Ceia do Senhor, Santa Ceia,
Eucaristia, Missa (CC)
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
Origem deste estudo
Recebi há dias, a seguinte mensagem pela
internet, do jovem irmão Wladkson Cardoso Ferraz,
crente da cidade de Contagem, perto de Belo Horizonte, no Estado de Minas
Gerais. – Brasil (Wladkson@yahoo.com.br).
“Querido irmão Camilo
Acordei hoje às 5 horas e
fiquei pensando algumas questões que me trouxe a lembrança do amigo. É
justamente sobre a ceia praticada nas igrejas e a obrigatoriedade do batismo
pensei em consultar o irmão, que considero um ótimo teólogo, pois além de ter
uma mente aberta, não está preso a nenhuma denominação ou instituição humana e
não recebe dinheiro pelo que escreve.
Tenho observado que as igrejas têm
praticado o rito da ceia com mais frequência. Durante o culto da ceia o pastor
prega que só deverão participar os membros daquela igreja e somente aqueles que
estão em dia com o Senhor. Neste está em dia, além da conduta de cristão deixa
subentendido o pagamento dos dízimos e ofertas. Sinto que os fiéis adoram a
ceia e isto justifica o aumento dessa celebração que tem trazido mais fieis aos cultos. Sobre o batismo estive a pensar se é obrigatório
do ponto de vista bíblico e se tem de ser ministrado por um pastor ou membro
graduado de uma igreja. Hoje, me sinto mais experiente na vivência do
evangelho, apesar de ainda estar tomando leite, porém, me considero membro da
Igreja espiritual de Jesus Cristo, que não tem paredes e janelas, e a porta é o
próprio Jesus. Entendo que os membros dessa Igreja estão espalhados nas
denominações e até mesmo na igreja católica. Acredito que para entrar nessa
Igreja basta ter fé e aceitar o Senhor Jesus como salvador pessoal, abrir a
mente e o coração para o Espírito Santo transformar o viver e o ser.
Até hoje, não encontrei
sustentação bíblica que obriga o cristão seguir essa ou aquela ordenança ou
regra. Quando a pessoa se converte a Cristo, ela automaticamente abandona as
práticas grosseiras contrária ao evangelho e ao deixar o Espírito Santo fazer
morada em si, estará automaticamente sendo submetida a Sua influência que o
transformará em uma nova criatura (filho de Deus).”
Caro irmão Wladkson
A pergunta que me fazes, sobre a Ceia do
Senhor, vem mesmo a propósito, pois tenho estado a pensar nisso e tenho um
artigo quase pronto. Talvez o Senhor te tenha acordado às 5 da manhã para me
repreender por ainda não o ter colocado na minha página da internet. Afinal,
depois de estudar umas coisas que não aceitei por verificar que se baseiam mais
na tradição do que nos evangelhos, orei ao Senhor para me orientar, escrevi
umas linhas e deixei ficar no meu computador... Talvez por falta de fé e porque
algumas afirmações do meu artigo são um tanto polémicas e contradizem muito do
que se tem feito. É verdade que no meu artigo faço mais perguntas do que
afirmações, pois afinal sou um estudante de teologia como é também o teu caso e
não sou assim tão bom como julgas. Talvez seja esse o motivo porque ainda não
coloquei esse artigo na minha página da internet. Obrigado pela repreensão que
o Senhor me dirigiu por teu intermédio. Vou apresentar o artigo, mesmo com as
dúvidas e perguntas que coloco. Só te peço autorização para mencionar a tua
pergunta e o teu nome na introdução do meu artigo.
Tenho estado a pensar na afirmação que
fazes de eu não estar preso a nenhuma denominação nem receber dinheiro pelo que
escrevo. Na verdade, não sou membro de nenhuma igreja, e bem sei que é por isso
que muitos me contactam, muitos que são desiludidos como eu, ou excluídos como
eu, mas isso não significa que seja indiferente ou que não colabore com as
igrejas. Parece que não faria muito sentido dizer que sou presbiteriano, mas
também sou batista e sou da igreja dos irmãos etc. Assim, tenho de dizer que
não sou de nenhuma igreja, mas me identifico com a Igreja do Senhor assim como
os que me contactam pela internet. Já me têm perguntado: “Que é que ganhas em
contactar com essas pessoas pela internet? Qual a igreja que vai crescer e
beneficiar do tempo que perdes e da despesa que fazes? Onde estão as pessoas, e
para onde vão elas contribuir?”
Penso que é um desafio que o Senhor nos
coloca, contactar com pessoas não só em Portugal, mas principalmente no Brasil
e também em África e na Índia, orar por elas e viver os seus problemas sem
qualquer interesse além de servir ao Senhor. Isso nos dá uma melhor visão da
grande Igreja do Senhor, que quando o nosso Mestre vier, se levantará enquanto
as igrejas chegarão ao seu fim. Quando no ano passado visitei o Brasil, pude
verificar como se vai tornando cada vez mais real a Igreja do Senhor, ao
conhecer pessoalmente muitos dos irmãos que só conhecia da internet,
principalmente nos estados do Paraná e Minas Gerais. Penso que nos nossos dias,
muitos desconfiam do “amor” dos crentes e por vezes até têm razão, quando até o
amor se transforma em técnica para se conseguir mais membros e aumentar a
receita de determinada igreja.
Com um abraço do teu companheiro no
estudo das Escrituras
Introdução
Ceia do Senhor, ou Santa Ceia, ou
Eucaristia, ou Missa, ou o Partir do Pão, são os nomes mais vulgares deste
ritual, ou sacramento, ou ordenança, de acordo com as várias tradições
teológicas, celebrado periodicamente nas igrejas cristãs.
Eu preferia chamar-lhe simplesmente “a
refeição do Senhor”. Bem sei que o nome “refeição” é demasiado vulgar e talvez
um tanto chocante para algumas mentalidades mais tradicionalistas e
ritualistas, mas penso que é o mais indicado para nos aproximar da simplicidade
do primitivo cristianismo.
Origem da refeição do Senhor
Examinando os textos tão conhecidos em Mateus 26:26/29,
Marcos 14:22/25,
Lucas 22:14/20,
Actos 2:42/47
e 1ª Coríntios
11:23/26, verifica-se que o simbolismo da refeição do Senhor não foi
instituído durante o culto no Templo ou nas sinagogas, mas numa refeição da
Páscoa em casa particular. (Poderá “clicar” nas referências bíblicas para ter
acesso aos textos)
A maioria dos estudiosos da Bíblia
afirma que a Ceia do Senhor teve origem na Páscoa judaica a que o nosso Mestre
deu novo significado, mas outros teólogos afirmam que é mais nítida a relação
da Ceia do Senhor com a Kidush, refeição judaica em
que o pão e o vinho, comidas simples nessa cultura, eram tomados em comum. Não
há dúvida de que, nas descrições dos evangelhos já citadas, os escritores
neotestamentários dão uma grande ênfase ao pão e ao vinho e não encontramos
qualquer referência ao cordeiro pascal. Se no Antigo Testamento o cordeiro
pascal era o símbolo de Cristo, agora o símbolo passa a ser o pão e o vinho.
Penso que muitas vezes este assunto tem
sido abordado sob o ponto de vista ritual e litúrgico, que leva alguma igrejas
a defender que o cálice seja comum ou que sejam cálices individuais, que o
crente deva permanecer no seu lugar ou que se deva levantar para ir até à mesa
da refeição do Senhor, que seja vinho ou sumo (suco) de uva... preocupamo-nos
por vezes com estes pormenores secundários e passa-nos despercebida a intenção
de Jesus ao convidar-nos para a sua refeição.
Pelas passagens bíblicas já mencionadas,
não encontro nada que se assemelhe nem à missa católica, nem ao culto da Santa
Ceia das igrejas evangélicas. O que encontramos é a descrição duma refeição
tomada em conjunto, em que se agradece pelo pão e pelo vinho, como símbolos do
corpo e do sangue de Jesus Cristo. Quando os primitivos cristãos falavam no
“partir do pão”, esta expressão, embora se referisse à Ceia do Senhor, tinha
uma semântica bem diferente, pois eles, na sua pureza de pensamento, ainda não
dissociavam a Ceia do Senhor, da verdadeira refeição que tomavam em comum.
Será ainda possível, depois de vinte
séculos, ultrapassar todas as tradições e superstições católicas ou evangélicas
para se “fazer uma ponte” das origens até à nossa realidade? Será possível
imaginar como seria a refeição de Jesus, se Ele falasse hoje, ao homem vulgar
dos nossos dias, ao homem não religioso, liberto de todas as tradições e
rituais? Penso que é dessa mensagem que necessitamos urgentemente para a
transmitir ao mundo dos nossos dias, em ambientes onde as igrejas já não conseguem
entrar, assim como não o conseguiam os “religiosos” do tempo de Jesus, mas Ele
continua a ser bem recebido. Não só temos acesso a Deus somente em nome de
Jesus o Cristo, como também em certos ambientes e em certos países, depois das
atrocidades cometidas no passado e no presente, o povo desconfia das igrejas e
somente o nome de Jesus é bem aceite.
O que encontramos nos evangelhos, não é
uma refeição simbólica, mas a realidade duma verdadeira refeição em que todos
se sentem unidos, em que todos participam do alimento comum, o pobre e o rico,
o entendido e o ignorante, o escravo e o seu senhor, o apóstolo e o recém convertido. Para muitos dos pobres de Jerusalém, era
talvez a única refeição que tomavam diariamente, era o ambiente em que se
sentiam acarinhados e apoiados, recebidos como homens e mulheres, onde aqueles
que a sociedade escorraçava eram recebidos como irmãos. Não era refeição
simbólica com um pedacinho de pão e uma gota de vinho, pois o Mestre não nos
deixou somente um símbolo duma refeição, mas era a realidade duma verdadeira
refeição.
Significado
Parece que um dos assuntos mais
“pacíficos” seja o significado ou simbolismo do pão e do vinho, pois Jesus foi
bem claro: “...isto é o meu corpo...”, e “...isto é o meu sangue...” como
aparece nas várias passagens já mencionadas. Muito mais difícil é a questão dos
elementos que poderão simbolizar o corpo e o sangue de Jesus, como veremos mais
adiante.
Há no entanto, certos pormenores desse
simbolismo que por vezes têm dividido os teólogos, pois os católicos afirmam
(ou afirmavam), que o pão e o vinho, na realidade se transformam no corpo e no
sangue de Jesus, mas não é nossa intenção desenvolver este assunto.
Não podemos esquecer de que a refeição
do Senhor não é somente uma refeição de confraternização. É em primeiro lugar o
anúncio da salvação através da morte de Jesus na Cruz do Calvário, mas esse
anúncio era efectuado, não no Templo ou nas sinagogas, mas durante uma refeição
comunitária. Era perante os frutos dessa salvação comum, bem evidente no espírito
de fraternidade que a mensagem da salvação era anunciada.
Como já afirmei, prefiro o termo
“refeição do Senhor” às expressões “Santa Ceia” ou “Eucaristia”, com elevada
carga teológica. O termo “partir do pão” que mais nos aproxima do primitivo
cristianismo, tem o inconveniente de estar ligado a uma cultura, pois o pão não
é a base de alimentação em todas as culturas, perdendo o seu significado em
África ou no Oriente.
Periodicidade
Nada consta nas Escrituras, sobre a
periodicidade da refeição do Senhor, ou melhor, não temos passagens normativas,
mas somente passagens descritivas que nos poderão dar alguma orientação sobre o
assunto. Se atendermos a que, como já vimos nas passagens mencionadas, estavam
nessa altura na Páscoa judaica e Jesus se referiu a “...comer convosco esta
Páscoa...” Lucas
22:15, comemorada uma vez por ano, parece defensável a comemoração da
refeição do Senhor só uma vez por ano, na altura da Páscoa. No entanto, segundo
Actos 2:46,
parece que o primitivo cristianismo comemorava o “partir do pão” todos os dias,
em casas particulares.
Penso que nessa época, a refeição do
Senhor ainda era uma realidade bem viva, ainda não se tornara em simbolismo, em
tradição litúrgica, e como refeição, claro que eles comiam todos os dias, e
para muitos dos mais pobres era talvez a única refeição possível. Era uma
refeição tomada nas casas dos crentes, sem a preocupação com o lugar ou com uma
liturgia especial, uma refeição em que davam graças a Deus pelo pão e pelo
vinho, comida vulgar, comida do pobre nessa cultura. Nesse contexto histórico,
penso que a celebração da refeição do Senhor seria diária. Presentemente, essa
verdadeira refeição do primitivo cristianismo, deu origem a um simples ritual,
quer entre católicos quer entre evangélicos ou ortodoxos.
Embora alguns defendam a celebração
semanal, a maior parte das igrejas evangélicas tem o seu culto da ceia do
Senhor uma vez por mês, que me parece a melhor opção, mas não encontro
fundamento bíblico para defender uma opção nem outra.
Quem pode participar
Este pormenor também tem dividido as
igrejas.
Embora 1ª Coríntios 11:26
nos diga que a participação na refeição do Senhor é uma forma de anunciar “a
morte do Senhor, até ele que venha”, há igrejas que celebram a refeição do
Senhor à porta fechada. Portanto, os crentes limitam-se a anunciar tal facto
uns aos outros e não aos visitantes, e só os membros dessa comunidade é que
assistem e participam dessa ceia simbólica dos nossos dias.
Noutras igrejas evangélicas, como
acontece com a maior parte das igrejas batistas em Portugal, os cultos da ceia
do Senhor são públicos, mas só participam os membros dessa ou de outras igrejas
dessa denominação. Já me aconteceu colaborar com igrejas batistas como
moderador de escola dominical ou como pregador, mas não poder participar da
ceia do Senhor.
Noutras igrejas, como é o caso das
igrejas presbiterianas, todos podem participar, pois dizem que a igreja
limita-se a preparar o pão e o vinho, mas a mesa é do Senhor e não da igreja.
Pessoalmente estou mais próximo desta
última posição, dos presbiterianos, mas penso que em primeiro lugar devemos
meditar no que é participar da refeição do Senhor. Será que participar da Ceia
é somente tomar o pão e o vinho?
Várias vezes tenho assistido a cultos da
ceia do Senhor sem poder participar, por não ser membro dessa igreja. Embora
não me manifeste, claro que não é agradável para ninguém sentir-se
marginalizado numa igreja evangélica. Mas afinal, será que algum de nós tem o
direito de se aproximar da mesa do Senhor, ou não será somente pela sua
misericórdia que Ele nos convida a participar? E não podemos estar em comunhão
com o Senhor, participar espiritualmente, mesmo sem o pedaço de pão e a gota de
vinho? Não será possível também o contrário? Tomar o pão e o vinho por simples
rotina, sem que nada signifique, e sem a mínima ligação espiritual com o
Senhor?
Embora pessoalmente esteja mais próximo
da posição presbiteriana, esta também tem os seus inconvenientes, quando há
visitantes que participam do pão e do vinho, sem a noção do que fazem, por
vezes até com boas intenções, que os levam a fazer o que todos fazem. Se todos
se aproximam da mesa do Senhor, eles fazem o mesmo. Já me tem acontecido não
participar da ceia do Senhor, escandalizado pela simples rotina em que se
tornou.
Penso que a melhor solução seria, manter
a participação aberta a todos, como nas igrejas presbiterianas, mas que os
visitantes sejam bem elucidados de que a participação na refeição do Senhor
implica o testemunho de que O aceitam como seu único e todo suficiente
salvador. Se mesmo assim quiserem participar, então que o façam, mas
conscientemente.
Elementos da refeição do Senhor
Quando Jesus instituiu a sua refeição,
segundo os evangelhos, utilizou o pão e o vinho, suco de uva fermentado (ver o nosso
artigo sobre o vinho) e durante muito tempo, enquanto o cristianismo se
expandiu pelos países mediterrâneos, ninguém teve dúvidas de que se deveriam
manter o pão de trigo e o vinho e somente estes dois elementos. Sempre houve
unanimidade entre católicos ortodoxos e protestantes quanto a este pormenor,
embora alguns fossem ao pormenor de manter o pão sem fermento.
Somente com a difusão do cristianismo
pelo norte da Europa, sul do continente africano, Ásia, América e duma maneira
geral por países que não tinham tradição vinícola e em que o pão já não era a
base da alimentação, surgiu inevitavelmente a questão: Será que se deve manter
a tradição do pão e do vinho? Nalguns países já houve alteração, como menciono
no meu artigo sobre o vinho. No Brasil o vinho foi substituído pelo sumo, ou
suco de uva. Fiquei admirado por verificar que se vende suco de uva para a ceia
do Senhor em livrarias evangélicas no Brasil.
Inculturação da refeição do Senhor
É verdade que Jesus utilizou pão e vinho
ao instituir a sua refeição, e embora este pormenor nos ligue ao passado, que
com todas as suas virtudes e fracassos é o passado da Igreja, que devemos
assumir, temos de estar atentos para eventuais efeitos negativos da tradição
litúrgica e dos simbolismos do homem dos nossos dias, se não houver um esforço
na sua actualização e adaptação à realidade de outras culturas. Não estamos
numa época pós-cristã, como alguns afirmam, mas estamos de certa maneira numa
época pós-religiosa ou pós-ritual, pelo que as tradições litúrgicas podem ser
uma barreira à comunicação com a classe pensante dos nossos dias, e são
certamente uma dificuldade na comunicação com novas culturas. Aliás, a mensagem
de Jesus Cristo não está dependente das nossas tradições que podem de certa
maneira ser um obstáculo à sua divulgação. Para que a mensagem de salvação
possa alcançar novos ambientes e novas culturas, é urgente a inculturação da
mensagem de Cristo, pois ela é universal e pode ser aceite por todo o homem em
todas as culturas.
Procurei estudar, não o que “vem nos
livros”, mas o que se passa actualmente nas várias igrejas e junto algumas
respostas que recebi:
Contactei com o Pastor Macanige, que organizou a Igreja Batista de Pemba, bem no
norte de Moçambique, em zona de forte implantação islâmica. Trata-se dum pastor
africano com boa preparação, que estudou em Portugal, onde tirou a licenciatura
em teologia e também a licenciatura em economia. Ele estava ausente e a
resposta veio da sua esposa, Antónia Macanige, mas
foi posteriormente confirmada pelo Pastor Macanige
nessa zona de África (norte de Moçambique): “Para a
ceia do Senhor, fazemos questão de ser o pão de trigo, mas não usamos vinho de
uva, nem mesmo na nossa igreja, não usamos vinho de uva. Usamos sumo de fruta,
neste caso de qualquer fruta desde que seja vermelha. Isto porque na situação
cultural de Moçambique, beber vinho, mesmo que pouco é considerado pecado. Em
Moçambique, beber vinho, mesmo que seja nas refeições, é considerado pecado e
pode dar origem à exclusão da igreja, logo beber vinho na Ceia, seria um
escândalo.”
Duma igreja em Goa (Índia), recebi a
seguinte informação: “Na nossa ceia utilizamos o suco
de uva para não “escandalizar” os irmãos mais novos na fé. Quanto ao pão... utilizamos
o pão comum... às vezes xapati... roti...
e até já partimos um coco uma vez... pois o coco tem uma grande relevância na
vida diária dos goeses... Eles o utilizam em quase todos os pratos.”
Obtive também a informação de que em
algumas aldeias no interior da Amazónia se utiliza a mandioca e suco de
qualquer fruta vermelha do lugar.
Xapati, o “pão” utilizado nas igrejas indianas mais pobres
Consequências da falta de integração cultural
Poderá alguém perguntar:
1)
Mas, porque não havemos de manter a tradição do pão e do vinho?
É verdade que Jesus utilizou o pão e o
vinho, mas o nosso Mestre viveu integrado na cultura judaica. Assim, certamente
que terá utilizado a linguagem do seu “país de acolhimento”, o hebraico e o
aramaico, assim como a sua cultura e os seus símbolos, para contactar com os
seus contemporâneos. E o que era o pão e o vinho no contexto cultural em que
Jesus viveu? Era a comida do pobre, como ainda hoje acontece nos países
europeus de cultura mediterrânea, inclusive Portugal.
Mas noutras culturas a realidade é bem
diferente. No interior da África, o pobre come farinha de milho ou de mandioca,
pois farinha de trigo é comida do homem branco, comida de rico, e geralmente
comida importada, e quanto ao vinho, a grande maioria do povo nunca viu uma
garrafa de vinho. No Oriente, a base de alimentação é o arroz, e até o “pão”,
na maior parte das vezes é feito de arroz. Nunca estive na Amazónia, mas obtive
a informação que já mencionei.
Em certos ambientes, a utilização de
comida e bebida importada para a celebração da “refeição do Senhor”, não terá
como consequência a identificação de Jesus com o estrangeiro e a associação do
pão e do vinho, a tal comida estranha para a maior parte do povo, com poderes
sobrenaturais? E que diremos do Pai Nosso? “... dai-nos
Senhor o nosso pão de cada dia...” !!? Não estarão a pedir a comida do
estrangeiro para se tornarem estrangeiros ou pelo menos estrangeirados na sua
própria terra?
2)
Será lícito para o crente, alterar um ensino do próprio Mestre sobre a sua
refeição?
Esta é a pergunta mais importante que
podemos fazer sobre o assunto, e a resposta quase unânime será um não.
Mas, faço outra pergunta. Afinal, qual é
propriamente o ensino do Mestre?
Penso que Jesus, ao instituir a sua
refeição, não estava preocupado em estabelecer uma dieta gastronómica que
vigorasse até à sua segunda vinda. As suas preocupações eram outras. Voltemos a
ler em Lucas 22:19
e 1ª Coríntios
11:24.
Nestes dois versículos, Jesus nos exorta
dizendo: “...fazei isto em memória de mim.” Qual seria o pensamento de Jesus quando se
referiu a “isto”?
A refeição do Senhor, como meio de anunciar o Evangelho
De acordo com 1ª Coríntios 11:26,
a nossa participação na refeição do Senhor é uma forma de anunciar o Evangelho.
Mas, parece que nos nossos dias não tem funcionado muito bem, a não ser em
casos isolados, como o que refere o irmão Wladkson,
em que o povo de Minas Gerais sente atracção pela Ceia do Senhor que até é
utilizada como forma de pressionar a contribuição, mas em toda a Europa duma
maneira geral, onde é mais forte a influência da secularização, penso que tal
não acontece. Afinal, porque já não funciona nos nossos dias, a comunicação do
Evangelho através da refeição do Senhor?
Talvez não faça muito sentido voltar a
celebrar a refeição do Senhor como no primitivo cristianismo, durante uma
verdadeira refeição, a não ser em certos casos pontuais, como acontece por
exemplo numa pequena “igreja familiar” em Goa, em que depois do culto vão todos
almoçar juntos... É mais ou menos a mesma ideia da “família do Senhor”. Também
em igrejas no interior da África, tal acontece espontaneamente por se integrar
perfeitamente na cultura africana em que a comida, mesmo que pouca..., sempre
dá para todos.
No entanto, o homem ocidentalizado dos
nossos dias, não pode ignorar a ideia de partilha e solidariedade que está
inerente à refeição do Senhor, pois a intenção de Jesus, não era deixar um
simples ritual, mas um exemplo que cada geração e cada cultura deverá
interpretar e aplicar à sua realidade.
Contaram-me que um missionário no
Oriente, ouviu um visitante budista afirmar: “Gostaria de crer em Jesus, pois a
sua mensagem é maravilhosa e ultrapassa tudo que é possível ser imaginado pela
mente humana, mas nas igrejas cristãs, só tenho encontrado folclore religioso.
Nunca encontrei Cristo manifestado na vida dos que se dizem seus seguidores.”
Penso que nos nosso dias, em que
prevalece um “evangelismo barato”, um “evangelismo virtual”, em que é possível
divulgar a todo o mundo, pela rádio, pela TV, ou pela internet, que “Deus é
amor”, “Só Jesus é o caminho”, “Deus te ama” etc. etc,
em que é possível pregar para quase todo o mundo, utilizando a TV e a
comunicação por satélite, temos de admitir que alguma coisa está faltando...
Que credibilidade terá a afirmação de
que “Deus é amor”, proclamada pelos países ricos se estes se dão ao luxo de
destruir alimentos para os preços não baixarem e de pagar aos agricultores para
não cultivar, diminuindo assim a produção para evitar excesso de oferta,
enquanto há países em que se morre à fome?
Que significado poderá ter a afirmação
de que “Deus é amor”, vinda de países que ignoram o aquecimento global do nosso
planeta para não prejudicar a rentabilidade das suas indústrias, enquanto
noutros países, morrem pessoas em inundações e secas catastróficas,
consequência das alterações climáticas provocadas por tal aquecimento?
Se evangelizar é só proclamar, então
qualquer um de nós poderia enviar essas mensagens pela internet, pedindo para
que cada um que as recebesse enviar mais duas ou três cópias e assim, ao fim de
algum tempo, teríamos alcançado o mundo inteiro. Mas será que resultava?
Penso que a mensagem não pode ser
dissociada do exemplo, como no primitivo cristianismo em que a refeição do
Senhor era celebrada no contexto duma verdadeira refeição, em que acontecia o
milagre daqueles que nada tinham se sentarem ao lado dos outros crentes e serem
recebidos como irmãos... facto insólito, facto inexplicável, até ao momento em
que era apresentada a explicação: Jesus morreu pelo pecador, e todos formavam
uma família em Cristo Jesus.
Penso que é esta mensagem que está
faltando na nossa evangelização, por mais correctos que possamos estar sob o
ponto de vista litúrgico e doutrinário. Quando os cultos se tornam uma rotina
que já pouco diz a muitos crentes, não podemos esperar que tenham mais
significado para um visitante.
Credibilidade do Evangelho a nível internacional
Penso que nas últimas décadas se tem
assistido a uma deterioração da opinião pública sobre o missionário protestante
ou evangélico.
Em 1960, José Júlio Gonçalves afirma no
seu livro “Protestantismo em África” editado pela “Junta de Investigações do
Ultramar”, órgão do Governo Português: “O protestantismo em África ganhou há
muito foros de consideração e de estima. Os seus missionários sacrificaram-se
pelo bem-estar das populações, fundando instituições de assistência notáveis a
todos os títulos.”
Nessa época, quase todas as juntas
missionárias exigiam que o missionário tivesse, além do curso de teologia, um
outro curso a nível superior, geralmente de interesse para o seu campo de
trabalho. Ou era médico ou enfermeiro ou engenheiro agrónomo etc. conhecimentos
que eram colocados ao serviço das missões que, principalmente em África, se tornaram locais de desenvolvimento e polos de atracção
das populações. Isto faz lembrar o “partir do pão” da igreja primitiva. Esta
atitude de partilha de recursos e conhecimentos pode ser o “partir do pão” na
época em que vivemos.
Infelizmente, nos nossos dias, se é
maior o número de missionários em África e na Ásia, também é menor a sua
preparação teológica e muitas vezes quase não têm preparação secular com
interesse para os novos países onde exercem a sua acção. São cada vez em maior
número os países que encerram as suas portas à entrada de missionários, embora
tenham liberdade de religião para os seus cidadãos, o que é sem dúvida um facto
lamentável, mas muito mais lamentável é chegarmos à conclusão de que têm certa
razão em colocar essas dificuldades à entrada de missionários que sob o aspecto
secular pouco ou nada têm a dar ao desenvolvimento desses países e se limitam a
prometer bênçãos espirituais em troca de donativos bem materiais. Mas o maior
problema é a falta de capacidade de integração cultural, pois continuam
estrangeiros no seu local de trabalho, ao serviço da cultura do seu país e
muitas vezes ao serviço duma política de direita favorável aos interesses do
seu país.
Penso que no futuro, o Brasil terá um
importante papel a desempenhar na obra missionária a nível mundial, pois julgo
que o missionário brasileiro é mais bem aceite que o americano ou europeu, tem
maior facilidade de integração cultural e já se nota um significativo aumento
do número de missionários brasileiros em todo o mundo. Só é pena que muitos
deles não sejam genuinamente brasileiros e se deixem liderar pelas juntas
missionárias com mentalidade americana, que outras culturas rejeitam e com toda
a razão, pois o genuíno Evangelho de Cristo não se identifica com nenhuma
cultura, mas deve ser anunciado nas culturas dos vários povos. Até há casos de
missionários “brasileiros” que para entrar em Moçambique, pais de língua
oficial portuguesa, vão primeiro aperfeiçoar o inglês!!!
Afinal estão ao serviço de quem?
Conclusão
Vivemos numa época em que não basta
falar no amor de Deus.
Afinal, qual a religião dos nossos dias
que não afirma que “Deus é amor”, que “Deus é paz” e que está pronto a ajudar o
ser humano?
Pelo menos a classe pensante dos nossos
dias e todo o homem de cultura média, sabe que a informação que nos vem da
história, é que as religiões falam de amor, mas têm contribuído para a
violência. E não só a informação da história recente, mas também os noticiários
que nos chegam diariamente, dão conta da violência na Irlanda do Norte, em
Israel e Palestina, na fronteira entre a Índia e Paquistão, ataque dos
americanos ao mundo islâmico, casos em que se nota a influência da religião,
que embora nem sempre seja a causa principal dos conflitos, não deixa de dar
uma “boa ajuda” para intensificar o ódio, a violência e a intransigência entre
os homens. A refeição do Senhor é um memorial que nos liga à morte de Jesus na
cruz do Calvário, mas é também elemento que nos liga ao nosso semelhante
através do sacrifício do Calvário. Compete a cada povo e em cada época “sentir”
quem mais necessita do apoio da Igreja, apoio que nem sempre é no aspecto
económico, mas sempre no aspecto espiritual e afectivo. Presentemente, podem
ser os imigrantes brasileiros, ucranianos ou russos que entram em Portugal,
muitos deles já são crentes e encontram um país novo, onde ninguém os conhece e
onde estão perante dois caminhos: Ou o afastamento da Igreja, muitas vezes
definitivo, ou a sua integração, se as igrejas souberem ser Igreja e recebê-los
como irmãos.
Infelizmente, como vimos na mensagem do Wladkson, há “igrejas” no Brasil que se servem desse
memorial da refeição do Senhor, que deveria ser de solidariedade à volta do
Mestre, para o transformar em momento de exploração, em que os fariseus do
nosso tempo mostram a sua “espiritualidade” e o pobre em vez de ser ajudado, é
afastado se não puder ou não estiver disposto a dar o seu dízimo que lhe é
exigido. Se na maior parte dos casos não faz sentido uma refeição comum como se
fazia no primitivo cristianismo, não podemos ignorar o aspecto de solidariedade
social inseparável da mensagem de Jesus, pois só nesse contexto fará sentido
falar na libertação que Cristo nos oferece, pois se essa libertação não
produzir os seus frutos, quem poderá aceitar a nossa mensagem?
Camilo – Marinha Grande
– Agosto de 2001
Estudos
bíblicos sem fronteiras teológicas