Fé cristã e Antigo Testamento (MC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

Há, é preciso reconhecê-lo, algum incómodo da parte dos cristãos quando lêem certas passagens do Antigo Testamento onde se fala de massacres de populações inteiras, ou desonestidades como as de Abraão, ou de mesquinhas atitudes tomadas pelo rei David, que no entanto é apresentado como um poeta inspirado e protótipo do Messias. E no entanto o Antigo Testamento desde o princípio da Igreja Cristã é reconhecido, como o era para o povo judeu antes de Jesus Cristo (e continua sendo), texto sagrado, Escritura. Quando o autor da Segunda Epístola a Timóteo escreve: Toda a Escritura, divinamente inspirada, é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda a boa obra. 2ª Timóteo 3:16 é do Antigo Testamento que fala, pois o Novo Testamento ainda estava em preparação, sem que os seus autores tivessem disso consciência. Os Evangelhos mostram que Jesus, como zeloso crente judeu, manteve por essas Escrituras toda a veneração, e não há um só momento de onde possamos inferir que ele tivesse como projecto fazer substituir tais textos. No Sermão da Montanha, que podemos chamar o programa do seu ministério, ele diz claramente: Não cuideis que vim destruir a Lei ou os Profetas; não vim abrogar, mas cumprir. Porque em verdade vos digo que até que o céu e aterra passem, nem um jota nem um til se omitirá da Lei, sem que tudo seja cumprido. Mateus 5:17/18 É bem do Antigo Testamento que Jesus fala, tal como também é da mesma Escritura que alude quando na parábola do rico e de Lázaro diz: Têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos. Lucas 16:19/31 No Livro dos Actos dos Apóstolos, vemos que os apóstolos e outros pregadores era a partir das Escrituras que testemunhavam de Cristo. Pode argumentar-se que isso acontecia porque a pregação cristã começava por se dirigir ao povo judeu, leitor das Escrituras, não sendo a Escritura o ponto de partida quando se pregavam diante de gentios (Exemplo: Actos 17:15 ss), mas o facto é que, mesmo na Igreja maioritariamente gentílica que se veio a formar, o Antigo Testamento tem total aceitação. Ousadia foi, para a Igreja nascente, considerar as cartas paulinas, os evangelhos, etc. como “textos sagrados”, mas não levaram a sua ousadia ao ponto de recusar o Antigo Testamento, mesmo quando o infeliz ódio aos judeus manchou o pensamento cristão. O “Didaqué”, ou o “Ensino do Senhor Através dos Doze Apóstolos”, um dos livros cristãos fora das Escrituras cristãs mais antigo que se conhece, talvez tão antigo como o livro de Apocalipse, mostra que na Igreja Primitiva citava-se com abundância o Levítico, o Deuteronómio, os Salmos, os Provérbios, o livro de Eclesiastes. Não cita todos os livros, como não cita todos os do Novo Testamento, mas o que importa realçar é que para os primeiros cristãos, no Didaquê, o Antigo e o Novo Testamento eram lidos sem distinção. Outro texto não canónico muito importante é a Carta de Clemente Romano, do princípio do II século e nessa carta há inúmeras citações de livros do Antigo Testamento, entre os quais Génesis, Deuteronómio, Salmos, Isaías. Em toda a Idade Média manteve-se a mesma atitude em relação ao Antigo Testamento: quando a Escritura era tida como fonte de revelação para a Igreja, era-o nos dois Testamentos.

No que diz respeito às Igrejas nascidas da Reforma protestante do século XVI, tanto quanto se pode conhecer, reconheceram o Antigo Testamento como parte legítima da Escritura e esta no seu todo como “única regra de fé e prática”. Todas as grandes confissões ou declarações de fé da Reforma incluem um parágrafo de reconhecimento da Escritura (Antigo e Novo Testamento) como a única fonte de revelação para os cristãos.

A única frase desdenhosa em relação a uma parte do texto bíblico vem de Lutero e não tem de ver com o Antigo mas com o Novo Testamento. É quando ele chama à Epístola de Tiago “a Epístola da Palha”, por achar que o apóstolo dá um valor excessivo às “boas obras” (mas o Protestantismo em geral não aceita esta crítica, pois Tiago não diz nada diferente de Paulo). Os reformadores não fazem uma distinção entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento, que é o mesmo, por esta razão: eles defendem o princípio da “Sola Scriptura”, isto é, a revelação de Deus vem apenas pela Escritura; mas também defendem o princípio da “Sola Gratia”, ou seja, a justificação vem pela graça, por meio da fé em Jesus Cristo. Portanto, Cristo é o centro da Fé Cristã e não há nada no Antigo Testamento que possa ser lido a outra luz. Jesus Cristo é a chave hermenêutica da Bíblia. João Calvino, o primeiro teólogo a publicar uma obra sistemática do pensamento da Reforma, justamente nessa obra realça que a Lei moral e ritual do Antigo Testamento era um pedagogo ou aio que conduzia a Cristo, no que aliás repete São Paulo em Gálatas 3:24. E diz Calvino: “Como Jesus Cristo não se tinha ainda manifestado intimamente, eram semelhantes a meninos cuja rudeza e pouca capacidade  não pode penetrar completamente nos mistérios das coisas celestiais “ (Constituição da Religião Cristã, Livro II, cap. VII, par. 2). Penso que não é abusivo associar esta palavra de Calvino à de São Paulo na 1ª Coríntios 13:11, onde diz: Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino; mas, quando cheguei a ser homem desisti das coisas de menino. Não se pode deixar de perceber no discurso do Cristianismo nascente a convicção de que com Jesus Cristo a História chegara a um tempo crucial, uma força nova tornara-se presente e revolucionava o mundo. Os cristãos não sentem ter recebido uma nova religião, mas que havia agora o Poder decisivo em acção. Hebreus 1:2 regista esse pensamento: Nestes últimos dias, [Deus] falou-nos pelo Filho: tudo se fez novo, incluindo a interpretação que se fazia do Antigo Testamento. É essa nova interpretação que começa por fazer o próprio Autor e  Consumador da fé, Jesus Cristo, quando no Sermão da Montanha, apresentado como o programa do tempo novo que ele inicia, declara solenemente: Ouvistes o que foi dito aos antigos e Eu, porém, vos digo. Não põe a palavra revelada aos antigos de parte Mateus 5:17/19, mas faz uma leitura mais exigente, mais desafiadora. Já não nos podemos contentar com a letra, com o cumprimento literal do que foi dito, mas temos que aprofundar tudo tendo em conta o facto de o Reino de Deus ter entrado nos horizontes do homem: o Reino já está no meio de nós. Lucas 17:21 Os cristãos têm o direito, têm o dever de não permitirem que o Antigo Testamento seja lido à letra (não aprendemos com a questão do sábado? Não aprendemos com a questão da mulher adúltera?), mas não pode permitir-se também fazer do Antigo Testamento um contra-senso ou recusá-lo sob o pretexto de liberdade. Paulo argumenta na Carta aos “insensatos Gálatas” contra as exigências do judaizantes que queriam tomar à letra os rituais do Antigo Testamento, mas não desdenha da antiga revelação. Como saberá o cristão o que é pecado se não conhecer o que a Lei diz?

O modo abusivo de certos grupos religiosos lerem e querem impor a outros  leituras legalistas do Antigo Testamento pode levar alguns cristãos a desejar o abandono do Antigo Testamento, mas o pecado do ser humano é de tal força que não é abolindo essa parte riquíssima da Bíblia que se evitará o abuso e o fanatismo. O que teríamos, se  tivéssemos a possibilidade de optarmos por um Cristianismo sem o Antigo Testamento era um Cristianismo empobrecido, que não seria realmente verdadeiro Cristianismo. O teólogo suíço Robert Martin-Achard publicou há vinte anos um pequeno mas precioso livro sobre a Lei do Antigo Testamento, onde escreveu este período, com que estamos totalmente de acordo: “Tem-se dito muito mal da Lei em certos meios cristãos. Tentou-se desembaraçar-se dela sob o pretexto de nos desculpabilizar. Vê-se hoje onde conduz essa pretensa libertação. A Tora [Lei], tal como a compreende o conjunto do Antigo Testamento, revela-se pelo contrário a própria condição da liberdade, uma fonte de vida e de felicidade para aquele que descobre nela a presença de Deus” (La Loi, p.74).

Deus não muda do Antigo para o Novo Testamento: é o mesmo, descrito de modos diferentes. É à luz de Jesus Cristo que nos damos conta do verdadeiro rosto de Deus. Saulo de Tarso, quando perseguia os cristãos, respirando ameaças, tinha forçosamente uma concepção de Deus muito adequada ao seu ódio. Ele era zeloso e conhecia bem as Escrituras. Gálatas 1:13/14 Depois teve o encontro com Jesus Cristo – e veio a escrever a Carta ao Coríntios com esse admirável capítulo sobre o amor. Foi Deus quem mudou? Não, foi Paulo que mudou, uma nova luz fê-lo perceber uma realidade que existia desde sempre e ele ignorava. Voltou a ler o Antigo Testamento, sem dúvida. E agora já o lia de outra maneira.

Há dias contei a uma menina de doze anos que não lê a Bíblia a história das duas mães que foram pedir ao sábio rei Salomão que decidisse qual delas ficaria com o bebé sobrevivente. 1º Reis 3:16/28 Não juntei à história nenhum comentário moralista, não fiz nenhuma aplicação espiritual. Apenas contei a história – e a menina ficou de olhar brilhante, encantada com a sabedoria do rei e o amor da mulher que quis o menino vivo, mesmo que entregue a outra.

Que grande perda teríamos, enquanto cristãos, sem as histórias luminosas do Antigo Testamento, e as narrativas que não escondem os aspectos fracos de Abraão, de Moisés, de David? Sem a espiritualidade dos Salmos, mesmo que alguns Salmos apresentem orações de ódio (mas são sentimentos muito humanos), sem a sabedoria de Provérbios e mesmo do livro de Eclesiastes? E como é elogiado o amor humano no Cântico dos Cânticos! No Brasil publicou-se há anos a tradução na nossa língua de um livro de R.B.Y. Scott com o título muito significativo: “Os profetas de Israel, nossos contemporâneos”. É uma verdade indiscutível: os profetas, Isaías, Jeremias, Daniel, Zacarias, Amós, Oséias, têm muito a dizer ao mundo actual, sobre justiça social, sobre a santidade de Deus, sobre a esperança do Reino que depois Jesus veio anunciar. É claro que o que está errado é darmos atenção a livrecos que pessoas incultas e provavelmente oportunistas escrevem a descobrir fantasias futuristas nos livros do Antigo Testamento. O Antigo Testamento tem muito de bom a dar-nos, mas temos sempre de ser sensatos e não nos deixarmos enganar por falsos mestres.

Manuel Pedro Cardoso

Figueira da Foz – Portugal – Maio de 2006

 

 

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas