Cultos em residências particulares

 

 

Fonte: Nilson De Godoi / Advogado  franco@aasp.org.br  -  Boletim da Associação dos Advogado de São Paulo - Brasil - AASP 2277

Jurisprudência   

Direito Civil     

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Colaboração do TJRJ - Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - Brasil

Direito Civil - Direito de vizinhança. Uso nocivo da propriedade. Perturbação do sossego e da ordem. LOTEAMENTO. Casas residenciais. Realização de cultos evangélicos por parte dos réus. Grande número de freqüentadores. Poluição sonora. Excesso de barulho em horários de descanso. Grande número de veículos que comprometem a segurança e a passagem dos demais condôminos. PEDIDO DE TUTELA INIBITÓRIA. Cabimento. Art. 554 do Código Civil. Compatibilização do direito dos condôminos com a liberdade de culto e o direito de propriedade insculpidos na CF, art. 5º, VI. Provimento parcial do apelo. Possibilidade de realização do culto até as 22h, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais). Impedimento da entrada de mais de dois veículos, sendo que os restantes devem ficar estacionados em local próprio, fora da área de trânsito do condomínio (TJRJ - 2ª Câm. Cível; AC nº 9675/2001-RJ; Rela. Desa. Leila Mariano; j. 30/8/2001; v.u.).

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Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos de Apelação Cível nº 9675/2001, em que são apelantes M. V. S. O. e D. L. S. O. e apelada S. M. A. P. I.,

Acordam os Desembargadores da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade, em dar provimento parcial ao recurso, nos termos do voto da Relatora.

Relatório

Insurgem-se os apelantes contra sentença, às fls. 162/170, que julgou procedente o pedido para que os réus se abstivessem de realizar cultos religiosos em sua residência situada na Rua ..., sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (hum mil reais), condenando-os também ao pagamento de custas judiciais e honorários advocatícios na base de quinze por cento sobre o valor da causa, além dos juros e da correção monetária dos acessórios.

Razões de apelação, às fls. 172/189, pugnando os réus pela reforma da sentença, pois inexiste prova quanto ao uso nocivo da propriedade, inexistindo nos autos perícia comprobatória do excesso de barulho. Que o direito à liberdade religiosa e o exercício de culto não podem ser restringidos, desde que exercidos nos termos autorizados pela lei. Que os condôminos que depuseram, às fls. 142/147, devem ser considerados como mero informantes ante seu interesse direto no deslinde da controvérsia.

A autora contrariou o recurso, às fls. 193/200, sustentando a manutenção da decisão monocrática visto que suficientemente comprovados os fatos alegados em sua inicial a indicar as perturbações causadas à coletividade pelo mau uso da propriedade feito pelos apelantes.

É o relatório.

Ao Exmo. Desembargador Revisor.

Rio de Janeiro, 20 de julho de 2001.

Desa. Leila Mariano

Relatora

Voto

Verifica-se, na hipótese, a existência de conflito entre dois interesses diversos, sendo que ambos gozam das devidas prerrogativas de proteção legal.

Por um lado, a pretensão dos condôminos, membros da associação autora, de terem preservados seus direitos de sossego e recato e de exigirem do vizinho a correta utilização de sua propriedade, de acordo com as normas vigentes. De outro, temos os réus, na qualidade de proprietários também amparados juridicamente no sentido de dar ao seu imóvel a pretendida destinação, bem como a possibilidade de cultivarem sua fé religiosa com plena liberdade.

Diante desta situação, deve o intérprete do direito sopesar as argumentações e avaliar a possibilidade de convivência harmônica entre as duas espécies de direitos. Nos direitos de vizinhança, efetivamente, em espaço a máxima segundo a qual o direito de cada um termina onde começa o direito de seu semelhante.

Nenhum dos direitos consagrados em nosso ordenamento jurídico é de natureza absoluta. Até mesmo o direito à vida cede quando verificamos a possibilidade da instauração da pena de morte em tempos de guerra e ante a licitude da conduta daquele que mata em legítima defesa.

O direito do proprietário deve se compatibilizar com as normas de ordem pública e edílicas, bem como com o interesse privado dos confinantes e vizinhos, de modo a se garantir a paz social. Nestes termos, a referência constitucional do art. 5º, XXIII, referente ao cumprimento da função social da propriedade, deve ser entendida amplamente, com o fito de resguardar as duas hipóteses.

No caso sob análise, ao contrário do que sustentam os recorrentes, ficou efetivamente provado que estes não fazem o uso correto de sua propriedade. A prova documental carreada aos autos, bem como o depoimento das testemunhas efetivamente demonstrou que, no imóvel dos réus, são realizadas cerimônias de cunho religioso, com cânticos e acompanhamento de instrumentos musicais, em horários tardios. Por ocasião destes eventos, há também um grande tráfego de veículos estranhos ao condomínio, os quais, muitas vezes, estacionam em locais proibidos, não permitindo a entrada e saída dos vizinhos.

A fim de que ambos os preceitos constitucionais sejam respeitados, prudente se faz a normatização do uso da propriedade por parte dos réus, de forma a permitir que estes também usufruam de seu direito, não menos protegido, de liberdade de culto e de reunião.

Desta feita, correto que os apelantes possam realizar os pretendidos encontros religiosos em sua propriedade, desde que estes terminem até as 22h, impreterivelmente, inclusive no que se refere à saída dos visitantes, que também é um fator de perturbação do sossego da vizinhança.

Por outra, somente se faz possível o acesso de dois veículos (além daqueles que ocupem a garagem interna), sendo que estes devem obrigatoriamente ficar estacionados na àrea reservada a visitantes ou na calçada dos réus, sem prejudicar a fluência do trânsito.

O descumprimento destes preceitos importará no pagamento de multa no valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais) por dia e por veículo, em favor do condomínio.

Nestes termos, conhece-se do recurso e lhe é dado provimento parcial.

Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2001.

Des. Gustavo Kuhl Leite

Presidente

Desa. Leila Mariano

Relatora