Espiritualidade feminina face à violência (EM)
(Deverá
“clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)
Julgo oportuno iniciar este Estudo Bíblico com um pequeno “prólogo”
a alertar os leitores acerca do que poderão esperar se continuarem a leitura
desta reflexão – e acerca do que em vão nela procurarão.
Importa dizer, desde já,
que definitivamente não encontrarão um tratado teórico sobre o tema da
espiritualidade feminina face à violência. Tratado esse que abordasse, de forma
exaustiva, tudo o que se poderia dizer sobre o assunto, numa perspectiva
bíblica.
Em vez disso, quero
contar-vos – ou, se assim o entenderem, vamos relembrar em conjunto – a vida, a
experiência de quatro mulheres da Bíblia.
Quatro
mulheres que passaram pela dolorosa experiência da
violência e que procuraram enfrentá-la com base na sua
fé em Deus. Quatro mulheres que, no meio desta tão dolorosa
experiência, chegaram a ver brotar uma semente de esperança.
É por isso que estas mulheres que viveram há tanto tempo (há 2000,
há 3000 anos!) nos podem acompanhar e inspirar na nossa própria busca de uma
resposta na fé (é isto a espiritualidade, penso eu), face à violência no nosso
mundo actual.
Busca e resposta estas
que, sendo formuladas por mulheres, serão inevitavelmente busca e resposta
femininas.
É a esta busca que vos quero convidar, com toda a convicção.
1. A filha de Jefté Juízes 11
Apresento-vos então a primeira mulher. Chama-se
... enfim, chamava-se certamente alguma coisa,
mas a Bíblia, como tantas vezes acontece (e não só na Bíblia!), não nos
transmite o seu nome. O livro de Juízes identifica-a apenas como “a filha de Jefte”. Juízes 11:34
Jefté era um dos Juízes que liderava o povo de Israel, antes do
tempo dos reis, antes da monarquia.
Pouco sabemos então desta jovem. Apenas que é filha única. E que
ainda está solteira. Imagino-a jovem, entre 15 e 20 anos, talvez, a idade
concreta pouco importa. De qualquer modo, ainda vive em casa dos pais.
Também ficamos a saber que
vive numa época agitada, insegura: a ameaça de uma guerra paira sobre o país,
um ataque dos amonitas, povo vizinho de Israel, parece iminente. Sabemos ainda
que, face a esta ameaça, tinha-se ido buscar o pai dessa jovem, o tal Jefté,
para liderar o povo na batalha e, se a ganhasse, ser o novo chefe.
Jefté, antes de entrar na guerra (e após falhadas tentativas de
negociações para evitar o confronto militar), pede o auxílio de Deus. E faz-lhe
uma promessa.
Porquê? Talvez por se sentir inseguro... Não sabemos. Sabemos,
sim, que quer vencer, pois quer ser reconhecido pelos seus irmãos, pelo seu povo
(os irmãos tinham-no expulso por ser filho de uma prostituta, Juízes 11:1, e
sabemos que este reconhecimento depende da vitória na batalha...
Jefté quer, precisa de vencer. E, de facto, está a caminho da
vitória, pois o espírito do Senhor tinha descido sobre ele
Juízes 11:29.
Mesmo assim, antes de avançar mais no território dos amonitas, Jefté faz um
solene voto a Deus e promete: “Se realmente me deres a vitória sobre os
amonitas, oferecer-te-ei em holocausto, em sacrifício quem quer que saia das
portas da minha casa para me cumprimentar, quando voltar da guerra” Juízes 11:30/31.
Contente, após gloriosa vitória, vemo-lo regressar a casa.... onde a sua filha, a única,
vai alegremente ao seu encontro, “dançando e tocando tamborim”.
Jefté vê-a e, com profunda tristeza, rasga a sua roupa.
Pois julga-se obrigado a cumprir a sua promessa e, por isso, a
sacrificar, a matar a sua filha. “Fiz uma promessa solene a Deus e não posso
voltar atrás” Juízes
11:35.
Jefté sente-se profundamente triste – mas não vacila nem por um
instante.
Pior: nem uma única palavra de consolo encontra para a filha. Pelo
contrário, acusa-a: “porque é que me devias dar tanta dor?” Quem está a sofrer é Jefté – que nem
por um momento consegue vislumbrar o sofrimento que ele próprio, sem
necessidade alguma, está a provocar à jovem.
E esta....
não foge, não grita, não se recusa. Aceita o seu
horrível destino.
Há histórias horríveis na Bíblia. Porque é que Deus não envia um
anjo? Porque é que não faz nada para salvar esta jovem, tal como salvou Isaac
da faca do seu pai?
Desta vez, não acontece nenhum milagre.
Como tantas vezes ao longo da história, como tantas vezes nos
nossos dias. Até neste sentido, a Bíblia é um livro assustadoramente
“realista”.
E a filha consente. “Se
fizeste uma promessa ao Senhor em relação a mim, cumpre-a” Juízes 11:36.
“Apenas te peço um favor. Deixa-me durante dois meses ir para os montes com as
minhas amigas chorar, por ter de morrer virgem”.
Durante dois meses, as jovens permanecem nas montanhas. As amigas
partilham a dor com a filha de Jefté. Choram com ela. Lamentam com ela esta
morte sem sentido, esta vida sem sentido por morrer tão jovem, solteira, sem
filhos que um dia poderiam recordar a mãe. Dois meses...
Depois regressam a casa, Jefté cumpre a sua promessa, a filha
morre. Vítima da necessidade de um homem se afirmar e da sua religiosidade
colocada ao serviço desta procura de auto-afirmação.
Mas, acrescenta o livro de
Juízes, a história não acaba aqui. Lemos: “assim teve origem o costume em
Israel de as jovens saírem quatro dias por ano, para chorarem a má sorte da
filha de Jefté” Juízes
11:40.
Por quê vos contei esta horrível história?
Contei-a porque me perturba.
Pois é verdade, é um facto incontornável que neste mundo, também
hoje, existem situações de imensa violência a que, por algum motivo, não é
possível resistir, da qual não é possível fugir. Situações em que nada se pode
fazer para acabar com a barbaridade ou para, pelo menos, proteger as suas
vítimas (guerras, assaltos, genocídios..).
Também é verdade que conhecemos situações em que Deus não salva a
vítima, situações em que Deus parece estar completamente ausente...
A espiritualidade feminina nestas situações ...
limita-se a muito pouco – a pequenos gestos que,
porém, fazem toda a diferença.
· a
jovem, a filha de Jefté, está rodeada pelas suas amigas, ela não fica sozinha
· as
amigas partilham a dor dela, choram com ela, durante dois longos meses
· e
... não admitem que caia no esquecimento. Esta jovem
de quem nem o nome sabemos, esta mulher fica lembrada,
pelo menos uma vez por ano, durante quatro dias. Quatro dias em que as jovens
de Israel (já não apenas as suas amigas mais íntimas) deixam o seu trabalho, a
sua família, tudo, quatro dias em que saem das aldeias,...
para comemorar e chorar esta jovem.
Com lagrimas de dor.
Com lágrimas de revolta.
Com lágrimas de protesto.
Com lágrimas, que acusam este crime.
Enquanto esta jovem não for esquecida, há esperança de que o crime
não se repita...
Estas lágrimas têm muita força.
A dor partilhada tem muita força.
Há situações de violência em que a resposta, a espiritualidade face
à violência, é isto, apenas isto:
· não
esquecer, melhor: manter viva a memória das vítimas e
· partilhar
a dor, exprimir a dor, juntos, inclusive de forma pública.
(Imagine-se as jovens portuguesas, ou mesmo, as jovens cristãs em
Portugal, a abandonarem, durante quatro dias por ano, os seus trabalhos, as
suas casas, para chorar as vítimas da violência, hoje....).
2. Ana
1º Samuel 1
Ana é uma das muitas mulheres na Bíblia que sofre de um mal que,
em princípio, tem a ver com homem e mulher – mas pelo qual é culpada quase
sempre a mulher: o de não ter filhos. Nenhum texto bíblico fala de um homem que
não conseguia ter filhos.... enquanto
encontramos várias mulheres que sofrem, não apenas porque não conseguem ter
filhos, mas sobretudo por causa de marginalização e do profundo desprezo que
esta realidade implicava na Antiguidade.
Ana não tem filhos. Pior: a
segunda mulher de Elcaná, Penina, a sua rival (como
diz 1º Samuel), tem vários.
Tão grande é, naquele tempo, a pressão social para ter filhos, tão
grande é o desprezo da mulher que não consegue tê-los, que Ana fica depressiva.
As festas em casa, a peregrinação da família ao santuário,
uma vez por ano, as refeições em comum, tudo se torna, para Ana, num
profundo pesadelo. Nem as palavras do esposo, todo amoroso, conseguem
consolá-la – “Ana, por que é que choras? Não sou para ti mais que dez filhos?” 1º Samuel 1:8
Mas Ana já não tem força.
Não suporta mais as humilhações de Penina em casa e os olhares dos outros na
rua. Ana deixa de comer. Os seus olhos ficam sem brilho de tanto chorar,
reflecte-se neles apenas a tristeza, a dor. A dor de uma violência que, sem
qualquer agressão física, deixa profundas feridas nesta mulher. Feridas que
estão a matá-la, aos bocados. A violência de uma sociedade em que uma mulher
não vale nada sem filho (macho, entenda-se). Nada pode consolá-la.
Um dia encontra-se, mais
uma vez, em Silo, no santuário. Naquele dia, come e bebe. E depois...
levanta-se.
Ana, que estava tão deprimida, levantou-se.
A Bíblia não nos diz por quê, não nos diz como encontrou a força,
nem por que tinha comido e bebido naquele dia, no santuário, ela, que há tanto
tempo se recusava a comer.
Ana levanta-se e entrega toda a sua tristeza a Deus. Ora e
“enquanto orava, as lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo.”
“Senhor, olha para a dor da tua serva!
Lembra-te de mim!!!
Não te esqueças da tua serva!
Ah, Senhor, se me concederes a graça de ter um filho, eu hei-de
consagrá-lo ao Senhor por toda a sua vida”! 1º Samuel 1:11
Ana, vítima de uma situação violenta. Poderia ter ficado no papel
da vítima - a
chorar, deixando de comer, não aceitando a consolação do esposo, até ao triste
fim. Ana está isolada – nenhuma mulher a apoia, ninguém
chora com ela.
E no entanto... Ana
levanta-se 1º Samuel
1:9. Sacode a depressão dos seus ombros, entra no santuário e ora, ora a
chorar copiosamente, mas ora. “Olha para mim, lembra-te de mim, não te esqueças
da tua serva!”
Ana levanta-se – e naquele momento tudo, mesmo tudo, na sua vida
muda.
A sua oração é um grito, é lamentação, clamor, soluço, gemido,
lamúria. Mas é oração.
Ana levanta-se, abandona o papel da vítima.
Ana levanta-se e fala, fala com Deus.
Ana levanta-se e encontra a força, a profunda força da oração.
Oração que é tudo isto: grito, lamento, clamor, lamúria, lágrimas.
E também isto: libertação.
“O Senhor encheu o meu coração de alegria, é ele que me dá nova
força”, cantará mais tarde 1º Samuel 2:1.
Como uma flor murcha, no calor dum sol abrasador, assim era Ana.
Mas ela levanta-se. Reencontra a sua dignidade, encontra força, encontra Deus e
começa a viver de novo, como uma planta que estende de novo as suas raízes para
beber a água da terra.
É esta a história de Ana. Face à violência psicológica que a
sociedade exercia sobre ela, Ana levanta-se e ora.
Convido-vos a fazermos nossa esta experiência de Ana.
Pensamos na vida de Ana.
Sentimos a exclusão a que está sujeita.
Os olhares dos outros homens, das outras mulheres.
Mães de muitos filhos, pais de muitos filhos.
Olhares de desprezo,
Olhares de compaixão
Olhares a dizer: “Coitada, coitada daquela mulher sem filhos.....”
Sentimos estes olhares....
E o olhar de Penina. A outra. A 2ª mulher de Elkaná.
A rival.
Os olhares e ... as
palavras de humilhação. O veneno. Permanentemente.
À mesa, na cozinha, durante o trabalho.
E Elkaná. O seu olhar preocupado, quando
deixamos de comer. As suas palavras que querem consolar ...
e que não consolam. Pois, afinal, passa a noite também
com a outra, com Penina. Gosta dela e dos filhos dela...
Sentimos a dor de Ana.
Sentimos a depressão de Ana.
Sentimos a raiva de Ana.
E vamos com ela ao santuário. Lá, comemos e bebemos, na presença
de Deus.
Sentimos o pulsar da vida em nós.
Sentimos a presença de Deus. Deus que nos diz: Criei-te, à minha
imagem. És infinitamente preciosa, mulher! Amo-te!
Deus que vive em nós – em cada gota do nosso sangue,
Deus que chora em nós – em cada lágrima do nosso pranto...
E sentimos os nossos pés – colocados firmemente no chão.
Sentimos os músculos das pernas, sentimos todo o nosso corpo, e
sentimos nele uma força desconhecida....
E assim, sim, assim – levantamo-nos! Colocamos o peso sobre os
pés, lentamente ... e
levantamo-nos. .
Ficamos de pé! Sentimos de novo o peso do nosso corpo sobre os
pés.
Respiramos fundo, bem fundo.
Convido-vos agora a orar comigo, alguns versos do Salmo 13. Juntemos
as nossas vozes e oremos com Ana e com as mulheres que, como ela, são desprezadas....
Face à violência, Ana levantou-se! E encontrou nova força na
oração.
3. Maria Madalena e as mulheres que assistem à
crucifixão de Jesus
A terceira mulher de quem vos quero falar é Maria Madalena, todos
a conhecemos.
Juntamente com outras mulheres ela tinha seguido Jesus, desde a
Galileia.
Juntamente com elas, Maria Madalena permanece perto de Jesus, no
momento da crucifixão.
No Evangelho de S. João lemos:
Junto da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, a
mulher de Cleofas chamada Maria e Maria Madalena.
Segundo João, ao lado da mãe de Jesus encontra-se ainda “o discípulo que Jesus
amava”. João
19:25/26. Mais ninguém.
Segundo Mateus
27:55 “lá estavam muitas mulheres a observar de longe. Tinham acompanhado e
servido Jesus desde a Galileia. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe
de Tiago e de José, e a mulher de Zebedeu."
Ou seja, os evangelhos não são totalmente unânimes no que diz
respeito aos nomes das mulheres que permaneciam perto da cruz, mas não deixam
dúvidas de que algumas mulheres ficaram próximas de Jesus, mesmo naquele
momento, enquanto quase todos os discípulos masculinos tinham fugido. E
repete-se neste contexto o nome de Maria Madalena.
Penso que esta presença junto da vítima da violência também é uma
expressão da espiritualidade feminina.
São as mulheres que permanecem na proximidade da cruz; são as
mulheres que, mais tarde, vão ao túmulo para embalsamar o corpo de Jesus.
Diz-se muitas vezes que as mulheres são fracas, que não suportam
ver cenas violentas, que não sabem suportar a dor ... e no entanto, quem não abandona Jesus na sua agonia, são
precisamente mulheres. Porquê? Por quê esta insistência, esta fidelidade,
arriscando inclusive a sua própria vida (pois quem mostrava demasiado interesse
para um crucificado corria o risco de acabar da mesma forma)? Porquê?
Não o sei.
Mas sei que muitas de nós fariam exactamente a mesma coisa.
Reconheço nestas mulheres uma experiência de muitas mulheres ao
longo dos séculos e milénios: esta insistência, face à violência, a afirmar:
· Não, isto não pode
ser toda a verdade!
· Não, isto não é o
fim.
· Não, isto não é
justo, menos ainda “necessário”.
· Não, apesar de tudo
o que vemos, há alguma coisa, há alguém que nos diz:
não é isto o que Deus quer.
· Não, a morte não
pode ter a última palavra.
Muito mais do que uma convicção reflectida e explicável, muito
mais do que um raciocínio, trata-se de uma profunda experiência.
Talvez ela se explique pelo facto de a mulher dar à luz, de a
mulher ter uma ligação muito estreita com a vida. Talvez...
Mas que esta experiência existe, disso não há dúvidas.
E penso que não é por acaso que são precisamente estas mulheres as
primeiras testemunhas da ressurreição, da vida que vence a morte, e isto de
acordo com os quatro evangelhos!!! Estas mulheres que,
mais uma vez, andam juntas, a caminho do túmulo...
Também hoje conhecemos as histórias de mulheres que me fazem
pensar em Maria Madalena e as outras Marias, ao lado da cruz.
· Lembro-me daquelas
mães na Rússia que, com as fotografias dos seus filhos nas mãos, exigiam o fim
da guerra na Tschechenia.
· Lembro-me das mães
na Argentina que, durante a ditadura naquele país, se reuniam numa praça
pública, a Plaza de Mayo,
para exigir informação sobre o paradeiro dos seus filhos...
· Lembro-me também
das mães que permanecem, dia e noite, ao lado dos seus filhos ou esposos,
acamados em casa ou internados nos hospitais com doenças gravíssimas.
· E lembro-me das
mulheres, das muitas mulheres, que, cada dia de novo, fazem o milagre de
encontrar alguma coisa de comer para os seus filhos, no meio da maior
miséria...
Há tantas mulheres, também hoje, que permanecem ao lado daqueles
que são vítimas da violência.
Mulheres junto da cruz. Mulheres testemunhas da vida que vence a
morte. Da ressurreição.
Um belo e fortíssimo exemplo desta insistência que tem as suas
raízes na fé (e, ao mesmo tempo a prova de que esta experiência não existe
apenas na versão feminina) encontro nas palavras de
Dr. Martin Luther King Jr..
Palavras proferidas numa noite gelada de Dezembro de 1964 na cidade de Oslo,
onde, naquele ano, lhe foi entregue o Prémio Nobel da Paz.
“Hoje, na noite do mundo e na esperança da boa nova, afirmo com
audácia a minha fé no futuro da humanidade.
Recuso-me a acreditar que o ser humano não seja mais do que uma
palhinha sacudida pela corrente da vida, sem possibilidade de influenciar
minimamente o curso dos acontecimentos.
Recuso-me a acreditar que o homem está a tal ponto prisioneiro da
noite sem estrelas do racismo e da guerra que a aurora radiosa da paz e da
fraternidade nunca poderá tornar-se uma realidade....
Eu acredito que a verdade e o amor sem condições terão
efectivamente a última palavra. A vida, ainda que provisoriamente derrotada,
permanece sempre mais forte do que a morte.
Creio firmemente que, mesmo no meio das bombas que rebentam e dos
canhões que troam, se mantém a esperança de uma manhã radiosa.
Atrevo-me a acreditar que um dia todos os habitantes da terra
poderão receber três refeições por dia para a vida do corpo, a educação e a cultura
para a saúde do espírito, a igualdade e a liberdade para a vida do coração.
Creio igualmente que um dia toda a humanidade reconhecerá em Deus
a fonte do seu amor. Creio que a bondade salvadora um dia se tornará lei. O
lobo e o cordeiro poderão deitar-se juntos, cada homem poderá sentar-se sob a
sua figueira, na sua vinha, e ninguém mais terá razão para sentir medo.
Creio firmemente que venceremos”.
4. Abigail 1º Samuel 25
A última mulher de que vos quero falar chama-se Abigail. Lemos
sobre ela em 1º
Samuel 25.
É mais um texto em que Deus não aparece – pelo menos não como
actor. E no entanto, mostra-nos mais uma faceta da espiritualidade feminina
face á violência. Para além disto, é um destes textos tão incrivelmente
radicais e actuais que a maioria da gente nunca suspeitaria ele fazer parte da
Bíblia.
Como (quase) sempre, começa com um homem.
Havia em Maon um homem muito rico. Possuía ... e segue-se uma lista
dos seus extensos bens, típicos da sociedade em que vivia: 3000 ovelhas, 1000
cabras, extensos terrenos férteis. Seria fácil substituir aquela listagem por
bens mais modernos, enumerando casas, carros, acções, viagens de luxo... Enfim,
um homem muito rico...
Era este homem descendente de Caleb e chamava-se Nabal, continua o
texto bíblico.
Não sei se repararam na enormidade destas palavras. Pois a
tradução para português faz com que passe despercebida a radicalidade desta
frase. Pois o nome deste homem, Nabal, tem um significado, significa “o tolo”,
“o louco”, o estúpido.
Lemos então mais uma vez:
Havia em Maon um homem muito rico.
Possuía 3000 ovelhas, 1000 cabras, terrenos no monte Carmelo. Era este homem
descendente de Caleb e chamava-se Sr. Louco. Ou Sr. Estúpido,
se preferem.
E era este senhor Louco um homem bastante rude e bruto, continua o
texto, enquanto a sua esposa, Abigail, era inteligente e bonita.
É desta inteligente e bela mulher, Abigail, que vos quero falar em
último lugar.
Abigail, que enfrentou a violência bruta dos homens que a rodeavam
não com outra violência, mas com inteligência. Inteligência (e não apenas
esperteza), porque entendia uma coisa fundamental: que a vida vale
infinitamente mais do que toda e qualquer posse.
Foi assim. Um dia, Nabal, o Sr. Louco, estava com os seus homens a
tosquiar as ovelhas. Facto esse que chegou aos ouvidos de outro homem, de nome
David. Na altura chefe de um bando mais ou menos “mafioso”, um bando formado
por marginais de todo o género (oprimidos, os que tinham dívidas e todos os
descontentes, nas palavras do primeiro livro de Samuel 1º Samuel 22:1
Aproxima-se então este bando, a exigir alimentos (e não só),
supostamente em troca da “protecção” oferecida aos pastores do Sr. Louco,
durante o verão – ou (o que vai dar ao mesmo) em reconhecimento do facto de o
bando durante vários meses não os ter assaltado.
Enfim, mais ou menos como o contributo que pagamos aos arrumadores
dos carros ou, em maior escala, o que as pizzarias, muitos restaurantes
chineses etc. pagam às respectivas máfias.
Até aqui, tudo normal (triste “normalidade”, mas enfim). Só que:
Acontece que o nosso Sr. Louco Nabal se sente seguro e não quer pagar.
Recusa-se rotundamente:
“Mas quem é esse David? Há hoje em dia muitos escravos que fogem
do seu dono...”
A reacção do bando é a previsível. De modo que vemos 400 homens a
aproximar-se da propriedade do Sr. Louco, de espada na mão, preparados para
acabar com tudo e todos.
É neste preciso momento que Abigail entra em acção. Avisada por um
criado, resolve, de imediato (e sem falar com o esposo), enviar a David o
melhor do que tem em casa:
· 200 pães,
· Dois odres de
vinho,
· Cinco cordeiros
assados,
· 100 tortas de uvas e
· 200 tortas de figos secos...
Mas não apenas uma delegação com burros carregados destes
alimentos, não, a própria Abigail vai ao encontro de David e dos seus homens. E
Abigail, com os devidos gestos de cortesia e respeito, não se limita à entrega
da comida, mas faz um discurso deveras surpreendente. É uma cena
impressionante: A mulher do homem mais rico da região, ajoelhada aos pés do
líder de um bando, a pedir-lhe que aceite as ofertas e
a dizer-lhe: “Pensa no que estás a fazer!! Queres
chegar a ser rei, com as mãos cheias de sangue inocente?? Por Deus, e por ti
próprio, pensa duas vezes!”
E, outra surpresa, David e o bando aceitam. E retiram-se, sem mais
nada.
Evidentemente, essa “missão de paz” de Abigail é discutível e
podemos discuti-la. Mas sem nunca esquecer o facto de esta mulher ter
conseguido evitar um banho de sangue.
Face à violência, ela não reage de forma ingénua - como o seu
esposo -; também não reage simplesmente com outra violência. A sua “estratégia”
não tem como primeiro objectivo afirmar-se, acabar com os maus, vingar-se,
etc., mas pretende, pura e simplesmente, proteger a vida de todos. Inclusive a
de David. E proteger todos de sujarem as suas mãos com sangue...
É por isso mesmo que julgo que esta mulher não pode faltar num
estudo bíblico sobre a espiritualidade feminina face à violência. Precisamente
porque ao longo da história e também hoje, há quem nos queira convencer de que
a maneira mais inteligente, a maneira mais lógica, a única maneira de reagir
face à violência, ponto final, é aquela representada pelo Sr. Nabal Louco ... enquanto a Bíblia nos
desafia com o elogio da inteligência da sua mulher Abigail!!!
Deixemos desafiar-nos!
A filha de Jefté, Ana, Maria Madalena, Abigail: quatro mulheres
entre tantas outras que passaram pela dolorosa experiência da violência. Quatro mulheres que nos desafiam a procurar, inspiradas na
fé em Deus Amor, Deus Vida, a nossa própria resposta face à violência nas
nossas casas, nas nossas ruas, no nosso mundo actual.
Para que as vítimas sejam choradas e recordadas – pelo menos isso
– como a filha de Jefté.
Para que, como Ana, encontremos aquela profunda força que nos faz
levantar-nos, deixando para trás o papel de vítimas passivas. A força da
oração.
Para que, no meio do sofrimento, possamos descobrir e anunciar a
esperança da ressurreição e a profunda convicção de que a Vida vencerá e as
lágrimas serão enxugadas, uma vez por todas.
Para que utilizemos a nossa inteligência, tão belo dom de Deus,
para enfrentar a destruição, proteger a vida e trilhar novos caminhos para um
mundo mais humano, um mundo em Paz.
Albergaria-a-Velha, 10 de Fevereiro de 2001.
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas