Eutanásia e suicídio
assistido: Porque não? (JC)
(Deverá
“clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)
Nas últimas décadas, nas sociedades
ocidentais, a problemática da eutanásia e suicídio assistido é um dos assuntos
mais debatidos no campo da bioética e ética médica mas não tanto pela sociedade
civil. É um assunto recorrente nos media e, de uma maneira geral, os jornalistas têm uma
opinião favorável à sua legalização, utilizando muitas vezes os termos “morte
assistida” ou “morte digna” para enfatizarem as suas convicções.
Talvez as questões relacionadas com o
início e o final da vida humana sejam das mais permeáveis a influências
ideológicas e político-partidárias, pelo que se torna premente uma reflexão o
mais isenta e esclarecida possível sobre este assunto delicado e complexo, que
está agora na ordem do dia em Portugal.
O que é a eutanásia e o suicídio
assistido
A
palavra eutanásia resulta da associação de dois vocábulos gregos - “eu” (bem, com bondade) e “thanatos” (morte),
podendo ser traduzida por “boa morte”, “morte suave” ou “morte sem sofrimento”.
No seu sentido original, representava uma morte natural, tranquila, não
envolvendo a intervenção de outra pessoa. Ora este é o tipo
de morte que todos queremos, para nós e para os nossos familiares e amigos,
naturalmente o mais tarde possível. Pensa-se que a primeira utilização da palavra eutanásia com
este significado se encontra em Suetório, cronista
romano, que escreve acerca da morte do imperador César Augusto no século I da
era cristã: “A sua morte foi doce e tal como ele sempre a desejara, porque
quando ouvia dizer que alguém morrera prontamente e sem dor, desejava para ele
e para os seus um fim semelhante, servindo-se da expressão grega euthanatos”.
Porém,
a partir do final do século XIX, o significado da palavra eutanásia mudou
radicalmente. Poderá definir-se, na atualidade, como sendo “a morte deliberada
e intencional de uma pessoa, a seu pedido, executada por outra pessoa que
acolheu o pedido e decidiu dar-lhe satisfação” (Serrão, 1998). A eutanásia é,
portanto, uma morte antecipada, provocada pela intervenção de alguém, seja ou
não profissional de saúde.
Há quem classifique a “eutanásia” como não
voluntária quando é realizada sem o conhecimento da vontade do doente ou quando
ele não possui capacidade de decisão (por alterações da consciência, coma ou
demência) e “eutanásia” involuntária, que consiste na morte provocada contra a
vontade do doente, por decisão de outras pessoas. Contudo, estas duas situações
de morte intencional não passam de atos de homicídio, mesmo que sejam
realizadas por profissionais de saúde. Só a eutanásia voluntária, ou seja,
realizada a pedido de um doente consciente e com as suas capacidades mentais
conservadas, não é considerada homicídio nos escassos países onde esta prática
é legal.
A distinção entre eutanásia ativa e passiva pode
gerar ambiguidade e deve ser evitada. Poderá considerar-se eutanásia passiva
desligar o ventilador de um doente que dele necessita para respirar, mas num doente
que cumpra os critérios de morte cerebral, e que está morto apesar da
manutenção artificial das funções cardíaca e respiratório, desligar o
ventilador não só não é eutanásia como poderá considerar-se um procedimento
clínico correto.
O suicídio medicamente assistido consiste também
numa morte antecipada, mas distingue-se da eutanásia na medida em que o médico
não intervém diretamente na morte do doente. A sua função consiste em
providenciar os meios necessários para que a morte ocorra, nomeadamente através
da prescrição de medicamentos letais que o doente poderá ingerir para pôr termo
à vida.
O que não é eutanásia
Importa
agora esclarecer o que a eutanásia não é, pois uma das razões que levam muitas
pessoas a manifestarem uma opinião favorável à legalização da eutanásia ou
suicídio assistido é, a meu ver, por desconhecerem o verdadeiro significado do
termo e suas implicações.
A
eutanásia não é a suspensão ou abstenção de tratamentos inúteis ou desproporcionados
para o estado clínico do doente. Não iniciar ou suspender tratamentos
ineficazes ou de benefício duvidoso para o doente, evitando o chamado encarniçamento ou obstinação terapêutica,
não só não é eutanásia como pode ser considerado boa prática médica.
Também
não é eutanásia a administração de medicamentos com uma finalidade terapêutica,
como por exemplo a morfina, ainda que possam ocasionalmente encurtar a vida do
doente. A utilização de medicamentos para tratar a dor
intensa, bem como usar sedativos para aliviar sintomas não controlados de outra
forma, pode também ser considerado boa prática clínica. O que não é
lícito é deixar o doente sofrer se houver recursos disponíveis para aliviar o
sofrimento.
Por
último, não é eutanásia o direito que um doente consciente e lúcido tem de
recusar qualquer tratamento médico, mesmo que seja considerado necessário para
evitar a sua morte (p. ex. uma cirurgia para remoção de um tumor maligno).
Exceto em algumas situações de urgência, respeitar a
vontade do doente que, de uma forma esclarecida, pede à equipa de saúde para
suspender tratamentos ou que lhe sejam retirados meios artificiais de suporte
vital, é também eticamente legítimo e tem suporte jurídico. Desde Agosto de
2012 está em vigor em Portugal uma lei que regula as chamadas declarações
antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde, que podem assumir a
forma de Testamento Vital ou a nomeação de um procurador de cuidados de saúde.
O Testamento Vital é um documento escrito por um adulto psiquicamente
competente, no qual manifesta a sua vontade livre e esclarecida sobre os
cuidados de saúde que deseja ou não receber caso se encontre incapaz mais tarde
de expressar a sua vontade de forma autónoma.
Outra
situação que tem gerado vários equívocos no debate sobre a eutanásia é a
utilização de expressões como “morte assistida” ou “morte digna” pelos
promotores da sua legalização. A maioria das pessoas prefere
certamente ter uma “morte assistida” ou uma “morte digna” do que morrer
sozinha, longe do seu lar e em sofrimento, sem que isso signifique que desejam
ser mortas de uma forma direta e ativa pela intervenção de terceiros.
Sinopse histórica
Fazendo
agora uma breve referência histórica, gostaria de sublinhar que o aborto, o
infanticídio, o suicídio por razões médicas e a eutanásia eram comuns e
socialmente aceites no mundo antigo greco-romano. O suicídio assistido, quando
não havia esperança de cura, era executado através da secção dos vasos
sanguíneos ou da administração de produtos tóxicos e venenos.
No
século IV a.C. é redigido na cidade grega de Cós o primeiro código de ética
médica designado Juramento Hipocrático, que constitui um marco histórico, na
medida em que declara solenemente que aos médicos está interdito provocarem
intencionalmente a morte de um doente. Praticamente todos os códigos de ética
médica, desde essa altura e até aos nossos dias condenam totalmente a prática
da eutanásia, como sendo contrária à missão e propósito da medicina, que
consiste em procurar restaurar a saúde de um doente.
Em
algumas culturas, havia o costume pagão de acelerar a morte de pessoas com
doenças graves supostamente incuráveis, por meio do estrangulamento ou da
sufocação. Miguel Torga, no seu livro Novos
Contos da Montanha, apresenta a personagem Alma Grande, também chamado de
pai da morte ou abafador, que existia em algumas aldeias rurais de Portugal:
“Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na
sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto
dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos
igual à que tinha deixado ao morto.” Contudo, como este conto retrata de forma
magistral, nem sempre as doenças eram fatais. Lemos mais à frente nesta
narrativa: “o Alma Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço”.
Matar, mesmo por motivos altruístas, não dignifica ninguém.
Argumentos a favor
Os principais motivos para um pedido de eutanásia
ou suicídio assistido incluem a presença de dor e outros sintomas físicos como
p. ex. vómitos, convulsões, agitação psicomotora, considerados insuportáveis
pelo próprio; a ansiedade e problemas psicológicos ou psiquiátricos; o receio
ou situação de perda de autonomia e dependência; o desejo de não ser uma
sobrecarga ou fardo para a família; ou o sentimento pessoal de que o projeto de
vida está esgotado. Ao contrário dos sintomas físicos, que surgem sobretudo nos
doentes terminais e oncológicos, este motivo é referido por pessoas com doenças
crónicas degenerativas do sistema nervoso central (p. ex. esclerose múltipla)
ou tetraplegia, que apesar das suas limitações físicas não são doentes
terminais, mas representam os casos mais mediáticos de pedidos de ajuda para
morrer.
Os dois principais argumentos invocados a favor da legalização e
prática da eutanásia são o alívio da dor ou sofrimento e o respeito pela
autonomia individual da pessoa, que nos últimos anos passou a ser o argumento
central. Há um terceiro, em que se alegam motivos de natureza económica, que
apesar de minoritário tem vindo a assumir maior expressão, sobretudo num
contexto de crise económica e de contenção de custos com a saúde.
Os
defensores da eutanásia ou do suicídio medicamente assistido defendem o direito
de controlarem o momento, o lugar e as circunstâncias da sua morte. O filósofo
alemão Nietzsche, responsável pela transmutação dos valores que ocorreu na
modernidade, afirmava: “Deve-se morrer orgulhosamente quando já não é possível
viver com orgulho.” Vários estudos realizados na Holanda e nos EUA (sobretudo no
estado de Oregon, onde o suicídio assistido é permitido desde 1997), revelam que uma das principais razões porque algumas
pessoas querem morrer é porque as suas vidas deixaram de ter sentido e
tornaram-se dependentes de terceiros, o que consideram inaceitável, e não por
apresentarem dor ou outros sintomas considerados insuportáveis.
O Dr.
Philip Nitschke,
responsável pela eutanásia de quatro pessoas nos Territórios do Norte, na
Austrália em 1996 e 1997 (antes da lei que permitia a eutanásia ser revogada),
ao ser interrogado se não haveria uma característica comum nessas pessoas
respondeu afirmativamente: “Aquela que sobressai é o facto de serem pessoas que
sempre estiveram no controlo das suas vidas. Eram pessoas que não aceitavam
facilmente que outros tomassem decisões por elas e que gostavam de dirigir as
suas vidas (…) Algumas tinham dor mas a dor não era o sintoma principal”.
Argumentos contra
Um
dos argumentos mais antigos traduz-se em muitas pessoas considerarem que a vida
humana é sagrada e inviolável, mesmo que não acreditem em Deus ou na
transcendência. Nesta perspetiva, é sempre errado matar vidas inocentes porque
a vida é digna de ser vivida e estar vivo é um bem, independentemente das
circunstâncias.
Alguns
promotores da legalização da eutanásia e suicídio assistido defendem que é
melhor haver uma lei que autorize estas práticas em determinadas circunstâncias
do que um vazio legal. Trata-se de um argumento falacioso. As leis não evitam
os abusos e o que acaba por acontecer é que se verifica uma flexibilidade dos
critérios enunciados na lei, com a complacência das autoridades. Nos três
países onde a eutanásia voluntária é legal (Holanda, Bélgica e Luxemburgo),
tem-se verificado uma progressão inevitável para a “eutanásia” não-voluntária e
involuntária, que não são mais do que modalidades de homicídio. Não surpreende
assim que o Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, Canadá e Reino Unido tenham,
em diferentes ocasiões, rejeitado a legalização da eutanásia ou suicídio assistido
com base na falta de controlo desta prática na Holanda, conforme tem sido
revelado em diferentes estudos científicos.
A prática da
eutanásia ou suicídio assistido são incompatíveis com a missão primordial da
medicina e enfermagem, que consiste em combater a doença, conservar a
vida e aliviar o sofrimento, o que está em
consonância com o Juramento Hipocrático e outros códigos de ética e deontologia. Como refere o Prof. Daniel Serrão, “a aceitação da eutanásia
pela sociedade levaria à quebra de confiança que o doente tem no médico. Uma
sociedade que despenaliza a eutanásia corre o risco de provocar uma enorme
insegurança dos cidadãos face à atividade das equipas de saúde.” É precisamente
isto que se está a verificar nos países onde a eutanásia é legal, em que muitos
idosos têm medo de recorrer aos serviços de saúde por poderem vir a ser mortos sem o seu consentimento.
A Drª Cicely Saunders, cristã convicta, foi a
pioneira da Medicina Paliativa, reconhecida como especialidade no Reino Unido
desde 1987. Fundou, em 1967, a primeira unidade de cuidados paliativos da era
moderna – o St. Christopher’s Hospice em Londres. Os Cuidados Paliativos têm por
objetivo proporcionar aos doentes terminais uma morte digna, medicamente
assistida mas não provocada. Valorizam a vida mas encaram a morte como um
processo normal. Não antecipam nem atrasam a morte intencionalmente.
Proporcionam aos doentes o alívio da dor e de outros sintomas incómodos. Não
são dispendiosos, ao contrário da medicina curativa. Podem e devem ser prestados
no domicílio, tanto quanto possível. Integram os aspetos psicológicos, sociais
e espirituais dos cuidados, de forma que os doentes possam assumir a sua
própria morte de uma forma mais tranquila. Além disso, oferecem um sistema de
apoio para auxiliar as famílias a adaptarem-se durante a doença do doente e
durante o luto.
Tive
a oportunidade de visitar várias unidades de cuidados paliativos, em Portugal e
no Reino Unido, e pude observar por mim próprio que é possível proporcionar
excelentes cuidados de saúde em doentes terminais, não com fins curativos mas
tendo em vista a melhor qualidade de vida possível, apesar da doença. A melhor resposta dos serviços de
saúde para os raríssimos pedidos de eutanásia ou suicídio assistido será a
implementação de uma rede nacional de Cuidados Paliativos, preferencialmente
domiciliários, que possa lidar de forma competente e adequada com a dor e o
sofrimento, principalmente na fase final da vida.
O que diz a Bíblia
Em Génesis 1:26/27 lemos que o ser humano foi criado à
imagem de Deus, o que o dignifica e diferencia de todos os outros seres vivos.
O sexto mandamento da lei de Deus é também claro ao determinar: Não matarás (Êxodo 20:13). Ainda em 1ª Coríntios 6:19/20, Paulo escreve, referindo-se aos
cristãos, que somos propriedade de Deus, visto termos sido resgatados por
elevado preço, através da morte sacrificial de Cristo: Não
sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós,
proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?
A
ideia de se provocar a morte, mesmo para aliviar o sofrimento, parece ter sido
um conceito estranho e repulsivo para o povo de Israel, que, em obediência à
vontade de Deus, sempre dedicou uma especial atenção às necessidades dos mais
fracos e vulneráveis, como os órfãos e as viúvas. Em 2º Samuel 1:6/10 encontramos uma história singular. O rei Saul, ferido de morte numa
batalha contra os filisteus, pede para ser morto por um jovem amalecita, que
poucos dias depois procura o rei David, procurando ser recompensado pelo seu
feito. Diz o amalecita a David: “[o rei Saul] pediu-me
para me aproximar dele e para acabar de o matar, porque já tinha entrado em
agonia, mas continuava vivo” 2º Samuel 1:9. O que o amalecita faz prontamente
(ou diz que faz, porque há quem defenda que a sua narrativa dos acontecimentos
poderá ter sido inventada, para cair nas boas graças de David, sendo o relato
verídico o que se encontra em 1º Samuel 31:1/4 e 1º Crónicas 10:1/4). No entanto, ao contrário do que
esperava, não foi elogiado nem recompensado pelo seu ato de misericórdia mas
condenado à morte, por ter ousado levantar a sua mão para matar o rei que Deus
escolhera.
A
Palavra de Deus não omite referências a ocasiões na vida de grandes homens de
Deus, como Jó, David ou Elias que, em momentos de grande angústia e desespero, desejaram
morrer (p. ex. 1º Reis 19:4). No entanto, em todas as ocasiões
Deus veio em seu auxílio, providenciando solução para as suas necessidades. Não
defendo, porém, que a experiência de dor, perda ou sofrimento tenha um valor
intrínseco que aproxime as pessoas de Deus, pelo que devem ser controlados com
os recursos médicos disponíveis e acompanhamento espiritual. No entanto, é
indiscutível que a revelação de uma doença grave e o sofrimento podem ter valor
pedagógico do ponto de vista existencial, levando-nos a refletir acerca do
sentido da vida.
O
facto do próprio Deus ter encarnado em Jesus Cristo, a Sua morte sacrificial na
cruz, apesar do intenso sofrimento, e a Sua ressurreição dos mortos são a
resposta mais completa ao problema do mal e do sofrimento e um extraordinário
sinal de esperança na vida eterna, em que não haverá
mais morte, nem luto, nem pranto, nem
dor. Apocalipse 21:4.
Jorge Cruz Médico
Porto,
Portugal em Julho de 2016
http://falemosdesaude.blogspot.com
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