Dois púlpitos (CC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

Pediram a minha opinião sobre o que se está a tornar tradição nalgumas igrejas evangélicas em Portugal ao colocar dois púlpitos, um mais alto e afastado da assistência e outro mais pequeno e mais próximo dos crentes.

 

No Brasil a tradição é um pouco diferente, pois colocam um espaço mais elevado no pavimento, como que um palco onde fica o púlpito, mas também o grupo coral e todos que terão uma participação nesse culto, o que me parece mais aceitável, e também já vi em algumas igrejas em Portugal.

Já tenho recebido mensagens de diáconos do Brasil que se queixam de não os deixarem sentar-se nesse local mais elevado, mas entendem que deverão ter esse “privilégio” só por serem diáconos, mesmo nos cultos em que não tenham nenhuma participação. Parece que com o tempo se começa a associar esses locais mais destacados com um certo significado especial, como locais santos, ideia que duvido que tenha bom fundamento bíblico neotestamentário. Esta apetência por lugares de destaque é bem antiga e faz-me lembrar de Mateus 20:20/23 e Lucas 22:25/27.

Nas igrejas católicas e do protestantismo tradicional em Portugal, o lugar principal do salão de cultos é ocupado pelo altar ou a mesa da Ceia do Senhor, no centro do palco, quando o houver, enquanto nas igrejas evangélicas o lugar central é para o púlpito que, nos casos em que há um palco, fica no seu centro.

 

Algumas igrejas evangélicas em Portugal, optaram por ter dois púlpitos: Um mais alto, geralmente só utilizado pelo pastor, ou pastores, e outro mais pequeno e mais próximo da assistência, para o professor de Escola Dominical e participação de outros crentes e mulheres. Constou-me que nos últimos dias tem havido algum mal-estar, não só em igrejas que só tinham um púlpito e o pastor tentou colocar o segundo, como sobre quem poderá falar do púlpito da igreja.  

 

Devo dizer, em primeiro lugar, que não me considero católico nem evangélico e entendo que cada igreja, assim como cada religião em geral, é livre para tomar as decisões que entender, sobre este assunto. Mas, como pediram a minha opinião, como cristão que crê somente em Cristo, não prescindo de responder através desta minha página na internet, deixando este “espaço” da minha página para a divulgação de outras opiniões contra ou a favor do segundo púlpito.

 

A única referência que encontrei no Velho Testamento, que podemos identificar como púlpito, está em Neemias 8:1/5 ss embora apareça a expressão “…um estrado de madeira, que fizeram para esse fim…” que pelo contexto podemos identificar com o púlpito. Estavam cerca do ano 440 AC época em que certamente não havia aparelhagem de amplificação sonora nem tinham conhecimentos de acústica, pelo que se limitaram a construir um estrado alto, para que Neemias pudesse ser visto e ouvido pelo maior número de pessoas possível. Não foi por instruções do seu Deus, pois nesse caso, certamente que ficaria registado. Foi uma iniciativa deles para resolver o problema com as possibilidades que tinham.

No Novo Testamento, também não aparece a palavra “púlpito” (que vem do latim pulpitu e significava cavalete, tribuna, palco etc.) o que não significa que não utilizassem esse tipo de mobiliário com a mesma finalidade, como no caso de Neemias, sem a carga teológica que essa palavra adquiriu nos nossos dias. Em certos aspectos, podemos considerar que o barco de Pedro já foi um “púlpito” utilizado por Jesus. Marcos 4:1

A origem do púlpito está num cavalete idêntico ao que utilizam os músicos ou os pintores para colocar os seus papéis. Não podemos ignorar que nessa época do primitivo cristianismo os “livros” eram rolos de pergaminho ou pele, pouco portáteis, que necessitavam de ser colocados nalgum suporte.

Esse cavalete era portátil e andava de mão em mão, conforme a pessoa que usava da palavra, muitas vezes em lugares públicos, pois não há notícia do primitivo cristianismo ter deixado grandes igrejas (refiro-me aos edifícios religiosos).

Só no tempo do Imperador Constantino, quando este decide ajudar os cristãos na “evangelização” do Império Romano confiscando os templos das religiões tradicionais do Império Romano e suas fontes de receita para os entregar aos cristãos é que aparecem as primeiras grandes igrejas cristãs.  

Mas foi principalmente na Idade Média, com as grandes catedrais que os púlpitos adquirem um novo significado. Aparecem os púlpitos de pedra, para dar ideia de força, solidez e durabilidade, em lugares bem elevados em relação à assistência, com melhores condições acústicas que ainda se notam nas antigas igrejas em Portugal e por toda a Europa, alguns púlpitos revestidos a ouro, para transmitir a ideia de riqueza.

Na Idade Média, poucos sabiam ler, muito menos interpretar a Bíblia e ainda não havia imprensa, pelo que o custo duma bíblia manuscrita era elevadíssimo e não acessível ao público, além das bíblias estarem fachadas com chaves. Assim, o púlpito adquiriu novas funções. Como poucos sabiam ler, poucos subiam ao púlpito, que passou a ser o local onde era proclamada a “verdade oficial” por pessoas devidamente habilitadas, não só pelos seus conhecimentos como pelo apoio e confiança das autoridades religiosas e políticas. O púlpito conferia mais credibilidade e autoridade a quem o utilizasse e tornou-se como que o “Diário da República” (a) onde as leis são pulicadas para entrarem em vigor. Era esse púlpito que conferia autoridade quer sacerdotal quer política aos poucos que o utilizavam.

 

O que acontece em algumas igrejas evangélicas em Portugal?

Como disse na introdução, nas igrejas católicas e do protestantismo tradicional, o lugar central é para o altar ou mesa da ceia do Senhor e o púlpito está em lugar secundário.

Este problema do púlpito é tipicamente um problema das igrejas evangélicas, em que o púlpito pela posição que ocupa no salão de cultos, passou a ser encarado como o lugar santo, que à semelhança do Velho Testamento está reservado aos “sacerdotes” dos nossos dias. O problema que me foi colocado, da origem dos dois púlpitos, um mais alto e outro mais baixo e mais próximo da assistência, penso que será influência do Templo do Velho Testamento com o seu lugar santo só acessível aos sacerdotes e o lugar santíssimo onde só o sumo-sacerdote podia entrar uma vez por ano, depois de vários rituais de purificação, sem os quais a sua morte seria inevitável. (b)

Mesmo que não haja proibição de utilizar o púlpito principal, todo o crente, instintivamente ocupa o púlpito mais baixo e deixa o púlpito mais alto e mais afastado para o pastor. Assim, gradualmente, através dos anos, os hábitos tornam-se lei. Já há igrejas evangélicas onde a mulher é impedida de pregar, mesmo no púlpito mais baixo.

Devo também mencionar o pormenor arquitectónico de dar à parede por detrás do pregador, uma forma de concha para melhorar a acústica, de forma que o som seja reflectido em direcção à assistência. Todos estes pormenores deixaram de fazer sentido na nossa época com a possibilidade dos sistemas de amplificação do som, mas nalgumas igrejas evangélicas, continuo a ver esse pormenor arquitectónico como forma de realçar o pregador, tendo-se tornado tradição, possivelmente com alguma carga supersticiosa.

 

Mas vamos à pergunta principal: Qual o exemplo que Jesus nos deixou sobre este assunto?

Segundo vemos nos evangelhos, várias vezes o Mestre ensinou no Templo e nas sinagogas, mas os sermões mais importantes foram para os pescadores nas praias, para os lavradores nos campos, para as grandes multidões que O seguiam nos montes.

Um dos motivos do fraco crescimento das igrejas é que o evangelho geralmente só é anunciado aos que já são crentes e vêm às igrejas. Nos seminários de teologia aprende-se a subir ao púlpito das igrejas. Não digo que tal não seja importante, mas o principal seria… não digo subir, mas descer ao púlpito de Jesus que fica do lado de fora das igrejas e hoje até o trabalho está facilitado, pois há liberdade de expressão e temos meios de comunicação que os antigos não tinham, como os jornais, a rádio, a TV, e a internet, embora não seja tão fácil como parece, pois a liberdade é para todos e outras ideias religiosas competem entre si.

Grande parte dos pastores e padres só tem preparação para pregar dentro das igrejas, nesse ambiente protegido e religiosamente climatizado, quando está perante os seus crentes, prega para os crentes, e não tem preparação para falar em ambiente secular.

Muitos têm tentado falar no amor de Jesus, mas sem nada fazer para mostrar esse amor. Afinal, qual a religião dos nossos dias que não diz que Deus é amor?! Evangelho sem obras é simples propaganda das igrejas. Não podemos esquecer de Mateus 7:15/23. Quero também mencionar Alcorão 5:48, que considero perfeitamente adaptado aos nossos dias. Ou como está na versão actualmente em elaboração na Mesquita de Lisboa, directamente do árabe para o português. E revelamos-te o Livro com a Verdade, confirmando o Livro que o precedeu e fizemos-te o seu vigilador, portanto julga-os entre eles conforme o que Alá revelou, e não sigas os seus desejos, desviando-te da Verdade que te chegou. A cada um de vós nós temos prescrito uma Lei e um caminho aberto. E se Deus quisesse, teria feito de vós um só povo, mas fez-vos como sois, para vos testar por aquilo que vos concedeu; portanto, competi uns com os outros nas boas acções. Todos voltareis para junto de Alá, que então vos esclarecerá a respeito das vossas divergências. 

 

Quanto mais arrefecida a igreja, quando deixa o seu primeiro amor Apocalipse 2:4, mais ritualista, autoritária e hierárquica se torna, mais importantes as normas e regulamentos como era no Velho Testamento.

Segundo Lucas 23:45 quando Jesus morreu “rasgou-se ao meio o véu do santuário”. Mas, nos nossos dias, parece que há quem esteja a tentar remendar o véu rasgado.

Vejo com preocupação que muitas igrejas evangélicas se estão a tornar como pequenas representações do Templo de Jerusalém, com os seus “sacerdotes levitas”, muito zelosos dos seus privilégios, e os seus lugares santos, interditos ao crente vulgar, como as reuniões só para pastores, as salas de pastores ou de anciãos, a discriminação da mulher etc. a terminar nos lugares “santos” em igrejas que se dizem cristãs, onde o vulgar crente não tem acesso, como é o caso do púlpito dessas igrejas.

Segundo Joaquim Jeremias, no seu livro “Jerusalém no tempo de Jesus”, o historiador Josefo afirma que no Templo, a mulher judia só podia entrar no átrio dos gentios e no das mulheres. Nas sinagogas, com base em Deuteronómio 31:12, já podiam entrar mulheres, crianças e até estrangeiros. O mesmo historiador Josefo, menciona o caso da Sinagoga de Sardes onde todos entravam livremente, mas noutras sinagogas havia grades a limitar o local que podiam ocupar no interior das sinagogas.

A principal característica da mulher na liturgia veterotestamentária, é que aparecia sempre para escutar e nunca para ensinar, contar uma experiência espiritual, ou expor livremente uma ideia. Aliás as escolas no tempo de Jesus recebiam somente meninos enquanto as meninas aprendiam em casa os trabalhos domésticos.

Se compararmos estas informações com o que Paulo diz em Gálatas 3:25/28, é caso para pensar se podemos assistir indiferentes a esta judaização de igrejas que se dizem evangélicas.

Há que repensar a origem do púlpito, o que foi através dos tempos e o que queremos que seja o púlpito nos nossos dias. Mas talvez essa questão esteja relacionada com outra: Qual a Igreja que queremos? A Igreja autoritária, hierárquica ao serviço dos poderosos? Ou a Igreja identificada com os pobres, a Igreja ao serviço dos pobres e mais do que isso, deve ser também a Igreja dos pobres como o exemplo que Jesus nos deixou.

 

 

Camilo, Marinha Grande, Portugal

Junho de 2013

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas

 

 

(a). Para os leitores que não estejam em Portugal, devo dizer que o Diário da República é o diário onde todas as leis são obrigatoriamente publicadas antes de entrarem em vigor. Actualmente deixou de ser publicado em papel para ser publicado na internet, para conhecimento de todos os interessados. Em Angola, Moçambique e Cabo Verde é o Boletim Oficial e no Brasil julgo que seja o Portal de Legislação etc

 

(b) Quando o Império da Babilónia conquistou e destruiu Jerusalém no ano 587 AC 2º Reis 25:08/17, e já depois de Cristo, no ano 70 da era cristã, quando os romanos conquistaram Jerusalém e o Templo voltou a cair nas mãos de incircuncisos, certamente que os exércitos invasores devem ter entrado em todos os cantos do Templo de Jerusalém e não consta que alguém tenha morrido ao entrar no lugar santíssimo.

 

Literatura consultada:

“Jerusalém no Tempo de Jesus” por Joaquim Jeremias – Publicação da Paulus

“Celebração do Evangelho” por Rubem Amorese, Brasil