Experiência do
divino (MC)
(Deverá
“clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)
ÍNDICE
Capítulo I - “Provai
e vede”
Capítulo II - “Eis o homem”
Capítulo III – “Recebereis o poder”
Capítulo IV - “Sem fé é impossível...”
Capítulo V – “Enchei-vos do Espírito”
Capítulo VI – “Falarão
novas línguas”
Capítulo VII – “Orarei
no espírito”
Capítulo VIII - “Todas
as coisas lhes eram comuns”
Capítulo IX – “Apresentai
os vossos corpos”
George G. Hunter III, no seu livro To Spread the
Power, manifesta a sua convicção de que a obra da
missão evangelística só é feita por cristãos e Igrejas que cumpram estas quatro
condições:
1ª - Vejam a
sua identidade na continuidade dos Apóstolos;
2ª - Vejam o
lugar onde a Igreja está como um campo de missão;
3ª - Estejam
prontos a receber o poder do Espírito;
4ª - Desejem
acima de tudo o mais juntar-se ao Senhor da Seara na busca dos perdidos e na
construção daquela Igreja contra a qual as portas do inferno não prevalecerão.
As páginas
que se seguem foram escritas por um pastor que, ao longo do seu ministério, tem
estudado a 3ª condição.
Capítulo
I - PROVAI E VEDE
No seu estilo
irónico e contundente, o falecido professor António José Saraiva dizia um dia
nas páginas do semanário “Expresso” que, para o ideólogo, a realidade concreta
da vida só existe para confundir, e é ela que tem de se adaptar à ideologia e
não esta aquela. Se bem me lembro, esta crítica do autor da “História da
Cultura em Portugal” foi feita antes da queda do Muro de Berlim (1989), que
geralmente se aponta como o prenúncio do desprestígio de todas as ideologias.
O facto é que
o homem dos nossos dias é céptico em relação a tudo que não esteja claramente
ancorado na realidade tangível. O homem de hoje não se contenta com o discurso
racional abstracto, com a doutrina bem elaborada, mas requer a prova da
experiência, dos sentidos, do vivido. Este tipo de cepticismo tem no seu bojo
alguns perigos, dos quais o menor não é o de o homem acabar por se contentar
com as pequenas realidades do quotidiano imediato e desprezar as
potencialidades do seu próprio ser e das utopias, sabendo-se que uma verdadeira
utopia, por definição, não é uma quimera irrealizável nem irracional mas é
antes um projecto por realizar. Aliás, deve mesmo questionar-se, como já o fez
Carl-Gustav Jung (1), se podemos circunscrever o real
àquilo que é pressentido pelos sentidos, ou se não devemos, como o homem
oriental, considerar como real tudo o que faz parte da psique.
O
Cristianismo não pode temer esta característica do homem moderno,
característica que, aliás, tem muito a ver com a própria mensagem bíblica e que
em especial o Protestantismo legou ao mundo. Alguns pensam que Jesus requer uma
fé cega quando diz a Tomé: Bem-aventurados aqueles que
não viram e creram João 20:29. É
evidente que o dito de Tomé “ver para crer” não é elogiado por Jesus, mas “ver”
é uma coisa e “sentir” é outra. Neste livro, mais adiante, diremos mais sobre o
significado de crer ou ter fé, e perceber-se-á que não tem de ver com provas
visuais, mas com confiar – no entanto, não se confia cegamente. O Protestantismo
justamente combateu a ideia medieval escolástica da autoridade: uma coisa é
verdade porque a Igreja diz que é verdade.
A Reforma falou abundantemente da necessidade de cada cristão,
pessoalmente, conhecer, convencer-se da verdade. Diz-se que passou a religião
da esfera do objectivo para o subjectivo: não basta pertenceres à Igreja, é
preciso que tu mesmo estejas convertido
a Cristo. Tem-se falado criticamente da “fé do carvoeiro” aludindo-se a esta
situação:
- Em que
crês, carvoeiro?
- Creio no
que crê a minha Igreja.
Não é,
naturalmente, a fé do “carvoeiro”, profissional humilde, apenas que se denuncia
mas a de todos os que, universitários incluídos, aceitam viver numa fé em
segunda mão, porque se limitam a repetir as crenças que outros formularam.
“Deus perdoa?” “Claro que perdoa: a minha Igreja assim o diz”. A exortação,
contudo, a fazer é esta: Provai e vede que o Senhor é
bom; feliz o homem que nele confia Salmo 34:8. É cada
um, cada uma, que deve esforçar-se por ter uma experiência pessoal de Deus.
Ninguém se torna cristão - no verdadeiro sentido da palavra, que é viver numa
relação pessoal com Cristo e ser aquilo que o Novo Testamento chama “filho de
Deus” - apenas por estar arrolado a uma igreja, mas o evangelista João diz que
Deus deu a faculdade de se tornarem “filhos de Deus” àqueles que crêem em Jesus Cristo João 1:12. Mais para
a frente veremos que “crer em Jesus Cristo” não é apenas acreditar que ele
existiu e deixou um ensino. O ponto que agora importa realçar é que não se é
cristão apenas por participar de cerimónias numa igreja, mesmo que essa
cerimónia seja a Profissão de Fé, nem por herança (“sou cristão porque venho de
uma família cristã”, dizem alguns). Um famoso evangelista disse com alguma
graça irreverente: “Deus não tem netos!”. Ser cristão é o fruto de uma relação
eminentemente pessoal entre o crente e Cristo.
Não se pode
negar que um realce nas experiências pessoais (subjectivas) na Fé Cristã tem os
seus perigos. Pensemos, por exemplo, na questão do perdão dos pecados. Todo o
crente, por mais dedicado, está sujeito a transgredir um dos mandamentos de
Deus, num ou noutro momento, principalmente o Mandamento Novo, que nos manda
amar ao próximo. Arrependido, confessa a Deus o seu pecado. E depois? Será que
Deus perdoou mesmo? Como encontrará a paz? Uma jovem católica disse uma vez a um amigo protestante: “Nós,
católicos, confessamos ao padre os nossos pecados, ele dá-nos uma penitência e
em seguida absolve-nos. Ouvimos claramente o perdão (objectividade): “Eu te
absolvo, minha filha. Vai em paz”. Mas vocês, protestantes, confessam a Deus,
no segredo dos vossos corações, os vossos pecados. Como podem ter a certeza de
serem perdoados?”. No caso protestante tem de intervir a subjectividade? Outro
exemplo: a Ceia do Senhor ou Eucaristia. O Catolicismo diz que as palavras de
consagração do sacerdote agem e o Pão e o Vinho tornam-se Corpo e Sangue de
Cristo, objectivamente. Os protestantes fazem depender da fé – ou seja da
subjectividade. Se o ministro é um velhaco, se o crente é um patife, tudo está
ameaçado. Quem vive dentro do Protestantismo, como o autor destas linhas, sabe
que muitas vezes as pessoas sofrem situações como estas: andam anos a confessar
pecados e nunca mais se acham perdoadas; participam da Ceia e dizem “não senti
nada!”. E no entanto, paradoxalmente, o Protestantismo tem a chave da resolução
do problema: é a doutrina que afirma ser a Bíblia a única e suficiente regra de
fé e prática (Sola Scriptura). Como é que o pecador
arrependido sabe objectivamente que está perdoado? Atendo-se ao texto bíblico
que diz: Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel
e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a injustiça 1ª João 1:9. Se o
crente ler ele mesmo esta palavra ou a ouvir ler por um pastor, por um leigo, é
nesta palavra que descansará e não nos seus próprios sentimentos. Quanto ao Pão
e ao Vinho da Ceia é também objectivamente que está escrito: Este é o meu Corpo; este é o meu Sangue 1ª Coríntios
11:23/26, e é nisso que o crente confia e não nos seus sentimentos.
Conta-se que Lutero, quando se discutiu diante dele se sim ou não Cristo estava
presente na Ceia, tomou um giz e escreveu num quadro com firmeza as palavras
com que Jesus instituiu este sacramento: “Este é o meu corpo!”. Lutero era
fundamentalista? Não: mas sabia haver textos que devem ser tomados com
objectividade.
É certo,
porém, que uma maior expressão de subjectividade religiosa entrou no mundo
moderno pelo Protestantismo e naturalmente reflecte-se em várias áreas da vida.
É essa, entre outras, a razão por que o homem moderno tem tanta necessidade de
sentir. Uma revista de Lisboa publicou recentemente uma entrevista com o
professor americano Todd Gitlin
que tem apontado para esta característica da civilização moderna ocidental e
este estudioso cita um autor do século XIX, Georg Simmel,
que começara a ver esse fenómeno: “Simmel ajudou-me a
compreender o facto de a vida emocional preceder a vida intelectual, a relação
primordial entre a mãe e o feto, a nossa sede de emoções” (2). Para Gitlin nem tudo é positivo nesta atitude moderna, achando
que as pessoas hoje, por causa dos “mass media”,
vivem obcecadas pelo divertimento – e não é difícil ver como alguns movimentos
religiosos novos são puro divertimento, “hipermercados da religião”, mas
reconhecer esses aspectos doentios não nos deve impedir de reflectir no facto
de, nas Igrejas, as pessoas já não se contentarem apenas com doutrinas
correctas e discursos mas esperarem uma vivência mais profunda, esperarem que
as suas emoções também se possam expressar ali. Pode mesmo admitir-se a
hipótese de que esta necessidade do homem moderno para sentir seja uma condição
excepcional para que as Igrejas, usando métodos sérios e não os que estão a
usar seitas religiosas, possam protagonizar a primavera espiritual por que
muitos têm orado.
A religião, a
poesia e a arte abarcam uma área da vida humana que é essencial e nem sempre o
homem, devido a preconceitos que foi criando, vive plenamente essa área. A
religião, a poesia e a arte são expressões da vida espiritual do ser humano
manifestadas de modos diferentes. É por isso que a leitura de um poema e a
leitura de um texto aceite como sagrado comunicam ao leitor e ao ouvinte
“predestinado” (3) sentimentos que Rudolf Otto na sua
obra fundamental (4) , classifica como
o “numinoso”. Há um verdadeiro sentimento religioso num grande artista, ou
grande poeta, mesmo quando ele se afirma ateu, assim como o há num não-artista
ateu que viva intensamente uma obra de arte ou ame a poesia, não a escrevendo.
A verdade é que a arte e a poesia não estão apenas com quem as produzem, mas
estão também com quem as buscam com amor, como consumidor. Bach é ouvido com
emoção também por aqueles que, não tendo recebido preparação para produzir
composições como as suas, comungam, no entanto, do mesmo sentimento artístico
daquele que as criou. É por isso que os artistas e os poetas precisam de
público: os que no público verdadeiramente os apreciam são a sua família
espiritual. Vem a propósito contar uma história que ouvimos na nossa juventude
referir a Almada Negreiros. Almada, que foi amigo de Fernando Pessoa, e foi
poeta, pintor, romancista, um artista de grande valor, introdutor do futurismo
em Portugal. Um dia, numa exposição de obras suas, um visitante de ar
intrigado, veio dizer-lhe:
Mestre, confesso
que não compreendo a sua obra...
E Almada
Negreiros, mestre em jogos de palavras, comentou, sério:
Mas isto não
é para compreender, meu caro senhor: é para rezar!
Há nesta
resposta um ponto a reter: é preciso que, diante da arte, tenhamos uma atitude
de entrega como na oração. E então tudo se tornará mais compreensível.
O professor
brasileiro Pradelino Rosa, num ensaio sobre Fernando
Pessoa escreve este parágrafo sobre a poesia que poderia permanecer igual se,
em lugar da palavra poesia, ele tivesse posto a palavra religião: “A poesia
expressa um mundo para lá da razão. É por isso a vida no sentido absoluto.
Todos os seres são unificados na experiência apenas existencial, com o
desconhecimento das classificações racionais. Quem melhor encarna esse estado
natural é a criança, no seu sabat eterno. E já o poeta, com todos os outros
seres se funde. Na existência são irmãos e confraternizam; na atitude são
irracionais e vivem; na actividade são lúdicos e brincam; na lucidez são
imaginativos e fantasiam; na expressão são sensitivos e configuram; na vida são
efémeros e passam” (5). O único senão que ousaríamos opor a esta fala seria a
de usar o termo “irracional” para qualificar a atitude poética – e na nossa
perspectiva a arte e a religião. Se é de “um mundo para lá da razão” que a
poesia (a arte, a religião) nos fala, essa expressão não é irracional, porque
não é contra a razão, como a palavra irracional faz supor, mas é meta-racional,
ou extra-racional, como já tem sido chamada. “Para além da razão”, diz Pradelino Rosa e concordamos, mas não é o mesmo dizer
“irracional”. A razão não faz poesia, mas não há poesia contra a razão. Da
mesma maneira diremos que a razão não cria a fé mas não se opõe a ela.
Não é por
mera coincidência que as pessoas das igrejas, aquelas que vivem com grande
empenhamento a fé cristã, são, em geral, pessoas que gostam de música séria, de
pintura, de poesia, mesmo quando essa música, pintura, poesia não trata de
temas religiosos. De qualquer forma,
dizer que a religião expressa um mundo que está para lá da razão, como Pradelino Rosa diz da poesia, não é dizer que ela está para
lá da realidade: porque a razão não pode abarcar toda a realidade. É por isso
que é correcto o crente não ficar pelas afirmações religiosas abstractas,
doutrinárias, mas desejar também uma experiência interior.
O
Cristianismo, isto é, o conjunto de correntes referenciadas a Jesus Cristo,
reconhecido como divino e humano, e fundamentadas no Novo Testamento, tem sido
muitas vezes assumido na perspectiva ideológica que Saraiva, nos últimos anos
da sua vida, denunciava no Socialismo marxista. Fala-se, por exemplo, em
“salvação”, “pecado”, “céu” e “inferno” sem que estas palavras sejam conotadas
com aquilo que no nosso mundo ocidental é considerado a realidade concreta da
experiência dos seres humanos, o que torna o discurso cristão incompreensível e
mesmo imprestável para uma boa parte dos nossos contemporâneos. Não ignoramos
que essas e muitas outras palavras são apenas afloramentos de símbolos, e os
símbolos são sempre empobrecidos quando procuramos expressá-los por conceitos,
mas essa constatação não recusa legitimidade ao homem moderno de experimentar
pelos sentidos a verdade do que é anunciado. Também poderíamos dizer como
Almada que os símbolos cristãos não são para compreender mas para “rezar”.
Pode dizer-se
que esse desejo do homem moderno de uma experiência sensorial das coisas da fé
não corresponde totalmente ao ensino da Reforma protestante do século XVI. Os
Reformadores protestantes, principalmente João Calvino, sublinharam o papel da
Bíblia como fundamento da Fé Cristã, proclamando com ênfase que é apenas nas
Escrituras que os cristãos têm a fonte da revelação (Sola Scriptura) e isso basta-lhes.
Mas essa ênfase tem de ser entendida no contexto da interpelação que esses
teólogos faziam à Igreja que queriam ver reformada. No decorrer dos séculos,
papas, concílios e a piedade popular tinham introduzido muitas inovações dentro
da Igreja, algumas delas claramente contrárias ao ensino do Cristianismo
primitivo. Como combater essas inovações se elas eram aceites pela hierarquia?
Apenas negando à hierarquia o direito de estabelecer o que é legítimo
Cristianismo e o que o não é. Os Reformadores, assumindo seriamente uma velha
reivindicação da Igreja, defenderam que, abrindo-se a disputa no seio da
Igreja, com uma corrente afirmando doutrinas que outra corrente rejeitava como
legitimamente cristãs, era necessário tomar as Escrituras, registo do
Cristianismo primevo, como árbitro da disputa. Exigência que não era original, pois
já no terceiro século as vozes que se levantavam contra inovações perigosas era
em nome da Escritura também que falavam. Todas as tentativas de melhoramento da
Igreja usaram sempre a Bíblia como autoridade em nome da qual se pronunciavam.
E mesmo nas vésperas da Reforma foi em nome do ensino do Novo Testamento que o
grande humanista e clérigo Erasmo de Roterdão criticou a situação deplorável da
Igreja, embora depois não acompanhasse Lutero no esforço reformador. A
preocupação por “ir às fontes”, isto é, fazer afirmações doutrinárias a partir
dos textos originais (Aristóteles, por exemplo, requerem os humanistas, deve
ser conhecido a partir dos textos gregos, em lugar de se ficar pelos
comentadores) é uma das características do movimento Humanista, de que Erasmo é
um dos mentores, e o nosso Damião de Gois um dos cultores, entre muitos dos
seus contemporâneos
Outra das
razões por que os Reformadores realçaram a importância das Escrituras foi a
luta que tiveram de fazer ao que alguns chamam “a ala radical da Reforma”.
Tratava-se de grupos em geral designados por “anabaptistas” que, no calor das
mudanças revolucionárias surgidas, se diziam iluminados pelo Espírito Santo,
com visões e revelações directas e sem controlo e que, com os seus ensinos e
acção, ameaçavam destruir toda a obra da Reforma. Os mais radicais destes
“iluminados”, como Tomás Muntzer, levaram o povo a
tomadas de posição revolucionárias e suicidas, sem terem em conta as limitações
concretas da sociedade em que se encontravam. Em certo sentido, faziam do
Cristianismo uma “ideologia” separada da realidade, como na denúncia de Saraiva
que citámos no início deste livro. Para chamar o povo à razão e à recusa de
falsas revelações havia a necessidade de apelar para a Bíblia, para o que
estava escrito. João Calvino, o teólogo de Genebra, na sua obra-prima, a
“Instituição da Religião Cristã”, dedica um capítulo a argumentar duramente
contra “alguns espíritos fanáticos que pervertem os princípios da religião, não
fazendo caso da Escritura para poderem seguir melhor os seus sonhos, sob a
afirmação de revelação do Espírito Santo” (6). “Não fazendo caso da Escritura”, denuncia Calvino. O problema
para Calvino não é o crente deixar-se guiar pelo Espírito, mas é não fazer caso
da Escritura.
Essa ênfase
na Escritura, que era e é correctíssima, acabou por criar condições para, em
gerações posteriores, surgir uma ortodoxia protestante fria, um biblicismo
perigoso, preso à letra da Escritura, que fazia do Cristianismo, sob muitos
aspectos, também e paradoxalmente, uma “ideologia” seca, um doutrinarismo que
pouco ou nada tinha a ver com “o coração do ser humano”. Para muitos, a Bíblia
passou a ter o mesmo papel que para os fundamentalistas islâmicos tem o
Alcorão, sem se aperceberem que é na mesma Bíblia que está escrito A letra mata e o Espírito é que vivifica 2ª Coríntios 3:6.
Ora os
Reformadores, especialmente o mesmo João Calvino, não foram de modo algum
fundamentalistas; primeiro, porque sublinharam a necessidade de ler a Bíblia
sem ignorar a leitura que os cristãos dela tinham feito ao longo dos séculos,
isto para evitar o orgulho de se pretender ver nela aquilo que nunca fora visto
antes; e sublinharam também a realidade do testemunho interior do Espírito
Santo, que ajuda a compreender a Escritura. É este equilíbrio entre a Escritura e a acção do Espírito Santo que
salvaguarda a Igreja e o crente de desvarios. Foi um pastor pentecostal
americano, sobre quem não caiu a mínima suspeita de modernismo, Aidem Wilson Tozer, o autor
destas palavras: “Entre pessoas religiosas de inquestionável ortodoxia acha-se
às vezes uma obtusa dependência da letra do texto, sem a mais ténue compreensão
do seu espírito. É preciso manter constantemente diante das nossas mentes que
em sua essência a verdade é espiritual, se de facto queremos conhecer a
verdade. Jesus Cristo é, ele próprio, a Verdade, e ele não pode ser confinado a
meras palavras, apesar de que, como cremos ardentemente, ele mesmo inspirou as
palavras. O que é espiritual não pode ser encerrado por tinta nem cercado por
tipos de papel. O melhor que um livro pode fazer é dar-nos a letra da verdade.
Se alguma vez recebermos mais do que isso, há-de ser pelo Espírito Santo que
no-lo dá”. (7)
Para os
cristãos dos nossos dias, como para os que depois de nós virão, mantém-se a
necessidade de ter a Bíblia como “pedra de toque” para aquilatar da
legitimidade ou não do que se quer apresentar como Fé Cristã, mas é preciso
reconhecer que o homem não é só intelecto, que não basta que uma afirmação seja
reconhecida como ortodoxa e que o culto da Igreja seja celebrado com “decência
e ordem”. Esse tipo de Cristianismo, doutrinariamente correcto e bem
comportado, instalou-se em muitas Igrejas e fez delas lugares onde se boceja e
se toscaneja. Muitas vezes as igrejas são autênticos cemitérios espirituais.
Isso nota-se sobretudo entre os seus dirigentes (pastores ou leigos) que
discutem com acrimónia questões de categoria pessoal, títulos e outras
minudências e tratam os assuntos da Igreja como se fossem assuntos de uma
empresa. Em tais Igrejas observa-se uma grande falta de interesse até de
pastores que quando podem não desempenham o ministério para que foram
ordenados. Reuniões de oração e estudo bíblico são dirigidas por leigos sem
formação, enquanto o pastor sistematicamente está ausente. No Protestantismo
chamado histórico, apesar dos ecos que nele teve no seu tempo o pensamento de
um teólogo como Schleiermacher (1768-1834), que
sublinhou a importância do sentimento na questão da fé e viu na Bíblia
essencialmente narrativas de experiências religiosas, manteve-se uma linha de
grande contenção em relação a elementos místicos, isto é, a tudo o que não se
limitasse à Palavra, mesmo que o conceito de Palavra não se restrinja à Bíblia.
O Protestantismo erradamente dito “liberal”, de camadas sofisticadas da média
burguesia, olha com suspeição tudo o que lhe pareça misticismo e receia as
formas populares de religiosidade. Entretanto, um Protestantismo mais recente,
passou por grandes movimentos chamados “despertamentos”
(em inglês “revivals” e em francês “réveils”) que, justamente, se caracterizaram pela
importância dada às emoções, à experiência da conversão, ao “baptismo do
Espírito Santo”, expressão bíblica que indica uma experiência do divino, ao
fenómeno da glossolália, ou do “falar línguas” (8). É
interessante realçar que as chamadas “Igrejas históricas” portuguesas não-romanas tiveram a sua origem no século XIX como
resultado da missão estrangeira, que se deveu não a teólogos moderados e muito
menos a teólogos liberais, mas a pastores envolvidos no espírito revivalista.
Robert Kalley (1809-1888), por exemplo, o pai do
Presbiterianismo em Portugal, era um crente com o fervor de um
recém-convertido, pois apenas se tornou cristão convicto em 1835, três anos
antes de chegar ao Funchal. Quem lê a vida do Dr. Kalley (9)
não pode deixar de sentir que esse admirável cristão não tinha de Deus um
conhecimento meramente livresco e intelectual (conceptual). Um dos hinos da
tradição evangélica da nossa língua cuja
letra leva o nome do apaixonado missionário de Portugal e do Brasil tem esta
estrofe dirigida ao Espírito Santo muito significativa:
Maravilhas
soberanas
Outros povos
vêem;
Oh! Derrama a
mesma bênção
Sobre nós
também!
As “maravilhas”
que outros povos da época da composição do hino estavam a ver e a que o
médico-pastor alude eram os despertamentos que
lançavam as Igrejas da Grã-Bretanha, da Suíça, da França, dos Estados Unidos,
num fervor que fazia lembrar os tempos apostólicos – fervor que teve ecos,
pois, no nosso país, através dessa geração de gigantes da fé que foram o
próprio Robert Kalley, Ellen Roughton,
Diogo Cassels, Robert H. Moreton,
e na geração seguinte já de portugueses: Joaquim dos Santos Figueiredo, Eduardo
Moreira, Anselmo da Figueira Chaves, José Augusto dos Santos e Silva, Joaquim
Rosa Baptista e outros. Aliás, o hinário de que faz parte esse hino ao Espírito
Santo acima citado, o “Salmos e Hinos” , que foi por mais de cem anos comum às
Igrejas nascidas da acção desses grandes servos de Deus, está cheio de hinos
que reflectem o cristianismo vivo e feliz desses dias.
A grande
adesão das pessoas hoje aos movimentos religiosos que sublinham a experiência
da comunhão com Deus mostra que, se o Protestantismo tradicional tem um
discurso ortodoxo muito respeitável, e
suficiente para a salvação, sublinhe-se, ele corre, no entanto, o perigo
de não servir senão, talvez, para uma minoria que privilegia o discurso
intelectual, o que é louvável, mas não pode atingir a generalidade das pessoas.
Os próprios intelectuais também precisam de ser salvos – e não são os discursos
apenas de argumentos
conceptuais que podem atingir o todo da sua personalidade. A experiência
pessoal do autor destas linhas, integrado numa das Igrejas do chamado
Protestantismo histórico, leva-o a questionar-se se um Cristianismo deste tipo
prioritariamente discursivo pode realmente satisfazer o ser humano na sua
complexidade. O homem é uma realidade indivisível de corpo-alma-espírito. O
corpo “soma”, em grego, é a parte física do ser humano; a alma, “psyché” em grego, é a vida psíquica, com o intelecto, as
emoções, a vontade; espírito, “pneuma”
em grego, é o “sopro divino”, a imagem de Deus no homem. As Igrejas
tradicionais tendem a dirigir-se quase apenas à “alma” da pessoa e nem, sequer
a todas as faculdades da alma, privilegiando a razão, através de doutrinas e
conceitos – mas a alma é apenas uma parte da pessoa. “Uma Igreja que não fale
ao homem tridimensional não satisfaz totalmente.”
É excessivamente
grande, proporcionalmente falando, o número de cristãos desta área que
manifestamente têm um Cristianismo que não dá alegria, não mobiliza, não
entusiasma. A ida ao culto para muitos destes cristãos é um fardo que se deixa
por cumprir se se encontra um pretexto razoável. E qualquer contrariedade,
qualquer falta de atenção do pastor ou de outro irmão é suficiente, muitas
vezes, para levar a pessoa a abandonar por semanas, meses ou para sempre a sua
congregação. Às vezes a simples mudança de pastor leva ao abandono dos cultos.
“Estava tão habituada à pregação do pastor Fulano que não me diz nada a
pregação do novo pastor” – justificou-se com simplicidade uma senhora, que só
assistiu à pregação do novo pastor num Domingo.
Não se ignora
que em muitos movimentos “entusiastas” (10) há, por vezes, grandes
perturbações, desvarios e excessos perigosos, mas erramos se, para combater
excessos, caímos noutro excesso, igualmente mau, embora de sentido contrário.
Não se pode ignorar que Jesus Cristo combateu os religiosos do seu tempo, em
especial os fariseus, que se caracterizavam justamente pelo seu formalismo, bem
intencionado certamente, racional e bem comportado, mas destituído de calor
humano e de compaixão, como muito bem ilustra a Parábola do Bom Samaritano Lucas 10:25/37.
Infelizmente, e paradoxalmente, dentro do Cristianismo, hoje como sempre,
muitos cultivam esse mesmo tipo de religião farisaica. Simão, o fariseu, que
recebeu Jesus em sua casa, como nos conta Lucas 7:36/50,
sem alegria e sem ouvir de Jesus a palavra de perdão, é o protótipo de muitos
cristãos que o recebem na sua vida, e vivem igualmente sem que nele encontrem
alegria e perdão.
O propósito
deste estudo é mostrar que o cristão tem, não só o direito, mas mesmo o dever
de fazer da sua fé no Deus manifestado em Jesus Cristo não apenas uma questão
de adesão intelectual ao ensino de Cristo, como também uma questão de
experiência pessoal, de relação interior com o Espírito de Cristo (11). Há uma
experiência real com Deus , experiência profunda e exultante, que é possível,
que tem sido vivida por muitos cristãos e que está ao alcance de todos os que
confessam Cristo como Senhor e Salvador. Ser cristão não é apenas um tema de
aceitação de um credo, de uma Palavra “exterior”, mas de uma experiência viva,
“interior”, do divino. Num livro que tem causado alguma polémica e cuja
tradução em português foi editada em 2001 «A Igreja Católica ainda tem
futuro?», diz o padre Herbert Haag, seu autor, que “Jesus nunca pensou em renunciar ao
seu povo judeu, pretendeu, sim, interiorizar o Judaísmo”. Não concordamos com
várias afirmações desta obra, mas pensamos importante realçar nesta frase a
palavra “interiorizar”. De facto, o grande problema do Judaísmo dos dias de
Jesus é o de se concentrar no exterior, no ritual, na forma, o que levou Jesus
a comparar certos chefes religiosos a sepulcros caiados por fora Mateus 23:27.
Se Cristo
combateu esse tipo de religião formal, legalista e fria, é legítimo acreditar
que o seu ensino nos levará a um tipo de relação com Deus diferente desse; uma
ligação tão próxima, tão agradável e tão tangível que permita ao crente
dirigir-se a Deus chamando-lhe “Querido Pai”, expressão que traduz a palavra
aramaica que Jesus e a Igreja primitiva usavam, falando com Deus: “Abba!”
Romanos 8:15.
Este livro
nasceu da insatisfação experimentada por mim ao longo dos anos em relação ao
tipo de Cristianismo em que tenho vivido e que presencio, não apenas na Igreja
de que sou pastor mas também em outras denominações. Inconformista, recusei-me
a aceitar a fatalidade do enfado e tomei como lema esta palavra de Jesus: Buscai e encontrareis Mateus 7:7. Do que
encontrei fiz estas páginas que partilho com todos aqueles que não se sentem satisfeitos
com a beberagem que frequentemente é oferecida aos que ouviram o convite de
Cristo, que disse: Se alguém tem sede, venha a mim e
beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água correrão do seu
ventre! João
7:37/38 Mas o que as pessoas recebem muitas vezes para beber como mensagem
de Cristo são discursos moralistas, de um moralismo individualista e
conservador, ou de um moralismo social e pseudo-progressista,
beberagem que não mata a sede do homem. Fazem-nos “gastar dinheiro naquilo que
não é pão”, quando o Senhor proclama com generosidade: Oh!
Vós todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro,
vinde comprai e comei; sim vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e
leite Isaías
55:1/2
Capítulo II – EIS O HOMEM
A expressão
com que titulamos este capítulo costuma ser usada em latim, da versão da Bíblia
feita para essa língua por São Jerónimo, e foi dita pelo hesitante Pilatos ao
apresentar Jesus à multidão: “Ecce homo!” (Eis o homem, Ev.
João 19:5).
A frase é
usada em vários sentidos. Um deles, irreverente e lamentável, usado quando
alguém se apresenta a si ou apresenta outra pessoa. Como se dissesse: “Aqui
estou eu!” ou “Eis a pessoa de quem lhe falei!” Não foi, obviamente, com essa
intenção agarotada que Pilatos se referiu a Jesus naquela vergonhosa
Sexta-feira. É mais plausível que, desejoso como estava de evitar a morte de
Jesus, Pilatos tenha querido despertar a piedade da multidão. Como se dissesse:
“Reparem! Este homem é inofensivo. Será correcto condenar à morte este pobre
?”. Mas a frase tem um outro sentido, pelo menos numa perspectiva cristã. Desse
outro sentido não podia Pilatos ter consciência, mas acontece, por vezes, que
homens totalmente afastados de Deus anunciam, sem o saber, verdades divinas.
Ali, embora frágil e humilhado, estava o Homem, o perfeito Homem, o padrão de
toda a Humanidade. Jesus é “o homem verdadeiro que, no seio dessa mesma
humilhação, inaugura a realeza messiânica” (12).
Dizer que
Jesus é o padrão de toda a Humanidade não deve ser entendido, forçosamente,
como se a proposta dos Evangelhos fosse a de a Humanidade passar a viver
imitando Jesus Cristo. É essa a interpretação de muitos que a si mesmos se
consideram “cristãos progressistas”. Nessa perspectiva, o Cristianismo é apenas
mais um humanismo. Não se nega que haja mérito no esforço por imitar Jesus, e
muito menos se nega a existência de exortações nesse sentido no Novo
Testamento, mas não é esse o caminho mais excelente. Há um famoso livro
devocional que vem da Idade Média e é atribuído ao frade Tomás de Kempis, com o título “A Imitação de Cristo”, que propõe o
progresso espiritual e moral colocando Cristo como modelo. Esse livro ainda
hoje merece a nossa atenção, como merece ser lida a novela evangélica de
Charles Shelton “Em Seus Passos que Faria Jesus?” com a mesma proposta. Os que
chamamos pseudo-progressistas põem Jesus como modelo
revolucionário que ele é em parte mas é muito mais do que isso também. A
imitação subentende que o modelo é exterior ao imitador, e essa não é a
proposta principal do Novo Testamento. Muitos actores no teatro e no cinema têm
interpretado a figura de Jesus Cristo, dando a aparência de um homem de quem se
disse que andou neste mundo fazendo o bem. Mas o esforço por actuar perante o
público ou as câmaras imitando Jesus não trouxe necessariamente mudanças
profundas e definitivas sobre tais actores. A imitação pode ficar-se apenas
pelo exterior – e acaba por se tornar, ironicamente, farisaísmo (13). Não temos
encontrado membros de Igrejas, incluindo pastores, com expressões angélicas à
força de imitarem Cristo exteriormente, mas cujo convívio os revela como
pessoas desleais? A imitação da figura central dos Evangelhos é, em parte
benéfica, se feita com sinceridade, mas a expectativa do Novo Testamento é
muito mais ambiciosa do que o aperfeiçoamento moral que a imitação de Cristo
proporciona. Na verdade, a colocação de Jesus como ponto de referência ética e
moral tem essencialmente este objectivo: levar o crente, na comparação, a
perceber como é pecador. Ao cotejarmos a nossa vida com a de Jesus, perdemos todas
as ilusões acerca de nós e dizemos, parafraseando um famoso anúncio antigo: “Eu
julgava que a minha vida era branca, antes de ver a tua!” Mas o Novo Testamento
vai mais longe. «Ele anuncia, nada mais nada menos, que quem aceita Jesus
Cristo como Senhor e Salvador da sua vida nascerá para a Vida Nova, isto é,
para a vida do Homem Novo, que é Cristo». Mais ainda: Jesus anuncia aos seus
discípulos, perto da hora da sua crucificação - Um
pouco e não me vereis e mais um pouco e ver-me-eis, porque eu vou para o Pai
João 16:16.
Assim, este “ir para o Pai”, não é ir para além das nuvens, ficando afastado
dos discípulos. Pelo contrário significa ficar mais perto, porque é ficar
“habitando” neles. E é quando os discípulos recebem o Espírito da Vida que eles
se tornam pessoas realmente com vida, porque quem não encontrou a verdadeira
Vida, que é Cristo, ainda que esteja biologicamente vivo está morto (Mateus 7:13; Lucas 15:32; Efésios 2:1; Colossenses 2:13).
O homem natural, “na carne”, isto é, sem Cristo, é um ser incompleto e incapaz
de ser aquilo que de mais elevado e nobre deseja ser. Não tem ainda a “Vida
Abundante” que Cristo prometeu aos que nele crêem João 10:10. É um ser
decaído, com capacidade para sonhar e desejar fazer o bem, mas sem capacidade
de pôr em prática tais sonhos e desejos. Uma das expressões mais dramáticas
dessa situação encontra-se na Epístola aos Romanos quando Paulo, falando na
perspectiva do homem natural, o homem sem Cristo, afirma: Vejo nos meus membros uma lei que batalha contra a lei do
meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado, que está nos meus
membros. Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?
Romanos 7:23/24.
Antes tinha dito: “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse
faço” (v. 19).
Alguns têm visto
nesta frase de Paulo a descrição da situação em que o próprio Paulo, apesar de
crente e apesar de apóstolo, se encontrava, mas o contexto mostra que é do
homem na carne em geral que o apóstolo fala, obviamente valendo-se da sua
própria experiência.
Olhando para
Jesus como o Homem, aquele que viveu autenticamente a vida integral de um ser
humano, e comparando a sua maneira de viver com a nossa, percebemos que há em
nós potencialidades enormes que não estão a ser vividas, justamente porque algo
em nós nos impede de viver integralmente. A história de Adão e Eva e do pecado
original fala-nos dessa incapacidade do ser humano de viver integralmente.
Quando se diz que o homem é pecador, não é por ele fazer isto ou aquilo
considerado pecado, mas é pecador no sentido de ser “incapaz” de viver plenamente, de “acertar no alvo” (14). Não é
pecador por praticar pecados; é-o naturalmente.
Jesus é em
tudo semelhante ao homem, menos no pecado, e a Bíblia diz que, assim como os
israelitas, na sua travessia do deserto, ao serem mordidos pelas serpentes,
quando olhavam com fé para a serpente de metal empunhada por Moisés, não
morriam, também na travessia da vida todo o que olhar para Jesus com fé se
salvará. João
3:14/15 Para os propósitos deste livro, olhamos para Jesus para que
possamos perceber as potencialidades da nossa vivência que nos são oferecidas
na mensagem do Novo Testamento. A promessa aí registada é a de que quando ele se manifestar, nós seremos semelhantes a ele
1ª João 3:2. É
verdade que se trata de uma promessa escatológica (ou seja, para os últimos
tempos), mas houve já na primeira manifestação ou vinda de Cristo (parusia) expressões
importantes que é necessário ter em conta para o enriquecimento da nossa vida
cristã agora. Muitos vêem no Cristianismo apenas “um caminho para o céu”, mas
podemos ou devemos olhá-lo desde já como «o método de Deus para vivermos aqui
na terra com tanta intensidade e felicidade que possamos ver o céu já aqui».
Vemos em
Jesus uma relação de intensa comunhão com o Pai. Deus não é para ele, de modo
algum, um Ser distante e um Juiz impassível, mas Alguém pleno de compaixão,
extremamente próximo de todo aquele que O busca. E essa experiência que tem do
Pai não é apontada como uma possibilidade apenas sua, como se fosse um
privilégio de quem é o Filho Unigénito de Deus. Faz parte da própria natureza
de Deus e é, portanto, uma possibilidade para todo o que Lhe abrir as portas da
sua vida. O passo enorme em frente na compreensão de Deus é essa Sua natureza
amorosa que é revelada por Jesus Cristo. Não foi Deus que mudou, nem é o “velho
Deus severo do Antigo Testamento”, como alguns deduziram, que deu lugar ao Deus
de Amor de Jesus Cristo. É o mesmo e único Deus, mal compreendido pelos homens,
que Jesus revela.
Mas como
abrir as portas da nossa vida e fazer Deus entrar nela, não apenas como uma
palavra, como ideia, como doutrina, mas como “Presença”? O Evangelho de João
reporta-nos estas palavras atribuídas a Jesus: Se
alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele,
e faremos nele morada. João 14:23
Permitam-me que diga esta frase com destaque: «Ser habitado pela divindade é
uma possibilidade claramente admitida neste lugar da Escritura, como noutros».
E significa que qualquer cristão tem a oportunidade de uma experiência real,
concreta, do divino, pois não se poderia compreender que essa “Presença” se fizesse sem que os
elementos sensoriais do cristão não a percebessem. Essa habitação da divindade
no cristão, que faz dele um templo, é, nos versículos 16 e 26 desse capítulo,
referida em termos de vinda do Paráclito, o Espírito Santo, sem que haja
contradição, pois a Fé Cristã não fala de três deuses mas de um só Deus, que se
manifesta em três Pessoas. O próprio Espírito Santo é, noutras passagens,
também chamado o Espírito de Deus ou Espírito de Cristo Romanos 8:9 ou
Espírito do Senhor 2ª
Coríntios 3:18. O que a doutrina da Trindade pretende é dizer que Deus,
habitando os Altos Céus, onde é o Pai, encarnou em Jesus Cristo e está presente
como Espírito na vida daquele que O recebe.
Esta situação
de o Espírito Santo vir habitar o crente é designada por incarnação (“in”,
latim, envolve a ideia de “entrada”: a entrada de Deus na carne). São João diz que
quando Jesus veio ao mundo “O Verbo fez-se carne”. Os cristãos continuam este
mistério da incarnação de Deus.
O dom do
Espírito Santo feito por Deus à humanidade é a satisfação de uma velha
aspiração do povo israelita. Esse povo que tinha uma Aliança (15) com Deus
feita na Lei, esperava o tempo de uma Nova Aliança em que já não teria de
obedecer a uma Lei exterior, gravada na pedra, a Lei de Moisés, mas uma “Lei
gravada no coração do homem”, interior, portanto, em que o próprio Deus falasse
a cada homem. O profeta Jeremias, que viveu seiscentos anos antes de Cristo,
foi o grande divulgador dessa promessa, dizendo em nome de Deus: Este é o concerto que farei com a casa de Israel, depois
daqueles dias, diz o Senhor: porei a minha lei no seu interior, e a escreverei
no seu coração; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. E não ensinará
alguém mais a seu irmão, dizendo: conhecei ao Senhor; porque todos me
conhecerão, desde o mais pequeno até ao maior, diz o Senhor. Porque lhes
perdoarei a sua maldade, e nunca mais me lembrarei dos seus pecados Jeremias 31:33/34.
Vê-se que o acima citado Herbert Haag tem razão
quando fala da intenção de Jesus de “interiorizar o Judaísmo”. Para Jeremias, os
sacrifícios no templo e os rituais mecânicos são de pouco ou nenhum valor,
porque o importante quando o Messias aparecer é viver a interioridade que se
anuncia nessa aliança nova. Diz-se, e com razão, que Jeremias é um profeta
profundamente interessado na questão social, nos problemas da justiça e da
defesa dos pobres. Mas essa vertente nele é acompanhada por um forte sublinhar
da relação íntima, pessoal, com Deus. A relação dita vertical (do homem com
Deus) só é verdadeira quando em simultâneo com a relação horizontal (com o
próximo). Um profeta que vivera dois séculos antes, Joel, pregara já sobre um
tempo novo que viria em que o Espírito de Deus seria derramado sobre toda a
humanidade Joel 2:28/32. Falar do derramamento do
Espírito é falar da experiência do divino.
A Igreja
Cristã identificou a Nova Aliança (Novo Testamento) com a obra realizada por
Jesus Cristo Lucas
22:20 e 1ª
Coríntios 11:25, que inaugura o tempo da salvação; e o Pentecostes com a
profecia de Joel, quando o Espírito Santo começou a ser derramado sobre os
cristãos Actos
2:1/21. Ou seja: «a Fé Cristã é o cumprimento da promessa de um
relacionamento com Deus, que não se limita a cerimónias e a doutrinas mas passa
pela Presença de Deus na vida do crente». O Cristianismo não é, como alguns
gostam de dizer, “uma religião do Livro”, mas Presença de Deus na vida do
crente. Se é fácil de perceber que, ao longo da história do Cristianismo e nos
nossos dias a vida de muitos cristãos não dá sinais claros dessa presença, a
conclusão a tirar é que esses mesmos cristãos não têm reunido as condições
normais para que a promessa se cumpra. Veremos adiante que não se trata de uma
questão de a experiência do divino ser uma espécie de galardão oferecido por um
Deus caprichoso a quem se comportou bem, mas sim de sabermos sair das nossas
próprias inibições e receber com simplicidade o que Deus antecipadamente nos
quer oferecer. Muitos são cristãos sinceros, de cuja salvação não se pode
duvidar, possivelmente dando uma boa contribuição para melhorar o mundo, mas
ignoram que há “mais qualquer coisa” que Deus lhes quer dar com a salvação. Se
morressem hoje, não há que duvidar, seriam recebidos pelo Pai, mas o problema é
que antes de morrerem não gozam todos os benefícios da salvação. É como se
alguém fosse a uma livraria comprar um livro, pagasse e se preparasse para sair
sem ter verificado um aviso posto na loja: “Pela compra de um livro, oferecemos
uma caneta graciosamente!”. Leve o livro e não despreze a caneta; aceite a
salvação e a experiência do baptismo ou da recepção do Espírito Santo, aqui
chamados “experiência do divino”.
O ser humano
foi criado com tanta dignidade, como um pequeno deus (Salmo 8, 5), e nem o
próprio Deus nos forçará a aceitar o que, por decisão pessoal ou mesmo por
ignorância, não nos dispomos a aceitar. A experiência do divino faz parte da
oferta de Deus, mas Ele não nos obrigará a aceitá-la.
Uma advogada
francesa, autora de um excelente livro com o título “L’évangelisation des profondeurs”, escreve este período: “Demasiado ligados
à terra, tornamo-nos matéria. Acreditando-nos apenas espírito, instalamo-nos
numa forma de fuga ou de rebelião contra a nossa condição. Num caso e noutro
não estamos inteiros. Vai ser necessário viver estes dois polos e de os
ajustar, unificá-los. Viver o infinito no finito, permitir ao Espírito que
habite a nossa carne. É o sentido da incarnação.” (16).
Veremos que é
simples o modo de viver a experiência do divino prometida aos cristãos, mas a tendência
humana é tornar complexo o que é simples. Estamos sempre a repetir o erro de
Naamã, o general sírio que, atingido pela lepra, foi a Israel pedir ao profeta
Eliseu que orasse a Deus para sua cura. Enquanto viaja para Israel, Naamã deve
ter imaginado que o profeta iria fazer algo de espectacular para alcançar a sua
cura, mas o servo de Deus nem sequer lhe apareceu e mandou dizer pelo seu
auxiliar que Naamã mergulhasse sete vezes nas águas do rio Jordão. Zangado,
Naamã dispôs-se a retirar-se sem cumprir o que Eliseu dissera, mas os seus
servos sabiamente observaram-lhe: Se o profeta te
tivesse dito alguma grande coisa, tu não a farias? Quanto mais dizendo-te ele:
lava-te e ficarás purificado (curado). Ou seja: “Estarias disposto a
fazer algo complicado que o profeta mandasse. Porque não fazer o que ele
mandou, sendo tão simples?”. Convencido por este argumento, Naamã mergulhou
sete vezes no Jordão e ficou são 2º Reis 5:1/19.
Muitas vezes o que nos parece singelo e banal esconde em si a solução do nosso
problema. E o problema de muitos que frequentam as igrejas, são baptizados e
professos é que para eles a fé evoca apenas enfado e rotina. Um autor que já
citámos, Carl-Gustav Jung, observou que nenhum
sistema religioso inteiramente racional consegue satisfazer o homem. Não
defendeu, nem nós defendemos, a adopção de vias irracionais, como o mostraremos
adiante, mas sublinhamos as limitações da simples racionalidade. Uma estudiosa
de Jung descreve numa frase o pensamento desse autor
sobre esta questão: “Quando uma religião procura evitar o paradoxo está
simplesmente a enfraquecer-se” (17). O facto de Jung
não ter sido um cristão formal não retira autoridade científica à sua
observação que é feita a partir dos factos.
Entretanto,
antes de encerrarmos este capítulo, impõe-se uma precisão. O leitor poderá
deduzir de várias afirmações que faço nas páginas precedentes, que na minha
concepção do Cristianismo não há lugar para as cerimónias, rituais e mesmo
doutrinas, e que tudo na Fé Cristã tem de ser interioridade e intimismo. Mas o
que pretendi foi apenas realçar a necessidade também da interioridade e intimismo, de uma experiência que passa
igualmente pelos sentidos, aspecto que me parece não ser suficientemente tido
em conta por muitas correntes cristãs, mas não penso ser possível a
exclusividade desses elementos. Tendo desempenhado por muitos anos a função de
professor de Teologia Prática, sempre procurei mostrar aos meus estudantes a
importância das cerimónias e dos rituais. Até num casal isto é verdade. O casal
que simplifica demasiadamente as coisas e no dia marcado para se casarem vai em
roupa de passeio a um registo civil assinar um protocolo diante de um
funcionário, está, à partida, mais fragilizado na sua união do que o casal que
fez desse dia um dia especial, vestiu-se da forma mais pomposa que os seus
rendimentos permitiram, juntou os seus amigos e avançou, comovida e
solenemente, com o som da marcha nupcial, ao longo de um templo engalanado,
para receber com reverência a Bênção de Deus para o seu matrimónio. Mas é fácil
de perceber que apenas cerimónias e rituais não alimentam a alma humana. É
gastar o nosso dinheiro naquilo que não é pão. O Pão da Vida, que alimenta
verdadeiramente, é Jesus Cristo João 6:35. Ele disse
que veio para que as suas ovelhas tenham vida e a tenham com abundância João 10:10. Essa Vida
Abundante é produzida pela presença de Cristo na vida do discípulo. Façam-se as
cerimónias que se acharem mais bonitas e significativas, mas sem negligenciar
no mais importante: o Espírito vivificador.
Do que
falamos, quando falamos da viver a vida em plenitude? Falamos de viver a vida
na comunhão com Deus. Esses momentos caracterizam-se pela maneira intensa como
a vida é então sentida. Podem ser momentos que passam rapidamente, deixando, no
entanto, uma forte recordação, ou momentos mais demorados, mas neles
sentimo-nos inteiramente presentes, concentrados na vida. E podem acontecer
estando a pessoa sozinha, numa igreja, em sua casa, numa montanha, à beira-mar,
ou a pessoa está rodeada de outras, num grupo pequeno ou numa multidão, a
conduzir um carro, no meio de grande tráfego. Pode ser num momento de acção
religiosa (cultuando, orando, falando de Deus), mas também pode ser numa
situação “secular”, olhando uma criança, falando com uma pessoa amiga, ouvindo
música, contemplando uma obra de arte – mas produz sempre um sentimento de
alegria, de gosto de viver. De comunhão com a Vida, com Deus.
Não é
originalidade minha usar a imagem do copo de água para falar do problema da
exterioridade e da interioridade na relação com Deus, ou, por outras palavras,
do problema da religião e da fé. É a fé que é importante para se chegar à
plenitude da vida e não a religião, mas ver-se-á que é um tanto artificial
separar fé da religião. Diz-se e bem: a fé é que salva e não a religião, mas
pensai: considero, olhando um copo de água, que a água é a fé na sua pureza,
mas para a bebermos precisamos do copo que a contém. É pelo copo que consumimos
a água que nos sacia a sede. Seria loucura destruir o copo com o argumento de
que a água é que nos mata a sede, porque destruindo-o perderíamos a água nele
contido, assim como seria errado dispensar a água para privilegiar o copo.
Admiramos o menos litúrgico e mais interiorizante dos
movimentos cristãos que conhecemos – o Quaquerismo –
que adora a Deus numa simplicidade total – mas não o apresentaríamos como
modelo a seguir por toda a Igreja, pois vemos na secura da sua adoração, quase
apenas apropriada a místicos, a explicação do processo da contínua redução
numérica em que se encontram os Quakers e que parece encaminhá-lo para o desaparecimento
total. Deve, sem dúvida, como Jeremias, alertar-se para a falsa segurança do
culto pomposo, onde a preocupação única parece ser agradar aos olhos do homem,
e deve acentuar-se a necessidade de o culto ser celebrado em Espírito e em verdade, como o Senhor requer João 4:24, mas isso
não significa a rejeição de uma liturgia, nem exclui o cuidado pela beleza e
mesmo pela arte no culto cristão. Como oficiante, tenho experimentado profundo júbilo
na celebração da Ceia do Senhor com liturgias nem sempre muito simples, onde
não faltam os elementos tradicionais como o “Sursum Corda”, o Prefácio, o
“Sanctus”, a Anamnésis,
a Epiclesis, o Pai Nosso e o “Agnus Dei”. Pelo contrário, a Ceia celebrada com demasiada
simplicidade, como já vi fazer, por vezes com explicações escusadas, deixam-me
espiritualmente frio e vazio. E a experiência tem-me mostrado que quando não há
ordem e reverência nos lugares de culto e se desprezam posturas tradicionais de
respeito (discrição, levantar-se para orar, escutar de pé a leitura do
Evangelho, etc.), a qualidade da fé/testemunho é muito afectada. Mesmo na
adoração privada, pode ajudar o uso de elementos exteriores. A questão, então,
não está em querer apenas a exterioridade ou apenas a interioridade da fé, mas
em haver um relacionamento pessoal profundo com Deus tão real que dê sentido ao
que se faz e se diz como cristão. É evidente que o Cristianismo tem também
doutrinas, princípios, declarações de fé – e é indispensável conhecê-los e
estudá-los, usando a razão consciente, mas sem esquecer que o principal não é
isso. O principal é uma Pessoa: Jesus Cristo, que disse: Não vos deixarei órfãos João 14:18
Capítulo III – RECEBEREIS O PODER
Quando lemos
o livro dos Actos dos Apóstolos, ficamos forçosamente impressionados com o
dinamismo da Igreja nascente. Dinamismo é, aliás, a palavra justa para definir
a situação, porque o étimo de dinamismo é o grego “dynamis”, que significa “poder” e
essa é a palavra que aparece na boca de Jesus quando, depois da Ressurreição,
disse aos seus discípulos que iriam receber “o poder (dynamis) do Espírito Santo” que viria
sobre eles e os capacitaria a serem testemunhas de Cristo, …tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e
até aos confins da terra Actos 1:8. É da
experiência desse poder que estamos a falar quando falamos da “experiência do
divino”.
O que se
constata em toda a actividade da Igreja nascente é que ela actua, realmente,
com poder “dynamis”,
não, obviamente um poder compreendido como capacidade para mandar sobre as
pessoas, uma autoridade para forçar alguém a obedecer, mas um poder no sentido
de que a sua acção tinha resultados concretos na transformação da realidade.
Depois do “acontecimento” prometido em Actos 1:8, a
pregação causava conversões, havia uma grande reverência, os crentes viviam em
grande comunhão e partilhavam os seus bens, …e muitos
prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos Actos 2:42/47.
Esse
acontecimento, a “descida do Espírito Santo” que, como já vimos, era esperado
desde a pregação de Joel, muitos séculos antes, fez-se no dia de Pentecostes,
uma das principais festas do calendário judaico. Nesse dia, estando os cristãos
reunidos num mesmo lugar, veio, de repente, sobre eles um ruído semelhante ao
soprar de um vento forte. Apareceram, lê-se nesse livro, umas como que línguas
de fogo sobre as cabeças dos que estavam reunidos, e todos ficaram cheios do
Espírito Santo e começaram a falar em línguas
estranhas, conforme o espírito os impelia a que falassem Actos 2:1/14. O
narrador diz que esses homens e mulheres que receberam o Espírito começaram a
falar com as pessoas que iam aparecendo, pessoas de diversas origens que teriam
vindo a Jerusalém em peregrinação e tinham sido atraídas pelo que acontecera ao
grupo cristão. E quando falavam da sua fé a esses espectadores espantados,
falavam-lhes nas línguas dos próprios ouvintes! Além disso, o comportamento dos
cristãos, como resultado do fenómeno que se observara, era tão pouco moderado
que alguns dos que os viam disseram: Estão bêbados!
Essa foi a
primeira e principal “efusão do Espírito Santo” sobre os cristãos, mas em todo
o livro de Actos há muitos outros momentos em que esse fenómeno se produz. De
facto, é tal a quantidade de vezes em que o autor de Actos se refere à acção do
Espírito Santo através dos apóstolos e de outros discípulos e discípulas que se
tem dito que o verdadeiro nome do livro devia ser “Livro dos Actos do Espírito
Santo”, título que bem poderia ser dado ainda hoje, visto em nenhum lugar dele
se indicar um título.
De acordo com
as palavras introdutórias desse livro, percebe-se que o seu autor é Lucas,
companheiro de Paulo, e também autor do Evangelho com esse nome, crendo-se que
a sua intenção foi dar com esta obra continuação ao Evangelho. No Evangelho
contara o que Jesus «começou» a
fazer e a ensinar, e nos Actos como o mesmo Jesus «continuou» a fazer e a ensinar, depois da Ascensão, incarnado na
Sua Igreja.
Lucas não era
um historiador mas uma testemunha de Jesus Cristo e, por isso, não podemos usar
o livro de Actos, ou qualquer outro documento da revelação bíblica, como usamos
um trabalho de história, mas os melhores especialistas observam que este livro
é de extrema utilidade para conhecermos a vida da Igreja primitiva. Martin Dibelius (1883-1947), notável especialista alemão do Novo
Testamento, considerou Lucas, por causa do Evangelho e deste Livro de Actos, o
primeiro historiador da Igreja, mas historiador no sentido teológico (18). O
que isto quer dizer é que Lucas não se contenta com descrever os
acontecimentos, mas interpreta-os também a partir da sua fé.
Historiador-teólogo como, por exemplo, parece ter sido a atitude do padre
jesuíta Gabriel Malagrida que viveu nos dias do
marquês de Pombal e interpretou o terramoto de Lisboa de 1755 como castigo de
Deus feito aos portugueses. O todo poderoso primeiro-ministro do rei José I não
apreciou essa interpretação e levou a Inquisição a condená-lo e executá-lo como
herege. Damos este exemplo apenas para que se perceba que por detrás de uma
interpretação há factos reais que não podem ser negados. E os factos reais do
Livro de Actos indicam que a Igreja ali descrita é uma Igreja pluralista na
organização e nos ministérios e também uma Igreja que está longe do clima
legalista, ritualista e formal da maioria das Igrejas dos nossos dias, onde
muitas vezes há quem tenha “poder”, mas apenas um poder baseado nos papeis, nos
acordos humanos, em habilidades de gabinete, no dinheiro ou até graças a
verdadeiros crimes, como aconteceu na Roma papal em tempos tenebrosos.
O Livro de
Actos é, dizem alguns, o retrato idealista da Igreja. Não se trata, argumentam,
da Igreja que existiu mas da Igreja que se deseja. É uma opinião, mas dela
podemos, pelo menos, aceitar, este aspecto: nas páginas deste Livro
encontramos, de facto, o estilo de Igreja que devemos desejar ser.
Quando, por
razões históricas compreensíveis, a partir do século IV, a Igreja adoptou
estruturas fixas do ministério e começou a formular os seus dogmas, ao mesmo
tempo que privilegiava a vertente sacerdotalista da
sua missão, em detrimento da função profética, entrou-se no período mais formal
do Cristianismo e tornaram-se raras as manifestações de tipo carismático
descritas no Livro de Actos e nas epístolas do Novo Testamento. Àqueles que
perguntavam a razão desse empobrecimento da vida da Igreja, passou a dar-se
esta resposta: Deixou de haver manifestações do Espírito Santo porque esses
tempos descritos no Novo Testamento foram tempos especiais, postos no plano de
Deus para a introdução da fé no mundo. Quando morreu o último dos apóstolos,
acabaram-se esses tempos de prodígios e sinais e a Igreja passou a viver na
normalidade. Em certos meios do Protestantismo diz-se que neste período
pós-apostólico em que vivemos a missão da Igreja é anunciar a Palavra e ser
fiel ao ensino dos mesmos apóstolos. Alguém observou há anos que os grandes
movimentos apresentam-se sucessivamente por três estados, como a água: o estado
gasoso (nos seus inícios); o estado líquido em seguida, quando começa a
estabilizar-se – e finalmente o estado sólido quando a temperatura baixou
bastante. Seria essa a situação da Igreja Cristã, que no livro de Actos
apresenta um Cristianismo no estado gasoso (Espírito), em seguida, até ao
século IV, entra na institucionalidade – e depois
solidifica-se (ou petrifica-se!), tornando-se essa religião seca e burocrática
das Igrejas. Mas a História mostra-nos que tem havido períodos de grande
secura, de doutrinarismo frio e sem paixão, que são, subitamente, abanados por
correntes de vivacidade e alegria no Espírito.
Não há nenhum
lugar das Escrituras que justifique a afirmação de que com a morte dos
apóstolos terminava o período da direcção do Espírito Santo, chegava ao fim a
manifestação de dons, acabavam-se os “prodígios e sinais”. Não há razão para
não se poder esperar que o ambiente descrito no Livro de Actos e em algumas
cartas paulinas não possa repetir-se em qualquer época, ou não possa justamente
ser o ambiente “normal” de qualquer Igreja. A História do Cristianismo mostra
que, de facto, sempre houve manifestações que chamamos carismáticas, ou de
“experiência do divino”, ao longo dos séculos. Êxtases, glossolália,
curas, visões mesmo, têm sido verificados na vida de vários cristãos e cristãs.
Houve sempre ao longo dos dois mil anos depois de Cristo um “Cristianismo pneumocêntrico” (19). Creio que foi prejudicial ao
Cristianismo tomado globalmente ter-se chegado a identificar essa atitude com o
misticismo e o misticismo como uma característica rara e limitada a um escol de
predestinados. Na verdade, a “experiência do divino” não tem de ser vista como
um privilégio raro, de alguns “santos” (quase sempre clérigos), mas deve ser
considerada uma oportunidade para todos os cristãos, sejam eles operários,
patrões, donas de casa, lavradores, médicos, pastores ou de qualquer outra
actividade. Não é necessário ser uma Teresa de Ávila, um João da Cruz, um George Fox, ou um Lutero para se ter uma
experiência tangível de Deus. Prova disso é o primitivo movimento metodista, o despertamento do País de Gales e o movimento pentecostal do
princípio do século XX. O próprio papa João XXIII, que convocou o Concílio
Vaticano II para o “aggiornamiento” da sua Igreja,
orou a Deus pedindo que, com esse Concílio, houvesse “um novo Pentecostes”. Não
se pode dizer que o papa Roncali pedisse a “pentecostalização” da Igreja romana, mas essa oração mostra
a sua convicção de que um verdadeiro renovamento só é possível quando os cristãos
se deixam encher pelo Espírito que veio no primeiro Pentecostes.
Há um número
enorme de relatos de experiências do divino, escritos pelos seus protagonistas
ou por quem os ouviram dos próprios protagonistas, que mostram à saciedade a
importância que tais experiências têm na qualidade do testemunho cristão. Um
dos relatos mais conhecidos é aquele que teve como protagonista o matemático e
filósofo cristão francês Blaise Pascal, um católico oposto à linha oficial da
sua Igreja. O texto dessa narrativa só foi encontrado oito anos depois de
Pascal ter morrido, quando o homem que fora seu criado, mexendo num gibão que o
sábio usara, notou haver dentro do forro algo espesso. Descoseu o forro e foi
encontrar lá um pergaminho com um texto na letra do seu falecido amo. Era a
descrição em estilo resumido escrita por Pascal na noite de 23 de Novembro de 1654 e começava
assim:
«Ano da graça de 1654. Segunda-Feira 23 de Novembro... Desde
aproximadamente as dez horas e meia da noite até perto da meia-noite e meia
hora».
Referia-se ao tempo que durara a sua experiência do divino. Depois aparece uma
palavra misteriosa: «Fogo». É impressionante que use esta palavra, se nos
lembrarmos que nos Evangelhos, João Baptista, o Precursor de Cristo,
dirigindo-se à multidão, afirma: Eu baptizo-vos com
água, para arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do
que eu, cujas sandálias não sou digno de levar, ele vos baptizará com o
Espírito Santo e com fogo. Mateus 3:11
Entretanto, o
enigmático pergaminho de Pascal continua:
«Deus de Abraão, de Isaque e de Jacob, não dos filósofos e dos sábios.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.
Deus de Jesus Cristo.
... Esquecimento do mundo e de tudo, menos de Deus.
Ele não é encontrado senão pelos caminhos indicados no Evangelho.
Grandeza da alma humana. “Pai Justo, o mundo não Te conheceu, mas eu
conheci-Te”.
Alegria, alegria, alegria. Lágrimas de alegria.»
Trata-se, sem
dúvida, de um texto estranho, onde Pascal quis registar imediatamente os
sentimentos que viveu naquela noite memorável, um texto que não tinha
certamente por objectivo ser divulgado, pois era a expressão natural,
espontânea de uma experiência que marcou profundamente esse homem. Se séculos
depois o nosso Fernando Pessoa diz que toda a carta de amor é ridícula,
referindo-se ao amor humano, perceber-se-á que um texto íntimo que fala do amor
divino não poderia ser uma elaboração artística. Mas o que Blaise Pascal
escreveu da sua experiência com Deus serve para nos mostrar a forte impressão
que ela teve no sábio.
É importante
sublinhar uma das primeiras frases deste testemunho de Pascal: “Deus de Abraão,
de Isaque e de Jacob, não dos filósofos e dos sábios”. A experiência
mostrava-lhe que Deus é o Deus próximo, que fala aos homens, que entra na
experiência viva de homens, como Abraão, como Isaque, como Jacob. O intelectual
desgostado diante de uma vida sem horizontes, que não conseguira da Filosofia e
da Razão respostas para a sua sede da Verdade, descobriu nessa noite de 1654
que o Deus Transcendente é também o Deus presente, Aquele que se torna íntimo
do homem. É também nos “Pensamentos” deste homem notável que existe o célebre
aforismo – O coração tem razões que a razão não conhece – e que devemos ter bem
presente enquanto estudamos o tema deste livro.
Capítulo IV – SEM FÉ É IMPOSSÍVEL...
A tendência é
pensar-se que, se alguém quer fazer a experiência cristã do divino, deve
preparar-se, cumprindo certos requisitos prévios. Aponta-se a oração, o jejum,
uma maior santificação. Faz-se isso tudo como que num período de espera, pois
fica claro que os discípulos e discípulas que receberam a efusão do Espírito
Santo no primeiro Pentecostes tiveram de “esperar” e quando o Espírito veio
sobre eles encontrou-os reunidos em oração. Mas a verdade é que não há nenhuma
passagem das Escrituras que estabeleça quaisquer preparativos para essa
experiência, nem mesmo, por mais que isso possa estranhar, a oração. Sabemos
que há grupos cristãos que falam da oração como via indispensável para esta
experiência que chamam, como o Novo Testamento, de “ser cheio do Espírito
Santo”. Entre eles realizam-se reuniões de oração, precedidas de jejuns, que se
prolongam às vezes pela noite fora e em que os clamores se resumem no pedido:
“Envia, Senhor, o teu Espírito!”. E deve dizer-se que muitas vezes é depois de
muitas horas que, efectivamente, há manifestações da acção do Espírito. Pode
parecer que, afinal, sempre há uma preparação para se ter a experiência do
divino, mas a verdade é que, sem negar a importância da oração e do jejum, o
que levou à experiência não foram esses elementos mas a fé daquele ou daquela
que queria ser “cheio do Espírito Santo”. A sua igreja ensinou que se impunha
muita oração e era necessário o jejum e o crente seguiu essa via. Jejuou, orou,
chorou, clamou – e nada acontecia ao fim de muitas horas. Veio então,
subitamente, um momento em que duvidou do valor da «sua» oração e do «seu»
jejum e percebeu que, afinal, tudo dependia exclusivamente de Deus - e esse foi
justamente o momento da fé: porque «ter fé é abandonar-se totalmente em Deus
por Jesus Cristo». O fervor da oração não é um «caminho» para a fé: quando é
verdadeiro, ele é antes «produto» da fé. O jejum também não é caminho para a
fé, mas pode ser a decisão natural da fé. Há quem passe por experiências
psicológicas profundas depois de prolongados jejuns voluntários ou não, mas
essas experiências não são do divino, e os médicos dão delas fácil explicação.
Mas não
teremos que ser dignos de receber a experiência do divino? Não teremos de
melhorar a nossa vida (santificação)? É certo que nunca seremos puros para
podermos receber a visita do Deus Santo, mas não teremos, pelo menos, de
afastar de nós os pecados mais grosseiros, como a idolatria, o adultério, o
roubo, o crime? São perguntas pertinentes, mas que se confrontam sempre com a
questão essencial, que é esta: se acreditarmos que, por «não» sermos idólatras,
«não» sermos adúlteros, «não»
sermos ladrões, «não» sermos
criminosos, já podemos entrar na área do divino, já Lhe agradamos, estamos a
ter uma concepção muito moralista e infantil de Deus. Não estou a subestimar a
moral, nem a dizer que é o mesmo ser um cidadão de bom comportamento, com
pecados menos chocantes do que os acima referidos, ou ser um celerado. Mas é um
facto que se um adúltero, por hipótese, chegasse ao momento da fé estaria nesse
momento na condição de pôr fim ao seu pecado: se recebesse o dom do Espírito Santo
não era o adúltero que o receberia mas agora já o crente justificado por
Cristo. O seu adultério terminaria ali. Se esse homem voltasse ao seu adultério
isso significaria que, na verdade, não fora uma experiência do divino a que
tivera, mas demoníaca. Pela fé, o homem torna-se “filho
de Deus” João
1:12 e o filho de Deus não vive cometendo pecado 1ª João 3:9. Quer
isto dizer que os cristãos são pessoas perfeitas? Não, porque em cada cristão
continuará a haver o “velho homem”, que o levará a errar até ao fim da vida.
Como disse Martinho Lutero, o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador. A
diferença que fará do homem que se não converte é que esse peca e ri-se do seu
pecado, repetindo-o sempre; e aquele que se converteu a Cristo sente o peso do
seu pecado, arrepende-se, e abandona-o. Vai voltar a pecar, não forçosamente
fazendo males excessivos, mas voltará a levantar-se e a sua vida irá
progressivamente aproximando-se da estatura do homem perfeito, Jesus Cristo. É
esse aproximar-se progressivamente do modelo que se chama santificação.
Perguntaram a um escultor na televisão portuguesa: “Está satisfeito com a sua
obra?” e ele respondeu: “Não: um artista que fique satisfeito com o que faz,
perde a capacidade de criar”. O cristão, mesmo cheio do Espírito Santo, nunca
ficará satisfeito com a “sua obra”, com o modo como vive, pois o seu alvo é
Cristo, mas dirá como Paulo: Eu não me julgo a mim
mesmo. Ainda que eu não me sinta culpado de nada, não é por isso que me
considero justificado. Quem me julga é o Senhor 1ª Coríntios 4:3/4.
Chegados aqui
devemos reconhecer que a vida de alguns cristãos pode ser até mais infeliz do
que a vida do homem sem Cristo, porque, como acabamos de dizer o homem sem
Cristo “peca e ri-se do seu pecado”, não tem, em princípio, problemas de
consciência, e segue em frente, alegre e folgazão. Enquanto muitos cristãos,
visto que falham aqui e ali, sentem a dor de pecar, lamentam-se, confessam o
seu pecado a Deus, batem com a mão no peito: “Minha culpa, minha culpa, minha
máxima culpa!”. A culpabilidade, temos de reconhecer, torna dura a vida de muitos
cristãos...
Mas é
justamente a esse tipo de Cristianismo sem alegria, esmagado pelo sentimento de
culpa, que é preciso lembrar a necessidade da “experiência do divino”. Porque
essa consciência atormentada, e esses fracassos constantes na caminhada da fé
são o resultado de o cristão não se “encher do Espírito Santo”, e viver um
Cristianismo de palavras, de regras, de rituais, mas sem o “poder” que Jesus
prometeu aos seus fiéis. As suas vidas, sendo vidas honestas de pessoas salvas,
não são “vidas vitoriosas” e estão sempre cheias de altos e baixos. São vidas a
que falta o fruto do Espírito Santo, a que se
refere Gálatas 5:22.
Olhando para a vida dos que são por vezes chamados “gigantes da fé”, o que
vemos é tudo menos contínuo desgosto de si, de amargura, de peso do seu pecado.
Houve um tempo, no século XIX, em que em certos meios intelectuais esteve na
moda comparar o modo de viver dos antigos pagãos com a vida dos cristãos, para
gabar os primeiros, pois viviam as suas grandes bacanais com alegria e para apontar o estilo doloroso da vida
cristã. Esqueciam-se de falar da ausência de piedade entre os pagãos, dos
sacrifícios humanos, da prática generalizada do infanticídio, da pedofilia, do
desregramento das orgias que acabava muitas vezes em tragédias, do terror dos
pagãos diante da morte; mas tinham alguma razão na denúncia que faziam de um
certo Cristianismo, mais entre católicos mas também entre protestantes, que
vestia de negro, cultivava a dor (o dolorismo) e considerava pecado tudo o que
desse prazer ou tornasse feliz. Mas ao lado desse Cristianismo triste, havia,
sempre houve, muitos cristãos que viviam espalhando amor ao próximo, sendo sal
da terra e luz do mundo com vidas em que, mesmo com doenças, pobreza ou outros
problemas, a nota principal era a da serena alegria. É importante sublinhar que
no reduzido texto de Pascal citado no capítulo anterior a palavra “alegria” (joie, em
francês) é a que mais se repete.
O ponto a
realçar é este: a experiência do divino é possível a todo aquele ou aquela que
tenha fé. Jesus não mandou aos seus discípulos, segundo Actos l,8, que se
recolhessem em prolongada oração e jejum, nem que se esforçassem para melhorar
o seu comportamento, a fim de estarem aptos a receber o poder que viria sobre
eles. O Espírito é que veio melhorar muito a vida deles e delas. Se o Espírito
veio quando estavam em oração foi apenas, certamente, porque o Senhor quis que
o primeiro Pentecostes se desse a todos no mesmo momento – e eles só estariam
reunidos todos num mesmo momento para orarem. Depois disso, o dom do Espírito
foi dado em reuniões de oração ou não, a grupos mas também a pessoas que
estavam isoladas. Dwight Lyman
Moody (1837-1899), famoso evangelista americano,
contou que, tinha já muitos anos de actividade como pregador com êxito, quando
teve a experiência da “plenitude do Espírito Santo” em Nova Iorque, ao
meio-dia, «quando caminhava numa rua» – destaco eu, para que o importante
pormenor não passe despercebido. Foi um gozo tão grande que gemeu, feliz, pedindo a Deus que parasse o que estava a
acontecer e as suas pernas fracassaram, como um homem embriagado. Lembram-se?
Os observadores do comportamento dos cristãos no primeiro Pentecostes disseram:
“Estão bêbados!”.
O autor da
carta aos Hebreus escreve assim no capítulo 11, versículo 6: Sem fé é impossível agradar a Deus: porque é necessário que
aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que
o buscam. Hebreus
11:6
Não há aqui
uma definição da fé, mas o primeiro versículo desse mesmo capítulo dá uma a que
nos referiremos adiante; no entanto, diz-nos algo que é necessário ter em conta
na reflexão que vimos fazendo. Aquele que duvida da existência de Deus, em
princípio não terá a possibilidade de ter uma experiência de Deus. É claro que,
por definição, Deus, sendo o Todo-Poderoso, até a esses pode comunicar-se
(longe de nós estabelecer regras para o Altíssimo!), mas a lógica da própria
revelação leva a pensar que, por escolha d’Ele, é impossível que isso aconteça.
Deus criou o homem livre e quere-o livre. Se, por hipótese, um ateu que fosse a
caminhar pela rua como Moody recebesse, de súbito, o
dom do Espírito Santo, numa experiência igual à de Moody
acima referida, das duas uma: ou o ateu se convertia e isso seria conversão
coagida (o que seria contrário à natureza de Deus), ou o ateu achava que tinha
enlouquecido – e isso poderia ser-lhe muito prejudicial. Pelo menos, nesta segunda
hipótese, teria sido uma experiência em vão. Se um intelectual sem fé
tivesse uma experiência igual à de
Pascal, ficaria por certo tão
negativamente perturbado que nada de bom a experiência juntaria à sua vida.
Provavelmente, consultaria um psiquiatra e este, se fosse ateu, receitar-lhe-ia
drogas que lhe adormeceriam a consciência. Ao fim de alguns anos de
“tratamento”, é possível que fosse mesmo um psicopata...
Há um outro
aspecto que é preciso ter presente para compreendermos a importância da fé para
se passar pela experiência do baptismo do Espírito Santo. Já vimos que uma
pessoa pode ser cristã há muitos anos, isto é, crer em Cristo há muitos anos
(tendo fé) e não ter a experiência da plenitude ou baptismo do Espírito. Não é
dúvida que está salva, pois a Bíblia diz: pela graça
sois salvos, por meio da fé. Efésios 2:8 Mas
quanto mais feliz seria na terra e quanto mais desejo de servir, se tivesse
também as experiências! O obstáculo é o tal outro aspecto da palavra “fé” a que acabei de aludir: a certeza de que o
baptismo e o falar línguas são experiências possíveis também hoje para «todos» os cristãos. Se eu tenho a
certeza de que tenho na minha biblioteca o livro “Jesus”, de
Leonardo Coimbra, embora a minha biblioteca esteja muito mal arrumada e o livro
seja pouco espesso, terei do o encontrar, mais cedo ou mais tarde. Mas se eu
não me lembrar que comprei esse livro, nem de o ter lido, então nem sequer o
procurarei. Se eu, lendo noutro livro uma citação daquele ensaio do estudioso
português e pensar que gostaria de ter essa obra, mas que me é inacessível, é
evidente que não procurarei o livro na minha biblioteca, nem o lerei. Se o
leitor, que conhece bem a Bíblia, se convencer de que as experiências
espirituais de que o Novo Testamento fala continuam acessíveis, o leitor está
com muitíssimas mais probabilidades de as viver do que se pensar, como tantos
cristãos, sinceros e salvos sem dúvida, mas sem fundamento bíblico neste ponto,
de que o tempo dessas experiências já passou. Moody
foi cristão e até grande pregador antes de ter a experiência da plenitude do
Espírito Santo muito provavelmente porque só tardiamente passou a admitir a
possibilidade dessa experiência.
Para falar de
algumas experiências espirituais, especialmente de místicos como Teresa de
Ávila, fala-se, por vezes, em “casamento místico”: a alma do crente é como a
noiva que se une ao seu amado, Deus. Essa metáfora ajuda-nos a compreender
melhor a razão por que, no plano de Deus, sem fé é impossível ter uma
experiência do divino. Porque a característica da fé é a aceitação, a adesão
feliz a Deus. Não é só acreditar que Deus existe: é também acreditar que d’Ele
vem todo o bem, que Ele te ama, que Ele é “galardoador”, como diz o versículo
em questão na versão tradicional da Bíblia, ou que Ele recompensa. Num
verdadeiro casamento humano é indispensável que ambos se aceitem, sem coacção
de espécie alguma. Um casamento não “se consumará” se um dos nubentes se
recusar à união. Fé é o sim do crente a Deus. Fé e amor são conceitos que devem
caminhar juntos na perspectiva bíblica: A fé opera
pelo amor, escreve São Paulo. Gálatas 5:6 É por
isso que dizemos que é impossível receber a plenitude do Espírito sem fé, mas
podíamos dizer também é impossível receber o Espírito “sem amor”. E isso
permite-nos compreender que Jesus tenha dito aos apóstolos: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o
amará, e viremos para ele, e faremos nele morada. João 14:23
A definição
que a carta aos Hebreus dá da fé é esclarecedora no contexto do nosso tema: A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a
prova das coisas que se não vêem. Hebreus 11:1 Se um
membro da Igreja não espera receber a “experiência do divino”, não a receberá. É
como se alguém tiver sede mas se recusar a beber a água que lhe oferecem. Não é
correcto obrigar uma pessoa a beber, se ela tem relutância em fazê-lo.
Para ajudar a
compreender o sentido bíblico da fé, gosto de apresentar uma comparação vulgar.
Imagine-se um homem, António, que tem de pagar amanhã uma importância que
ultrapassa as suas posses. Está inquieto, mas recebe um telefonema do seu amigo
José que, sabedor da situação, lhe diz: “Amanhã de manhã estarei aí para te
entregar o dinheiro de que precisas”. Pode António agora dormir descansado?
Pode: porque ele conhece José, sabe que tem a possibilidade de lhe emprestar
aquele dinheiro e sabe que José é um homem sempre cumpridor da sua palavra. Se
ele diz que estará lá na manhã seguinte, estará de certeza. É claro que estamos
a falar em termos simplificados, pois a vida está cheia de imponderáveis e esta
noite José pode morrer. A “parábola” serve apenas para mostrar que António, em
princípio, pode dormir descansado por ter “fé” na palavra de José. Se prometeu,
cumpre. Infelizmente, tratando-se de seres humanos, esta “fé” é fraca.
Na Bíblia, a
fé é a tranquila aceitação da Palavra que Deus nos dirige. Se Deus me diz que
me perdoa em Jesus Cristo, porquê continuar amargurado com o meu pecado de que
estou arrependido e corrigi na medida do possível? Se Deus me diz que sou salvo
pela graça, justificado em Jesus Cristo, como duvidar da minha salvação? José,
amigo de António, costuma ser fiel à sua palavra, mas é humano e está ainda
assim condicionado por muitas dificuldades – mas Deus é o Deus soberano, o
Todo-Poderoso, e nada nos deve limitar na aceitação do que Ele promete na Sua
Palavra. Ora, a promessa exultante de Jesus Cristo em relação ao tema que
estamos a tratar é esta: Pedi e dar-se-vos-á; buscai e
achareis; batei e abrir-se-vos-á. Porque qualquer que pede recebe; e quem busca
acha; e quem bate abrir-se-lhe-á. E qual é o pai de entre vós que, se o seu
filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou também, se lhe pedir peixe, lhe
dará por peixe uma serpente? Ou também, se lhe pedir um ovo, lhe dará um
escorpião? Pois se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos,
quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?
Lucas 11:9/13
Um pastor
aceitou tranquilamente este ensino de Cristo. Foi para a sua congregação e fez
um estudo sério do assunto com os seus irmãos. Depois convidou todos a ficarem
de pé e a pedirem a Deus o Espírito Santo. Quando o culto terminou era evidente
a transformação operada em todos, sentindo uma comunhão com Deus até ali não
experimentada. Simples de mais? Lembrem-se do general Naamã...
Quando
pedimos perdão a Deus por algo que fizemos errado, em seguida não temos de
ficar à espera de ouvir uma voz ecoar nos altos céus a dizer: “Estás perdoado.
Vai em paz!”. Simplesmente aceitamos, com fé, o que a Palavra nos diz: Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para
nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça. 1ª João 1:9 Do
mesmo modo, se pedimos o Espírito Santo, aceitamos simplesmente com fé que Deus
cumpre também essa Palavra. E a partir desse dia o crente sente uma comunhão
com Deus como nunca sentiu antes. Esse pastor confessou a um íntimo: “Quando
ando na rua por vezes tenho de ter cuidado, pois sinto os passos alterados,
cambaleantes, como se tivesse bebido bebida alcoólica”.
No capítulo
VI falarei do dom das “línguas estranhas”, mas por agora lembrarei que o
cristão ou a cristã que faz a experiência do divino, a recepção do Espírito,
não se torna melhor nem pior do que era, e pode falar desse assunto com
simplicidade porque nem sequer, infelizmente, fica isento de continuar a
falhar. Não lembrei já que o cristão é até à morte “ao mesmo tempo justo e
pecador” (Lutero)? Só pela morte alcançaremos a perfeição, na vida vindoura. Na
experiência do divino, apenas, e não é nada pouco!, realizamos melhor a vocação
do nosso eu. Por isso é que gosto de associar o dia em que um cristão recebe a
plenitude do Espírito Santo a um poema de Sebastião da Gama sobre o dia do seu
nascimento natural:
Quando eu
nasci
Não houve
nada de novo senão eu.
E olhem que
não é pouco, que, finalmente, comecemos realmente a viver. O poeta referia-se
ao seu nascimento natural, quando sua Mãe, o trouxe ao mundo, mas os versos
servem também para falar do nascimento para a plenitude da Vida Nova em Jesus
Cristo.
Capítulo V – ENCHEI-VOS DO ESPÍRITO SANTO
Já escrevi atrás
expressões como “receber o Espírito Santo”, mas é tempo de dizer uma frase que
parece contraditória: «Se alguém é de
Cristo, tem já o Espírito Santo».
A expressão
“receber o Espírito Santo” não é rigorosa para uma mente cartesiana, mas é a
usada no Novo Testamento. É bom ter presente que a mente cartesiana (de
Descartes), racionalista, é ocidental, de raiz grega, e o Novo Testamento
reflecte o pensamento oriental semita. Se não aceitássemos a expressão “receber
o Espírito Santo”, argumentando que ela é contraditória com a afirmação de que
todo o cristão já O tem, teríamos de deixar de cantar velhos hinos como o já
referido “Vem, Espírito Divino!”. Retenhamos, pois que se alguém crê em Jesus
Cristo, aceitando-o com fé, tem o Espírito Santo. Parafraseando Dennis Bennet (20), direi que nós, presbiterianos, anglicanos,
metodistas, baptistas e outras Igrejas tradicionais temos o Espírito Santo; Ele
é que não nos “tem” a nós! (a muitos de nós, mais rigorosamente). Quer dizer:
todos receberam o Espírito Santo, mas é como se alguém tivesse recebido como
oferta um cheque de um milhão de euros e o deixasse dentro de uma gaveta, não
crendo que podia levantar esse valor no banco.
A vida de muitos cristãos pode não ser de modo
algum uma vida vitoriosa, havendo nela frequentes fracassos, e sendo destituída
de verdadeira alegria, mas isso não significa que não tenham o Espírito de
Deus. São Paulo diz na sua primeira epístola aos Coríntios que ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito
Santo. 1ª
Coríntios 12:3 Pode mesmo haver cristãos sinceros, com vidas relativamente
felizes por razões de circunstância, sem que tenham passado por qualquer
experiência espiritual de realce, mas em quem o Espírito está presente. Alguns
movimentos entusiastas dentro da Igreja têm exagerado nesse aspecto, falando de
quem não tem experiências como as deles como se fossem não-cristãos, pessoas
por salvar, ou mesmo hipócritas. Há pentecostais que parecem supor ser os
únicos verdadeiros cristãos sobre a terra – mas essa sei não ser a posição dos
dirigentes dessa denominação, onde tenho encontrado verdadeiros irmãos.
Atitudes exclusivistas e sectárias criam divisão e levam a ver nos entusiastas
pessoas intolerantes que devem ser duramente combatidas. E, além disso, tornam
indesejável a experiência que dizem querer valorizar.
Pelo baptismo
das águas tornamo-nos membros da Igreja, enquanto instituição humana. Pela fé
somos “baptizados no Espírito” como escreve São Paulo na epístola que acabei de
citar, no mesmo capítulo, versículo 13: Todos fomos
baptizados em um Espírito, formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer
servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito. 1ª Coríntios 12:13
Falar em “baptizar” no Espírito tem razão de ser porque o verbo grego que dá em
português baptizar quer dizer mergulhar, molhar, lavar. Quando se baptiza uma
pessoa com água, ela é molhada ou mesmo mergulhada para assinalar a sua entrada
na Nova Aliança em Jesus Cristo. Na experiência com o Espírito Santo a pessoa
sente-se submergir ou mergulhar no Espírito de Deus. Existe um coro carismático
singelo que diz assim:
Eu navegarei
no Oceano do
Espírito
e ali adorarei
ao Deus do
meu amor.
Não devemos
esquecer nunca que a Bíblia é um texto da cultura semita e não grega, apesar de
o Novo Testamento ser escrito em grego, mas no grego comum dos soldados e dos
mercadores, não dos filósofos e da vida mundana da alta sociedade. Além disso,
o grego comum do Novo Testamento foi escrito com a mentalidade semita – o que
quer dizer que os conceitos não são descritos no abstracto mas no concreto da
experiência, a experiência dos escritores do Novo Testamento. Por isso que uns falam
do baptismo do Espírito Santo, outros do enchimento do Espírito Santo, outros
do recebimento do Espírito Santo, outros da plenitude do Espírito, e nós
dizemos “experiência do divino”. Mais do que as palavras, o que interessa é a
realidade vivida. Pode falar-se também de uma “Segunda conversão”. Na primeira
o homem converte-se à fé cristã, ficando intelectualmente convencido de ter
encontrado o Caminho; na Segunda conversão é quando o Fogo do Espírito começa a
arder no coração do crente. Em alguns meios prefere-se falar de uma “Segunda
bênção”, mas é sempre do mesmo fenómeno que se está a falar. O que importa é
que nela acontece com o crente o que se disse da experiência de Blaise Pascal
que descrevemos no Capítulo III: “Bruscamente [Pascal] tinha passado de um
conhecimento de Deus fraco e frio a um conhecimento que o queimava” (21). O
cristianismo, crença intelectual, torna-se fogo abrasador no coração do crente.
Pelo
Pentecostes, o Espírito foi dado a toda a Igreja. Mas depois desse dia cada
novo convertido deve passar pela experiência do “baptismo no Espírito”. É a
presença do Espírito, ainda sem o baptismo do Espírito, sem a plenitude, que
leva muitos homens, que antes eram folgazões sem problemas de consciência a,
tornando-se cristãos, começarem, paradoxalmente, a viver incomodados. Agora há
dentro deles a luta da “carne” e do “espírito” que antes não havia. Só há luta
deste tipo onde há já vida espiritual: os espiritualmente mortos não se
perturbam. Como me dizia em linguagem chã um dedicado diácono da minha
juventude na Igreja Evangélica da Ajuda, Lisboa: “Enquanto negavas Cristo, o
diabo não te ligava. Eras dele e ele não tinha que se preocupar contigo. Mas
agora que aceitaste Cristo, ele vai lutar contigo”.
Se as
palavras fossem tomadas à letra, é verdade que os cristãos não deviam clamar
dizendo: “Vem, Espírito Divino!”, porque tal clamor faz entender que o Espírito
ainda não veio – mas é verdade que tal expressão encontra-se no Novo Testamento
e um dos hinos mais antigos da Igreja é, de facto, o “Veni
Sancte Spiritus”, Vem, Espírito Santo.
A explicação
para este uso de “vir” pode ser o facto de o crente viver sempre a experiência
da plenitude do Espírito como um novo Pentecostes, que vem sobre ele, superior
e exterior a ele. O cântico carismático que referimos há momentos começa assim:
Espírito!
Espírito!
Que desces
sobre o povo:
Vem como em
Pentecostes
Enche-me de
novo!
O hino está
num português um tanto manco, mas o que queremos sublinhar é a imagem do mundo
que ele reflecte: o Espírito «desce» e é um Pentecostes que pode acontecer
continuamente. Nós mudaríamos os versos terceiro e quarto, dizendo. “Repete o
Pentecostes/ e enche-me de novo!”
Entretanto,
não esqueçamos que a linguagem da Bíblia é a linguagem da experiência, não a da
especulação abstracta. Também nosso Senhor disse que o Reino dos Céus já está
no meio de nós Lucas
17:21 e ao mesmo tempo ensinou a orar pedindo: “Venha
o Teu Reino!”. Se já está, porquê pedir que venha? O pedido, realmente,
é para que o Reino chegue à sua plenitude. O mesmo com o Espírito Santo.
Se todos os
cristãos têm o Espírito, nem todos estão “cheios” d’Ele. É o que se depreende
da exortação da Epístola aos Efésios : Não vos
embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito Efésios 5:18 O
verbo grego usado no texto original é “pléroo”, neste caso no imperativo. O substantivo
é “pléroma”,
que em português se traduz por “plenitude”. É por isso que atrás usamos a
expressão “plenitude do Espírito Santo”. O cristão, pelo facto de o ser, tem o
Espírito Santo, mas nem sempre vive na “plenitude do Espírito”. E a exortação
de Efésios é que viva continuamente na plenitude. É como se uma pessoa tivesse
junto da sua casa uma fonte de onde sai apenas um fiozinho de água que mal dá
para matar a sede e vai ter a possibilidade de acesso a uma nascente de águas
abundantes. Numa comparação singela poderia dizer-se também que toda a pessoa, porque
é um ser vivente, respira, mas nem todos sabem usar da melhor maneira a função
de respirar. Os professores de canto ou de oratória, os instrutores de natação,
os médicos por vezes, ensinam que há formas melhores para respirar, embora essa
função nasça connosco e ninguém possa viver sem respirar.
Alguns
comentadores da Epístola aos Efésios chamam a atenção para duas dificuldades
que 5:18 levanta. Em primeiro lugar, é preciso dizer que os manuscritos
originais dizem “Enchei-vos no Espírito” e não
“Espírito Santo”. Poderia ser,
ao dizer “enchei-vos no espírito”, uma exortação para os cristãos viverem na
plenitude do seu próprio espírito? (Não ajuda pensar que Espírito aparece em
maiúscula, pois é assim apenas na nossa Bíblia, porque nos textos originais
todas as palavras aparecem em minúsculas). Essa interpretação (cada cristão a
viver na plenitude do seu próprio espírito), tem menos sentido do que a ideia
do conjunto do Novo Testamento de viver segundo o Espírito Santo (ou Divino),
daí parecer melhor juntar, como algum copista fez, a palavra
“Santo”. Por outro lado, a preposição usada no original grego: “Enchei-vos em (en)
Espírito”. O mais natural, falando-se de encher seria “de”, o que em grego
seria dado pelo genitivo, como aparece em Actos 2:4; Actos 4:31; Actos 9:17; Actos 11:24 e Actos 13:52. Porquê
então “enchei-vos em Espírito”? O que
levou os tradutores a traduzirem “en pneumati” por “do
Espírito Santo, foi a dedução de que se a exortação é a de os cristãos não se
embriagarem por se encherem «de»
vinho, a acção positiva é, digamos, “embriagarem-se” por se encherem «do» Espírito Santo.
Como se pode
cumprir esta exortação tão importante? A resposta a esta pergunta encontra-se
no uso do gerúndio que vem a seguir: “falando, cantando, dando”. No grego
como em português o gerúndio em geral implica a explicação do que é dito no
verbo principal da frase. Assim, por exemplo, em português dizemos: “Deves
manifestar amor à tua mãe, «visitando-a»
mais vezes”. Quer dizer, o modo de manifestar o amor à mãe é, na opinião de
quem disse aquela frase, ir visitá-la mais vezes. Outra frase: “Estudando
tanto, chegarás a sábio”. Ou seja: a sabedoria vem pelo muito estudo. Os
cristãos de Éfeso, e todos os cristãos que leiam esta Epístola, enchem-se do
Espírito Santo, quando:
a) falarem
entre si em salmos e hinos e cânticos espirituais;
b) cantarem e
celebrarem ao Senhor;
c) derem
graças sempre por tudo;
d)
sujeitarem-se uns aos outros.
Não são requeridos
sacrifícios especiais, longas horas de oração agónica, jejuns ou outras
práticas que, de algum modo, representariam o “preço” a pagar por essa bênção.
Tal como a salvação, o enchimento do Espírito é pura graça de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie. Efésios 2:9 A mesma
Escritura que em Romanos
7:14/24, mostra o homem como incapaz de fazer o bem, mesmo desejando
fazê-lo, diz ainda nessa epístola aos Romanos que é o Espírito de Deus,
habitando o homem convertido, que o transforma: Se
alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. E se Cristo está em
vós, o corpo, na verdade, está morto, por causa do pecado, mas o espírito vive,
por causa da justiça Romanos 8:9/10 A
santificação do crente não se faz para receber o Espírito de Cristo, mas começa
a fazer-se porque o crente coopera com o Espírito de Cristo que nele habita.
Falando entre vós.
Ao contrário
do que o egoísmo grosseiro pensa, no plano de Deus nem tudo tem um preço. Mas
tudo tem uma disciplina, visto que somos seres livres. O modo como falamos é
muito importante. O ensaísta francês Georges Gusdorf
publicou há trinta anos um precioso pequeno livro – La Parole (A Palavra)
– onde reflecte sobre o papel fundamental da palavra na realização humana,
concluindo que a invenção da palavra marca a inauguração da realidade humana.
No nosso mundo moderno, em que se
manifesta tanto cepticismo em relação à palavra, ofuscada muitas vezes pela
imagem, acaba-se num certo cepticismo em relação ao ser humano, visto como uma
peça da engrenagem e não, como na Bíblia,
um ser feito à imagem de Deus. Mas a palavra, as palavras, não são
simples convenções: sendo veículo de sentimentos e de meio de comunicação elas
levam em si energia transformadora. A lenda do “abre-te, Sésamo” da história de
Ali-bábá fala da potencialidade que têm as palavras
que usamos para abrirem portas de acesso a tesouros escondidos. Não admira por
isso que a Palavra de Deus exorte o homem a encher-se do Espírito «falando».
Quando diz para se falar em salmos e hinos e cânticos espirituais não implica
obviamente que a conversa a travar seja do tipo: “Que me dizes sobre o Salmo 23?
Maravilhoso, não é?” ou que os cristãos devam ficar longas horas a cantar
hinos. Mas implica necessariamente uma disciplina que leva a encher a mente de
pensamentos em que Cristo tenha um lugar central. O cristão não precisa de
deixar de falar também de questões profissionais, de temas políticos,
artísticos, literários, desportivos, mas tudo isso terá de ser sempre visto e
pensado tendo como ponto de referência Cristo e todo o seu significado.
Há nesta
exortação (“falando entre vós.... e cânticos espirituais”) um ponto que devia
ser mais difícil de compreender do que habitualmente parece ser. O ponto é
este: porquê aquele adjectivo «espirituais»?
Pode deduzir-se que o adjectivo cobre todos os substantivos da frase (salmos,
hinos e cânticos) e distingue-os de salmos, hinos e cânticos do mundo secular.
Seria, no entanto, estranho, que os cristãos fossem exortados a deixar salmos e
hinos “mundanos”, já que a palavra salmo mesmo numa Igreja do mundo gentílico
era usada apenas para as composições relacionadas com Deus revelado em Jesus
Cristo. É entre cristãos pouco reflectidos que há a tendência de usar o termo
“espiritual” e seus derivados como um chavão significando “coisas de Deus” ou
não materiais. Uma hipótese que me parece digna de estudo é que o «espirituais»
só classifique os cânticos, podendo dizer-se: falando entre vós em cânticos
espirituais, salmos e hinos (Comparar com Colossenses 3:16).
O que são estes cânticos espirituais? No tal chavão evangélico seriam cânticos
sobre as coisas de Deus, mas um melhor estudo mostra que “espirituais” aí é
aquilo que não foi criado pelo entendimento, pela razão. Na I Epístola aos Coríntios há referência a um “falar em
espírito” 1ª
Coríntios 14:2 que claramente tem conotação com o falar em línguas, o dom
da glossolália, (Ver também 1ª Coríntios 14:16).
Nessa passagem há ainda referência a um “cantar no espírito” (v. 15). O que se
canta em espírito é um “cântico espiritual”. O contexto mostra que “falar em
línguas” não é falar a partir da razão, não é usar uma linguagem compreensível.
(Se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o
indouto o amén depois da tua acção de graças, visto
que não entende o que dizes?, v. 16). Se não se entende o que alguém diz
“no espírito”, é porque o que é dito não é compreensível. Se uma oração é no
espírito (pneuma), isso significa que ela é “espiritual”, não no sentido
moralista em que alguns usam esta palavra, mas no sentido de ser uma oração
dita com sons que não são compreensíveis, porque não nascem da razão. É isso
que é a glossolália, de que falaremos no capítulo
seguinte, mas que referimos neste momento apenas para sublinhar que o ensino de
Efésios é o de que o método para o crente se encher do Espírito Santo, além de
incluir salmos e hinos, inclui o uso do falar línguas, em cânticos.
Dando sempre graças a Deus.
O padre Paul Grostéfan recolheu num livro orações e sugestões litúrgicas
com o título “Cânticos de Libertação”,
que tem um prefácio com este primeiro período: “Quando temos Deus por
inquilino, quando Deus habita na mesma casa, quando Deus é tão próximo e
acessível, tudo muda e temos vontade de cantar”. Muitos cristãos, de diferentes
confissões, poderiam subscrever estas palavras. O cristão sente não só desejo
de cantar mas também de em tudo dar graças a Deus.
Aqueles que
sentem ter uma fé fraca, que estão desanimados e não conseguem cantar a Deus
com alegria, devem exercitar-se na disciplina de descobrir motivos para dar
graças a Deus. Se o fizerem, verão a sua fé transformar-se de fé fraca em fé
firme, pronta para o caminho vitorioso que Cristo abriu para todos os seus.
Às vezes
parece que somos muito pouco imaginativos no encontro de motivos para dar
graças a Deus. Lembro-me de um amigo que vivia numa avenida nova de Lisboa. Era
engenheiro por profissão e estava colocado num serviço do Estado no princípio
dos anos 70. Mais por razões psicológicas do que por doença orgânica, embora
fosse desta que se queixasse, estava muitas vezes com baixa no serviço, passando
os dias de cama, deprimido. Desejava muito a minha visita como pastor, mas o
meu “aconselhamento pastoral” não parecia trazer bons resultados. Um dia, para
o ajudar a sair da auto-compaixão, aconselhei-o a que passasse a dar graças a
Deus pelas bênçãos de que era beneficiário. Disse-me que não sabia o que
agradecer e propus-lhe que fizesse uma lista de dez coisas boas na sua vida que
devia agradecer. Aceitou a ideia sem entusiasmo e quando lá voltei
perguntei-lhe pela lista. Não tinha feito. Mostrou-me uma folha de papel em
branco e gemeu: “Não consegui lembrar-me nem de uma coisa...A minha vida é só
dor”. Peguei na folha e numa caneta e fui eu próprio enumerando as bênçãos:
“Não acha que é uma bênção ter podido fazer um curso universitário?” Concordou
com um sorriso envergonhado. “E ter casado com uma senhora tão paciente como
sua esposa?” Também concordou. “E ter dois filhos saudáveis e escorreitos, e
também fazendo cursos universitários? E ser proprietário deste andar, benefício
que tão poucos portugueses têm?”. Fui-me por ali fora. Em breve tinha feito a
lista de dez bênçãos que aquele homem triste, porque ingrato, não sabia que se
chamavam bênçãos. Não sei se o engenheiro veio a evoluir espiritualmente,
porque entretanto tive de deixar Lisboa,
mas ainda estou convencido de que todos lucraremos muito se cultivarmos o
costume de estar atentos às bênçãos que vamos recebendo. E as bênçãos, convém
lembrar, não são apenas as coisas que nos agradam, pois até acontecimentos
aparentemente negativos podem revelar-se pontos de partida para grandes
benefícios.
Para ser
cheio do Espírito Santo é um caminho incontornável saber contar as bênçãos
recebidas da divina mão. Em reuniões de cristãos pentecostais ou carismáticos
de outras denominações tenho observado que as orações são curtas e claras – e
são acima de tudo de acção de graças. Algumas vezes podem parecer-nos
repetitivas e quase sem sentido, dizendo quase apenas “Aleluia! Glória ao
Senhor!”, mas é incontestável que essas palavras criam um ambiente feliz e de fervor,
mais do que as longas e cansativas orações que outros fazem, embora com
“decência e ordem”, como requer a palavra apostólica. 1ª Coríntios 14:40
Sobretudo, o que mais se afasta da exortação bíblica de dar graças a Deus é que
tais orações longas e cansativas são, regra geral, para pedir coisas e não
agradecer o que se tem, e o que Deus é. Quando não são mesmo para ensinar
coisas a Deus... Como na anedota contada nos meios evangélicos, que fala de um
crente que fez uma longa oração, na qual contava a Deus (ou à congregação?)
como o povo de Israel saíra do Egipto pela mão de Moisés e como depois, durante
quarenta anos, peregrinara no deserto. O pastor da congregação, cansado de
estar curvado, como os demais crentes, a ouvir a longa oração, ergueu-se nessa
altura e anunciou: “Enquanto o povo de Deus caminha no deserto, vamos cantar o
hino nº 34”. Embora a história tenha o seu quê de irreverente, temos de
reconhecer que é realmente uma pena que os cristãos não usem mais do privilégio
que é a oração, privada ou pública, para expressarem, com simplicidade e sem
rodeios, a sua gratidão a Deus.
A palavra
grega que é aqui traduzida por “dar graças” é a mesma de onde vem a palavra
“eucaristia”, que também se usa para referir a Ceia do Senhor. É significativo
que se tenha escolhido, na Igreja primitiva, eucaristia (Acção de Graças) para
falar do momento mais alto do culto cristão. É que a vida cristã é, acima de
tudo, acção de graças ao nosso Deus.
E note-se que
devemos dar graças “por tudo”. Não é apenas dar graças quando as coisas correm
bem para nós, nem apenas quando temos várias bênçãos a assinalar (como eu
próprio dei a entender ao engenheiro, mas não podia ainda aprofundar a
questão), pois a nossa acção de graças pode até envolver assuntos aparentemente
negativos. Uma doença pode ser o caminho para uma mudança na vida que trás a
felicidade até então ignorada. Recentemente uma revista publicou uma reportagem
sobre um português imigrante que é dono de uma cadeia de hipermercados no país
que o acolheu. Mas, obviamente, este sucesso começou com uma situação infeliz e
indesejável, que é um homem ter de ir procurar trabalho longe da sua família,
fora da terra que o viu nascer. A experiência mostra-nos que há muitos casos de
grande infelicidade que terminam em benefício de um modo ou outro para o
crente. É nesse contexto que podemos ler esta palavra: Sabemos
que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que são chamados
por seu decreto. Romanos 8:28 Não
concluímos daqui que devemos lançar foguetes quando somos atingidos por uma
doença grave, por uma deficiência, por uma desgraça qualquer – mas sim que
mesmo numa situação como essas temos a possibilidade de descobrir o que Deus
nos está a dizer e que caminhos nos está a abrir.
Sujeitando-vos uns aos outros.
Na Igreja
primitiva a comunhão, no sentido da vida em companheirismo, era muito
importante. Na verdade, ela tem de o ser também para nós. Se queremos a
vitalidade, o dinamismo da Igreja do livro de Actos, temos de
ser perseverantes também na “comunhão/companheirismo” de que fala esse livro em
Actos 2:46. Para
o nosso propósito, o texto lembra-nos a necessidade de nos sujeitarmos uns aos
outros no temor de Deus. Essa sujeição não é a que pode existir num qualquer
outro grupo humano, que é feito no temor do superior: temor do patrão, no temor do chefe, no temor
do presidente, no temor de ser despedido, de receber uma reprovação. Tal
sujeição é indigna da Igreja de Cristo – na verdade ela é indesejável também no
mundo, mas infelizmente tem se mostrado difícil eliminá-la porque há quem a
defenda e a deseje. E também porque as próprias Igrejas não raramente cultivam
essa sujeição não de uns aos outros mas de alguns, muitos, a uns poucos, e no
temor do superior. Se a própria Igreja não souber dar ao mundo o modelo da
sujeição mútua, não admira que o mundo sem Deus use a lei do mais forte: quem
puder domine os outros. A Palavra de Deus, porém, propõe uma sujeição mútua.
Isto é, cada um cumpre a sua missão e respeite a missão do outro. Nas Igrejas
presbiterianas e de regime congregacionalista,
por exemplo, onde não há uma hierarquia
mas o governo é colegial e por comissões, isso parece muito fácil, mas pode
realizar-se também em Igrejas com hierarquia. Se na Igreja presbiteriana e nas
de regime congregacionalista e noutras é possível que a comunidade prossiga sem
que alguém possa dizer “o meu superior” ou “o meu subalterno”, fica aí a prova
de que a “sujeição mútua” é possível. Num sistema colegial como num sistema
hierárquico cada um tem uma função a cumprir e nela é obedecido. Num hospital
pode haver também trabalho para economistas e engenheiros – e esses não são nem
inferiores nem superiores aos médicos, embora, naturalmente, os médicos tenham
uma função fundamental ali: mas médicos, engenheiros e economistas são
necessários. O mesmo deve ser dito em relação a enfermeiros, maqueiros, pessoal
administrativo e pessoal auxiliar. Nas Igrejas, especialmente, deve haver a
“sujeição uns aos outros em amor e no temor do Senhor”. Ao criar-se um ambiente
de amizade e companheirismo num grupo, cumpre-se uma condição importante para
cada qual manifestar os seus dons e para que o Espírito Santo possa dirigir as
vidas. Porque o maior obstáculo à acção do Espírito é o individualismo, que é
justamente o oposto ao alvo da Fé Cristã. Onde virmos cristãos que lutam por
protagonismo, por ficar à frente, por
ocupar “lugares de prestígio”, estaremos diante de pessoas de vida interior
pobre, mesmo que conheçam a Bíblia na ponta da língua e falem com autoridade de
dogmas e credos. No princípio da década de 1970, o cardeal Suenens,
da Bélgica, publicou um livro com o título “Um Novo Pentecostes?” com o qual saudava a emergência do
movimento carismático católico e encoraja essa corrente. Mas havia alguma
ingenuidade no cardeal, porque o Pentecostes não pode ir muito longe enquanto
se defendem estruturas que não facilitam o companheirismo fraterno entre os
cristãos. Havia outra falha no livro do cardeal Suenens:
era o seu esforço por conciliar a acção renovadora do Espírito Santo com o
culto de Maria. A verdade que se observa é que quando um católico aprofunda a
sua experiência no Espírito Santo, a sua fé torna-se mais e mais Cristocêntrica. Maria mantém o lugar que merece de “bendita
entre todas as mulheres”, mas o crente abandona em relação à santa Mãe de Jesus
formas que se não coadunam com a sua condição humana.
Quando Jesus,
nos Evangelhos, adverte os seus discípulos para que não queiram ser como os
chefes religiosos dos seus dias, que gostam de ser chamados “mestres”
(doutores), ser reverenciados nas ruas e nas praças, não é um discurso moralista
que nos faz – mas dá uma lição de disciplina espiritual. Se fizerdes assim, não
encontrareis a paz que o Espírito vos pode oferecer. O individualismo é o
oposto ao caminho da salvação (22). Uma das proclamações alvissareiras da
Escritura é que, em Cristo, aqueles que não eram povo, mas apenas indivíduos,
agora são povo de Deus. 1ª Pedro 2:10 A
história dos movimentos de cristãos que buscaram ser “cheios do Espírito Santo”
e, tendo passado por experiências carismáticas, terminaram acusando as suas
igrejas de origem e afastando-se delas para criarem novas denominações, não é
edificante, embora se compreenda no
contexto histórico. Mas o desejável é que a “experiência do divino” de que aqui
se fala não concorra para a divisão, mas justamente para o contrário, para a
unidade da Igreja. Ela cumprir-se-á se tivermos em conta este aspecto final do
“enchimento” que nos fala da necessidade de nos sujeitarmos uns aos outros.
Um dos mais
destacados obreiros do movimento ecuménico, o Dr. John A. Macay,
um americano que amou muito a cultura ibérica, homem tolerante que, mantendo-se
fiel à sua Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos e à sua elevada formação
teológica, apreciou o movimento pentecostal, comentou esta passagem de Efésios,
terminando com estas palavras: “...à obra do Espírito Santo são atribuídos
tanto o ardor espiritual como a ordem espiritual. O entusiasmo precisa de ser
fraternal; a fraternidade precisa de ser entusiástica. A fraternidade cristã e
a paixão missionária são ambas necessárias e nenhuma delas se completa sem a
outra. Os cristãos, «como entusiastas fraternais», são os herdeiros da grande
tradição bíblica e clássica da sua fé sagrada. Às vezes, eles não se tornarão
alheios ao êxtase rapsódico produzido pela visão que se eleva ou por um lampejo
nos lugares celestiais. As ideias que acarinham e as experiência de que gozam
as altas esperanças da sua chamada. Farão com que rompam entoando “salmos e
hinos e cânticos espirituais”, bendizendo a Deus o Pai, em nome de Jesus
Cristo, Seu Filho. Dedicados a fazer a vontade de Deus para a vinda da nova
ordem divina, a deles será “permanente embriaguez de ardor vital”. Vigiarão e
esperarão, crendo que se aproxima o tempo, que a “estação traz perto a sua
colheita”. Ainda por todo o seu ardor, ou antes por causa do seu carácter
iluminado e intensamente espiritual, viverão no meio do plano secular e nele
desempenharão a sua parte; serão úteis para o seu tempo e terão o seu lugar nas
várias esferas e vocações da vida. Compreendendo terem sido baptizados em um
único Espírito, trabalharão juntos e terão paciência uns com os outros; sabendo
que a luta não é apenas “com a carne e com o sangue”, armar-se-ão e se
conservarão armados para o combate espiritual”
(23).
Capítulo VI – FALARÃO NOVAS LÍNGUAS
Quase no fim
do Evangelho de São Marcos, quando Jesus se prepara para sair da vista dos seus
discípulos, é-nos dito que o Senhor informou que os seus discípulos seriam
conhecidos pelos seguintes sinais:
Em
meu nome expulsarão demónios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e,
se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal algum; se impuserem as
mãos sobre enfermos, eles ficarão curados.
Muitos
especialistas do Novo Testamento estão convencidos de que os versículos 9 a 20
deste último capítulo do Evangelho de Marcos são um acréscimo tardio, não
escrito pelo autor do Evangelho. Marcos 16:9/20
Essa convicção vem-lhes do facto de haver bons manuscritos onde o Evangelho de
Marcos termina no verso 8 desse capítulo e ainda pela grande diferença de
vocabulário e estilo que se observa entre 16,9ss e tudo o que fica para trás.
Num velho volume, de autor protestante desconhecido, cuja edição em Portugal é
já de 1896, lê-se: “Como genuíno e autêntico o Evangelho de S. Marcos está
suficientemente estabelecido pelo testemunho de escritores primitivos. Há,
porém, algum motivo para duvidar se a parte que termina o capítulo XVI, (9-20),
é pela pena do Evangelista. Porém mesmo que tivéssemos a certeza de que estes
versos foram subsequentemente acrescentados, não se segue que o fossem sem
autoridade e inspiração” (24). Por outras palavras: se o Evangelista não
escreveu os versos 9 a 20, ou se escreveu um texto parecido que se perdeu, Deus
inspirou outro homem a escrever este texto e inspirou a Igreja a juntá-lo ao
Evangelho.
Quanto aos
sinais descritos nos versos 17 e 18 é indubitável que eles se manifestaram
abundantemente na Igreja Primitiva e têm-se manifestado, com menor abundância e
por vezes estiveram quase ausentes, ao longo dos séculos e até hoje.
Um desses
sinais é o que aqui é referido como “falar novas línguas”, a glossolália. Esta palavra foi criada no século XIX a partir
dos termos gregos “glossa”, que quer dizer língua, e “lalia”, que significa dito ou discurso. Com ela quis-se designar o
fenómeno descrito nas páginas do Novo Testamento, a começar em Actos 2:4, quando os
discípulos de Jesus, no dia de Pentecostes, “foram cheios do Espírito Santo e
começaram a falar com outras línguas segundo o Espírito Santo lhes concedia que
falassem”.
Em termos
simples diremos que há manifestações de glossolália
quando alguém começa a articular sons com a aparência de uma língua mas cujo
sentido não conhece. Em Marcos 16:17 o
fenómeno é chamado, como vimos, “falar novas línguas”, mas o “novo” aí traduz “koinos”, que diz respeito ao que é
inusitado, fora do habitual. Ou seja: as “novas línguas” são as “outras
línguas” de que fala Actos
2:4 e são as “línguas desconhecidas” de 1ª Coríntios 14:19.
A narrativa
dos acontecimentos do primeiro Pentecostes cristão leva alguns a pensar que o
dom recebido nesse dia pelos discípulos foi o de terem podido, sem as terem
estudado, falar em línguas estrangeiras. O milagre teria sido esse de os
ouvintes, vindos de diversas partes do mundo e tendo diversas línguas, tivessem
ouvido a pregação do Evangelho em suas próprias línguas. Mas desde logo
observamos que não foi a pregação do Evangelho que foi feita nesse momento. O
espanto dos ouvintes levou-os a dizer o que fizeram os cristãos: Todos os temos ouvido em nossas próprias línguas falar das
grandezas de Deus. Actos 2:11 Fala-se
das grandezas de Deus com simples exclamações de júbilo, com palavras de
louvor, com gritos de aleluia. Se os ouvintes dos discípulos cheios do Espírito
Santo eram judeus e prosélitos, mesmo vindo de muitos lugares da terra eles
conheciam pelo menos duas línguas: o aramaico, a língua que se falava na
Judeia, língua derivada do hebreu, então circunscrita ao templo; e o grego
comum, a língua franca do Império Romano nesses dias. Aliás, basta ver que,
logo em seguida o apóstolo Pedro se pôs a pregar (então sim, houve pregação do
Evangelho) para o mesmo auditório de judeus e prosélitos e não usou senão uma
língua, que Lucas não diz qual foi, podendo ter sido o aramaico ou o grego. Barclay, um estudioso do Novo Testamento, crê que o chamado
“dom de falar línguas estranhas”, pelas razões já apontadas, não era necessário
no dia de Pentecostes, e diz: “Parece muito mais plausível que Lucas, um
gentio, confundiu o falar em línguas com o falar em línguas estranhas. O que
aconteceu foi que pela primeira vez na sua vida aquela multidão mesclada ouvia
a Palavra de Deus num modo que se dirigia directamente aos seus corações e que
eles puderam compreender” (25).
Estas
palavras de Barclay trazem-me à memória o testemunho
simples de um evangélico português que foi aos Estados Unidos na década de
1960. Ele era pregador leigo e tinha modestas habilitações mas estava tão
envolvido na evangelização que foi escolhido para integrar uma delegação
convidada pela Associação de Evangelização de Billy
Graham que se deslocou aquele país para assistir a um congresso em que a figura
central era o famoso evangelista. O modesto obreiro português não conhecia a
língua inglesa e não houve interpretação para português ou espanhol, pelo que,
em princípio, aquele bom irmão ficaria impossibilitado de compreender o que se
passaria no congresso. Mas quando Billy Graham
pregou, disse-nos o obreiro português com emoção, foi como se tivesse usado a
língua de Camões, tão profundamente a mensagem foi “percebida” e sentida pelo
pregador leigo português.
Será deste
tipo a explicação do que se passou no dia de Pentecostes? O facto é que não há
nenhuma outra passagem das Escrituras em que se fale de um “dom para falar
línguas estrangeiras”. Os missionários do mundo inteiro, para poderem comunicar
a sua fé a outros povos, têm de laboriosamente estudar as suas línguas. Os
cristãos conformistas dizem que o dom de falar línguas estrangeiras foi dado
nos tempos apostólicos pela grande necessidade que havia naqueles dias de levar
o Evangelho até aos confins da terra. Esse argumento não se baseia em nenhuma
afirmação bíblica e não tem muita lógica. Então no nosso tempo, em que o
Cristianismo defronta tantas dificuldades na difusão do Evangelho, não dava
jeito que Deus continuasse a dar aos seus pregadores a capacidade de, de um
momento para o outro, pregarem em chinês, numa língua da Índia ou em japonês?
No entanto, o Senhor, que tem poder para fazer isso e coisas ainda mais
prodigiosas, prefere que estudemos anos a fio até que possamos falar do
Evangelho noutra língua diferente daquele que aprendemos com nossas mães. Na
verdade, o Deus das magias desse tipo, que faz certas pessoas, de um momento
para o outro, saberem e fazerem coisas que o comum dos mortais tem de se
esforçar por durante anos para tais resultados, não é o Deus que se revelou em
Jesus Cristo. Esse, o verdadeiro Deus, trata o homem como um ser de alta
dignidade, livre para dizer sim ou não, e que tem de trabalhar para saber.
O fenómeno
cristão de falar línguas expressa-se, sim, como já dissemos, pela articulação
de sons que não são identificados com nenhuma língua conhecida. Mas é preciso
dizer que se têm contado vários casos em que, em reuniões de oração, alguém
ouviu um recado de Deus dito na sua língua, num ambiente onde a sua língua não
era conhecida e dito por pessoa que seguramente nunca a tinha estudado. Dennis
Bennett, o pastor anglicano nascido na Inglaterra mas radicado nos Estados
Unidos que iniciou na sua Igreja um movimento carismático, escreveu com sua
mulher, Rita: “Desde há dez anos, nós temos orado com numerosas pessoas para
que recebam a bênção do Pentecostes, e temos assistido a numerosas reuniões
carismáticas um pouco por todo o mundo. Nelas temos aprendido que tem havido
cristãos que falam em latim, espanhol, francês, hebraico, basco antigo,
japonês, aramaico, chinês mandarim, alemão, indonésio, dialecto chinês do Foukian, grego do Novo Testamento, inglês e polaco” (26).
Obviamente, a lista dos Bennett não é exaustiva, pois é de crer que com muito
mais línguas, incluindo a portuguesa, o fenómeno tem ocorrido. Não creio que os
Bennett sejam mentirosos e não creio também que Deus não tenha poder para fazer
alguém falar uma língua estrangeira que não estudou, mas pode, para muitos
casos, haver uma explicação puramente humana. É conhecido o caso de uma senhora
idosa, analfabeta, que em certos momentos, por exemplo, falando a dormir,
falava em hebraico, língua que nunca estudara, claro. Veio a descobrir-se que
na sua juventude fora criada em casa de um pastor que gostava à noite de dizer
os salmos naquela língua. No seu quarto, dormindo, a pequena criada ouvia, sem
ter disso consciência, e armazenava o conhecimento no inconsciente. Mas nem
tudo se explica tão facilmente.
Um dos casos conhecidos que não se pode
explicar foi o que teve como protagonista Jacob Rabinowitz,
um rabi descendente na 17ª geração de uma cadeia de rabis. Começou a ler o Novo
Testamento por curiosidade, e aos poucos foi sentindo abalada a sua fidelidade
ao Judaísmo, por ir percebendo paulatinamente que Jesus Cristo era o Messias
anunciado pelas escrituras. Atormentado pelo escândalo que seria a sua
conversão ao Cristianismo, Rabinowitz escondia em si
as convicções cristãs que se iam acumulando, e um dia, na sua angústia,
resolveu entrar numa Igreja Evangélica. Era uma Igreja de tipo pentecostal. A
certa altura, o pastor convidou os ouvintes que desejassem oração a virem à
frente e Rabinowitz foi. O pastor quis saber o teor
do seu problema, mas o rabi não quis revelá-lo. Vários irmãos vieram com o
pastor impor as mãos sobre o rabi e oraram, quase todos em simultâneo, como é
hábito entre esses irmãos. De súbito, o rabi ouviu claramente sair da boca de
um dos que oravam uma mensagem no melhor hebraico, dizendo-lhe: “Tive um sonho.
Tu, Jacob, filho do rabi Ezequiel, irás pregar às grandes cidades. Os que não
compreendem, vão entender porque tu, Jacob, filho do rabi Ezequiel, chegarás a
eles com o poder pleno do Evangelho de Jesus Cristo” (27).
Como explicar
este acontecimento? Quem preferir uma explicação de tipo científico, pode recorrer
ao conceito do “inconsciente colectivo”, de Carl Jung,
e concluir que cada pessoa participa do total conhecimento e de toda a
experiência da Humanidade, sendo que em determinados momentos, sem o uso da
vontade, nem do consciente, pode ir buscar a esse tesouro colectivo um saber
até ali totalmente alheio ao seu conhecimento. Mas acho melhor aceitarmos uma
explicação simples: os sons incompreensíveis da oração de quem fala em línguas
são usados por Deus, pelo Espírito, para transmitir a Sua mensagem a outro numa
língua que no grupo só ele conheça. Um homem “fala em línguas”, incompreensível
em princípio, mas Deus usa esses sons para que
outro ouça a mensagem na sua própria língua. Se nessa reunião onde o
rabi recebeu a mensagem estivesse alguém a gravar em fita o que se ia passando
é bem possível que não ficasse registado nada em hebraico, mas apenas os sons
incompreensíveis que o irmão deixara sair da sua boca.
Na verdade,
Deus pode falar de muitas maneiras. No verão de 1996, um convicto cristão
europeu teve um dia de viajar em serviço para um país africano. Era a primeira
vez que visitava aquele continente e a oportunidade poderia ser causa de grande
alegria se na véspera da partida não tivesse havido um problema com uma sua
neta, Noemi, de dois anos. Na primeira noite que passou numa pequena cidade de
África mal pôde dormir, preocupado com a neta. De madrugada, levantou-se e orou
pela sua menina, pedindo a protecção de Deus. Entretanto, a manhã aparecia,
cheia de sol, e então, ainda no banho, o avô ouviu um número grande de aves,
grandes como galinhas, cujo nome desconhecia, gritarem, felizes, talvez apenas
a anunciarem o novo dia. Mas nitidamente, sem deixar de perceber que eram
gritos de pássaros, que poderiam descrever-se em simples sons, o avô até então
inquieto, percebia esta mensagem: “A Noemi está bem! A Noemi está bem!”. Nos
quinze dias em que lá esteve, sem possibilidades de contacto com sua filha, mãe
da Noemi, aquele homem dedicou-se tranquilo aos seus afazeres porque no cântico
daquelas aves todas as manhãs ele ouvia o Senhor dar-lhe a palavra da
tranquilidade. Disparate? Misticismo desarrazoado? Pensar assim é não ter em
conta os espantosos mistérios de Deus e da mente humana. De qualquer maneira,
não aconselhamos ninguém a tirar conclusões precipitadas deste episódio e
comece a tentar interpretar todos os sons que ouve... Deus quando fala é muito
claro, mas se um avô inquieto encontrou paz deste modo (que, note-se, não
significou desprezar a Bíblia), não veio por aí mal algum ao mundo, nem a sua
convicção podia servir para especular e tirar dividendos. Só citámos este caso
para ilustrar a razoabilidade da hipótese de um imigrante chinês, desamparado,
poder receber no “falar línguas” de, por exemplo, um cristão português
ignorante da língua chinesa uma mensagem de Deus.
Isto não quer
dizer que na glossolália não haja também casos de
fraude, de pessoas que, por exemplo, fingem falar línguas para se introduzirem
num grupo carismático, ou para não serem descriminados pelos seus irmãos na
comunidade, pondo-se a articular sons
sem sentido, simulando uma língua estranha, sem a menor fé em Deus.
Trafulhas há em toda a parte. Os crentes não devem ser ingénuos e aceitar tudo
o que alguém fizer ou disser só porque esse alguém se diz crente ou tem mesmo o
título de pastor. É preciso ver se há coerência na pessoa: se os seus actos em
geral correspondem ao que diz crer – e se o que faz e crê é a favor dos homens
em geral, principalmente dos mais pobres e dos mais frágeis. Se alguém diz ter
uma visão ou um dom do Espírito Santo e é interesseiro e individualista, é de
duvidar e, em princípio é melhor não tomar a sério. Há um critério simples a
ter em conta: Quem faz o bem é de Deus; mas quem faz
mal não tem visto a Deus. 3ª João 1:11 Temos
ouvido falar de muitos casos de fraude. Mas reconhecer a possibilidade da
fraude não justifica negar que o Novo Testamento fale do dom das línguas, nem
honestamente se pode negar que tem havido muitos verdadeiros cristãos e cristãs
manifestando esse dom. Se os cristãos usarem o Dom de falar línguas apenas na
devoção privada, é evidente que o problema da fraude perde a sua pertinência.
Muitos negam
a utilidade da glossolália e recusam-se a procurar
essa experiência, argumentando com a própria Primeira Epístola aos Coríntios.
Reconhecem que, efectivamente, na Igreja de Corinto havia quem “falasse
línguas”, muitos até, pelos vistos, e percebe-se claramente que São Paulo não
proibiu tal prática. Muitos cristãos crêem que sim, senhor, houve glossolália na Igreja primitiva, mas isso acabou quando
acabou o período apostólico. Já vimos que tal afirmação não tem fundamento
bíblico. Outros acham que São Paulo não proibiu este fenómeno por estratégia,
pois seriam tantos a praticá-la e a dar tanta importância a essa prática, que
seria inútil proibi-la e o melhor seria, como o fez, controlá-la. Se não
puderes vencer o teu inimigo, junta-te a ele. O apóstolo põe então condições
para a prática da glossolália: que em cada reunião
haja apenas duas, no máximo três, pessoas que “falem em línguas”. E sempre com
intérprete (28) 1ª Coríntios 14:27
Além disso, Paulo realça a pregação (profecia) sobre o falar línguas e o amor sobre todos os dons. Falar línguas, também
dito “falar a língua dos anjos”, pode ser importante, mas sem amor nada será,
diz Paulo. 1ª
Coríntios 13:1 O amor é eterno e nunca falha – mas as línguas cessarão 1ª Coríntios 13:8.
Quem pode
negar a justeza deste argumento? Obviamente, que o falar línguas é, no conjunto
do plano de Deus, inferior ao amor. Já vimos como o amor está associado à fé e
sabemos como o Salvador respondeu ao homem que quis saber qual é a essência do
relacionamento com Deus: Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o teu pensamento. Este é o
primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este (do mesmo valor que este) é: Amarás o
teu próximo como a ti mesmo. Mateus 22:37/39
Todos concordaríamos com a afirmação de que falar línguas e não ter amor a Deus
e ao próximo de nada vale.
O amor é
eterno e o falar línguas existirá apenas enquanto os crentes caminharem nesta
peregrinação para a plenitude do Reino de Deus. É verdade que tem havido um
número por certo imenso de cristãos exemplares dos quais não consta que tenham
tido a experiência da glossolália. Um grande número
dos que já dormem no Senhor e esperam a ressurreição dos mortos não ouviu falar
de falar línguas nem a experimentou mas nem por isso deixou de merecer ser
chamado povo fiel. Neste contexto devem reconhecer-se três coisas:
1ª - Que não
é correcto ver nas palavras de São Paulo na citada epístola apenas estratégia
para controlar a glossolália, embora, naturalmente,
indique condições para evitar excessos;
2ª - Que
Paulo foi claramente um defensor dessa prática e ele próprio falou em línguas e
desejou que todos os cristãos o fizessem 1ª Coríntios
14:5/18, não se encontrando nos seus escritos qualquer indício de que
previa o fim deste dom na chamada era apostólica. O dom das línguas acabará, é
verdade, mas no fim dos tempos, o que não acontece com o amor;
3ª - Que é
correcto reconhecer que em parte nenhuma das Escrituras se coloca o falar
línguas como uma prática indispensável a cada cristão. Ninguém deixa de ser
salvo se não falar línguas.
A estes três
pontos acrescentarei um outro: a glossolália pode,
com os mesmos benefícios, ser restringida ao uso privado dos crentes. Quer
dizer: uma congregação, quando se reúne para prestar culto público a Deus,
fá-lo-á usando apenas elementos que possam ser entendidos por todos, mesmo
pelos não crentes que estejam presentes. Mas cada crente, na sua oração
privada, em sua casa, ou noutro lugar discreto, usará o falar em línguas como
elemento de maior aproximação com Deus e para sua própria edificação. Vários estudiosos do Novo Testamento têm
concluído da leitura da Primeira Epístola aos Coríntios que o próprio São Paulo
não falava línguas em público mas só em privado. É essa, por exemplo, a opinião
de Jean Héring, que foi não há muitos anos um dos
mais apreciados professores da Faculdade Protestante de Estrasburgo. Comentando
os versos 18 a 20 do capítulo 14 dessa epístola, 1ª Coríntios
14:18/20 Héring escreve: “O apóstolo defende-se
uma vez mais contra certas interpretações destas exortações. Ele despreza tão
pouco o falar em línguas que o pratica ele próprio, mas não nas assembleias. Aí
ele prefere pronunciar cinco palavras em língua compreensível. O número cinco
parece ser símbolo de “pouco”, como a nossa expressão uma meia dúzia” (29).
Usar o falar
línguas em privado pode ser, em determinadas circunstâncias, o critério mais
aconselhável. Por exemplo, quando a sua sobre-valorização
se tornou causa de discussão e divisão, como estaria a acontecer em Corinto. Ou
quando se vive num meio em que o uso do falar línguas for visto como uma
extravagância tal que leva os simples simpatizantes da pregação cristã ou os
curiosos a escandalizarem-se. Ou ainda, no mundo moderno, quando o cristão está
integrado numa igreja formalista, onde o falar línguas se tornasse fonte de
perplexidade, de suspeita e perturbação. Dennis Bennett começou a interessar-se
pelos problemas relacionados com o “enchimento do Espírito Santo e o falar
línguas numa conversa com um jovem casal da sua igreja episcopal que, apesar de
falarem línguas em privado, nunca o tinham feito durante os cultos, justamente
porque o formalismo dessa igreja seria perturbado. O uso deste dom apenas em
privado pode ser também aconselhável para os cristãos ainda tímidos, que se
embaraçariam se chamassem a atenção sobre si. Neste caso seria necessário ir
usando o dom em privado e esperar em Deus até que o Seu Espírito inspirasse o
seu uso em reuniões. Pode mesmo acontecer que o Espírito inspire alguns
cristãos a nunca falarem línguas em público, mas só em privado. O importante é
que usando-se o dom, mesmo apenas em privado, ele edifica o crente, consolida a
sua fé, aumenta-lhe a sua experiência espiritual, e torna-o, portanto, mais
apto para servir a Deus e ao próximo.
Capítulo
VII – ORAREI NO ESPÍRITO
Uma médica de
pouco mais de 50 anos foi apresentada a um pastor evangélico e disse feliz:
- Também sou
evangélica!
Mas quando
soube de que denominação era aquele pastor, observou:
- Calculo que
não esteja muito de acordo com a minha denominação pentecostal, pois nela
realça-se muito o dom de falar línguas.
- Bom, não tenho
nada contra o dom de falar línguas - respondeu o pastor. No que, aliás, estou
com São Paulo que, não só não rejeitou o uso desse dom, como afirmou mesmo que
também o usava. Ele disse aos Coríntios: “Orarei com o espírito, mas também
orarei com o entendimento”.
Tiveram então
uma longa e interessante conversa, através da qual a médica confessou que o
tema do dom das línguas vinha desde há muito a ser um motivo de grande confusão
espiritual para ela. Nascida numa família evangélica de corrente pentecostal,
desde jovem assistira, em reuniões na sua igreja, a manifestações que eram
designadas de dom das línguas, mas nem seus pais nem ela própria alguma
vez se viram canais de tal dom. Em jovem
chegara à conclusão que se tratava de um exagero de alguns que queriam chamar a
atenção sobre eles. Como estudara alguma coisa de psicologia, achava que
noutros o que chamavam de falar línguas eram êxtases próprios de quem
experimentara certas emoções. Mas chegou a pensar várias vezes abandonar essa
denominação e passar a cultuar numa igreja tradicional, das que não falam nem
buscam “dons espirituais”. Chegou mesmo a participar em cultos em duas
denominações diferentes, uma contrária ao baptismo de crianças e outra
praticando esse tipo de baptismo – mas num e noutro lado achou o culto
extremamente vazio, monótono, sem alegria, e regressou à denominação de origem.
Onde se casou e onde pôs os filhos a frequentar a Escola Dominical. Mas ali
estava integrada “apesar do dom das línguas”, que continuava a achar sem
sentido e a recear que na maior parte dos casos não passasse de uma fraude.
- Pode haver
casos de fraude – disse-lhe o pastor que lhe fora apresentado, chamemos-lhe
pastor Gabriel – mas há, sem dúvida nenhuma, quem seja muito sincero.
Convenci-me da verdade do falar línguas quando comecei a conviver com crentes
de outras denominações que tinham esse dom. Seria exagero considerar todos
mentirosos ou todos idiotas enganados. Estudei o assunto melhor na Bíblia e
acabei por aceitar esse ensino.
- Então o
pastor Gabriel crê no dom das línguas? Mas a sua denominação...
- Digamos que
a nível oficial a minha Igreja não inclui o dom das línguas no seu ensino. Mas
por toda a terra há crentes desta denominação que têm o mesmo conceito desse
dom que tem a sua denominação pentecostal. Há presbiterianos, anglicanos,
baptistas, metodistas e católico-romanos que passaram pela experiência do
“baptismo do Espírito Santo” e falam línguas.
- Tem de me
explicar então como é que se justifica esse dom de falar línguas
Nem a médica
nem o pastor naquele momento estavam com tempo disponível para essa explicação
e marcaram um encontro no consultório
médico para dois dias depois. Esse encontro realizou-se e decorreu num ambiente
tranquilo, com a Bíblia na mão. Mais tarde a médica pensou que anos antes um
pastor da sua própria denominação tinha dito mais ou menos a mesma coisa que o
pastor Gabriel, mas este teve a vantagem de pertencer a uma denominação que a
médica achava objectiva neste tema, o que a predispôs a ouvir sem preconceito o
que este segundo pastor tinha a dizer sobre o dom das línguas.
Começou o
pastor Gabriel por mostrar justamente os versículos que disse considerar a
chave deste assunto: 1ª Coríntios
14:14/15: Se eu orar em língua estranha o meu espírito ora, mas o meu
entendimento fica sem fruto. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também
orarei com o entendimento; cantarei com o espírito mas também cantarei com o
entendimento.
Chamou então
a atenção para um aspecto que muitas vezes escapa aos leitores destes
versículos, chamada de atenção que eu próprio fiz também neste livro páginas
atrás: o apóstolo contrapõe ao falar no espírito o falar no entendimento. E
note-se que diz “o meu espírito” e “o meu entendimento” (v. 14). Não é do
Espírito de Deus que fala mas no dele, Paulo, homem. Quando um cristão fala
línguas estranhas não é no Espírito de Deus que as fala mas no seu espírito. A
médica suspeitou durante muitos anos de fraude ou de fingimento naqueles que
falavam línguas na igreja, por ter a
intuição de que o que esses irmãos estavam a fazer vinha deles próprios, era de
sua iniciativa e não do Espírito de Deus. Mas a verdade surpreendente é que o
falar línguas é isso mesmo: «é algo que vem do nosso espírito e não do Espírito
de Deus!» Na mesma epístola e no mesmo capítulo, versículo 19, o apóstolo diz: Eu antes quero falar, na igreja, cinco palavras na minha
própria inteligência, para que possa também instruir, do que dez mil palavras
em língua desconhecida. Note-se aqui a palavra “inteligência”, sinónima
do “entendimento” antes referido, e,
sobretudo atente-se na palavra “quero”, que está subentendida na segunda parte
da frase. Ou seja, Paulo diz que antes «quer» falar cinco palavras que sejam
inteligíveis do que «quer» falar dez mil palavras em língua desconhecida.
Portanto, fica claro que o falar línguas estranhas ou desconhecidas está no
querer da pessoa, tal como está no seu querer falar na sua própria língua. Não
tem fundamento bíblico supor-se que o falar línguas acontece apenas quando Deus
quer, inesperadamente, contra a
nossa vontade. É claro que Deus é o Todo-Poderoso e pode sempre o que quer, mas
o que se está a dizer é que, de acordo com a Bíblia, o falar línguas não é algo
que acontece como um milagre, totalmente dependente da vontade de Deus, mas é
da vontade de Deus que o crente possa usar este dom sempre que ele, crente,
quiser. É um prodígio, uma coisa espantosa, mas não é um milagre. Em termos
simples, também dar um salto de 5 metros é um prodígio, mas não é um milagre.
Milagre é aquilo que ultrapassa as leis da natureza. O falar línguas é algo da
nossa vontade.
- Justamente
uma coisa que me escandalizou em alguns cultos – comentou a médica – foi ver
diáconos ou mesmo pastores do púlpito tentarem controlar irmãos que estavam a
falar línguas. Cheguei a ouvir um diácono mandar calar uma irmã que estava
nesse exercício.
- Há lógica
nisso. – respondeu o pastor Gabriel - Quem fala em línguas usa a sua vontade e
pode enganar-se e usá-la mal, usando-a enquanto o pastor está a pregar, por
exemplo, ou quando se ia escutar um texto da Sagrada Escritura. Imagine,
doutora, que enquanto um pastor pregava havia um crente que se lembrava de
pôr-se a cantar um hino. Seria errado providenciar para que o cantor se
calasse?
- Claro que
não. Era uma questão de ordem.
- Pense o
mesmo em relação ao falar línguas. Não esqueça: falar línguas é uma opção
humana. Falamos línguas no espírito quando, no contexto da fé em Deus por Jesus
Cristo, articulamos sons que não fazem parte da nossa língua nem de nenhuma
outra que conheçamos. Se dizemos uma frase compreensível, falamos na nossa
mente; se dizemos uma frase não compreensível, é no espírito que falamos. Eu
digo “Deus é o nosso Criador”. Digo-o como? Usando a minha mente. Tenho uma
explicação para cada palavra desta frase. Estou, portanto, a falar na mente.
Agora eu digo, por exemplo: “naste silo bratino”. Nenhum destes conjuntos de sons tem significado
para mim – e julgo que também não para a senhora doutora. Falei, neste caso, no
espírito.
- Mas o que é
que o pastor quis dizer com essa frase “naste silo bratino”?
- Não quis
dizer nada. Se quisesse dizer alguma coisa, isto é, se quisesse dizer uma frase
com sentido inteligível, mesmo que fosse eu a inventar um significado para essa
frase, eu estaria a falar na mente e não no espírito. Se alguém copiar estes
sons que eu disse e os repetir, estará a dizer para si mesmo “isto tem um
sentido, embora eu não saiba”, logo está a usar a sua mente – e dizendo os
mesmos sons não fala no espírito. Agora, senhora doutora: diga uma frase em
português, por favor.
- Uma
frase...? Pronto, digo esta: “São dez horas da manhã”.
- São mesmo.
Se fossem onze horas, estaria errada mas continuaria a ser uma frase
compreensível, portanto, produto da sua mente. Agora diga uma frase numa língua
que não conheça.
A médica
olhou o pastor embaraçada.
- Se for numa
língua que eu não conheça... como posso dizê-la? Posso falar em francês, em
inglês...
- Mas essas
línguas não lhe são desconhecidas. Se disser “ Today is Friday” ou “Aujourd’hui est Vendredi” a senhora está a
tirar do arquivo da sua inteligência o que aprendeu nas aulas de inglês
e de francês como se diz “hoje”,
como se conjuga o verbo “ser”,
e este dia da semana, “Sexta-feira”.
Usará o seu entendimento... Há momentos disse, em português, que são dez horas
da manhã porque pensou que são realmente essas horas. Podia dizer “são sete
horas da tarde”, mas falaria ainda pelo seu entendimento, pois estaria a dizer
algo que sabe ser falso. O que lhe peço é que deixe os seus lábios articularem
sons que absolutamente não faz ideia nenhuma do que significam.
- Mas é
absurdo! Dizer algo que em absoluto eu não entenda nada é dizer nada. Mas
pronto, vou dizer, sei lá, “abritarina deléria ic alutânia”.
Riu-se dos
sons que produziu. O pastor também achou graça e asseverou:
- A irmã
acaba de falar línguas. Não falou no seu entendimento, falou no seu espírito,
que não é o entendimento.
- Mas o que
disse foi inventado por mim! Não é uma língua, não comunica nada.
- É isso que
na Bíblia se chama “falar línguas”... Se a Bíblia dissesse: “Faz com a tua voz
uma música de louvor a Deus” – a irmã também inventaria ou criaria e não seria
pecado. Ela diz que o crente deve “falar línguas” e somos nós que as falamos.
Portanto, se quer, chame a isso inventar.
- Mas o que
querem dizer estes sons?! – perguntou a médica. - Eu não quis dizer nada com
eles! E por certo Deus também não quis dizer nada com eles!
- Em relação
a Deus querer ou não dizer algo com esses sons não sei e julgo que ninguém
sabe. Mas em relação à irmã acho que realmente não quis mesmo dizer nada com
esses sons. Exacto. Na glossolália não queremos dizer
nada. Se quiséssemos (e repare no verbo que estou a usar, o verbo querer, como
são Paulo), dizer algo inteligível não era línguas estranhas que estaríamos a
falar, mas o que a doutora quis foi dizer algo ininteligível, fora do
entendimento. Neste caso a irmã disse sons ininteligíveis e provavelmente não
os dedicou a Deus, mas se continuar e no momento em que articula esses sons
tiver o seu pensamento em Deus, em Jesus Cristo, no Espírito Santo, estará, de
facto, a expressar o seu amor. Nunca lhe aconteceu, quando, por exemplo, tinha
um seu filho ao colo, pôr-se a dançar com ele e a cantar sons sem sentido? Do
género de cantarolar “bábábá! Lélilili!”,
coisas assim? Tais palavras não chegavam para exprimir a felicidade que sentia
nesse momento. A glossolália em parte acontece por
causa da insuficiência das nossas línguas de dizerem o amor de Deus.
- O problema –
disse a médica num tom lento – é que se o falar línguas estranhas tem de ver
com a vontade, com o querer daquele ou daquela que fala, então não se pode
falar em “dom espiritual”. Não tem nada de ver com Deus, com o Espírito de
Deus, mas é apenas humano.
O pastor
ficou um momento em silêncio a olhar a médica, como se não esperasse por aquele
argumento, e depois comentou:
- Um dom
espiritual não tem forçosamente de ser algo onde a nossa vontade, o nosso
querer, não intervém. Repare: quando São Paulo diz: Segui
o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de
profetizar 1ª
Coríntios 14:1, está a incluir o nosso querer no processo da obtenção dos
dons. Procurar é usar a nossa vontade. Agora vou esforçar-me, por obter os
dons. E mais: Paulo começa por pôr em destaque o dom da profecia – mas o que
entendemos por profecia? O adivinhar o futuro? Os estudiosos vêem neste dom o
mesmo que a pregação. Ora quando um pregador vai falar numa assembleia, ele não
se limita a abrir a boca e a deixar sair um discurso que Deus lá do céu
enviasse. Se assim fosse actuaria como dizem que actuam os “mediuns”
do espiritismo. Os “mediuns” dizem que não têm nada
de ver com o que lhes sai da boca. Nós rejeitamos o Espiritismo e dizemos que o
“profeta” cristão não é um “medium”. Ele constrói os
seus dos seus pensamentos a partir da Palavra de Deus, e prepara previamente o
que vai dizer no seu discurso. Usa, pois, a sua vontade e a sua mente, escolhe
as palavras mais apropriadas, as melhores ilustrações, o plano mais inteligente
de expor o seu tema.
- E ainda
assim pode falar-se do Dom da pregação?
- Claro. Se o
esforço for por anunciar a Palavra de Deus. Até a nossa fé é dom!
A médica
fitava o pastor com olhos espantados.
- O pastor
não está a simplificar demais o assunto? Se falar línguas é apenas articular
sons para glória de Deus, porque é que nunca ninguém mo disse? E se é assim,
afinal para que é que serve o falar línguas?
- Serve para
cada um dar graças a Deus. 1ª Coríntios 14:17
mostra que quem fala em línguas dá graças a Deus. Se a irmã, como o fez há
momentos, falar em línguas diversas vezes ao dia, sentirá que o seu louvor a Deus
é mais vivo. Aquilo que não sabe expressar em palavras de entendimento,
expressará no espírito. E serve para algo também muito importante, que é
“esvaziar” o nosso pensamento para que o Espírito Santo nos encha. Os místicos
dizem-nos constantemente que para termos a comunhão com Deus, aquilo a que
chamamos “a experiência do divino”, é preciso suspender a função de pensar – o
que é extremamente difícil. Quanto mais queremos não pensar, mais ideias nos
vêm ao espírito. Mas essa suspensão consegue-se facilmente quando se fala no
espírito. As ideias, os pensamentos, são como um bando de corvos que querem
poisar no nosso terraço. Mas se estivermos com uma mangueira a lançar um jacto
de água no terraço os corvos afastam-se. Se na glossolália
não se expressa nada compreensível, é lógico que enquanto o crente exerce esse
dom não pensa em nada. Tente não pensar em nada e ficar em silêncio. Talvez
alguém consiga isso, mas em geral, quando nos calamos pensamos em alguma coisa.
Contudo, se a pessoa que se cala começar a falar línguas, a dizer esses sons inintelegíveis, então não pensa em nada – e o Espírito não
encontra oposição. A metáfora dos corvos é perigosa porque se pensará no
Espírito como uma pomba e as pombas também se afastam como os corvos, mas de
facto o Espírito “desce” sobre o crente quando os corvos dos pensamentos se
afastam, e o falar no espírito é o jacto de água. É por isso que muitas
correntes cristãs acham que só há baptismo do Espírito Santo quando a pessoa
fala línguas. Compreende-se que se possa tirar essa conclusão. A verdade
experimentada é que quando o Espírito Santo assalta o coração do crente este
não é capaz de dizer coisas compreensíveis, as palavras inteligíveis não lhe
chegam aos lábios e, se tenta falar saem sons inexpressivos.
Quanto à
suspeita da médica de que o pastor estaria a simplificar, ele negou. O que
acontece é que a tendência tem sido a de complicar este tema, a ponto de se
fazer dele um tema de controvérsia.
- Mas não é
mais lógico que demos graças a Deus na nossa própria língua, de acordo com o
nosso entendimento?
O problema é
que a língua humana, qualquer língua humana, em certos momentos é insuficiente
para expressar o que sentimos. A alma humana tem muitas vezes o sentimento de
que toda a forma de expressão é insuficiente para falar do amor, incluindo ou
sobretudo o amor a Deus. Então, no arrebatamento da fé, sentimos que é melhor
trocar as palavras inteligíveis, e susceptíveis de traírem os nossos
sentimentos, por sons e gemidos inexprimíveis. Romanos 8:26/27
“Sentimos que é melhor”: ou seja decidimos dentro de nós, queremos, falar em
línguas.
Chegara o
momento de a médica atender uma paciente e o pastor propôs que terminassem com
uma oração “no entendimento”. Ambos curvaram as cabeças e o pastor pronunciou
uma breve acção de graças por aquele encontro e o simples estudo que haviam
feito. Depois do amén, Gabriel manteve um momento de
silêncio e deixou sair da sua boca uma breve oração no espírito. Em seguida, a
médica disse também uma melodiosa frase incompreensível.
Ao
despedirem-se, à porta do gabinete, a médica estendeu a mão sorrindo:
Este estudo
vai mudar a minha vida. Obrigada.
.
Lendo o relato
deste encontro, alguns poderão concluir que, afinal, a glossolália
é aqui desvalorizada, colocada a nível de brincadeira de criança. Lembro-me de
um dedicado ancião de uma igreja que citava escandalizado o conselho dado por
um pregador carismático: “Deixe a sua boca dizer os sons que quiser, por
exemplo, bla paré mali, e isso é falar línguas!”. Justamente o que o pastor
acima referido aconselhou à médica a fazer. Creio que esse conselho é correcto.
No site da internet das Igrejas presbiterianas brasileiras há vários artigos
sobre o dom de línguas e num deles encontramos este período não assinado, não
sei se por modéstia do autor se por ser artigo colectivo: “A glossolália
não é um idioma no sentido comum, apesar de ser ao mesmo tempo auto-expressão e
comunicação - um evento vocal desejado e bem vindo em que, num contexto de
atenção a realidades religiosas, a língua opera segundo o temperamento da
pessoa, mas independente da sua mente, de maneira comparável à linguagem de
fantasia das crianças (...) e dos gorjeios de uma pessoa debaixo do chuveiro ou
na banheira” (30). Esta afirmação vem na sequência da análise que o autor
anónimo desse artigo faz do pensamento de J.I. Packer, no seu livro “Na Dinâmica do Espírito” (31), de onde cita: “O acto cristão de falar
línguas é feito tão objectivamente quanto qualquer outro acto de falar,
enquanto a pessoa está em plena posse e controle da sua consciência e vontade,
e não em qualquer estado anormal da mente, seja ele qual for”. Adiante cita
ainda Packer dizendo: “Por vezes a pessoa que fala
línguas sente uma singular falta de emoção enquanto está falando em línguas”.
Porque
havemos de recear ser infantis pondo-nos, por momentos, na nossa adoração
privada, especialmente, a articular sons incompreensíveis para louvar Deus, se
esse estado nos liberta, nos exulta, e dá-nos mais força para avançar na
maturidade? Porque há-de o lúdico ser temido pelos cristãos, se é ele que
melhor nos prepara para tomar cada dia a cruz?
Capítulo
VIII – TODAS AS COISAS LHES ERAM COMUNS
Uma das
características distintivas da Igreja do livro de Actos, que vivia intensamente
a experiência do divino, era a excelente relação que os crentes tinham uns com
os outros, a ponto de partilharem os seus bens materiais. Nos nossos tempos, os
cristãos que se interessam especialmente por questões como a da vida na
plenitude do Espírito Santo são suspeitos de negligenciarem na sua relação com
os irmãos e, sobretudo, na sua preocupação pelas questões sociais e políticas.
O movimento pentecostal e carismático é por vezes apontado como uma forma de
alienar cristãos dos problemas sociais e políticos – e é evidente que membros
das igrejas que não se envolvem nesses problemas envergonham o nome de Cristo.
Não se pode
negar que essas suspeitas são por vezes justificáveis, pois não é raro
verificar que os crentes ditos muito “espirituais” tendem a desinteressar-se
pelo mundo exterior à Igreja. O que é tão errado como é errada a atitude dos
que se contentam com um Cristianismo activista suposto como principal dever dos
cristãos, a que chamam “construir o
Reino de Deus aqui na terra”. Na verdade, os cristãos têm como dever anunciar e
viver o Reino, mas sem esquecer que ele é, antes de tudo reinado, soberania de Deus, e, portanto, não é nada que
possamos criar com os nossos esforços mas algo que temos de reconhecer. Não
quer dizer que não seja na história que
o Reino de Deus se manifesta e tem as suas vitórias, mas ele não é “obra das
nossas mãos”. A acção social dos cristãos, no entanto, é indispensável. Nos
tempos de Hitler, muitos cristãos sentiram que não deviam “sujar as mãos” com
as questões sociais e políticas por suporem que o que realmente lhes
interessavam eram as “últimas coisas” (escatologia), fundamentalmente, o Reino
de Deus, que eles entendiam como algo totalmente exterior ao mundo. Mas o
teólogo Dietrich Bonhoeffer (32) mostrou que para nos
interessarmos pelas últimas coisas temos de defender firmemente também as
“penúltimas coisas”, que são as realidades em que vivemos. Portanto, uma
verdadeira espiritualidade (e Bonhoeffer era um
cristão de grande espiritualidade) implica um sincero envolvimento nos esforços
por um mundo melhor, mais justo, mais humano. Como se pode pregar o Evangelho a
homens e mulheres a quem são recusados os meios de dignidade para o poderem
ouvir?
Nos últimos
anos, alguns autores têm chamado a atenção para o facto de haver em muitos
cristãos sinceros o que chamam “feridas interiores”(33) que os inibem de se
amarem a si mesmos e portanto de cumprirem integralmente o preceito de Jesus,
que citei páginas atrás: Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, e de toda a tua alma e de todo o teu pensamento. Este é o
primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Mateus 22:34/40
Se uma pessoa, por causa dos traumas interiores, não se ama a si mesma, como
pode amar o próximo como a si mesma? E se não ama ao próximo, a quem vê, como
amará a Deus, a quem não vê? 1ª João 4:20/21
Cristãos com “feridas interiores” são pessoas como uma mulher a que chamaremos
Carla. Nasceu numa família muito ligada a uma igreja, quase fanática, mas aos
seis anos viu uma cena muito condenável protagonizada pelo seu próprio pai.
Essa cena marcou-a profundamente, e Carla cresceu sem nunca ousar falar com
ninguém sobre o assunto. Manteve-se na igreja na sua juventude e entrou na
idade adulta reivindicando-se com cristã e cristã de ideias avançadas, mas de
uma grande insegurança psicológica. Estava continuamente a pôr em ridículo
atitudes e crenças de cristãos conservadores – justamente a corrente a que
pertencia a sua família. Envolvendo-se em muita actividade social, ela sabia,
no entanto, que estava longe de experimentar verdadeiro amor pelas pessoas. Só
depois de desabafar com um pastor amigo é que
começou a reconciliar-se com a vida, que é reconciliar-se com Deus.
Referimos este caso apenas para ilustrar como, sem culpa do crente, que será um
cristão sincero, este, no entanto, pode estar como um pássaro de asas feridas
que não pode voar. A experiência de mais de trinta anos de pastorado têm-me
mostrado que as “feridas interiores” podem levar muito tempo a ser saradas mas também
podem ser saradas instantaneamente, se a pessoa toma consciência do que
significa “entregar o seu corpo como sacrifício vivo”. Pessoas com depressão,
causada a maior parte das vezes por feridas interiores vindas da infância,
encharcam-se em medicamentos e gastam dinheiro e tempo de volta de médicos, mas
muitos pastores e padres temos conhecimento de casos em que a depressão
encontrou cura no aprofundamento da experiência da fé, quando o crente aprendeu
a aceitar o perdão de Deus e aprendeu a perdoar a quem o ofendeu. Lytta Basset, admirável teóloga a
que já nos referimos, tem-se ocupado principalmente desta questão das feridas
interiores, causadoras de tanto sofrimento. E é interessante registar que um
psicólogo português, Carlos Lopes Pires, publicou recentemente um estudo com
este título e tese: “A Depressão Não é
Uma Doença”, defendendo que os
medicamentos não só não curam a depressão como podem mesmo agravá-la. Na
opinião deste especialista, doutorado pela Universidade de Coimbra, a depressão
é um desarranjo emocional que deve ser tratada com psicoterapia, pelo diálogo.
Estou convencido de que a maioria dos que praticam a cura de almas ou conselho
pastoral concordarão com essa conclusão.
Seja a ferida
interior resultado de um pecado nosso ou de o pecado de outro contra nós (e a
quem continuamos a não perdoar), se nos entregamos totalmente a Cristo,
aceitando o Seu total perdão e perdoando conscientemente àqueles que nos ofenderam, recebendo também a
plenitude do Espírito Santo, somos curados dessas feridas que nos inibiam de
viver plenamente a gloriosa liberdade de filhos de Deus. Há um hino do velho
“Salmos e Hinos” que diz: “Tudo, ó Cristo, a ti entrego”. O que Cristo quer
que, acima de tudo, nós pensemos enquanto cantamos esse hino é no que faz parte
da nossa vida, incluindo a memória do mal que fizemos e do mal de que fomos
vítimas. Entregamo-nos totalmente a Cristo e vivemos totalmente no Espírito de
Cristo.
Muitos
membros das Igrejas oriundas da Reforma são, indubitavelmente, pessoas muito
bem intencionadas e têm um alto sentido da responsabilidade dos cristãos na
criação de um mundo de irmãos e de irmãs. Procuram dar o seu apoio a todos os
que lutam contra as injustiças sociais e comprometem-se em movimentos cívicos.
Mas não podemos esquecer que para se criar “um mundo de irmãos e de irmãs” é preciso tornar bem claro que precisamos de
encontrar o Pai – e o Pai só o podemos encontrar através de Jesus, como está
escrito: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por
mim”. João 14:6
Os homens e as mulheres precisam de nascer de novo, do Espírito, e esse
nascimento só pode acontecer se abrirem a porta da sua vida Àquele que lhes é
anunciado pela pregação João 5:24 As boas
intenções dos homens não podem mudar nada da sua natureza. Os cristãos devem
dar toda a sua cooperação possível no combate às injustiças existentes no
mundo, e devem também cooperar com Deus na evangelização do mundo – mas não
poderão fazer isso a menos que eles próprios tenham uma profunda e verdadeira
experiência do divino. Uma mulher deixou de assistir aos cultos da sua igreja
dizendo: “É um perder tempo. Fala-se, fala-se, mas não fazemos nada”. Passou a
acompanhar grupos activistas que procuravam ajudar pessoas com problemas. Mais
tarde limitava-se a praticar pequena caridade e quando se convenceu de que as
injustiças do mundo não se resolvem com a caridadezinha, passou a viver do emprego
para casa e da casa para o emprego, a envelhecer numa vida vazia de sentido. É
possível que tivesse razão quando achava que na sua antiga igreja se falava
muito e nada se fazia – mas quem sabe se discutisse o assunto com outros
crentes juntos encontrassem projectos para realizar. E se não: porquê ficares
numa congregação inactiva, se há outras que precisam da tua ajuda? Sobretudo,
antes de criticar ou debandar convém que a pessoa se questione sobre a sua
ligação a Jesus Cristo. Se o Espírito de Cristo habita uma vida, Ele inspira o
que fazer, dá sentido à vida e comunica alegria.
É um mau
sinal quando numa congregação as reuniões de oração são as menos frequentadas.
Uma congregação com cem pessoas no culto de Domingo tem quinze pessoas na
reunião de oração? Essa congregação está muito fraca, tão fraca
proporcionalmente como se uma congregação com trinta participantes no culto de
Domingo tivesse apenas quatro pessoas na reunião de oração a meio da semana. A
reunião de oração é o termómetro da vida interior de uma comunidade. Se há
oficiais da igreja, professores de Escola Dominical, membros de comissões
importantes que por princípio não estão nas reuniões de oração, a direcção deve
ser difícil, o relacionamento pouco feliz. Sabe-se que muitas reuniões de oração
são extremamente aborrecidas, com orações longas, repetitivas, orgulhosas, sem
ligação aos problemas, cheias de pedidos, mais pedidos e ainda mais pedidos,
feitos como requerimentos no funcionalismo público, onde o “Pede deferimento” é
substituído por um formal e literal “Em nome de Jesus.
Amén”. Com reuniões desse tipo, não é de
esperar que haja muita participação – e com pouca participação na reunião de
oração, pode haver serviço de caridade aos pobrezinhos mas não haverá profunda
consciência da responsabilidade cristã na luta por um mundo mais justo.
A experiência
da recepção do Espírito Santo fará mudar a opinião de oficiais da congregação,
professores da Escola Dominical e outros responsáveis acerca da oração. Da
oração privada, em suas casas, nos seus empregos, ou em qualquer outro lugar, e
a da oração comunitária. É claro que isso implica também uma elevada opinião e
um elevado uso da oração pelos próprios pastores. E quando uma congregação ora
a sério e não faz apenas formais orações muita coisa vai mudar nela – incluindo
a sua preocupação pela justiça social. O perigo, real, de os cristãos que cultivam muito o lado “espiritual” da
mensagem do Novo Testamento negligenciarem nos aspectos sociais será evitado se
a pregação da Igreja não for sobre curas, milagres, prodígios e línguas
estranhas (como não foi essa a pregação de Cristo e dos apóstolos), mas se
centrar sobre a conversão ao Reino de Deus. Como se vê nas páginas precedentes,
eu creio na legitimidade das línguas, como creio também em curas divinas, em
milagres e prodígios – mas o tema da pregação cristã é o da chamada ao
arrependimento e da vinda do Reno de Deus.
Quando um
cristão não se limita a ficar pelo credo, a dizer a doutrina e a conhecer a letra
das Escrituras, mas busca uma vivência profunda e séria com Deus pelo Espírito
Santo, a sua vida é transformada. Os frutos do Espírito de que São Paulo fala
em Gálatas 5:22
passam a ornamentar a sua vida e o seu interesse pela vida da Igreja e por tudo
quanto está relacionado com o Reino de Deus ganha uma espaço enorme na sua
vida. Quantos membros de congregações, com comportamentos desonestos que
julgavam esconder dos outros - como fugas ao fisco, enganos nos negócios,
mentiras, mau uso da sexualidade – ao
aprofundarem a sua relação com Deus no enchimento do Espírito Santo ficaram
mais conscientes do seu estado, horrorizaram-se
e arrependeram-se! É por isso que
do que as Igrejas estão urgentemente a precisar não são discursos moralistas do
púlpito, nem de discursos de tipo político amador que não resolvem os
problemas, mas de uma pregação que sem
ser conservadora leve os ouvintes a procurarem o poder transformador que vem de
Deus. Cristãos cheios do Espírito Santo são agentes de Deus na transformação do
mundo. E são seguramente pessoas felizes.
Capítulo IX – APRESENTAI OS VOSSOS CORPOS
Deixei para
este último capítulo a questão prática de saber como pode o crente receber a
plenitude do Espírito Santo. Do que ficou escrito nos capítulos anteriores,
como, principalmente, da leitura do Novo Testamento, e do testemunho de muitos
irmãos, fica claro que há uma grande variedade de caminhos para se chegar à
recepção do Espírito. Aí, uma vez mais, manifesta-se a total soberania de Deus
que tem dado o Seu Santo Espírito antes ou depois do crente ser baptizado com
água; em reuniões públicas ou em privado; com a imposição das mãos ou sem esse
gesto. Referi o caso de Dwight Moody
que recebeu o baptismo do fogo ao caminhar numa rua de Nova Iorque - sem
oração, sem jejum, sem estar de joelhos, sem a presença de testemunhas, sem
imposição de mãos. Com casos como este fica provado que nenhum cristão, em
nenhuma circunstância, pode duvidar da possibilidade de vir a receber a
experiência do divino. A experiência do divino não é privilégio para alguns,
mas uma oportunidade que Deus oferece a todos os Seus filhos e filhas que a
desejem.
São Paulo, na
Epístola aos Romanos, faz este impressionante apelo aos seus leitores: Rogo-vos, pois, irmãos, que apresenteis os vossos corpos em
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.
Romanos 12:1 Uma
versão mais rigorosa diz “culto razoável”.
É aqui que
está a atitude fundamental para experimentar a plenitude do Espírito Santo.
Após ter apresentado ensino doutrinário, Paulo refere a atitude prática a
tomar. Por isso diz “rogo-vos, pois”. A imagem
que se subentende no pensamento do apóstolo é o ritual de qualquer templo,
quando um animal é trazido diante do altar para ser sacrificado. O sacerdote
toma-o, coloca-o sobre a pedra do altar e com a faca imola-o, derramando o
sangue do animal que, assim, morre dedicado à divindade. Agora o apóstolo apela
aos cristãos para que, simbolicamente, entreguem os seus corpos, como se o
fizessem sobre um altar, em sacrifício a Deus, morrendo. Ou seja, não podemos
ficar pela simples adesão às doutrinas de Cristo, mas é preciso dar um segundo
e mais significativo passo. É preciso entregarmo-nos a Cristo, morrendo para o
mundo, morrendo para nós próprios, numa dedicação total ao Senhor.
Já lembrei
antes que na visão bíblica o ser humano é tridimensional – corpo-alma-espírito
– e este ser é indivisível. Quando São Paulo fala da entrega do corpo neste
caso é de todo o ser que está a falar. Usa “corpo” porque nos sacrifícios dos
animais são, obviamente, corpos o que se vê entregar ao sacerdote, mas
falando-se do homem ou da mulher a entrega do corpo inclui tudo o que ele ou
ela é, não só fisicamente mas também psíquica e espiritualmente. Em termos
concretos, aquele ou aquela que quer ser cheio do Espírito Santo deve começar
por dramatizar a sua entrega total a Deus. Se estiver num culto público, o crente
deve ser lembrado deste apelo de São Paulo e interiormente entregar-se a Deus.
Imagina uma entrega total, deixando que o Espírito tome posse de ti,
fisicamente mesmo. Também numa situação privada, quando o crente está no seu
quarto ou noutro lugar solitário, predisposto à recepção do Espírito. Começa
por entregar todo o seu corpo. É preciso deixar claro que esta entrega não é
fácil; é mesmo das decisões mais difíceis da nossa vida, se for uma entrega
sincera e consciente. Porque nessa entrega renunciamos ao nosso egoísmo, às
nossas aspirações, ao nosso amor-próprio.
Creio que
ajuda imaginar, na altura da entrega, que o Espírito Santo invade todo o nosso
corpo, não vindo de fora, mas do interior. Como se Ele até ali estivesse apenas
na nossa mente ou no nosso coração, mas começa a juntar-se ao nosso sangue e a
circular nas nossas veias, vai a cada órgão, mistura-se em cada célula, em cada
molécula, mesmo em cada átomo do nosso ser. Sintamo-Lo na nossa pele, na
cabeça, no tronco, nos membros. As mãos, com as palmas viradas para cima,
sentirão a Presença. Se estamos verdadeiramente a entregar-nos e a desejar com
fé que o Espírito Santo tome posse de nós, então estamos já em plena comunhão,
já estamos a experimentar a plenitude do Espírito. É nestas ocasiões que por
vezes, se estivermos de pé, nos sentimos cambalear, como Moody ao receber o
baptismo do Espírito numa rua de Nova Iorque.
A.W.
Tozer (34) diz que, depois de entregarmos o nosso
corpo, devemos pedir ao Pai que o Espírito Santo nos seja dado, cumprindo. Lucas 11:9/11 E
depois haverá ainda, segundo Tozer, um terceiro
passo, que é o de receber com fé, de acordo com. Gálatas 3:2 Eu não
ousaria emendar o experimentado Tozer, e nem sei se o
que vou dizer é emendar, mas penso poder-se resumir tudo neste gesto da entrega
do corpo, obviamente se ele foi acompanhado, em simultâneo, do pedido, com fé,
do Espírito. “Vem, Espírito Santo, vem!”. Lembramos: não é que Ele não esteja
já na pessoa convertida, mas é como se disséssemos ao nosso hóspede de honra
que não se sentiu bem acolhido em nossa casa: “Por favor, usa a casa toda! Mexe
nos livros, liga a televisão se quiseres, está à vontade!”.
Quem preferir
seguir o conselho de Tozer faça, pois, o processo em
três fases:
1º Entregar
totalmente o seu “eu” (corpo-alama-espírito), segundo Romanos 12:1/2;
2º Orar
pedindo a plenitude do Espírito Santo, de acordo com Lucas 11:9/11;
3º Receber
com fé o Espírito, em obediência a Gálatas 3:2.
E a imposição
das mãos? Ajudará muito se houver um irmão ou irmã, alguém com maturidade
espiritual, que já tenha recebido anteriormente uma imposição de mãos e que
presida a este acto. Imporá as mãos após a entrega do corpo e dirá, depois de
pedir a vinda do Espírito:
Recebe,
irmão, o Espírito Santo.
Os
beneficiários desta experiência do divino, especialmente se o acontecimento
tiver lugar durante uma reunião pública, devem esforçar-se por terem nesse
momento e depois um comportamento discreto, que não chame a atenção sobre eles
mesmos e cumpra este preceito apostólico: Faça-se tudo
decentemente e com ordem. 1ª Coríntios 14:40
É preciso que se evitem exteriorizações, porque elas são o fermento do farisaísmo.
Mateus 16:6 É no
interior do crente, no seu coração, na sua mente, que se faz a festa. Os que
estão com ele ou ela, os seus familiares, os seus colegas, os seus vizinhos,
todos perceberão que algo aconteceu de belo e bom na sua vida, não por qualquer
comportamento esquisito ou espectacular, mas pela transformação radiosa do seu
carácter, da maneira mais parecida com
Cristo como passa a viver. Pelos frutos os conhecereis, diz o Senhor. Uma vida
cheia do Espírito reflecte o fruto do Espírito Santo referido por São Paulo, na
versão de Kenneth N. Taylor: ... quando o Espírito
controla nossas vidas, Ele produzirá o seguinte tipo de fruto em nós: amor,
alegria, paz, paciência, bondade, benevolência, fidelidade, suavidade e
autocontrole. Gálatas 5:22/23
Onde houve uma experiência profunda do Espírito passa a haver um maior gosto
pela leitura da Bíblia, pela oração, pelo culto, pelo serviço do próximo.
Aumenta a convicção no poder do Evangelho e será mais contagiante o testemunho
do perdão de Deus.
O modo como
escrevemos até aqui pode levar o leitor a concluir que na nossa opinião esta
experiência do divino se faz de uma vez por todas na vida de um crente. Mas não
é isso que pensamos, nem é o ensino que vemos no Novo Testamento. De facto, se
S. Paulo diz na Primeira Epístola aos Tessalonicenses “Não
extingais o Espírito” 1ª Tessalonicenses 5:19,
sendo o verbo aqui traduzido por extinguir, “sbennumi”,
de uso em relação ao apagamento de fogo, como em Mateus 12:20, por
exemplo, podemos pensar numa lareira acesa que é preciso ir alimentando com
lenha para que se não apague, não se extinga. O fogo do Espírito Santo pode ser
mais forte ou mais fraco; pode mesmo tornar-se como um simples morrão que
fumega apenas. Então é preciso reacendê-lo, é preciso despertar de novo o fogo. A exortação de Paulo aos
cristãos de Tessalónica é, pois, que tomem medidas para que o fogo divino não
diminua de intensidade nas suas vidas. O que há a fazer quando o fogo parece
extinguir-se é repetir a acção inicial, reabrir-se a Cristo, tornando a aceitar
a direcção do Espírito. Voltando ao primeiro amor.
Vem a
propósito referir o título dado por dois autores americanos a um livro escrito
por ambos: “The Holy Spirit – Shy Member
of the Trinity”
(35) (O Espírito Santo – Membro Recatado da Trindade). F. Dale
Bruner e William Hordern, luteranos, usam aquele tão
inusitado adjectivo em relação ao Santo Espírito por verificarem que, segundo a
revelação bíblica, Ele não assume a missão de falar de Si próprio mas de Jesus
Cristo e inspira nos crentes dar testemunho de Cristo. Os textos bíblicos que
justificam essa afirmação são numerosos, mas ficam aqui apenas três
fundamentais do Evangelho de João: João 14:16; João 15:26; João 16:8ss. Pode
mesmo dizer-se que sabemos que um homem ou uma mulher estão verdadeiramente com
o Espírito Santo se as suas palavras e o seu comportamento prestarem honra a
Jesus Cristo. As Igrejas que enfatizam a Pessoa do Espírito Santo pregando
quase exclusivamente sobre Ele e exagerando as experiências nesta área, podem
estar bem intencionadas mas desviam-se do ensino do Novo Testamento que é, não
o esqueçamos, cristocêntrico. Não é isso que pretendo
com este livro, mas apenas mostrar que o oposto (reduzir, na prática, o
Espírito Santo a simples palavras) também é erro.
Provavelmente,
“shy”, recatado, tímido, envergonhado, não é o
melhor adjectivo para qualificar a terceira Pessoa da Trindade, mas ao ler-se
esse livro percebe-se o que os autores querem dizer com ele. O termo veio-me à
memória em associação com o que dizia acima do hóspede em nossa casa, para
falar do Espírito Santo habitando em nós. Se recebermos em nossa casa um amigo
do peito que não goste de se impor, de ser protagonista, já sabemos que temos
de estar ainda mais atentos, porque tal hóspede, por muita amizade que nos
tenha, vai ficar discretamente no seu quarto e quando vem à sala senta-se
discretamente. Temos que insistir com o nosso “shy guest”, hóspede recatado: “A casa é tua, meu migo!”.
Um outro
autor do movimento carismático de língua inglesa que já citei neste livro mais
de uma vez é o pastor anglicano Dennis Bennet. A um
dos seus livros pôs um título significativo que traduzo assim: “Como orar para a libertação do Espírito
Santo” (36). O substantivo que usa, “release”, é o que se usa para pôr um prisioneiro em liberdade,
soltá-lo, e para a pessoa que está tensa relaxar.
Há na Bíblia
várias metáforas que ajudam a perceber este processo do enchimento e
reenchimento pelo Espírito Santo. Uma delas é a do casamento. Deus é
apresentado como o noivo e Israel como a noiva – Israel, a Igreja (nova Israel)
ou a alma humana. Num casamento, diz a Bíblia, os dois fazem-se uma só carne. Génesis 2:24 Essa
situação acontece quando o esposo é todo da esposa e a esposa toda do esposo.
Daí a associação ao velho hino “Tudo entregarei” onde também se diz: “Quero ser
somente teu!”. A experiência do divino é possível quando a alma (a pessoa) se
entrega totalmente ao Senhor e deseja ser apenas d’Ele. Alguns objectam: “Mas
isso significa fusão, desaparecimento do homem em Deus! Isso é pensamento
oriental, não é Cristianismo!” Responderemos adiante a essa objecção.
Antes disso,
falaremos de outra metáfora bíblica muito significativa a este propósito.
Referimo-nos à da escravatura. Não significa que Deus esteja de acordo com a
escravatura, essa nódoa na história da humanidade, mas é usada como metáfora
para dizer que o escravo, quando está ao serviço de um senhor (dono) não tem
nada de seu, nada de que possa dizer: “Eu sou o proprietário disto”. Nem os
filhos, nem a mulher, nem o tempo, nada era do escravo, mas tudo era
propriedade do seu senhor. É claro que Cristo não quer que sejamos seus
escravos no sentido da relação que temos com Ele, João 15:15 mas o
crente declara Cristo o seu Senhor (dono vem de dominus,
senhor em latim), metaforicamente, para dizer que não considera seu nada do que
lhe está entregue: mesmo a sua vida está entregue a Ele.
Não se trata
de uma fusão. Não se trata de desaparecer a personalidade do crente, como
desaparece no Oceano o copo de água que nele é lançado. Deus é sempre Deus e o
crente é sempre ele mesmo. Aí está porque há por vezes a necessidade de repetir
a entrega na experiência do divino. Justamente porque o crente continua a ser ele
mesmo, ele pode ir-se afastando, como num casamento um dos cônjuges pode perder
o fervor inicial e tem de voltar ao primeiro fervor e assim como um escravo
pode rebelar-se contra o seu Senhor e tem de voltar.
É na entrega
total, paradoxalmente, que a pessoa é autenticamente ela! Pois o que é que nos
inibe cada dia de sermos nós próprios? São os nossos pecados, são as tais
“feridas interiores” que trazemos connosco, são a nossa inclinação para o mal.
Queremos fazer o bem e fazemos o mal: somos livres? Como é que somos livres se
temos em nós esta lei que nos submete?! Leia-se de novo Romanos 7:11/25.
Não é justamente quando nos tornamos de Cristo que encontramos a nossa verdadeira personalidade ? Imagine-se
um homem que quer seguir num barco num rio violento. Tem o leme quebrado e não
tem conhecimentos suficientes para conduzir o barco. Da margem um pescador
experimentado procura ajudá-lo e grita-lhe sugestões. O homem do barco pensa:
“Sou adulto e sei o que faço!” e ignora os avisos. É um homem livre? Não: é
prisioneiro da sua soberba. Talvez morra em breve e nem sequer pode morrer com
honra, porque morre por vaidade. O que dá ouvidos não perde a sua dignidade de
homem, antes a aumenta, porque reconheceu as suas limitações e admirou os
conhecimentos alheios. A metáfora do escravo serve para ensinar que o crente,
ao entregar a sua vida ao seu Senhor, aceita deixar-se conduzir por Aquele que
é a essência do Ser, Aquele em Quem vivemos, respiramos e somos, que não habita
em templos feitos pela mão dos homens, e que veio fazer habitação em nós João 14:16/20.
Terminarei
esta reflexão com uma citação de Oswaldo J. Smith,
famoso pastor e fundador da Igreja do Povo, de Toronto, Canadá:
“O Espírito
Santo é capaz de fazer a Palavra tão poderosa nos dias de hoje como o fazia no
tempo dos apóstolos. Pode trazer almas a Cristo às centenas e aos milhares,
como de uma a uma ou de duas a duas. A razão de não sermos tão prósperos no
trabalho é que não temos o Espírito Santo na plenitude da Sua força e do Seu
poder como acontecia nos tempos primitivos” (37).
Os leitores que
considerarem útil uma maior circulação desta obra e aconselhem a sua edição em
livro, assim como aqueles que queiram questionar o seu conteúdo, ajudar-nos-ão
escrevendo para
Pastor Manuel Pedro Cardoso
Rua de D.
José I, 37-1º Dto
3080-202
FIGUEIRA DA FOZ (Portugal)
Podem também contactar-me pela internet, através do mail m-pcardoso@sapo.pt
Referências
(1) C.G. Jung, “A Natureza de
Psique”, p. 329ss
(2) “Visão de
14 a 21 de Agosto de 2002. Entrevista conduzida por Helena Lopes.
(3)
Predestinado ou “eleito” é uma categoria bíblica complexa. Usamo-lo aqui apenas
por nos dizer a experiência que ninguém deve a si mesmo, como uma virtude, crer
em Deus. Ou ser poeta, ou artista.
(4) Rudolf Otto, “O Sagrado”, São Paulo, Imprensa Metodista,
1985.
(5) Pradelino Rosa, “Uma Interpretação de Fernando Pessoa”, p.
19, Lisboa, Guimarães Editora, 1971
(6) Obra
citada, capítulo IX do Livro I, p. 44
(7) “O Melhor de A W. Tozer”,
p. 114-115, Editora Mundo Cristão, São Paulo, 1984.
(8) Glossolália ou dom de falar línguas: dada a importância
deste assunto, dedicar-lhe-emos o capítulo VI, onde o leitor encontrará a
definição do termo.
(9) Michael
P. Testa, “O Apóstolo da Madeira”, edição da Igreja Evangélica Presbiteriana de
Portugal, Lisboa, 1963.
(10)
Chamam-se assim os movimentos que proclamam a possibilidade de o crente viver
aqui tomado por Deus (entusiasmo: en+Théos, em
Deus).
(11) No Novo
Testamento fala-se da mesma Pessoa da Trindade designando-a por “Espírito
Santo”, “Espírito de Cristo”, “Espírito de Deus” ou apenas “Espírito”. Por isso
que o Credo Niceno fala d’Ele como “procedente do Pai e do Filho”.
(12) Nota m) da p. 344 da Traduction
Oecuménique de la Bible,
comentando João 19,5.
(13) O leitor
já percebeu que o fenómeno farisaico não deve ser olhado numa perspectiva
moralista (“o fariseu é um hipócrita”), mas sim numa perspectiva espiritual (“o
fariseu é um homem da religião voltada para doutrinas ou rituais”).
(14) No
Antigo e no Novo Testamentos há várias palavras para “pecado”, mas o termo mais
usado numa e noutra língua evoca a ideia de “extraviar-se”, “desencaminhar-se”,
“errar a meta ou o alvo”.
(15) Aliança:
A vida do povo da Bíblia é sempre entendida em termos de Aliança feita com
Deus. Como num casamento, há um pacto que envolve as duas partes, e a
felicidade é possível enquanto houver fidelidade a ele. A Antiga Aliança,
iniciada em Abraão e renovada em Moisés, é também chamado nas línguas
ocidentais “Antigo Testamento”; e à Aliança feita em Jesus Cristo chama-se “Novo Testamento”.
(16) Op. cit.
página 47, CERF, Paris, 2002
(17)Frieda Fordham, Introdução à
Psicologia de Jung, p.65
(18) Cit. por
Gunther Bornkamm, Bíblia: Novo Testamento, p. 67.
(19) Por “pneumocêntrico” entende-se um Cristianismo centrado no
Espírito (Pneuma, em grego).
(20) Dennis J. Bennett, La troisième heure, p. 29, Editions Foi et Victoire, Le Havre,
1976
(21) P. Maurice Pontet, “Pascal et Teilhard, témoins de Jésus-Christ,” p. 40, Desclée de Brouwer, Paris, 1968
(22)
Distinguimos individualismo de personalismo. O individualista só pensa em si e
sacrifica a comunidade a si; no personalismo a pessoa é muito importante, mas
sem diminuir a importância da comunidade.
(23) John A Mackay “A ordem de Deus e a desordem do homem”,
p. 140, União Cristã de Estudantes do Brasil, São Paulo, 1959.Sublinhado do
Autor.
(24) Autor
anónimo, “Manual Bíblico: uma
Introdução ao Estudo da Escritura Sagrada”, p. 167
(25) William Barclay, “The Acts of the Apostles”, p. 16
(26) Dennis e Rita e Bennett, Le Saint Esprit et nous,
p.104
(27) Walter Hollenweger, “El Pentecostalismo, história
y doctrinas”, p. 33
(28)
Intérprete: É assim chamado o crente que, numa reunião em que alguém fala em
línguas, recebe de Deus a revelação do sentido do que foi dito. Não se trata de
um ofício ou ministério mas de uma função ocasional.
(29) Jean Héring, La Première Epître de Saint Paul aux corientiens, p. 127
(30)
htt://www.presbiterianismo.npg.ig.com.br/Sistematica/Línguas.htm
Deve dizer-se
que neste mesmo site há artigos de oposição ao fenómeno da glossolália.
A argumentação conformista usada não nos convence, no entanto.
(31) Edição
Vida Nova, São Paulo, 1991
(32) Dietrich Bonhoeffer,
Ethics, The Fontana Books Library, Londres e Glasgow,
1963
(33) Sobre este tema Cf Lytta Basset, “Le Pouvoir de Pardonner”, Labor et Fides, Genebra, 1999 e Simone Pacot, “L’évangelisation
des proffondeurs”, CERF,Paris,2002
(34) A.W. Tozer, “O Melhor de A W. Tozer”,
p. 180-181, Editora Mundo Cristão, São Paulo, 1984
(35) Edição de Augsburg
Publishing House, Minneapolis, 1984
(36) Dennis Bennet, “How to Pray for the Release of the Holy
Spirit”, Bridge Publishing, South Painfield,
1985
(37) Oswald
J. Smith, “O Reavivamento de que precisamos”, p. 38
Figueira da
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