David ou Davi (CC)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Foi-me
colocada a seguinte questão:
Um
casal que espera o seu filho, tenciona dar o nome de David ao recém-nascido, e
pergunta quem era propriamente o Rei David.
1. Introdução
A pergunta que
me é dirigida, apresenta dois aspectos. O primeiro é
fornecer informação sobre David. Essa é a parte mais fácil, em que seria
possível preencher muitas folhas com informação retirada das nossas bíblias,
sobre o Rei David, palavra que em Portugal continua a ser David, como era em
latim, mas no Brasil foi simplificada para Davi.
Mas julgo que
não é só isto que pretendem saber, pois perguntam quem era propriamente o rei David. Essa é a
parte mais difícil, e é a esta segunda parte que vamos dar o maior
desenvolvimento neste estudo.
Parece à
primeira vista, que estamos perante um dos mais conhecidos personagens
bíblicos. Qual a criança da Escola Dominical que não sabe quem foi David? Ele
foi e continua a ser o “ídolo” de muitas gerações de evangélicos. Mas, embora
muito se fale deste rei e muitos sejam os textos históricos sobre David e os
salmos atribuídos a David, tudo que se diz desse homem, é geralmente, fruto da
aceitação incondicional de toda a informação bíblica sem a coragem de
questionar tais afirmações. Não é por termos muita informação que podemos
afirmar que conhecemos bem as pessoas.
2. Base de
raciocínio
Antes de
entrar propriamente no assunto, julgo importante definir as bases do nosso
raciocínio, pois estas irão certamente condicionar as nossas conclusões.
Penso que
podemos admitir três “graus de liberdade” de pensamento, no nosso estudo
bíblico. Certamente que a expressão “grau de liberdade”, não está muito
correcta e é em parte uma influência da minha formação em engenharia, mas não
encontro outra expressão melhor.
2.1 Em primeiro lugar, há a
atitude heterónoma do crente que não só aceita a inerrância da Bíblia como do
seu máximo dirigente espiritual, quer se trate do Papa para os católicos, como
de Charles Russell para as “testemunhas de Jeová”, ou de Ellen White para os adventistas, ou mesmo do crente evangélico
que se limita a ouvir o seu pastor sem questionar as suas afirmações,
considerando-o como infalível (ou quase), mesmo que este não se apresente como
tal.
Assim, um
estudo sobre David com base nesta primeira posição,
limitar-se-ia à busca da opinião dos tais infalíveis assumidos ou aceites pelos
crentes, opção que não prescindo de rejeitar, pois isso deixaria de ser estudo
bíblico.
2.2 Em segundo lugar, temos o
crente que questiona as ideias e a interpretação que o seu dirigente espiritual
faz das Escrituras, mas aceita não só a inspiração como a inerrância da Bíblia.
Talvez este seja o grupo mais numeroso entre os protestantes ou evangélicos
portugueses, que crêem na inspiração divina e
total das Escrituras Sagradas, na sua suprema autoridade como única e
suficiente regra em matéria de fé e de conduta e que não existe qualquer
erro ou engano em tudo o que ela declara, como afirma o ponto 5 da Declaração de fé da Aliança
Evangélica Portuguesa.
Se o estudo
sobre David for com base nesta segunda atitude, considerando como absolutamente
correctas todas as afirmações que encontramos nestas passagens históricas, as
conclusões serão as mesmas que já são tão conhecidas de todos os jovens alunos
das nossas escolas dominicais: David é o máximo exemplo de espiritualidade e o
melhor exemplo do crente que é dirigido pelo Poder do Senhor. De acordo com 1º Samuel 13:14,
ele é o homem segundo o coração de Deus, como vem na tradução de Ferreira de
Almeida. Nesta hipótese, iremos meditar sobre David com uma mentalidade em
parte racional, mas dentro de determinados limites, enquanto as conclusões não
afectarem certas ideias já aceites pela nossa tradição religiosa e admitindo,
como já afirmamos que toda a informação bíblica sobre David é absolutamente
verdadeira e acima de qualquer dúvida.
2.3 Em terceiro lugar, está a
posição com que me identifico, dos que consideram a Bíblia como o registo da
gradual revelação de Deus ao homem através dos tempos, que atingiu o seu ponto
mais alto com a mensagem de Jesus o Cristo. Afinal, não há na Bíblia qualquer
referência à sua própria inerrância, que é produto da teologia, produto do
pensamento de Santo Agostinho, elevado à categoria de dogma pelo Concílio de
Trento, e como tal, pode e deve ser questionada pelos estudantes das
Escrituras. Penso que a inerrância é mais o fruto do nosso desejo de ter alguma
coisa de sólido para nos agarrarmos além da revelação do Senhor. Por vezes,
costuma-se citar 2ª
Timóteo 3:16 Toda a Escritura, divinamente
inspirada, é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para
instruir em justiça. Mas, no contexto desta afirmação, Paulo só
podia estar a referir-se às escrituras que mencionara, pois nessa época nem o
cânon veterotestamentário estava definido e os livros do Novo Testamento ainda
não estavam todos escritos. No Templo e nas sinagogas havia vários livros
(rolos), incluindo os deuterocanónicos e outros que foram rejeitados.
Recuso-me a
considerar, por exemplo, o Evangelho de João, onde estão registados os
principais ensinos do nosso Mestre, o único que é o Logos, a Palavra de Deus,
em pé de igualdade com Levítico ou Deuteronómio onde encontramos a palavra de
Moisés, assim como, em face de Mateus 22:37 ...
Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de
todo o teu pensamento, temos de rejeitar
qualquer atitude que nos impeça de servir ao Senhor com «todo o nosso pensamento», rejeitando quaisquer
barreiras ou limitações que a tradição ou que a religião nos queiram impor.
Assim, iremos
também meditar sobre David partindo deste princípio, ponderando a veracidade da
informação bíblica sobre David que chegou aos nossos dias. Principalmente,
quando se trata de passagens históricas, não prescindo de as ler sem questionar
tais informações. Pessoalmente, prefiro esta última opção, que será a mais
desenvolvida, embora ciente das nossas limitações e da nossa ignorância perante
o Deus supremo a quem temos humildemente de implorar pela sua ajuda e
esclarecimento.
Com base nesta
última hipótese, iremos meditar nos textos sobre David, com a mentalidade fria
e racional do historiador, sempre atento aos pequenos
pormenores que nos possam revelar uma outra realidade para além da que
nos é apresentada, questionando alguns pormenores da informação dos livros
históricos da Bíblia que chegaram aos nossos dias, o que certamente nos levará
a resultados um tanto diferentes dos vulgarmente aceites pela nossa tradição
religiosa, conclusões que certamente serão um escândalo para muitos crentes,
por contradizerem muitas das nossas “verdades adquiridas” e por levantarem
dúvidas sobre um dos personagens considerados como intocáveis pela nossa
tradição “evangélica”.
3.
Considerando a segunda hipótese
De acordo com
a segunda hipótese, considerando como correcta, toda a informação bíblica,
podemos fornecer um resumo da vida de David.
David era o
filho mais novo de Jessé que a descrição bíblica apresenta como um jovem pastor
ruivo, de rara beleza, mas que passava despercebido entre os seus irmãos, por
ser o mais novo. Era corajoso na defesa dos rebanhos de seu pai, a ponto de já
ter morto um leão e um urso. O facto de ser pastor, já nos pode levar a
imaginar um jovem com boa capacidade de observação, conhecedor da topografia da
região e dos locais onde podia encontrar água e boas pastagens para os rebanhos
de seu pai.
David tinha
também queda para a música, o que aliado ao tempo disponível que a sua
profissão lhe deixava, o tornou um famoso tocador de
harpa. Não sei qual a palavra original que os biblistas traduziram por harpa,
mas para um maestro dos nossos dias, harpa é um instrumento grande e pesado que
nada tem de portátil para um pastor levar para o campo. Talvez fosse saltério
ou outro cordiforme no género, construído para ser beliscado. É a conclusão a
que chego, depois de estudar o assunto nos livros da especialidade de música,
pois o saltério era um instrumento mais pequeno, portátil e que se podia
pendurar ao pescoço e tocar, mesmo em andamento. No grego antigo, a palavra “psalterion” designava todos os instrumentos de cordas,
inclusive a harpa e julgo ser esta a confusão que levou os biblistas a afirmar
que David tocava harpa.
Quando Saúl
foi rejeitado como Rei de Israel, Deus enviou o profeta Samuel para ungir David
como Rei, perante a admiração dos seus próprios familiares que pouca atenção lhe davam por ser o mais novo. Esta unção de
David como Rei de Israel, deve ter sido pouco
divulgada no seu tempo, por receio da reacção que teria Saúl que ainda reinava
em Israel.
Mas, Saúl
sentiu-se cada vez mais abandonado por Deus e atormentado por um espírito
maligno e procurou a música para se acalmar, mandando chamar o próprio David
para tocar. Assim, David teve oportunidade de adquirir conhecimentos úteis
tanto da guerra, como do governo de Israel.
Quando os
filisteus invadiram a tribo de Judá, David já tinha voltado para sua casa onde
tomava conta do rebanho de ovelhas de seu pai, que enviara os outros seus
filhos mais velhos para combater no exército de Saúl. Mas a certa altura, o seu
pai enviou-o para saber notícias dos outros seus filhos. David chega ao campo
de combate quando o gigante Golias desafiava um campeão israelita para lutar
com ele. David sentiu o poder do Senhor e resolve defrontar o gigante, não com
a armadura que Saúl colocara à sua disposição, mas com a sua funda. O poderoso
gigante Golias, todo protegido por uma pesada armadura, tinha somente a cara
descoberta e é precisamente aí que acertam as pedras da funda de David, que
consegue derrubar Golias e decepar a sua cabeça.
Esta vitória
mudou o rumo da vida de David, cuja popularidade crescia em todo Israel, mas
despertava grande inveja do Rei Saúl que várias vezes o tentou matar, quer com
a sua lança, quer colocando-o em posição perigosa na frente da batalha, quer
mandando-o prender. Mas o poder do Senhor sempre protegeu a David que conseguiu
fugir e nunca atentou contra a vida de Saúl que sempre respeitou como o seu
Rei. Mas para não ser morto, David teve de fugir para o território dos
filisteus juntamente com um grupo de homens que lhe eram fiéis.
Entretanto,
Saúl e seu filho Jónatas, são mortos numa batalha contra os filisteus, David
regressa a Judá e é eleito Rei de Judá aos 30 anos de idade.
Algumas tribos
reconhecem David como Rei de Israel, enquanto outras são fiéis a Isbosete, filho de Saúl, começando assim uma guerra civil
até ao assassinato de Adner e Isbosete,
acontecimento em que David não teve qualquer interferência. Depois disso, David
tornou-se Rei de todas as tribos de Israel.
Como Rei de
Israel, David conquistou Jerusalém, para onde levou a arca do Senhor
colocando-a no tabernáculo e tencionava construir o Templo, mas o Senhor não o
permitiu. No entanto, David desenvolveu a liturgia do culto e a música a que
deu um esplendor nunca visto.
O único pecado
de David, que a Bíblia regista foi o facto de ter cobiçado a mulher de Urias,
um dos seus homens mais fieis e ter dado ordens para o
colocar em situação de grande perigo na guerra com os amonitas, onde este veio
a falecer. Depois disso, David recebeu Batseba a viuva de Urias, como uma das suas mulheres. Este homicídio
teria ficado esquecido se não fosse o profeta Natan
que teve a coragem de repreender o Rei David afirmando que por causa do seu
pecado nunca a espada se apartaria de sua casa.
As palavras de
Natan cumpriram-se, principalmente nos últimos anos
da vida de David, através do mau comportamento dos seus próprios filhos, e ele
não se sentiu com forças nem com autoridade moral para os castigar. Apesar de
todo o seu grande valor como rei e como crente exemplar, infelizmente David não
passaria no “controle de qualidade” de acordo com Tito 1:5/7.
David faleceu
aos 71 anos, e ficou na história como homem de grande sensibilidade musical,
excelente cantor, crente muito sincero, autor de pelo menos 73 salmos. Como
Rei, foi não somente um poderoso guerreiro, como desenvolveu e incentivou as
artes ligadas ao culto.
Segundo 1º Samuel 13:14,
ele é considerado um homem segundo o coração de Deus, que fez o que era recto
perante os olhos do Senhor.
4.
Considerando a terceira hipótese
4.1
Elementos disponíveis
Os principais textos,
que servirão de base a este estudo, encontram-se desde o capítulo 16 do
primeiro livro de Samuel até ao capítulo 12 do segundo livro de Samuel.
Estas
passagens referem-se ao período da adolescência de David e sua nomeação como
Rei de Israel, até à repreensão do Profeta Natan pelo
assassínio de Urias.
Este período,
segundo as melhores informações, vai desde o ano 1012 até cerca do ano 1000 AC,
mas é importante notar que não se trata dum registo efectuado nessa época com a
intenção de preservar essa importante informação histórica. Supõe-se que estes
elementos históricos tenham sido recolhidos e passados a escrito no tempo de
Salomão, dando origem a alguns livros (rolos) que não chegaram aos nossos dias
mas serviram de fonte para a elaboração dos dois livros de Samuel e dois livros
de Reis, já depois do exílio.
Claro que os
livros originais, (rolos) não tinham nomes que foram dados mais tarde para que
os pudéssemos diferenciar, mas nalgumas edições mais antigas, como por exemplo
a tradução de Figueiredo de 1963, em vez de 1º e 2º Samuel e 1º e 2º Reis,
encontro I, II, III e IV Reis e parece-me ser uma classificação mais realista,
pois são os reis e não Samuel os personagens principais destes livros. Também o
segundo volume da tradução da “História dos Hebreus” de Flávio Josefo, tem referências ao primeiro livro de Reis que correspondem
ao 1º Samuel, o que me leva a pensar que Figueiredo terá seguido o mesmo
critério utilizado no tempo de Josefo. Parece-me muito estranho que tenham dado
o título de 1º Samuel a um livro em que este não é a figura principal nem o seu
autor, pois o capítulo 25 menciona a sua morte, mas o livro continua com a
descrição dos acontecimentos históricos depois da sua morte até ao capítulo 31,
e ainda temos o segundo livro de Samuel!!!
É verdade que
nesse contexto cultural, por vezes os discípulos utilizavam o nome dos mestres
e tal facto não deve ser encarado como fraudulento. Talvez nessa altura a
reacção fosse a mesma que temos quando dizem que Gulbenkian disse isto ou
aquilo, pois todos sabemos que se trata da sua Fundação, mas no caso particular
dos livros de Samuel, penso que não é correcto estes livros beneficiarem do
prestígio e credibilidade de Samuel, depois da sua morte.
É muito
importante, para a compreensão destes textos, ter sempre presente a sua
finalidade, que é a fundamentação teológica da monarquia, nomeadamente da
dinastia de David.
4.2
Possibilidade de estudo imparcial?!
Considerando
que, o principal assunto destas passagens, é a luta pelo poder entre Saúl e David,
julgo que devemos começar por investigar se temos condições para efectuar um
estudo sério e imparcial deste assunto e quais as principais dificuldades do
nosso estudo.
Penso que a
pergunta que me fizeram, Quem era propriamente o
rei David? de certa maneira, nos
coloca na cadeira do Juiz, para julgar o Rei David. Mas mal de nós, que nos
sentimos como um juiz que tem de julgar um herói e só tem advogados de defesa,
pois ninguém tem coragem para ser advogado de acusação.
Também só há
testemunhas de defesa, pois, testemunhas de acusação, também havia mas... todas
morreram de “acidente” na semana passada. Mas lá fora, a multidão aclama o seu
herói, e ai de quem duvidar da sua inocência!!!
Em primeiro
lugar, não podemos ignorar a forte pressão da nossa tradição, a que já nos
referimos, que considera David como um exemplo de espiritualidade e bom
comportamento, pois ele é o justo, e o íntegro, de acordo com a teologia
tradicional.
Penso que
qualquer juiz dos nossos dias que fosse julgar Saúl e David, certamente que
nunca se iria pronunciar sem ouvir a ambos. Mas não é essa a nossa posição,
pois temos registos de informação compilada na época de Salomão, que era filho
de David e o principal interessado em defender o prestígio de seu pai David e
mostrar o apoio do deus de Israel à monarquia, em especial à sua dinastia, numa
época em que não é realista falar em liberdade de imprensa.
No entanto, se
temos o privilégio de “ouvir” o que nos diz Salomão, no papel de “advogado de
defesa de David”, já não podemos dizer o mesmo de Saúl, pois todos os seus
descendentes morreram em condições um tanto suspeitas, excepto o seu neto, Mefiboset, aleijado de ambos os pés, que não representava
qualquer perigo para David
e
que, 2º Samuel
9:6/8 ficou com medo, quando David o mandou buscar !!!. Mas mesmo este, que
era como um cão morto (vr.8) não deixou
qualquer documento escrito em defesa de seu avô que chegasse aos nossos dias.
4.3 Alguns
pormenores que afectam a credibilidade dos textos em estudo
1) Em 1º Samuel 16:18,
os servos de Saúl falam de David como um dos filhos de Jessé ... que sabe tocar, e é valente e animoso, e homem de guerra... No
entanto, pouco mais adiante, em 1º Samuel 17:28,
quando David compareceu no campo de batalha e pediu informações sobre Golias, -
E, ouvindo Eliab, seu irmão mais velho, falar
àqueles homens, acendeu-se a ira de Eliab contra David, e disse: Por que
desceste aqui ? e a quem
deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto ? bem
conheço a tua presunção, e a maldade do teu coração, que desceste para ver a
peleja. Afinal, nessa altura, David tinha ou não, experiência como militar ?
2) Em 1º Samuel 17, no
versículo 34 afirma-se que David conseguia enfrentar os leões e os ursos para
defender as suas ovelhas, mas Saúl o tratou como uma criança no versículo 33. 1º Samuel 17:33/34
3) Em 1º Samuel 16:19
Saúl envia mensageiros a Jessé, pedindo para lhe enviar o seu filho David.
Em 1º Samuel 17:12
temos nova descrição sobre Jessé e seu filho David, como se aparecessem pela
primeira vez.
Em 1º Samuel 17:31
Saúl fala com David sobre o combate com Golias e parece não reconhecer o seu
tocador de flauta.
Em 1º Samuel 17: 55
Saúl pergunta: De quem é filho este mancebo ? !!!
4) Em 1º Samuel 17:38/40,
David é apresentado como uma criança que não conseguia andar com a armadura de
Saúl, em comparação com a grande estatura de Golias, com cerca de três metros
de altura. No entanto, alguns anos mais tarde, em 1º Samuel 21:9,
David pega na espada de Golias para combater, afirmando, ...Não há
outra semelhante... dando a entender que a espada de Golias quanto
ao peso e comprimento, estava apropriada para a sua estatura. Noutras
traduções, como na Boa Nova está ... nem há outra melhor do que essa.
5) Em 1º Samuel 19:13
vemos que em casa de David havia um ídolo protector da sua casa, embora a
tradução de Almeida tenha traduzido por estátua.
6) Em 1º Samuel 28:3/22
Saúl vai consultar uma bruxa e consegue falar com Samuel que já tinha falecido.
Esta passagem parece provar que embora não seja permitido consultar os mortos,
essa consulta é possível!!!
4.4 A “assinatura”
de David
Penso que
estes textos, embora contendo um fundo de verdade, representam principalmente
aquilo que interessava a Salomão que fosse a crença do povo de Israel.
Uma passagem
que vamos utilizar como “chave” para se compreender o pensamento de David e
poder interpretar estes textos, encontra-se no capítulo 11 do segundo livro de
Samuel.
Trata-se da
estratégia utilizada por David no caso de Urias e Betsabé, onde se verifica que
David:
1) Quando
soube que Betsabé estava grávida, mandou chamar Urias, convidou-o a comer e
embriagou-o. 2º
Samuel 11:13 Portanto, aparentemente David teve um gesto amigável para com
o oficial do seu exército e este não se portou bem, pois embriagou-se na
presença do rei.
2) Enviou uma
carta ao comandante do seu exército, 2º Samuel 11:14/15
que foi levada pelo homem menos suspeito, pelo próprio Urias.
3) David
aceitou as mortes dos seus homens como coisa natural em todas as guerras 2º Samuel 11:25.
Certamente um facto que ele “lamentava”, mas era “obrigado a aceitar”.
4) David
mandou chamar a viúva de Urias para o seu palácio e recebeu-a como mais uma das
suas mulheres, o que nessa cultura até poderia ser considerado como um acto
louvável de respeito e amor pelo oficial do seu exército. 2º Samuel 11:27,
pois a viúva não ficou desamparada e teve todo o apoio e protecção do próprio
Rei de Israel.
Em todos estes
acontecimentos, David pouco intervém, ele não “suja as mãos”, pouco se arrisca,
é sempre visto como um homem de procedimento impecável, acima de qualquer
suspeita, e os culpados e os mal comportados são
sempre os outros. Se não fosse a coragem de Natan e
certamente o acontecimento já ser comentado por muitos para que pudesse ser
abafado só com a morte de Natan, certamente que a
história teria registado o mau comportamento de Urias embriagando-se perante o
rei e o gesto magnânimo de David, recebendo como sua mulher a viúva do oficial
do seu exército.
Considero
estes pormenores como a “assinatura de David”, pois nos revelam um pouco dos
métodos utilizados para se livrar, não só dos seus inimigos, como de todos que
fossem incómodos para atingir os seus objectivos.
4.5 Passagens que levantam suspeitas quanto à sua veracidade.
Vejamos agora,
novamente, algumas passagens do texto em estudo.
1) 1º Samuel 23:16/18
- Neste encontro no deserto, de David com Jónatas, em que este último reconhece
que David seria o rei de Israel, só estão eles os dois e como só David
sobreviveu foi ele próprio a testemunha deste acontecimento que lhe era muito
vantajoso.
2) 1º Samuel 25:36/42
- Nabal morre em circunstâncias bem estranhas. Ficou paralisado e morreu dez
dias depois. Foi uma morte bem oportuna para David, que “convidou” Abigail para
ser sua mulher, “convite” transmitido pelos seus homens de armas. Os sintomas
descritos, paralisia seguida de morte ao fim de dez dias, são indícios de
envenenamento, numa época em que não havia autópsias. Mas para que não houvesse
dúvidas da inocência de David, ficaram registadas as suas palavras no versículo
39 ... Bendito seja o Senhor, que pleiteou o pleito da minha
afronta da mão de Nabal, e deteve o seu servo do mal, fazendo o Senhor tornar o
mal de Nabal sobre a sua cabeça....
3) O último
capítulo do primeiro livro de Samuel, 1º Samuel 31:1/13 assim como o primeiro capítulo do
seu segundo livro 2º Samuel 1:1/27,
apresentam a morte de Saúl e seus filhos enquanto David estava bem longe, em Siclag o que o impediu de ter qualquer intervenção nessa
derrota e morte de Saúl e seus filhos. Mas, parece um tanto estranho que um
mensageiro se apresse a levar a notícia a David e este o mande matar!!! Será que o mensageiro sabia demais?! Mas mais uma
vez, é a devoção de David pelo deus de Israel que o leva a mandar matar o
mensageiro, porque matou o escolhido do Senhor.
Isto faz lembrar a morte de Urias, em que David também não teve qualquer
interferência pois também estava bem longe.
4) O terceiro
capítulo, 2º Samuel
3, descreve a luta entre os adeptos da família de Saúl e David, que termina
com uma atitude de bom senso de Abner que propõe a paz entre os israelitas.
Como sempre, David é favorável à paz e nos versículos 20 e 21 há um banquete de
confraternização entre David e Abner. Mas, aparece Joab que à traição mata
Abner “sem conhecimento de David”. No entanto, Salomão, ao compilar estes
elementos, julgou necessário escrever o que vemos no versículo 37 E todo o povo e todo o Israel entenderam, naquele mesmo dia,
que não procedera do rei que matassem a Abner, filho de Ner.
Parece-nos
que, se Salomão sentiu a necessidade de colocar este esclarecimento, é porque
havia quem atribuísse a David a responsabilidade pelo assassínio de Abner e foi
essa certamente a interpretação de Isboset, filho de Saúl que compreendeu que
chegara a sua vez de David o mandar matar 2º Samuel 4:1.
5) Segundo
vemos em 2º Samuel 4,
Isboset foi assassinado por Baaná e Recab, que nada lucraram com essa morte e aparentemente não
tinham nenhum motivo para essa atitude. Eles eram chefes de quadrilhas de
ladrões, portanto homens certamente dispostos a fazer tal “trabalho” se alguém
interessado em tal morte lhes pagasse bem. Eles mataram a Isboset, neto de Saúl, ... lhe cortaram a cabeça; e, tomando
a sua cabeça, andaram toda a noite, caminhando pela planície. E trouxeram a
cabeça de Isboset a David... !!! Claro que como “habitualmente”, David os
mandou matar para mostrar que não tinha nada a ver com tal morte e prestou as
suas homenagens a Isboset, depois de morto.
6) Em 2º Samuel 9, temos
o caso do único sobrevivente da família de Saúl. Trata-se de Mefiboset, que era, como ele próprio disse, como um cão morto. As palavras de David no vr.7 ... Não temas... foram certamente consequência do terror que o desgraçado
deve ter manifestado, pensando que chegara a sua vez de “morrer de acidente”,
mas este teve mais sorte por ser o homem ideal para David afastar toda a
desconfiança e todas as dúvidas sobre os seus crimes. Esse homem, filho de
Jónatas, aleijado de ambos os pés, não representava qualquer perigo para David.
Foi o único que escapou e foi convidado a comer à mesa de David.
4.6
Opiniões sobre David, de seus contemporâneos
Encontrei duas
opiniões sobre David de pessoas do seu tempo:
1) Em 1º Samuel 20:31 temos a opinião de Saúl,
nas palavras dirigidas ao seu filho Jónatas Porque,
todos os dias que o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu serás firme, nem
o teu reino... É importante não esquecer que este incidente foi
registado por Salomão, que tinha tanto interesse em realçar as virtudes de seu
pai David a fim de assegurar a continuidade da sua dinastia, como em ridicularizar
o rei Saúl, “mostrando” que este foi rejeitado pelo deus de Israel. Mas afinal,
a história mostra que aconteceu precisamente o que Saúl previa.
2) Em 1º Samuel 17:28 E, ouvindo Eliab, seu irmão mais velho, falar àqueles
homens, acendeu-se a ira de Eliab contra David, e disse: Por que desceste aqui ? e a quem deixaste aquelas
poucas ovelhas no deserto ? bem conheço a
tua presunção, e a maldade do teu coração, que desceste para ver a
peleja. Esta é uma opinião do próprio irmão mais velho de David, que
certamente o conhecia desde pequeno, antes de David saber representar, pois as
crianças são mais expontâneas e dizem o que sentem.
Na tradução da Boa Nova encontramos...Sei que és um
atrevido... Ninguém melhor para saber quem era David, do que o seu
próprio irmão mais velho.
4.7
Características físicas
Perguntei a
algumas pessoas crentes e não crentes, qual a opinião que tinham sobre David e
reparei que muitos me diziam que foi um homem de baixa estatura, talvez um
tanto fraco e delicado, como seria um músico dos nossos dias! Julgo que muitos
têm esta ideia, talvez porque a passagem mais conhecida sobre David, seja a sua
luta com Golias.
Penso que tal
ideia não corresponde à verdade e bem pelo contrário, ele seria grande e forte.
Não podemos esquecer que nessa passagem em que se descreve a sua luta com
Golias, o objectivo principal do escritor (muito possivelmente o seu filho
Salomão), era realçar a manifestação do poder do deus de Israel para de certa
forma “legalizar” a dinastia de David. Assim, talvez o gigante Golias tenha
sido um tanto “ampliado” e David “reduzido” a um menino indefeso. É verdade que
nessa época, David ainda era um jovem em fase de crescimento, mas já tinha
morto um leão e um urso 1º Samuel 17:34/36,
numa época em que ainda não havia armas de fogo.
Ainda sob o
aspecto físico, considerando que ele era hábil tocador de harpa e manejava a
funda com muita força e precisão, certamente que seria um homem forte, mas com
mãos muito hábeis, com grande força, firmeza e precisão.
Temos também
informação de que era homem de grande beleza, mas ao fazer esta afirmação, não
posso deixar de lembrar que os conceitos de beleza variam muito com a cultura
dos vários povos. Já houve quem fizesse uma experiência com homens primitivos a
quem apresentaram fotos de jovens vencedoras de concursos de beleza dos nossos
dias e ficaram admirados com a indiferença que mostraram. Mas depois, mostraram
fotos de mulheres muito fortes, atletas que praticavam lançamento de peso e de
martelo e nessa altura os homens primitivos se entusiasmaram. “Estas sim...
porque têm braços fortes para trabalhar, pernas fortes e ancas largas para poderem
ter um filho todos os anos e constituir uma grande família”.
Penso que o
mesmo acontece com a beleza masculina. Se um realizador de cinema dos nossos
dias fizer um filme sobre David, talvez o verdadeiro David fosse rejeitado por
não estar de acordo com os nossos conceitos de beleza masculina.
4.8
Características intelectuais e espirituais
4.8.1 - Quanto
ao aspecto intelectual é que não pode haver dúvidas. Julgo que ninguém duvida da
capacidade intelectual de David. Era um verdadeiro dirigente de homens, que
tudo manobrava à sua volta, e até sabia matar sem sujar as suas mãos nem o seu
prestígio. Se David vivesse nos nossos dias e não fosse dirigente político,
seria certamente o dirigente de alguma polícia secreta.
Temos muitos
salmos atribuídos a David que chegaram aos nossos dias e que mostram a sua
espiritualidade, mas não há a certeza de terem sido escritos por David.
4.8.2 - Há no
entanto, algumas falhas na sua espiritualidade que não costumam ser mencionadas
nas nossas igrejas:
Em 1º Samuel 19:13,
segundo a tradução de Almeida E Mical tomou uma
estátua e a deitou na cama, e pôs-lhe à cabeceira uma pele de cabra, e a cobriu
com uma cobertura. A intenção era iludir os que vinham prender a
David. Aqui fala-se somente em “estátua”, assim como em Figueiredo e Matos
Soares, mas noutras traduções verifica-se que se trata dum ídolo. Por exemplo
na Boa Nova a tradução é a seguinte: Depois, pegou
no ídolo protector da casa, meteu-o na cama, com uma almofada feita de pêlo de
cabra à cabeceira, e pôs-lhe uma coberta por cima. Noutras
traduções, encontram-se as seguintes palavras: Na Jerusalém está “terafim”, na TOB está “idole” ou “téraphim”, na TEB
encontramos “ídolo”, na Louis Second encontra-se “theraphim” e Lutero traduz por “teraphim”.
Assim, penso que Almeida tentou de certa forma atenuar o que as melhores
traduções nos revelam, que David também cultuava, ou pelo menos tinha em sua
casa uma imagem das suas divindades familiares, que correspondia mais ou menos
aos penates dos romanos e afinal,.... parece que a
imagem realmente o protegeu!!!
4.8.3 - Quando
a primeira criança de David e Betsabé adoeceu, como Natan
tinha profetizado que ela iria morrer, David jejuou e orou durante toda a
noite, prostrado em terra, mas quando soube que a criança já estava morta,
terminou a oração e retomou a sua vida normal, perante o espanto dos seus
servos. Em 2º
Samuel 12:22/23 encontramos a explicação do próprio David para esta
atitude. E disse ele: Vivendo ainda a criança,
jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o Senhor se compadecerá de mim, e
viva a criança? Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu, agora? Poderei
eu fazê-la mais voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará a mim.
Penso que
podemos concluir por esta resposta, que essa oração de David, em vez de ser
primariamente uma oração de arrependimento e pedido de desculpa, era em
primeiro lugar uma forma de pressionar o deus de Israel a mudar a sua decisão
de matar o seu bebé, e mais uma vez morre a criança inocente e não o culpado.
Penso que esta atitude está em contradição com o Salmo 51 que é
atribuído a David.
5
Conclusão:
Penso que não
é possível ter certezas com rigor histórico sobre David, mas não podemos deixar
de afirmar que quase tudo que se diz deste rei, assenta no pressuposto de que a
informação que nos chegou através do seu filho o Rei Salomão é verdade
inquestionável, pois está na Bíblia onde “não há qualquer erro ou engano”.
Poucas são as
informações da arqueologia, a não ser, as tabuletas encontradas em Ugarit em
1929 com poemas muito semelhantes aos salmos, escritos nos séculos XIV e XV
A.C., portanto antes do próprio Moisés. Mas mesmo assim, se David se limitou a
traduzir, ou mandar traduzir, esses antigos salmos para o hebraico adaptando-os
à liturgia do tabernáculo, não deixa de ter o seu mérito.
Voltando à
comparação que apresentámos, se tivesse de julgar David num Tribunal dos nossos
dias, o único crime que fica provado e confessado, é o tão conhecido
assassinato de Urias. Em todas as outras acusações que levantam fortes suspeitas,
ele seria ilibado de culpa por falta de provas.
Mas o Mestre
nos dá uma outra possibilidade. O processo de David vai transitar para outro
Tribunal. Não o nosso Supremo Tribunal da Justiça, mas outro bem acima dos
Tribunais deste mundo, que irá julgar o Rei David, como ele próprio pede em Salmos 7:8 O Senhor julgará os povos; julga-me, Senhor, conforme e
minha justiça e conforme a integridade que há em mim.
Não sabemos
bem como será o Julgamento Final, quando Jesus voltar. Penso que não haverá
necessidade de testemunhas nem advogados de defesa ou de acusação, pois Deus o
Pai, que Cristo nos revelou é omnisciente. Mas se houvesse testemunhas,
certamente que Urias, Nabal, Abner, Isboset e até o
próprio Saúl e possivelmente muitos outros que não ficaram registados na
história se levantariam para finalmente falar livremente, pois já não estariam
perante o Rei David que concede a privilégio de poderem falar ou os pode mandar
calar para sempre, mas estariam perante o homem David no banco dos réus, sem a
protecção do seu deus de Israel, mas perante o Deus Supremo, o Pai, que Cristo
nos revelou.
Isso será
certamente um escândalo para a mentalidade veterotestamentária que o considera
como um homem acima de qualquer suspeita. Mas será que podemos dizer o mesmo
para a genuína mentalidade neotestamentária, se repararmos em Mateus 7:21/23
ou Mateus
25:31/46? O único Mestre já nos preparou para as grandes surpresas desse
último dia. Penso que um dia, iremos assistir ao julgamento de David, quando
todos nós estivermos no banco dos réus ao seu lado.
Só nessa altura saberemos a resposta à
pergunta que nos foi colocada: “Quem era propriamente o
Rei David?”.
Mas, quanto ao
problema inicial, da escolha do nome para o bebé, que deu origem a este estudo,
se os pais gostam do nome de David, então que o utilizem, mas conscientemente,
sabendo que é o nome dum homem e como tal dum pecador, tanto mais que, com
todos os outros nomes, iríamos igualmente ficar horrorizados se pudéssemos
conhecer como Deus os conhece, todos os desgraçados que já usaram todos esses
nomes através dos tempos, pois todos nós temos um pouco de santo e um pouco de
demónio. É sempre possível, falar de qualquer pessoa, transmitindo uma ou outra
imagem e apresentar argumentos que são verdadeiros, embora não descrevam a
totalidade dessa personalidade.
Por vezes a
história tem necessidade de heróis. Penso que Salomão sentiu essa necessidade,
assim como ainda hoje, os nossos púlpitos e as nossas escolas dominicais
necessitam dos seus heróis, do seu exemplo de “crentes perfeitos”, que possam
ser apresentados como exemplos dignos de seguir, e como não há esses crentes
perfeitos, temos de os “fabricar”. Mas será que ainda convém manter tais mitos?
A teologia veterotestamentária, nomeadamente o caso de David e alguns salmos,
como o Salmo
139:23/24 parece que admitiam a possibilidade de haver alguns crentes
perfeitos. Mas será que tal pensamento é compatível com a mensagem do Evangelho?!!
David foi o
pai de Salomão, mas julgo que este último foi o hábil artista que “esculpiu” a
imagem do seu próprio pai que chegou aos nossos dias.
Camilo - Marinha Grande
Novembro de
2002
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