Cidadania,
edifício inacabado (José Dias Bravo)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Nunca o
conceito de cidadania ganhou tanta ressonância pública e social como nos dias
de hoje. Só que os seus contornos e limites estão longe de ser definitivos de
modo uniforme no concerto das Nações e dos Estados.
Enquanto para
determinadas Sociedades o conceito de Cidadania ganha expressão na plenitude
dos direitos humanos desenvolvidos e postos ao serviço do bem comum, para
outras, sofre o conceito constrições individuais impostas por uma concepção
social ou histórica.
O nosso
ordenamento tem como fonte jurídica da cidadania a Constituição.
Aí se
proclama que a arquitectura jurídica da República Portuguesa é a de um Estado
de direito, indispensável pano de fundo para a plenitude do exercício da
cidadania, aí se enuncia que ninguém pode ser perseguido, excluído,
marginalizado ou ostracizado pela cor da pele, em razão do sexo ou pela via do
credo que professar.
É, pois, a
Constituição o Programa do Estado para a cidadania, que define os seus próprios
direitos e deveres para a promoção do bem estar e da
qualidade de vida dos cidadãos portugueses.
Mas também
constitui o repositório dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos
portugueses dentro e para a definição e exercício da cidadania.
Aliás, não há
cidadania que se possa desenvolver sem a plenitude do exercício dos direitos e
liberdades fundamentais dos homens e das comunidades que estes integram.
Entre estes
contam-se os direitos, liberdades e garantias pessoais, tais como - e
exemplificando - o direito à vida e à integridade pessoal, o direito à
liberdade e segurança, a liberdade de expressão e de informação, e sobretudo,
porque em nosso entender constitui a expressão mais autêntica do exercício das
liberdades a liberdade de consciência, religião e de culto.
No início
deste ano, tendo como projecção o novo milénio ainda no seu dealbar, e agora
visionando a situação portuguesa, há que repensar o exercício em Portugal da
cidadania sobretudo no que concerne à liberdade religiosa.
A religião
oferece à consciência de cada indivíduo a presença de um Deus Supremo, fora e
acima dele mas ao mesmo tempo com ele interagindo, sempre presente, omnisciente
e omnipotente que representa, afinal e na realidade concreta, o garante da
liberdade de cada homem.
Para nós, e
agora no plano da Mensagem de Cristo, desenvolve-se a liberdade religiosa no
domínio da libertação de todas as formas de escravidão, o que diz bem do seu
relevo e importância quer para o indivíduo quer para a Comunidade.
Recordemos a
propósito as Palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo que o Evangelho segundo São
João revela de modo lapidar:
“Se,
pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” Evangelho de São João 8:36.
Nesta
perspectiva, a cidadania e, até, o edifício do Estado de Direito passam pelo
desenvolvimento de todos os direitos individuais sem excepção ou constrição de
qualquer deles.
Em Portugal,
porém, quer historicamente quer ainda hoje, a cidadania sofre de uma amputação
ou de uma exacerbada limitação no tocante a um dos direitos fundamentais: o da
liberdade religiosa.
Qualquer
análise histórica e sociológica evidencia que a Sociedade portuguesa está
estigmatizada por dois grandes factores neste domínio:
- Falta de
liberdade e intolerância religiosas desde sempre, apenas interrompida por
brevíssimo período temporal (1916-1936) e mesmo assim com fortes limitações.
- Hegemonização
de uma Igreja dominante, a Igreja Católica, de braço dado com o poder político,
única até 1911 e favorecida desde 1940 por uma Concordata claramente privilegiadora.
Estes dois
factores deixaram na Sociedade portuguesa traços significativos de
intolerância, perseguição, preconceitos e obscurantismo que nos nossos dias se
revelam ainda na prática de órgãos do Estado.
Esperava-se
que com a publicação da Lei de Liberdade Religiosa, todos estes factores
tendessem a desaparecer e começasse a surgir à luz do dia um novo conceito de
cidadania onde coubessem todos os portugueses sem excepção.
Pensava-se
que com a Lei de Liberdade Religiosa desaparecesse a distinção entre cidadania
de primeira, para uns com todos os direitos e benefícios - os portugueses
católicos mesmo que não militantes ou até formalmente crentes - e cidadania de
segunda, para os crentes das outras confissões, apesar do seu relevo histórico
na Europa e no Mundo.
Porém, a
publicação no decurso do ano 2001, em 22 de Junho, da Lei nº 16/2001, da
Liberdade Religiosa, esteve longe de construir o novo edifício da cidadania ou
se se preferir do Estado de direito para que aponta a Constituição.
É que esta
Lei, ao ressalvar no seu artigo 58º a vigência da Concordata e de toda a
legislação aplicável à Igreja Católica, já existente ou a construir, acabou por
manter no Estado Português um duplo e equívoco conceito de cidadania em matéria
de liberdade religiosa, continuando a existência de cidadãos de primeira e de
segunda.
Para os
primeiros, que sempre tiraram proveito da falta de liberdade religiosa, a
continuação de um sistema - o da Igreja Católica - autónomo do próprio Estado
em que este vai ao ponto de abdicar até da sua própria concepção e filosofia,
permitindo a interpretação das normas concordatárias segundo a visão da
própria Igreja Católica mesmo em aspectos atinentes em exclusivo ao Estado.
Para os
segundos, que sempre sofreram e sentiram a falta de liberdade religiosa a Lei
de Liberdade Religiosa e ainda com todas as limitações e constrições que dela
decorrem para a plenitude da liberdade religiosa.
Em suma,
dir-se-ia que uma Lei que deveria servir para uma reposição histórica de um
exercício da liberdade religiosa nunca vivida em Portugal mantém a situação
anterior que se queria reformar e rever, continuando uma Igreja - a Católica -
com a situação privilegiada anterior.
Ainda mais,
para se observar como a liberdade religiosa é o parente pobre da cidadania em
Portugal: dispondo a Lei, no seu artigo 69º que no prazo de 60 dias deveria ser
publicada legislação sobre o registo das pessoas colectivas religiosas e
dispondo as confissões e associações religiosas existentes de determinado prazo
para requerer a sua conversão em pessoa colectiva religiosa, ainda tal
legislação não foi publicada não dando o Governo qualquer sinal positivo nesse
sentido.
Todavia, um
sinal negativo e de grande insensibilidade veio a ser dado com o cancelamento
do registo das associações religiosas existentes, olvidando-se todo o cortejo
lesivo daí resultante.
O panorama que
fica descrito sobre a cidadania em Portugal demanda no início deste ano uma
vigilância atenta de cada um de nós.
Mas sobretudo
requer que no nosso conceito diário de oração e comunhão com Deus intercedamos
para que os órgãos do poder político sejam divinamente sensibilizados para uma
mudança efectiva da arquitectura jurídica do Estado Português, com a
consagração de um conceito pleno de cidadania. Até porque, como Paulo escrevia
aos crentes em Filipos Filipenses 3:20,
como cidadãos do Céu, conhecemos Aquele que tem poder para dominar todas as
coisas.
Este
artigo, de autoria do Dr. José Dias
Bravo, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça ex-vice Procurador Geral, foi transcrito da revista "Liderança
Hoje" Janeiro/Março de 2002.
O Dr. José
Dias Bravo, membro da Igreja dos Irmãos, faleceu em 2003.
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