Família no Antigo Testamento (EM)
(Deverá
“clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)
INTRODUÇÃO:
Algumas considerações preliminares
Se há temas que aparentemente nunca perdem actualidade, “a família”,
sem dúvida, é um deles. Não apenas porque a grande maioria das pessoas faz
parte de uma família (por mais reduzida ou complicada que ela seja), mas
sobretudo porque, no fim deste século XX, esta instituição está a sofrer
profundas mudanças. Como, aliás, tem vindo a sofrer profundas transformações ao
longo de toda a história da humanidade, reflectindo a nossa imagem habitual da
família - pai, mãe, um ou dois filhos - apenas uma fase muito específica dentro
deste longo Processo de desenvolvimento e de modo algum o modelo “eterno” pelo
qual muitas vezes é tomado. De qualquer maneira, é nesta complexa (e muitas
vezes dolorosa) situação actual que procuramos orientação e ajuda. É natural
que, como Cristãos, levemos as nossas interrogações para a Bíblia, para o
Antigo e o Novo Testamento. Será que ela nos oferece alguma inspiração, alguma
ajuda?
Para podermos responder a esta pergunta, é fundamental estarmos
bem conscientes de dois “perigos”. Por um lado, há quem procure na Bíblia
justificações para determinadas formas da vida familiar na actualidade. Só que
a Bíblia não contém nenhuma doutrina familiar. Os textos sobre Abraão e Sara,
Jacob e Lia /Raquel etc. (e menos ainda a história sobre Adão e Eva!) não foram
escritos para nos ensinar como se deve viver em família! Não foram escritos
para apresentar um modelo (eterno) da família ideal, segundo a vontade de Deus!
Por outro lado, muitos, ao abrirem o AT e encontrarem práticas como a
poligamia, o levirato, o pagamento de um dote antes do casamento etc., fecham-no
desiludidos, “Não tem nenhuma mensagem para nós hoje”, dizem, “este tempo tão
remoto nada tem a ver com a nossa vida hoje!”
Portanto, se procuramos na Bíblia “receitas”, o mais certo é que
não as encontraremos! Pois a Bíblia não é um livro de receitas, mas sim o
testemunho da vida do povo de Israel com Deus! Há, no entanto, uma segunda
advertência a fazer. É que os diversos textos da Bíblia sobre a família
pertencem a géneros de textos e a épocas muito diferentes. E todos sabemos que,
por exemplo, a verdade contida num poema sobre uma rosa é bastante diferente
daquela que se encontra num texto científico ou num texto publicitário sobre o
mesmo tema e que é fundamental reconhecer esse género para correctamente
entender o texto! O mesmo se aplica aos textos bíblicos, pois no Antigo
Testamento encontramos, pelo menos, três géneros de textos completamente
diferentes sobre a família:
Textos míticos como por exemplo os
textos sobre Adão e Eva, Caim e Abel e outros em Génesis 1:2 trata-se
de textos que reflectem tempos muito remotos e que foram transmitidos oralmente de geração para geração, antes de encontrar a sua
forma final escrita, muitas vezes já relativamente tardio. É bastante difícil
saber o que é “histórico” neste tipo de texto (e que época se reflecte neles).
Textos narrativos, como muitas das histórias sobre o tempo dos
patriarcas, antes da existência do estado. Estes textos reflectem a vida de
semi-nómadas de há quase 4000 anos. Outros textos narrativos revelam a vida
familiar na época do estado, com uma cultura sedentária e agrícola.
Textos de legislação (como, por exemplo os 10 mandamentos), que
prescrevem determinado comportamento. Não raras vezes, estes textos reflectem
mais a convicção de quem formula a lei do que a realidade da família em Israel.
Com efeito, as leis proíbem muitas vezes práticas que os textos narrativos,
inclusive da mesma época, pressupõem como pratica corrente.
Por outras palavras: verificamos que os textos da Bíblia sobre a
família pertencem a épocas diferentes e que, ao longo do tempo, se alterou o
que se considerava normal e aceitável ou não. Ou seja, em cada época, o povo de
Israel encontrou maneiras bastante diferentes de estruturar a vida familiar. Não
se trata, portanto, de nós hoje simplesmente aceitarmos ou copiarmos estes
modelos, como se fossem eternamente válidos. Como também não traz muito
proveito julgá-los, tomando como critério o nosso modelo de família no século
XX. Mas podemos indagar - e isso sim, com muito proveito - como é que em cada
época e em cada modelo de família se procurava viver a fé no Deus eterno. Que
exigências se faziam em nome de Deus ? E com que
argumentos?
Este artigo não pretende responder a estas perguntas. O seu objectivo
é bem mais humilde, pois pretende apenas traçar algumas linhas que possam
ajudar a estruturar a extensa informação sobre a realidade da família no Antigo
Testamento. Espera-se que estes dados facilitem aos leitores este segundo passo
muito mais importante que é a análise teológica desta realidade.
A REALIDADE DA FAMÍLIA, NO AT
(especialmente nas narrativas sobre os patriarcas)
Muito mais do que na sociedade actual, no Antigo Testamento a família
é a célula fundamental da sociedade. Viver como “single” é completamente
impensável. Agar que, expulsa por Abraão e Sara, não tem ninguém para onde se
pode refugiar exemplifica esta diferença fundamental dos tempos actuais.
Ao mesmo tempo importa constatar que a família nuclear (pai, mãe,
filhos) não é, de modo algum, a família típica do AT!!
Neste sentido, Adão, Eva, Caim e Abel são a excepção; muito mais típica é a
família de Jacob com as suas duas esposas Lia e Raquel, mais doze filhos aos
quais se acrescentavam, com certeza, algumas filhas, e de cuja família ainda
faziam parte duas escravas (que, aliás, também se tornaram mães de alguns
filhos do patriarca.....).
No Antigo Testamento, a sexualidade é um tema importante.
Geralmente, ela é encarada positivamente, como um dom de Deus (ou seja, bem
diferente da tradição cristã no Ocidente, onde, durante séculos, se julgava que
o pecado se transmite pelo acto sexual); no entanto, a sexualidade está longe
de ser o único aspecto relevante na vida familiar (o primeiro pecado
explicitamente designado como tal é o fratricídio entre Abel e Caim).
Embora encontremos no AT emocionantes histórias de amor, como a de
Rute e Booz, ou textos que vibram de erotismo, como o Cântico dos Cânticos,
outros textos parecem surpreendentemente pouco interessados nos sentimentos dos
personagens.
Como Agar se sentiu quando foi utilizada como “barriga de
aluguer”, como Sara encarou o facto de ser apresentada como irmã ao rei do
Egipto, não o sabemos. Estas questões emocionais (indispensáveis em qualquer
romance do nosso tempo) simplesmente não entram no horizonte de quem redigiu
muitos dos textos bíblicos.
Dito isto, podemos constatar seis características da família
hebraica, ou seja da família no Antigo Testamento.
É uma família alargada (clã).
Trata-se de uma entidade económica, que inclui escravos e
assalariados. É perfeitamente normal dela fazerem parte dezenas, até centenas
de pessoas que residem numa ou em várias aldeias. Entre os membros desta
família pratica-se a solidariedade.
É uma família patriarcal.
O pai é senhor e dono de toda a família alargada (em hebraico: mishpat). O casamento é a introdução da mulher na casa do
pai do noivo.
A família é endógama.
Ou seja, dá-se preferência a casamentos de parentes consanguíneos:
preserve-se deste modo a integridade do património. Um belo exemplo desta
prática é o servo de Abraão que viaja para a terra deste com o intuito de
procurar uma esposa para Isaac Génesis 24:1
O incesto existe, sobretudo nos tempos mais remotos. Quem redigiu
o texto de Génesis não ficou repugnado com a ideia de os filhos de Adão e Eva
casarem com as suas irmãs; poucos capítulos mais tarde lemos
que Lot fecunda as suas filhas.
Esta prática, embora cada vez menos tolerada, fica proibida
terminantemente apenas na época real. O casamento entre irmãos/meio irmãos é
aceite no tempo patriarcal e pelo menos até ao princípio da monarquia. (cf 2º Samuel 13:1/23;
o crime de Amnon foi ter violado a sua (meia)irmã, não o incesto; os profetas, por outro lado,
recusam abertamente esta prática, cf Ezequiel 32:2. O
casamento entre tio/sobrinha ou entre primos não é proibido pela lei.
O casamento com estrangeiros é reprovado, mas existem muitos
casos! Esaú, por exemplo, tem duas mulheres hititas, Moisés casa-se com uma cushita (acto pelo que é criticado por Miriam), Sansão
partilha a sua vida com a filisteia Tamna e Rute, a moabita, toma-se avó do rei
David e, deste modo, de toda a dinastia davídica. Depois do estabelecimento em
Canaã, a lei proíbe o matrimónio com mulheres cananeias (por causa do perigo da
idolatria - Deuteronómio
7:2/4; no entanto, as uniões mistas são prática corrente até ao exílio
(Esdras e Neemias tiveram de ordenar o repatriamento das mulheres
estrangeiras!). Após o exílio volta-se a insistir na endogamia, para fortalecer
o povo.
A família é patrilinear.
Pelo menos na época histórica, é o pai que determina a pertença
familiar do bebé: Jacob ben Isaac ben
Abraão (em hebraico, “ben” significa “filho de”). Há,
no entanto, quem pense que, em tempos primordiais, a familiar talvez tenha sido
matrilinear.
A família é patrilocal.
Ou seja, a família reside na casa da família do homem. Única
excepção, muito interessante, é Génesis 2:24
A familia é polígama.
Ou seja, um homem vive com várias mulheres (esposas e escravas),
que são as mães dos seus filhos. Num certo sentido, o número de esposas era
proporcional ao prestígio do homem. Nomeadamente, para muitos dos reis é
documentado um elevado número de mulheres, como sinal de poderio e também
devido a alianças com nações vizinhas. Saúl tinha várias esposas; David, em
Hebron, partilhava a sua vida com 6 esposas, número esse que mais tarde aumentou com a sua glória em Jerusalém;
em relação a Roboão sabemos de 18 esposas e 66 concubinas. Contudo, é o rei
Salomão quem bate todos os “recordes” com 700 esposas e 300 concubinas 1º Reis 11:3
Não surpreende que esta situação resulte muitas vezes em ciúmes e
rivalidade, especialmente entre esposas que têm muitos filhos e outras que são
estéreis (cf Sara e Agar, Raquel e Lia, Ana e
Penina).
A esposa é, normalmente, escolhida pelo pai do jovem Génesi
s 24:51, mas a aquiescência dos cônjuges é necessária. Vários textos, no
entanto, revelam grandes paixões e amor, não apenas entre esposos. Basta
recordar Jacob e Raquel, David e Betsabé ou o Cântico dos Cânticos. É costume o
homem pagar um dote à família da mulher. O valor deste reflecte a sua
importância social. Este pagamento pode ser substituído por trabalho (cf Jacob, que trabalhou durante 14 anos para Labão!).
LAÇOS DE SOLIDARIEDADE, NA FAMÍLIA
A criança sabe que pertence a uma casa (bet).
Várias casas formam um clã (mishpat); de vários clãs
é constituída a tribo e, finalmente, as tribos sabem-se unidas como povo de
Israel. É refortalecida esta união pela descendência de um patriarca comum:
Jacob, filho de Isaac, filho de Abraão! Este sentido de pertença e de relação
facilita o contacto e as relações entre as famílias. No entanto, não se trata
de uma pertença e de uma solidariedade exclusivistas, pois também toda a
humanidade é considerada uma grande família, descendente de Adão e Noé, os
“patriarcas da humanidade”!
A PRESENÇA DE DEUS NA FAMÍLIA
Sobretudo na tradição dos patriarcas, Deus está intimamente ligado
à família e preocupa-se com assuntos familiares: é Deus que dá filhos, que
ajuda a encontrar uma esposa, etc. De facto, Deus não está distante mas tão
próximo da família que não surpreende ele ser identificado através de lagos
familiares: o “Deus do meu pai Abraão, Isaac, Jacob...” Reflecte-se nestas
tradições uma religiosidade familiar, muito típica da época dos patriarcas. É
verdade que em épocas posteriores a relação entre Deus e o seu povo assume cada
vez mais um lugar central na fé de Israel; contudo, a religiosidade familiar
não deixa de existir.
Pelo contrário, afirma-se que a fé no Deus de Israel, a fé no Deus
criador do Universo, se exprime também na relação com o próximo e com a
família. Não surpreende, por isso mesmo, que dois dos dez mandamentos Êxodo 20:12/14 dizem
respeito à vida familiar: Respeita o teu pai e a tua mãe, para que vivas muitos
anos na terra, que o Senhor, teu Deus, te vai dar. (v. 12); Não cometas
adultério. (v. 14). Para mais, aspectos da realidade familiar podem inclusive
servir para entender melhor a relação entre Deus e Israel. O profeta Oseias,
por exemplo, compara Israel a uma esposa infiel Oseias 2 e Deus à mãe
que ensina o seu filho Israel a andar Oseias 11.
Bibliografia:
Chouraqui, A. (s.d.)
A vida quotidiana dos hebreus no tempo da Bíblia.
Lisboa: Livros do Brasil
A família na
história. In: Miriam
nº 467, Janeiro 1994, pág. 13-20
Estudo publicado em Textos Ocasionais Publicação não periódica do
Seminário
Evangélico de Teologia
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas