábola do filho pródigo”, parece esquecer o filho mais velho.
As
passagens bíblicas transcritas neste artigo, serão da
tradução e transculturação da BPT (Bíblia Para Todos) da Sociedade
Bíblica de Portugal, tradução interconfessional efectuada a partir das cópias
dos originais em grego e hebraico, com colaboração de biblistas de várias
igrejas, incluindo a Igreja Católica.
Contexto da
parábola
Antes
de entrarmos propriamente na parábola em estudo, vamos examinar o seu contexto:
Lucas
14:1
1
Num certo sábado, Jesus foi a casa dum dos chefes dos
fariseus para comer com eles, e todos observavam o que Jesus fazia.
Lucas
15:1/3.
1 Todos os cobradores de
impostos e outros pecadores chegavam a Jesus para o ouvir. 2 Por isso, os fariseus e
os doutores da lei o criticavam. «Este recebe pecadores e come com eles.» 3
Jesus apresentou-lhes uma parábola.
Portanto,
foi em casa dum chefe dos fariseus onde se concentrou um numeroso grupo de
pessoas para observar tudo que Jesus fazia e ensinava.
Lucas
divide a grande diversidade de pessoas que seguiam a Jesus em somente dois
grupos.
Um
dos grupos era constituído pelos cobradores de
impostos e outros pecadores, gente marginalizada pelos mais
espirituais por trabalharem para o Império Romano como era o caso dos
publicanos e gente simples que não usava linguagem espiritual, nem sabia
comportar-se na sinagoga.
O outro grupo, pelo contrário, era constituído por gente séria.
Era a classe sacerdotal da época, os fariseus e os
doutores da lei e todos os homens considerados
sérios, responsáveis, e espirituais. Eram aqueles que sabiam falar hebraico,
enquanto as pessoas de má fama falavam em aramaico, e eram eles que sabiam como
se comportar na sinagoga. Correspondiam aos que nos nossos dias
conhecem todos os gestos litúrgicos e sabem quando se
devem sentar, quando se devem levantar, ou prostrar, ou ajoelhar ou levantar as
mãos para gritar “amém aleluia”, ou
dizer “palavra do Senhor”...... Eram os religiosos do seu tempo e de todos os tempos.
Porque eram eles que percebiam de religião e que ocupavam os melhores lugares
na Sinagoga, enquanto as pessoas de má fama ficavam a observar de longe.
No entanto, gostaria de deixar claro, que não se tratava
propriamente duma divisão entre teólogos e leigos, mas sim uma divisão de
mentalidades, pois conheço teólogos que são pessoas simples, e também conheço
pessoas com pouca ou nenhuma preparação que se esforçam, e tudo fazem, para
encontrar lugar entre os doutores da lei.
É interessante, que todos eles tinham vindo para ouvir a Jesus,
embora de formas diferentes, de formas irreconciliáveis.
A partir desse momento, Jesus tinha de optar por um dos dois
caminhos. Ou Jesus se iria identificar com os religiosos do seu tempo, para ser
mais um respeitável rabi, como os outros, ou então iria fazer uma coisa
impensável... um autêntico “suicídio eclesiástico”, ao
aproximar-se da tal gente de má fama,
escandalizando os religiosos do seu tempo, com a sua consequente marginalização
pelas autoridades religiosas.
A gente de má fama, expressava-se na sua
linguagem rude e imprópria. Talvez dissessem, “traduzido” para a nossa cultura
em Portugal: “Venham ver. Finalmente, encontrámos um rabi que se preocupa connosco. Este sim... é um tipo fixe.. ele é um gajo
porreiro... é aquela máquina....”
“Mas que linguagem!!!” Devem ter pensado
os fariseus e doutores da Lei. Que será do ambiente de espiritualidade e
santidade das nossas sinagogas se esse Jesus lá entrar com toda essa gente
pecadora que o segue?! Em vez de falar em hebraico, a linguagem intelectual, a
linguagem da religião, eles estão a falar em aramaico, a linguagem das pessoas
simples, na própria sinagoga!
Outros talvez tenham dito. É pena ele não saber comportar-se como
um religioso, pois até tem algumas ideias interessantes. Ele talvez pudesse ser
aproveitado como rabi, se fosse para Jerusalém, assistir a umas aulas de
Gamaliel, pelo menos para aprender as nossas tradições litúrgicas que devem
anteceder a pregação e saber que um religioso, ou um rabi não pode andar com
essa gente pecadora, e há assuntos.... em que a religião não se deve meter. Um rabi tem de ter um
ar sério, um ar triste, quando entra na Sinagoga e tem falar em hebraico, não
pode falar na linguagem do povo que o acompanha.
É nesta ocasião, que Jesus conta três parábolas. A parábola da
ovelha perdida, a parábola da dracma perdida e por fim, a partir do vr.11, a
parábola do filho pródigo, que vamos tentar interpretar de acordo com o seu
significado original, tendo sempre presente a situação especial que lhe deu
origem, pois embora se trate duma parábola um tanto polémica pelos problemas
abordados e pelas questões que levanta, geralmente não é conhecida como tal...... porque nem sempre há
a coragem de se comentar a parte final desta parábola.
Se quisermos chegar ao significado original desta parábola, temos
de tentar “ouvir Jesus no seu tempo”, sentir as reacções dos seus ouvintes, e
tentar compreender qual o ensinamento que Jesus lhes quis transmitir com esta
parábola, um tanto escandalosa para os “imaculados” ouvidos dos religiosos do
seu tempo.
Porque é que o povo seguia a este Rabi, que não usava linguagem
espiritual? Que em vez da linguagem religiosa, da linguagem elevada dos
entendidos em religião, os escandalizava falando em porcos...... falando em animais
imundos?!!!
Parábola do filho
pródigo e do filho mais velho
Lucas 15:11/32 (Na tradução da BPT)
11 E prosseguiu: Um certo Homem tinha dois filhos: 12 O mais novo pediu ao pai:
“Pai, dá-me a parte da herança que me pertence.” E o pai repartiu os bens pelos dois filhos. 13 Poucos dias depois, o mais novo reuniu tudo o que era dele e partiu
para uma terra muito distante, onde gastou o que possuía. 14 Depois de ter gasto tudo, e como havia muita fome naquela região,
começou a ter necessidade. 15 Foi pedir trabalho a um
homem da região que o mandou para os seus campos guardar porcos. 16 Desejava encher o estômago mesmo com as bolotas que os porcos comiam,
mas ninguém lhas dava. 17 Foi
então que caiu em si e pensou: “Tantos trabalhadores do meu pai têm quanta
comida querem e eu estou para aqui a morrer de fome. 18 Vou mas é ter com o meu pai e digo-lhe: Pai,
pequei contra Deus e contra ti. 19 Já nem mereço ser teu filho, mas aceita-me como um dos teus
trabalhadores.” 20 Levantou-se e voltou para o pai. Mas ainda ele vinha longe de casa e já
o pai o tinha visto. Cheio de ternura, correu para
ele, apertou-o nos braços e cobriu-o de beijos. 21 O filho disse-lhe: “Pai, pequei contra Deus e
contra ti. Já nem mereço ser teu filho”. 22 Mas o pai ordenou logo aos empregados: “Tragam depressa o melhor fato (a) e vistam-lho.
Ponham-lhe também um anel no dedo e sandálias nos pés. 23 Tragam o bezerro mais gordo e matem-no. Vamos fazer um banquete, 24 porque este meu filho estava morto e voltou a viver, estava perdido e
apareceu.” E começaram com a festa.
25 Ora o filho mais velho estava no
campo. Ao regressar, quando se aproximava de casa, ouviu a música e as danças. 26 Chamou um dos empregados e perguntou-lhe o que era aquilo. 27 E o empregado disse-lhe: “Foi o
teu irmão que voltou e o teu pai matou o bezerro mais gordo, por ele ter
chegado são e salvo.” 28 Ao ouvir isto, ficou zangado e nem queria entrar. O pai saiu para o
convencer. 29 Mas ele respondeu: “Sirvo-te há tantos anos, sem nunca ter desobedecido
às tuas ordens, e não me deste sequer um cabrito para fazer uma festa com os
meus amigos. 30 Vem agora este teu filho, que desperdiçou o teu dinheiro com
prostitutas, e mataste logo o bezerro mais gordo.” 31 “Meu filho”. Respondeu-lhe, “tu estás sempre
comigo e tudo o que eu tenho é teu,
32 mas era preciso fazermos uma festa e alegrarmo-nos, porque o teu irmão
estava morto e voltou a viver, estava perdido e reapareceu.”
Diz a parábola, que o jovem pediu ao seu pai a parte da herança
que lhe pertencia e depois vendeu a sua parte.
Segundo a Velha Lei, conforme consta em Deuteronómio
21:15/17, dois terços da herança seriam para o filho mais velho
e um terço para o mais novo.
Nestes casos, era habitual o pai dar-lhe um terço do que houvesse
em dinheiro e embora ele tivesse direito também a um terço das terras,
geralmente só tomava posse destas depois do falecimento do seu pai. A descrição
bíblica não entra em pormenores, mas como se diz que o pai repartiu os bens pelos filhos e mais adiante que o mais novo reuniu tudo o que era
dele e partiu, dá a entender que ele também
tivesse tomado posse das terras e vendido precipitadamente a sua parte.
Portanto, já não tinha mais nada a receber.
O nosso jovem partiu, para uma terra muito distante. Não sabemos
para onde, nem esse pormenor é importante.
Nessa nova terra, leva uma vida desregrada até que o dinheiro se
acaba e, como se isso não bastasse, houve uma grande fome nessa região.
A partir daí a situação mudou por completo. Os amigos
desapareceram e teve de procurar emprego, mas o único emprego possível foi e de
guardador de porcos, que eram animais imundos, de acordo com Levítico
11:7/8 .
Podemos
imaginar o nosso jovem, o menino rico, filho dum grande proprietário, num local
imundo e mal cheiroso, no lamaçal a guardar porcos, depois de perdida
completamente toda a identidade cultural com o seu povo. Já não podia guardar o
sábado e tinha de tratar de animais imundos. Mas foi nessa altura que teve de
parar e pensar na sua situação.
Foi então que caiu em si e pensou: Pensar
não é arrepender-se. Mas pode ser o início do arrependimento. Assim como as
saudades de casa não resolviam o seu problema se não tomasse a iniciativa de
voltar.
Mas
aqui estava o grande problema. Seria ainda possível o seu regresso a casa?
Lembrou-se da velha Lei de Moisés que tantas vezes ouvir ler na Sinagoga da sua
terra. Por essa Lei, nem sequer tinha o direito de se identificar como
israelita, aquele que abandonara todas as suas tradições, que de acordo com a
velha Lei, deveria ser olhado como um impuro guardador de porcos de quem todos
se deviam afastar e até ser condenado à morte por não guardar o sábado, de
acordo com Êxodo
31:14.
Mas…
não se lembrava de nenhuma lei que o condenasse a deixar de ser filho do seu
próprio pai. Era essa a sua última esperança, a única coisa que lhe restava, o
seu pai. Mas, depois de tudo que fizera, será que o pai ainda de lembrava dele?
Estaria o pai disposto a ultrapassar os mandamentos da Velha Lei de Moisés que
o mandava escorraçar o seu próprio filho?
Pensou
no que deveria dizer: Pai, pequei
contra Deus e contra ti. Já nem mereço ser teu
filho, mas aceita-me como um dos teus trabalhadores.
É
interessante que ele expressa a sua tristeza mais por aquilo que fizera do que
por aquilo que perdera e tem consciência de que o seu pecado era em primeiro
lugar contra Deus.
Voltou
para o pai... A mãe não é mencionada nesta história, mas isto deve ser
interpretado de acordo com a cultura dessa época. O pai representa os dois. Nós
temos caso idêntico na nossa língua. Se a palavra pai estiver no plural, se
dissermos “os nossos pais”, referimo-nos ao pai e à mãe.
Ainda
ao longe, no meio de tanta gente, o pai reconhece o seu filho.
Depois
de tantos anos, finalmente era a resposta do Senhor às suas orações.
O
filho que partira autoritário e altivo, montado num cavalo ou camelo carregado
de riquezas, voltava descalço, sujo e esfarrapado, mas era finalmente o seu
filhinho que regressava.
Cheio de ternura, correu para ele. “Correu”,
atitude invulgar e pouco digna dum oriental idoso com a sua posição social e
dignidade.
Não
repara nas palavras do seu filho, mas diz aos empregados:
Tragam depressa o melhor fato e vistam-lho.
Os trapos nojentos a cheirar a esterco de porco, certamente depois de um bom
banho, não só por motivos higiénicos como devido à sua antiga tradição
litúrgica, são substituídos por vestes novas. No Antigo Oriente, quando um rei
queria recompensar alguém de alto mérito dava-lhe uma
veste preciosa. …. Onde foi que eu já ouvi falar em roupas brancas?! Talvez em
Apocalipse. Apocalipse
3:5
Ponham-lhe também um anel no dedo. Tratava-se
certamente dum anel-sinete. A sua entrega significava a entrega de plenos
poderes.
..e sandálias nos pés. Nessa cultura, era o
que geralmente diferenciava o escravo do homem livre. Os escravos andavam
descalços ao contrário do homem livre.
Tragam o bezerro mais gordo e matem-no. Vamos fazer um banquete. É
muito difícil nos nossos dias, transmitir o que isto significava. Nessa época
em Israel, era raro comer-se carne..... Só em dias
festivos. E em ocasiões muito especiais matavam um
bezerro.
Tratava-se
dum banquete de boas vindas, acompanhado de canto em voz alta, bater de palmas
e dança dos homens, de acordo com as suas tradições.
Foi
um final feliz e esta história bem podia acabar aqui. Todos compreendem o que
Jesus quer dizer.
Seria
talvez uma das formas mais eficientes de transmitir o amor de Deus, se nos
limitássemos a ler esta passagem para dizer simplesmente: Deus é assim.
Mas…. Será que a
história acabou?
Muitas
vezes se tem cedido à tentação de terminar neste ponto, porque
…. é muito incómodo o que vem a seguir.
Não.
Jesus ainda não terminou. Bem pelo contrário. É agora a parte principal. Há o
regresso do irmão mais velho ao fim do dia de trabalho, e se pensarmos no
contexto desta parábola e a quem Jesus falava nesta altura, penso que esta é a
parte mais importante, pois é precisamente aqui que o Mestre quer chegar.
Regressa
a casa o filho mais velho. Jovem trabalhador e disciplinado. Chega a casa
depois de mais um dia de intenso trabalho, quando ouve os cânticos na casa de
seu pai.
Todos
sabemos o que se passou a seguir. Bem conhecemos os argumentos apresentados
pelo filho mais velho para justificar a sua revolta.
Mas.....
Será que ele tinha razão?!
Em
certos aspectos, penso que sim.
Temos pelo menos de compreender a reacção um tanto precipitada do filho mais velho.
Muitas
vezes, nas pregações sobre esta parábola, ouvimos falar na sua insensibilidade
perante a desgraça do irmão, e da sua incompreensão pela alegria do seu pai, e
não reparamos no verdadeiro problema do filho mais velho.
Por
vezes, podemos ser tão “espirituais”, que nem conseguimos compreender o próprio
Mestre quando nos fala de coisas bem materiais, coisas deste mundo, do nosso
dia-a-dia. Isto era um problema de heranças, problema de dinheiro, de euros. De
acordo com a Velha Lei em vigor, o mais novo já tinha recebido toda a sua
herança, já não tinha mais nada a receber.
Mas
afinal!?!.. Ninguém
pôs isso em dúvida, nem o pai, nem o filho mais novo que pediu somente
que o tratassem como um criado.
Este pormenor costuma passar
despercebido. Mas o pai, logo compreende a situação, pois o filho mais velho
não tinha assistido ao regresso do seu irmão, que pediu somente para ser
recebido como um criado, e o mais velho julgava que a sua herança estava em
risco ficar reduzida. O pai logo confirma a sua posição ao dizer: “tu estás sempre comigo e tudo o que eu tenho é teu. Esta é a
“chave” para se compreender esta parábola.
Tudo o que eu tenho é teu. Ponto final. A situação já está bem definida.
O pai já distribuiu a sua herança e já não tem mais nada para
dar.
O filho mais velho pode
estar descansado que a sua herança não está em perigo, mas era preciso fazermos uma festa e alegrarmo-nos, porque o teu
irmão estava morto e voltou a viver, estava perdido e reapareceu.”
Então,
está tudo resolvido? Estão ultrapassados todos os problemas?
Nos
nossos dias, talvez os problemas estivessem já todos resolvidos… Ou talvez não.
Não
podemos ignorar outras barreiras culturais e até religiosas. Geralmente notamos e até nos indignamos com essas barreiras noutras
culturas e noutras religiões, mas não as vemos quando se passa na nossa própria
cultura e na nossa religião.
O filho
mais novo fora guardador de porcos, animais que certamente não havia na
propriedade do pai e talvez nenhum dos trabalhadores dessa propriedade
aceitaria ser guardador de porcos. Mas nessa época, alguns proprietários
criavam porcos, não para os judeus, mas para vender ao exército romano. Pela
sua tradição, ele nem poderia entrar na propriedade do seu pai. E no aspecto religioso, deveria ser condenado à morte por
desrespeitar a Lei de Moisés, como já afirmámos.
Afinal,
o que é que isto nos diz?
Qual
a ideia que Jesus nos quis transmitir com a parábola do filho pródigo? O que é
que representam os seus personagens?
Certamente
que o pai representa a imagem do Deus omnipotente, o nosso criador,
que a todos quer receber no Seu Reino e continua à espera dos que se afastaram.
O
filho mais novo, que volta arrependido, é o ser humano, que perdeu todos
os seus privilégios. De acordo com a Velha Lei, já não tem mais quaisquer
direitos… já perdeu tudo… a não ser... o amor do seu
Pai. O filho pródigo fora um péssimo filho, mas continuava a ser o
filho do seu pai e limita-se a confiar na sua
misericórdia.
E
o filho mais velho?!!!..
Muitas
pregações já ouvimos sobre esta parábola em que se dá
largas à fértil imaginação dos pregadores, em que se acrescentam pormenores que
não constam da parábola que o Mestre contou. Mas se quisermos ser fiéis à
mensagem original, temos que tentar esquecer todos os pormenores que costumam
acrescentar, para agravar a falta de amor, egoísmo, hipocrisia, inveja e raiva
do filho mais velho, que não aceitou o regresso do seu irmão, representante do
gentio que é aceite no Reino de Deus para escândalo do fariseu que sempre foi
cumpridor, mas sem amor, e quer monopolizar o amor de Deus encerrando as portas
do Seu Reino.
Afinal,
o que representa o filho mais velho?
Esta
é a pergunta mais importante, pois quando antipatizamos com o filho mais velho
e quando “batemos” forte e feio no filho mais velho, em quem é que nós batemos?!...
Custa-me
dar uma resposta a esta pergunta… mas vamos continuar com este estudo que
certamente o Senhor nos mostrará o que representa o filho mais velho.
Não
podemos ignorar o contexto desta parábola. Esta história não é primariamente o
anúncio da boa-nova aos pecadores, mas sim a justificação da atitude de Jesus
perante aqueles que o criticavam pelo facto de não fazer discriminação de
pessoas e de conviver com pessoas de má fama.
Mas
a parábola termina duma forma um tanto imprevista e brusca. Parece que falta
alguma coisa.
As
boas regras da homilética ensinam que deve haver uma peroração, ou seja, uma
conclusão da história, e Jesus não apresenta uma conclusão.
Afinal,
a história não nos diz se o filho mais velho se manteve na posição que tomara
ou se, depois de saber que a sua herança não estava em perigo, também acabou
por aceitar o pedido do pai e se alegrou com o regresso do seu irmão. Será que
Jesus não conhecia as regras da homilética? Ou haverá alguma intenção nesta
forma pouco usual, até diríamos, pouco correcta de terminar esta parábola?
Mas
Jesus deu o seu exemplo. O amor de Deus para com o pecador arrependido não tem
limites, e Jesus procura actuar de acordo com o pensamento de Deus Pai porque...... Porque
Deus é assim.
Como “traduzir”
esta parábola para os nossos dias?
Chegámos
ao fim desta parábola que Jesus contou.
Não sei
se consegui transmitir a mensagem que o Senhor desejaria.
Mas fico com a sensação de que falta alguma coisa.
Penso que esta parábola, que tanto escandalizou os judeus, perdeu
muito do seu impacto, mais por motivos culturais, do que pelo tempo que passou.
Já se
passaram 20 séculos desde que Jesus contou esta história. Se olharmos à nossa
volta, diremos que tudo mudou. Mas se examinarmos o ser humano dos nossos dias,
com os seus problemas, o seu egoísmo e o seu pecado, teremos de concluir que
afinal, talvez estejamos perante novas versões de problemas bem antigos.
O filho
pródigo está suficientemente longe lá na Palestina e suficientemente longe no
tempo para nos incomodar.
Até
podemos afirmar, que esta é uma passagem bonita, e imaginar o filho pródigo a
caminhar pelo deserto numa caravana de camelos carregados de riquezas. É bonito,
porque não nos incomoda, nem escandaliza ninguém, como aconteceu no dia em que
Jesus contou.
Quem nos
nossos dias haveria de se preocupar se entrasse na nossa igreja algum jovem que
se dedicasse à suinicultura?
Talvez
no mundo islâmico possam compreender melhor o escândalo que foi para o povo
judaico o jovem rico ter-se transformado em guardador de porcos num país pobre
do Oriente. Mas no ambiente cristão, esse pormenor até pode passar
despercebido.
Talvez
esta história necessite não só duma tradução e transculturação, como já foi
feito nesta tradução da BPT, mas também de ser contada duma maneira diferente
que não vem nos livros, mas terá de ser arrancada à nossa própria realidade do
local onde estamos, que nos afecte a todos nós e que nos escandalize, como
Jesus escandalizou os do seu tempo.
Será que o filho pródigo existiu? Foi um
personagem real?
A
primeira tendência é dizer que não, que o filho pródigo nunca existiu, que foi
uma história que Jesus arranjou para ilustrar os seus ensinos e todos os seus
ouvintes assim o entenderam.
Mas os
exemplos de Jesus eram sempre casos possíveis, casos do dia-a-dia dos seus
ouvintes. Numa época em que a população de toda a Palestina seria de cerca de
meio milhão de pessoas vivendo numa terra quente e seca, certamente que as
grandes cidades da Caldeia ou do Egipto seriam uma forte atracção para os
jovens. Talvez tenham existido vários “filhos pródigos” e certamente que a
maior parte nunca mais terá voltado a casa.
Como
teria Jesus ilustrado o seu ensino se fosse nos nossos dias? Um jovem que
emigra de Portugal para a França, ou Alemanha? Isso nem sequer é estrangeiro.
Está dentro da Comunidade Europeia.
Mesmo
que vá para a Austrália, para o outro lado do mundo, pensamos que está a umas
24 ou 30 horas de viagem e pode chegar e telefonar para casa. Isso não é nada
comparado com a viagem do filho pródigo.
E como arranjar um exemplo de
profissão que corresponda, não digo ao suinicultor que é bem diferente, mas ao
guardador de porcos na cultura judaica, e seja escândalo para a igreja?
Não têm
as nossas igrejas as suas portas abertas a todos os pecadores?
Não
vivemos nós, numa época em que ninguém é discriminado?
Não é
fácil arranjar o correspondente ao filho pródigo na nossa cultura. Um jovem que
vai dum extremo ao outro. Que vai da posição do menino rico, filho dum grande
proprietário para a situação mais desprezível que se possa imaginar na cultura
em que vivia.
Os
exemplos que Jesus apresentava, eram sempre exemplos perfeitamente integrados
na cultura dos seus ouvintes. Jesus falava na língua e na cultura do povo, e
nós temos de pregar e pensar na nossa língua. Não basta falar em português se
não estivermos integrados culturalmente. Seria como que uma tradução que só é
compreendida mas não atinge o coração do nosso povo. Não encontro nenhuma
parábola de Jesus passada no Egipto, ou na Babilónia, ou em Roma, pois nesse
caso a reacção dos seus ouvintes seria como a nossa, quando ouvimos uma
ilustração passada na América ou na Austrália. Pensamos sempre: Ainda bem que
isso só acontece lá longe e não nos diz respeito. É como se víssemos uma imagem
na televisão. Estamos tão habituados que já não reagimos. Tivemos que construir
como que uma muralha à nossa volta, e não reagimos ao que se passa para lá da
nossa protecção...
Se Jesus
aqui estivesse para nos falar, seria certamente uma parábola do nosso
dia-a-dia, seria uma parábola bem nossa, com que nos sentíssemos identificados.
Jesus conseguiria falar do lado de dentro da nossa muralha de protecção. A
adaptação aos nossos dias terá de ser procurada na nossa própria realidade.
Talvez
Jesus contasse mais ou menos assim…
Havia,
numa pequena cidade do centro de Portugal, um simpático casal, membro muito
dedicado da sua igreja.
Que
igreja?! Protestante, evangélica ou católica? O problema não é esse. O
importante é pensar que não foi em nenhuma igreja distante, que foi na nossa
própria igreja (ou sinagoga, ou mesquita), que frequentamos todos os domingos.
Ele
fazia parte da Direcção dessa igreja, e ela era uma grande entusiasta pelo
trabalho das senhoras.
Tinham
três filhinhos, a mais velha, a Ester, a seguir o Joãozinho e a mais novinha a
Maria, a menina querida de toda a igreja. Era sempre a melhor nas festas de
Natal, ao recitar poesias. Desde pequena, que já dizia que quando for grande
vai ser missionária.
Todos eles alunos da Escola Dominical ou da catequese desde tenra
idade.
Andam todos na Escola Secundária, bons alunos,
inteligentes e estudiosos, até que certo dia...... a mais novinha, a Maria é abordada na rua por certos
amigos.... e aparece em casa com um ar estranho, um ar
distante e desinteressado.
Nos dias seguintes, o seu rendimento como
estudante baixa repentinamente e o dinheiro desaparece em casa sem saberem
como, até que os pais descobrem a triste realidade. A jovem Maria tinha
adquirido o vício da droga.
A igreja reage e tenta ajudar. O pregador tenta
abordar assuntos apropriados para ajudar a jovem Maria. Toda a igreja ora por
ela.
Mas,
infelizmente não deram resultado os bons conselhos, a visita ao psicólogo ou as
orações da igreja.
A jovem
fugiu de casa e nada mais sabem dela.
Já a
procuraram em todas as cidades vizinhas, já telefonaram para todo o lado, já
viram na polícia e nos hospitais, mas ninguém a viu.
Os dias
passam… até que algum tempo depois, houve alguém que foi de férias ao sul de
Portugal e tem notícias da Maria. Infelizmente péssimas notícias, pois dizem
que viram a Maria nos lugares menos recomendáveis....
Estava com um grupo de prostitutas à espera de clientes para arranjar dinheiro
para comprar mais droga.
A
notícia espalha-se rapidamente por toda a igreja e por toda a cidadezinha onde
moram.
Agora já
não há orações a favor da jovem... Não
convém mencionar o nome dela... Dá
mau aspecto, é mau para o prestígio da igreja.... Mas,
os pais podem orar por ela em casa, já que, coitados, continuam a acreditar que
ainda é possível a recuperação.
Mas o
tempo passa, passam os anos, e tudo cai no esquecimento. Os dois filhos mais
velhos sempre bons alunos já frequentam a Universidade. A Ester foi para a
Universidade de Coimbra e o Joãozinho entrou para a Universidade de Aveiro.
Até que
um dia o telefone toca: Pai...sou eu, a Maria... Já estou saturada de toda esta vida que tenho
levado... Fiz um tratamento de desintoxicação na Remar (b) e eles
aconselham-me a continuar o tratamento em casa. Mas...
não sei se serei capaz de voltar à nossa terra, onde
todos me conhecem... depois de tudo que fiz. Mas
gostaria tanto de voltar a casa. Basta-me um canto na cave onde guardam essas
coisas velhas para eu poder dormir, mesmo no chão. Estou a telefonar da Estação
dos autocarros (c) e posso ir no que vai sair agora e chega logo ao fim da tarde à nossa
terra.
O pai
não cabe em si de contente e chama a mãe. Deus
seja louvado!!. Depois de tanto tempo é a resposta do Senhor às nossas orações.
É a nossa Maria. Ela vai voltar a casa. Disse-lhe para vir no primeiro
autocarro que houvesse. Logo ao fim da tarde já estará na nossa terra.
Depressa, telefona para casa
do Pastor da nossa igreja e diz a todos os crentes que hoje vêm jantar a nossa
casa. Não te esqueças de nenhum deles... Não sei se cabem na nossa casa, mas
sei que têm de vir. Explica o que se passa, que é muito importante que eles
venham. Diz que a nossa Maria está em fase de recuperação. Necessita de toda a
nossa ajuda, do nosso apoio, do nosso carinho para que tenha a coragem de
voltar à sua igreja, para que ela veja que a igreja que a viu dar os primeiros
passos, a igreja onde ouviu o Evangelho, a igreja que ela identifica com Jesus,
e que considera como a sua última esperança, depois de tantas desilusões, essa
igreja ainda a ama e está pronta para a receber. Que assim como Deus se alegra
quando um pecador regressa à casa do Pai, assim também a sua igreja se alegra e
dá graças e louvores.
Finalmente
o autocarro chega à cidadezinha e a Maria, a chorar não consegue dizer o que
tinha pensado. O pai recebe-a e quase não a deixa falar.
Vamos depressa para casa.
Convidamos os tios, toda a família e os irmãos da igreja para jantarem hoje em
nossa casa.
Toda a
família reunida alegra-se e aguardam os filhos mais velhos que estão a chegar.
Finalmente
eles chegam..... e foi o
Joãozinho o primeiro a falar.
Pai..... Pai, já viste o que
estás a fazer? Ainda na semana passada pedi-te para comprar esse livro mais
caro de que tanto necessito para os meus estudos, disso está dependente o meu
futuro, e disseste que lamentavas muito mas… já não tinhas dinheiro. Agora vem
a nossa.... a tua filha que
tantos problemas tem criado, que envergonhou a nossa família e a nossa igreja e
arranjas dinheiro para toda esta festa?!
Repara que daqueles que
convidaste nem todos vieram. Já sei que em todas as famílias houve grandes
discussões à hora do almoço. Nuns casos vieram as mulheres e os maridos não quiseram
vir, e com toda a razão, pois eles são as “colunas da nossa igreja”. Muitos
deles são crentes de segunda e terceira geração e nunca poderão tolerar que o
pecado entre na nossa igreja, esquecendo as nossas normas, regulamentos e tradições que aprenderam com os seus pais a quem
prometeram cumprir fielmente.
Noutros casos vieram só os
maridos, e as mulheres não quiseram vir. Repara que faltam aqui muitas das
mulheres mais santas da nossa igreja… Como podes esperar que mulheres tão
santas, mulheres de oração se possam contaminar aproximando-se da tua filha?
A própria Direcção da Igreja
está dividida. É o pecado que volta à nossa igreja. O que dirão as outras
igrejas se souberem que a nossa igreja recebeu uma pecadora como a tua filha?
Já pensaste onde é que vai
ficar a tua filha? A cama que ela ocupava ainda está vaga, mas é no mesmo
quarto da minha irmã. Certamente
que não vais obrigar a minha irmã que sempre foi bem comportada e que está já
no último ano do seu curso, que pouco falta para ser uma licenciada, que canta
no coro da igreja e é a líder dos jovens da nossa igreja, a ficar no mesmo
quarto com essa tua filha.
E no próximo fim-de-semana como será? Quando
formos à nossa igreja onde todos a conhecem?
Depois de tudo que ela fez,
será que vai voltar a entrar na classe dos jovens? O que dirão os pais dos
outros jovens? Ou que vai assistir ao culto? Sentar-se nos bancos da nossa
igreja, ao lado de tanta gente tão santa e tão respeitável que já não necessita
de se arrepender?
Irmãos,
esta história também não tem uma conclusão, porque… o Mestre nos ensina a
terminar assim.
Não há
propriamente uma conclusão, mas há um apelo para meditarmos no assunto, pois de
certa maneira, também nós estamos numa encruzilhada. Que tipo
de crentes queremos ser? Que tipo de igreja é a nossa?
Na
parábola que Jesus contou, falta propositadamente a conclusão da parábola, pois
a conclusão compete a cada um de nós.
Ou nos
identificamos com o grupo dos fariseus e os doutores
da lei, o grupo dos mais “santos”, dos mais “religiosos”, dos mais
“consagrados”, dos mais “verdadeiros”, que seguem dentro do templo, um Cristo
estático, embalsamado pelo ritualismo e acorrentado pela tradição que veio
combater.
Ou nos
identificamos com o grupo dos cobradores de impostos e
outros pecadores que Jesus chamou e que confiam na misericórdia
do Senhor, que toma a opção de seguir o Cristo vivo e actuante, perante quem
nos sentimos como crentes inúteis… Cristãos de fim de semana... Cristãos de igreja..... Porque Jesus nos convida a segui-lo.....
e Ele vai... Não espera por nós.
Jesus
vai? Vai para onde? Vai à Igreja? Vai subir ao púlpito?
Não...
Até ao púlpito, muitos de nós conseguimos seguir o Mestre. Isso aprende-se no
Seminário e geralmente só serve para apresentar Cristo aos mesmos cristãos,
todos os domingos, ao longo dos anos.
Mas
Jesus não vai subir ao púlpito das igrejas. Até pelo contrário. O desafio que
temos pela frente é de descer ao púlpito
de Jesus, que fica do lado de fora das quatro paredes das igrejas, pois o Mestre, embora algumas vezes
tivesse pregado nas sinagogas e também no Templo, não o podemos
considerar propriamente um pregador de sinagoga. As suas principais mensagens
foram proferidas nas praias, nos campos, na montanha, hoje diríamos em ambiente
secular.
O desafio
que temos à nossa frente é seguir o Cristo vivo.... que nem sempre é desejado nas igrejas. Tal como acontecia
nas Si nagogas há 2000 anos.
Porque
Ele continua a ser escândalo. Porque Ele vai, onde os “religiosos” não podem
ir, e Ele fala com quem a tradição e a religião não te deixam falar.
Afinal,
qual foi a decisão do filho mais velho da história que Jesus contou e que
muitos “religiosos” se apressam a condenar, antes que ele responda ao Pai?
A conclusão desta história, compete a cada um
de nós, quer estejamos na posição de clérigo ou leigo.
Que o Espírito do Senhor nos possa orientar
para que possamos apreender a sua mensagem e encontrar a melhor conclusão, a
conclusão mais de acordo com o pensamento do nosso único Mestre.
Camilo –
Marinha Grande, Portugal
21 de Novembro de 2014
Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas
(a) Fato em Portugal e na África Lusófona é terno no
Brasil.
(b) Remar é organização de recuperação de tóxico dependentes.
(c) Autocarro em Portugal é o ónibus no Brasil e
carreira ou machimbombo no português de África.
Comentários recebidos
David Oliveira –
Goiânia, Brasil
Li
atentamente a verdadeira explicação, a meu ver, da Parábola do filho
pródigo e do filho mais velho.
"Mas…
(o filho pródigo) não se lembrava de nenhuma lei que o condenasse a deixar de
ser filho do seu próprio pai".
O
grande problema é que nenhum pastor de nossa época quer se identificar com os
seus assemelhados sacerdotes do tempo de Jesus.
A
contextualização do direcionamento intencional de Jesus em suas parábolas
constitui, como você diz, um suicídio eclesiástico e aos pastores de nosso
tempo, a apresentação de provas contra si mesmos. Infelizmente essa figura de
linguagem permite inverter ou direcionar a intenção motivadora para as mais
secundárias, configurando em eternas falácias os sermões que sempre ouvimos.
Das
613 leis mosaicas a mais contundente, importante e principal está em Deuteronómio
17:01/13. Essa lei estabeleceu o terror em Israel e equivalia o mesmo clima
que se instaurou no tempo do nazismo na Alemanha. Falar do governo em regime de
exceção é sinônimo de suicídio, portanto, o uso de parábolas era uma forma de
dizer o que se queria, mas que demandava um determinado tempo de escape antes
que as autoridades entendessem a verdadeira intenção.
David Setembro
de 2016
Veja
também estudos sobre outros personagens bíblicos de diversos autores em Diversos
assuntos bíblicos
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