Em espírito e verdade (CC)
(Deverá
“clicar” nas referências bíblicas para ter acesso aos textos)
1) Introdução
Este
artigo vem na sequência do artigo Samaritana (CC) que vos
convido a ler em primeiro lugar, caso ainda não o conheçam.
Como podem
ver nos comentários a esse artigo o irmão David de
Oliveira levantou a pergunta sobre o significado dos versículos 23 e 24 do
capítulo 4 de João. Mais propriamente o que significa adorar em espírito e verdade?
23
Mas vem a hora, e é agora, na qual os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e
verdade; tais são, com efeito os adoradores que o Pai procura.
24
Deus é espírito, e por isso os que o adoram devem
adorar em espírito e em verdade.
Temos
já aqui importantes informações sobre o que não é adorar a Deus em espírito e verdade.
Não
é o que se fazia no templo samaritano de Garizim nem no de Jerusalém. Não encontrei
informação de como seria a adoração em Garizim. Mas tudo indica que seria uma
cópia do Templo de Jerusalém. Portanto vejamos como era a adoração no Templo de
Jerusalém.
2) Adoração no Velho
Testamento.
Há
duas palavras do hebraico que foram traduzidas por adoração, que significavam a
inclinação do corpo até ao chão, como vemos em Génesis 18:02.
Outras vezes, como em 1º Reis 8:54
ou Esdras
9:5
era o gesto de ajoelhar.
Essa
era a vulgar forma de cultuar em todas as religiões dessa época, como vemos em Êxodo
20:4/5 ou Deuteronómio
4:19
referindo-se aos outros deuses.
No
caso do Profeta Elias em 1º Reis 18:42
este esconde a cabeça entre os joelhos.
Geralmente
a adoração estava relacionada com ofertas Deuteronómio
26:10, sacrifícios 1º
Samuel 1:03 e música religiosa.
Ainda
no tempo de Samuel, como podemos ver em 1º Samuel 4 (todo este
capítulo) há um acontecimento que nos mostra que não bastavam estas condições
do local indicado e liturgia correcta, para que Deus ouvisse as orações dos
crentes. Este assunto está mais desenvolvido no meu artigo Declínio
do Protestantismo (CC) cuja leitura aconselho.
Inicialmente
havia adoração aos reis 1º Reis 1:16
ou profetas Génesis
19:1,
mas estas formas de adoração foram colocadas em dúvida a parir de Ester 3:2,
devido ao exemplo de Mardoqueu.
Nos
nossos dias, em alguns casos, ainda se pratica a adoração com a prostração com
o adorador inclinado até ao chão, como no caso da ordenação sacerdotal em
algumas igrejas, como vemos em Imagens de ordenação sacerdotal ou nas mesquitas islâmicas, como vemos em Execução da Oração - Comunidade Islâmica
de Lisboa.
Penso
podermos concluir que não há no Velho Testamento passagens normativas sobre a
forma correcta de adorar a Deus. Há somente passagens históricas ou descritivas
que foram aceites como exemplos de adoração, mas não eram rígidas, como vimos
no caso do Profeta Elias, pois ele adorou de forma ligeiramente diferente.
Vou
talvez escandalizar alguns leitores desta minha página na internet, mas não
vejo a Bíblia como um todo homogéneo, igualmente inspirado do Génesis ao
Apocalipse, mas uma revelação gradual através de todo o Velho Testamento até
chegar ao centro da revelação, aos evangelhos.
Estas
passagens que citámos, de Samuel (cerca ao ano 1050 AC) ou Elias (cerca do ano
850 AC) parece terem sido aceites pelos teólogos dessa época, mas julgo que já
não funcionavam no tempo de Isaías cerca do ano 500 AC. Isaías
1:11/20 onde os louvores de acordo com todas as tradições
veterotestamentárias, foram rejeitados por Deus.
No
tempo de Isaías, vejo uma grande evolução no comportamento do deus dos
israelitas.
Enquanto
no tempo de Moisés, o seu deus teve uma grande preocupação com os mais ínfimos
pormenores da construção do tabernáculo, ou nas condições em que um sacerdote
podia aproximar-se do altar, como vemos em Levítico
21:17/21, mas nada consta a respeito da sua santidade moral e espiritual.
O deus de Moisés só se preocupava com a santidade higiénica ou santidade
litúrgica, ou santidade genealógica, que nada têm a ver com o conceito de
santidade a que Jesus se referiu.
Mas já no tempo de Isaías manifesta-se como um
deus mais espiritual que até rejeita rituais litúrgicos que seriam aceites
alguns séculos antes, o que nos leva a questionar se seria o mesmo deus, ou se
deus teria mudado. Bem sei que esta afirmação irá escandalizar a muitos.
Pode
haver vários motivos para essa rejeição do louvor dos israelitas no tempo de
Isaías:
1)
Ou por ser uma forma de adoração que os israelitas “aprenderam” com os outros
povos e não foi o seu deus que ensinou a adorar assim.
2)
Ou por algum pormenor litúrgico não estar correcto.
3)
Ou por estarmos perante outro deus, pois o seu comportamento era bem diferente
e muitas vezes em oposição ao que Jesus nos ensinou.
4)
Ou por ser simples ritual que não correspondia a uma atitude espiritual, pois
se a liturgia não for simples manifestação exterior duma realidade espiritual,
ou se for encarada como um meio de pressionar Deus a fazer alguma coisa em
favor do homem, deixará de ser um louvor aceitável, para ser simples
superstição ou ritual de feitiçaria, embora tentando pressionar o próprio
Deus.
3) Adoração no
primitivo cristianismo
Uma
das primeiras passagens neotestamentárias sobre adoração é Mateus 2:11
em que os magos do Oriente se prostraram perante Jesus recém-nascido. Mas os
magos eram estrangeiros que também utilizaram a mesma forma de adoração que era
comum a muitas outras religiões. Mas de acordo com Mateus 2:2
fica-nos a dúvida se os magos adoraram a Jesus na qualidade de Filho de Deus ou
de “rei dos judeus”. Mas já em Actos
10:25/26 o apóstolo Pedro recusou ser adorado por Cornélio.
Como
Jesus afirmou em Mateus 4:10
ou Lucas
4:8
só devemos adorar a Deus. No entanto, Jesus Cristo
ficou para sempre associado a Deus a quem ele revelou e ensinou a tratar por
Pai. Filipenses
2:5/11 Uma importante informação desta passagem é que o
“deus de Israel” deu lugar ao “Deus Pai”, o deus que estava em Jerusalém passou
a estar em todo o lugar e a ser o Deus de todos os povos, como vemos em Filipenses 2:10.
Jesus
foi adorado depois da ressurreição Mateus
28:16/17 pois Tomé identifica Jesus com Deus João 20:28.
Nesta versão da Bíblia, há 34 referências a Jesus como “Filho de Deus” ou “o
Filho de Deus”, mas há também 15 referências aos crentes como “filhos de Deus”.
É o antigo problema da teologia. Desde o primitivo cristianismo que nunca se
conseguiu definir concretamente em que sentido Jesus é “Filho de Deus”. Mas não
tenho dúvidas de que desde o primitivo cristianismo as duas ideias estão bem
próxima, o que aliás é natural, pois Jesus veio revelar a verdadeira imagem de
Deus. João
14:8/10
Em
relação à adoração veterotestamentária, Jesus revela uma nova e diferente forma
de adoração, em espírito e verdade, que seria como que uma “conversa entre
Pai e filho” sem qualquer preocupação com as acções exteriores ao ser humano,
quando se tratar de oração individual ou de um grupo de irmãos que estão
perante o seu Pai. De acordo com Romanos 12:1/2 o
culto passou a ser racional, pois o Pai não prescinde de toda o nosso
entendimento (capacidade intelectual) ao contrário do deus de Moisés que exigia
obediência cega. Compare Deuteronómio 6:5 com
Lucas
10:27.
4) E
nós? Como adoramos a Deus?
Lembro-me
de que há cerca de 60 anos, quando comecei a frequentar uma igreja evangélica,
como qualquer crente recém-convertido eu orava com as minhas palavras, mas
ouvia as outras orações nas igrejas e pensava que também deveria aprender a
orar assim como eles.
Agora,
que sou um velho de quase 80 anos, peço a Deus que
apague da minha mente todas as “bonitas expressões” de louvor que aprendemos
nas igrejas, de acordo com as várias denominações. Duvido que isso seja louvar
a Deus em espírito e verdade. Não é isso que o Pai quer ouvir de nós.
Não
serão todas, ou quase todas, as nossas orações, de certa forma “normalizadas”,
por terem sido escritas pelos maiores teólogos, como uma espécie de
requerimentos ou documentos que enviamos às nossas autoridades? Ou frases que
memorizamos nas igrejas para exibir a nossa “espiritualidade” perante os outros
crentes? Não me parece que as nossas orações sejam alguma coisa parecida com
uma conversa entre Pai e filho.
Segundo
vemos em Lucas 11:1
parece que João Batista, à semelhança do Velho Testamento, ensinava os seus
discípulos a rezar. Nessa ocasião, a pedido dos discípulos, Jesus ensinou a
oração do Pai Nosso Lucas 11:2/4 que
Mateus registou de forma mais desenvolvida em Mateus 6:9/13.
Isto
suscita-nos várias questões:
Por
que Jesus não deixou orações ou rezas para serem repetidas e só nos deixou esta
oração do “Pai Nosso” depois dos discípulos lhe pedirem? Mas será que, se Deus
é nosso Pai adoptivo, será necessário alguém nos ensinar como falar com o nosso
próprio Pai?
Será
que são passagens paralelas, que descrevem o mesmo acontecimento? Ou terá
acontecido em duas ocasiões diferentes?
Penso
que o primitivo cristianismo interpretou o “Pai Nosso” como um exemplo e não
como norma rígida para ser repetida, pois encontramos várias orações do
primitivo cristianismo que ficaram registadas, mas não vemos que os primitivos
cristãos repetissem o “Pai Nosso”. Mas em todas as orações do primitivo
cristianismo está a mentalidade e os ideais do “Pai Nosso”.
Claro
que não há mal nenhum em repetir o “Pai Nosso”, mas de nada servirá se não
vivermos em sintonia com o que afirmamos nessa oração. O “Pai Nosso” não é
nenhuma fórmula mágica para Deus nos ouvir ou nos tornar melhores cristãos.
Em
Marcos
10:15 e Lucas 18:17
Jesus dá o exemplo duma criança que converse com o seu próprio pai.
Quando
nos dirigimos a Deus como o “altíssimo”, o “omnipotente”, o “Senhor dos exércitos”…
claro que Deus é tudo isso, mas ainda muito mais do que tudo, pois Deus é o
Pai.
Não
me parece que os filhos dum rei ou dum presidente de algum país dos nossos dias
o tratem por sua majestade ou por excelentíssimo presidente… pois ser pai é mais do que tudo isso.
A nossa qualidade de filhos adoptivos de Deus,
permite-nos o acesso directo a Deus, isentos de qualquer formalidade.
Ou
será que temos saudades do Velho Testamento e rejeitamos a nossa condição de
filhos adoptivos para voltar aos tempos de Moisés?
Temos
alguns exemplos de como Jesus ou o primitivo cristianismo contactava com Pai e
certamente gostaria que nós assim o contactássemos.
Vejamos
em Marcos
14:36 ou Romanos 8:15
ou Gálatas
4:6.
Esta
palavra aba ou abá, não existe na nossa língua
como exclamação. Não tem tradução possível, mas nalgumas línguas antigas,
correspondia ao arameu abba,
equivalente ao árabe abú ou ao grego abbá ou ao latim abba ou abbas. Uma
tradução aproximada para a expressão Aba Pai, seria paizinho ou papá, ou papai,
expressões só aceitáveis entre Pai e filho.
Temos
de questionar a quem tentamos agradar com os nossos cultos.
Isto
é importante, pois Deus não vê como nós vemos e Deus não ouve como nós ouvimos.
Um culto com uma liturgia perfeita para nós, pode não
agradar ao Pai, como no caso que já mencionámos passado com o Profeta Samuel em
que Deus rejeita um culto com todo o rigor litúrgico dessa época.
Por
vezes, os cultos mais “perfeitos”, com todo o rigor das nossas liturgias,
acontecem quando as igrejas estão fracas e desiludidas. Quando o pastor ou
padre deixa de ser dirigido pelo Espírito Santo para ser “prisioneiro” da
organização religiosa e dos planos de pregação que têm de cumprir, mesmo que
não sejam os mais indicados para a sua congregação, ou quando todo o culto fica
a cargo de profissionais da religião, quer se trate dos cantores como do
próprio pregador. Afinal, a objectivo do culto é agradar a quem?! Para agradar
à assistência e encher a igreja ou agradar ao Senhor da Igreja?
Cantores
e músicos profissionais nas igrejas?! Será uma cópia dos levitas que no Templo
estavam dedicados só à música?
Não
ponho em dúvida que a música dos profissionais será de melhor qualidade. Mas
será que o Mestre ouve como nós ouvimos e aprecia o que nós apreciamos?! Aquilo
que para nós é uma voz perfeita ou desafinada… para o Pai,
pode ter um significado bem diferente.
5) Conclusão
Para
responder ao irmão David de
Oliveira, que me perguntou o que é louvar a Deus em espírito e verdade, tenho de confessar que podemos
ter algumas ideias, mas não sei propriamente como é.
Talvez
não seja nos comentários e livros de teologia que temos a resposta. Mas se
Jesus nos ensinou em Marcos 10:15
e Lucas
18:17 que as crianças são o nosso exemplo, então será com
os nossos filhos ou netos pequenos que devemos aprender, quando nos vêm e
exclamam papá… e correm ao nosso
encontro.
Mas
seremos nós capazes de aceitar a Deus com essa espontaneidade, alegria e
confiança duma criança de dois ou três anos?!
Quando o
Pai nos chamar para a sua casa, talvez seja assim, já libertos de todas as nossas
tradições culturais ou litúrgicas que entraremos no Reino dos Céus para
finalmente compreender o que será louvar a Deus em espírito e verdade.
Camilo – Marinha
Grande, Julho de 2014
Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas
Literatura consultada:
Várias
versões da Bíblia.
Dicionário
de Teologia Bíblica - Bauer – Edições Loyola
Enciclopédia
Histórico-Teológica da Igreja Cristã
Dicionário
da Bíblia - John D. Davis - Publicadora Batista
Dicionário
etimológico da língua portuguesa de José Pedro Machado
Na
sequência deste artigo, abordando o mesmo assunto,
veja também os artigos Louvor no Islão (YA) e Louvor
a Deus (CC)