Crianças feiticeiras (CC)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
1 - Introdução
Há
tempos, apareceu nas nossas TVs em Portugal, e não
sei se também no Brasil, a seguinte notícia sobre Angola, que transcrevo da página
da RTP (Rádio Televisão Portuguesa) na internet.
http://ww1.rtp.pt/noticias/?article=369548&visual=26&tema=2
Luanda, 23
Out (Lusa) - Cerca de 40 crianças angolanas, acusadas de serem feiticeiras,
foram hoje retiradas pela Polícia Nacional a duas igrejas ilegais, em Luanda,
onde se encontravam para serem “curadas do mal”.
Os líderes
religiosos das igrejas ilegais, localizadas no bairro Uige,
no município do Sambizanga em Luanda, que tinham em
sua “posse” as crianças, foram detidos na operação de resgate dos menores.
Segundo o
administrador do município do Sambizanga, José
Tavares Ferreira, as crianças, com idades compreendidas entre um e 15 anos,
encontravam-se retidas no interior de duas casas que serviam de igrejas, na
comuna do Ngola Kiluange (Sambizanga).
Entre o
grupo de crianças hoje levadas para o Lar Kuzola, que
acolhe crianças em dificuldades em Luanda, quatro estão hospitalizadas em
estado grave, devido aos maus-tratos a que foram submetidas para serem
“libertadas” dos “maus espíritos”.
“As crianças
sofreram maus-tratos, foram castigadas e isso vê-se no aspecto delas. Quatro
estão hospitalizadas em estado grave porque foram encontradas com feridas a
gangrenar”, disse à Lusa José Tavares Ferreira.
De acordo
com o administrador do Sambizanga, o processo de
investigação que durou cerca de 15 dias, teve início depois de uma denúncia
feita por populares residentes na zona.
Neste
processo estiveram envolvidas, as delegações provinciais dos ministérios da
Justiça, da Assistência e Reinserção Social, da Cultura e o Instituto Nacional
de Assuntos Religiosos.
“A
investigação já começou há 15 dias. Tínhamos que fazer o trabalho com muito
cuidado para não permitir que eles fugissem ou fizessem qualquer coisa que não
permitisse o sucesso do trabalho”, disse José Tavares Ferreira.
José Tavares
Ferreira referiu ainda à Lusa que estas igrejas denominadas “Igreja de Revelação
do Espírito Santo de Angola” e “Igreja Boa Fé” são oriundas da província do
Zaire, região onde os casos de crianças maltratadas sob acusação de serem
feiticeiras são mais graves em Angola.
“A situação
é grave, mas o mais chocante é que são os próprios pais que levam os filhos
para essas igrejas. Há crianças que estão nesses locais há mais de um ano e
temos a informação de que aos fins-de-semana chegam a aparecer nessas igrejas
cerca de 500 crianças”, sublinhou.
Segundo o
administrador, o contacto com os familiares dessas crianças não foi possível.
O problema
das crianças acusadas de feitiçaria ou serem feiticeiras assume em Angola
proporções que as autoridades e o Instituto Nacional da Criança (INAC) admitem
como grave.
O fenómeno,
segundo vários estudos publicados na área da sociologia, tem origem em questões
ancestrais, sendo a sua prática oriunda da tradição Bantu, que integra a quase
totalidade do território angolano, onde um dos aspectos mais importantes é a
crença de que as crianças encarnam os maus espíritos e são responsáveis pela
“má sorte” das famílias.
Mas, a par
desta realidade ancestral, há ainda as dificuldades de subsistência das
famílias onde o fenómeno ocorre, o que serve de catalisador para o problema
porque é uma forma de estas se livrarem de uma boca para alimentar.
As áreas
geográficas onde as acusações de feitiçaria a crianças são mais significativas
situam-se a norte do país, junto às fronteiras com a República Democrática do
Congo e Congo-Brazzaville (países onde o problema é igualmente grave)
nomeadamente o Uige, Zaire, as Lundas, Norte e Sul, e
Cabinda.
O crescente
surgimento de casos em Luanda resulta do facto de a guerra de 27 anos, que até
2002 assolou o país, ter obrigado milhares de famílias destas regiões a
procurar refúgio na capital angolana.
Tanto o
Governo como as organizações da sociedade civil e as igrejas, com destaque para
a Católica, têm apostado no combate a estas práticas através de campanhas de
sensibilização, criação de centros de acolhimento e ainda na perseguição aos
autores dos crimes perpetrados contra as crianças.
Espancamentos,
jejuns prolongados, queimaduras e enclausuramento em espaços exíguos são alguns
dos “tratamentos” aplicados que as autoridades detectam quando resgatam
crianças acusadas de feitiçaria.
NME/RB.
Lusa/Fim
© 2008 LUSA
- Agência de Notícias de Portugal, S.A. 2008-10-23 15:55:02
2 - Origem do problema
Não
nos compete julgar os acusados, mas numa página de reflexão e investigação
teológica, limitar-nos-emos a tentar compreender as causas do problema, e
espero que não me perguntem o que são “igrejas ilegais” num país onde há
liberdade de religião.
Penso
tratar-se duma igreja do “Protestantismo africanizado”, expressão que José
Júlio Gonçalves utilizou no seu livro “Protestantismo em África”, publicado
pela antiga Junta de Investigações do Ultramar no ano de 1960 (1º Volume, pag. 168). Segundo este investigador e historiador, que
reflecte sobre a realidade africana em geral no ano de 1960, o protestantismo
africanizado é constituído por igrejas, seitas e confissões, ou
denominações, que introduziram, em regra, mudanças profundas nas doutrinas de
que irradiaram…. Segundo este autor, estas igrejas surgiram por imitação,
como uma reacção às igrejas dos brancos, ou foram provocadas pelo apartheid ou
segregação racial sul-africano.
Mas
claro que nem todas as igrejas do Protestantismo africanizado tem casos de
crianças feiticeiras. No sul de Moçambique, onde conheci estas igrejas, nunca
me constou que houvesse crianças acusadas de feitiçaria, pois segundo afirma o
artigo publicado na RTP, trata-se duma tradição do povo bantu, do outro lado de
África, na sua costa ocidental.
No
caso particular de Moçambique, segundo pude observar pessoalmente nessa época,
no sul desse país, penso que a formação dessas igrejas se deve a dois factores
desse contexto histórico.
Em
primeiro lugar a falta de liberdade religiosa, que levou alguns crentes
africanos que voltaram do trabalho nas minas de ouro da África de Sul, onde
tomaram contacto com o Evangelho, a formar igrejas, com muita boa vontade mas
falta de preparação teológica, cujo resultado foi uma mistura de tradições
evangélicas, islâmicas e africanas.
Em
segundo lugar, o facto do vulgar africano dos meios rurais, com pouca cultura, ter
muito mais facilidade em aceitar uma nova crença do que em abandonar uma crença
antiga, além da sua apetência por símbolos e objectos religiosos. Assim,
acabaram por fazer uma “síntese” de tudo que viam nas religiões, como me foi
possível observar: Se os protestantes dão ênfase à Bíblia, eles aceitaram a
Bíblia e todos tinham uma bíblia, mesmo que não soubessem ler. Se os católicos
têm as vestes sacerdotais, eles também arranjaram coisa semelhante para todos.
Se os islâmicos rejeitam a carne de porco e bebidas alcoólicas, eles também
rejeitam. A tudo isso, juntaram evidentemente, as suas tradições culturais
africanas, como o culto dos espíritos e o culto dos seus antepassados.
3 - Na actualidade
Já
estou em Portugal há mais de 30 anos e nunca mais voltei a esses locais. Embora
tenha informação de que a situação está muito melhor, eu não vi pessoalmente.
Em 2004, voltei a Moçambique e tive oportunidade de visitar algumas zonas do
interior, mas foi no norte de Moçambique, em zona islâmica onde os problemas
são bem diferentes e a população mais evoluída, embora essa evolução não
signifique ocidentalização.
No
caso de Angola (que não conheço a não ser a sala de trânsito do aeroporto de
Luanda), certamente que a desorganização provocada por uma prolongada guerra
civil e a falta de liberdade de informação tenham como consequência a
desorganização das igrejas. Há africanos que em jovens vieram estudar para
Portugal e por cá ficaram, tendo perdido o contacto com seus familiares e as
aldeias onde nasceram foram completamente arrasadas ou simplesmente já nem
existem.
4 - Qual a atitude correcta perante estes fenómenos religiosos?
Se
Angola é um país livre e um país laico, não deverá essa liberdade ser para
todos e para todas as religiões? Certamente que as autoridades angolanas não
poderão orientar-se por ideais teológicos na abordagem deste problema.
Penso
que o tal “protestantismo africanizado” também tem direito a existir, tal como
as outras religiões e igrejas. Mas o direito à liberdade religiosa tem de estar
subordinado às leis civis, não só nestes casos como em todos os outros. Aquilo
que para uns é crime, para outros poderá ser acto de louvável obediência aos
seus preceitos religiosos, muitas vezes rejeitados pela maioria da população.
Se
algumas atitudes das religiões são até certo ponto toleráveis, como é o caso da
discriminação entre os seus membros, nomeadamente a discriminação sexual, com
fundamento nos livros religiosos (Bíblia e Alcorão), quando as vítimas das
religiões são crianças indefesas que chegam a ter as suas vidas em perigo,
penso que será altamente desejável uma intervenção das autoridades em
obediência à Lei civil.
Penso
que todas as religiões são perigosas e há que colocar limites à liberdade de
religião baseados nos direitos do indivíduo. Afinal, foram os cidadãos de
Angola ou de outros países que elegeram os seus governantes, para que estes os
protegessem.
Tenho
muito receio quando se fala nos direitos das religiões ou direitos das igrejas,
pois tal nem sempre significa direitos do indivíduo, e muitas vezes está em
contradição com os direitos dos que professam tal religião. Nunca uma igreja
teve tantos direitos como a Igreja Católica na Idade Média. Mas será que
podemos falar nos direitos dos católicos dessa época?
Sou
a favor da liberdade de religião porque aceito a liberdade dos indivíduos
aderentes a determinada religião, que deverão ter a última palavra nas decisões
mais importantes, desde que não colidam com a legislação do país. Esse é um dos
motivos que me separam das igrejas hierarquizadas como a Igreja Católica, e
algumas igrejas protestantes, embora em muitas igrejas protestantes ou
evangélicas a liberdade e responsabilidade dos leigos não funcione senão em
teoria, devido à desorganização, autoritarismo dos pastores e falta de
preparação do leigo.
5 - Conclusão
Em
conclusão, quero afirmar que, embora sendo a favor da liberdade de religião de
todo o cidadão, o que implica a liberdade de se organizarem em igrejas, mesquitas,
sinagogas ou outras organizações religiosas, e considerando que o tal
“protestantismo africanizado” também tem os seus direitos enquanto houver
cidadãos que o defendam, considerando que há vítimas indefesas do procedimento
de certos grupos religiosos, considero altamente louvável a intervenção das
autoridades angolanas nesse caso das “crianças feiticeiras”.
Considero
tal intervenção das autoridades angolanas não só louvável, como não podemos ignorar
os seus efeitos didácticos, para que todas as religiões,
sintam que a liberdade religiosa tem limites. Antes que os fanáticos
fundamentalistas judeus, cristãos ou islâmicos se lembrem de aplicar a pena de
morte por motivos teológicos, alegando que estão a cumprir os preceitos dos
seus livros religiosos, como já aconteceu no passado.
Camilo – Marinha Grande
Novembro
de 2008.
Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas
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