BHAGAVAD-GUITÁ
(CÂNTICO DIVINO)
Tradução livre de
Rajarama Pundolica Sinai Quelecar
Canto - 1
Campo sagrado de Curu e angústias
de Arjuna
1 - DHRATARASTRA: — Que sabes dos meus filhos e dos de Pandu, que concentraram
as suas tropas, para a batalha, no campo sagrado de Curu? Dize-me todo o
sucedido, ó Sanjaia.
2 - SANJAIA: — O príncipe Duriodhana, depois de espreitar o exército
escalonado dos Pandavas, aproxima-se do mestre Dronacharia e lhe fala:
3 - «Contemplai, ó mestre, aquele poderoso exército dos Pandavas
estrategiado pelo filho de Drupada, vosso inteligente discípulo.
4 - Figuram nele, além de outros varões e arcipotentes, ludhana,
Viratha e o marechal Drupada, igualáveis a Bhima e Arjuna na peleja,
5 - Dhrestaquetu, Chequitana, o valente Caxiraja, e bem assim,
Purujita, Cuntibhoja e o insigne Xeibia,
6 - O intrépido ludhamaniú, Utamojá valente, e o filho de Subhadrá e os
de Droupadi, todos marechais insignes.
7 - Agora, ó mestre, vou nomear somente os que
constituem o nosso estado-maior, que é do vosso conhecimento:
8 - Vós, Bhisma, Carna, o vitorioso Gripa, Asvathamá, Vicarna e
Somadati.
9 - E o exército é constituído de varões assinalados, adestrados,
completamente equipados, todos decididos a sacrificar as suas vidas em prol da
minha causa.
10 - Quão colossal é o nosso exército sob o supremo comando de Bhisma!
Vede o do adversário, que é mensurável e chefiado por Bhima!
11 - Mantende, portanto, as posições tomadas na dianteira, tornando
invulneráveis os flancos de Bhisma.
12 - A estas palavras, o glorioso ancião Bhisma, para reforçar o
entusiasmo de Duriodhana, estoura a sua voz tonitruante e assopra a sua concha.
13 - Num instante, inúmeras conchas, tambores, tímbales, trombetas e
cornetas explodem os seus sons num rumor retumbante.
14 - Entrementes, do lado do adversário, Shri Crisna e Arjuna, de pé no
carro atrelado de cavalos brancos, correspondem com o som das suas conchas.
15 - Shri Crisna sopra a sua «Panchajánia», Arjuna a «Devadata» e o
terrível Bhima apavora todos com a sua estrondosa «Poundra»,
16 - O rei ludhistir assopra a sua «Anantavijaia» e os irmãos Nacula e
Sahadeva, «Sughoxa» e «Manipuspaca», respectivamente,
17 - O arcipotente Caxia, o marechal Xicandi, Dhrestadhiuma, Virata e o
invencível Satiaqui as suas,
18 - O príncipe Drupada e os filhos de Droupadi, ó Majestade, e o
longímano Abhimaniú assopram as suas.
19 - O estrondo terrível desses sons, retumbando pela terra e céu,
dilacera o ânimo das Couravas.
20 - Então, Arjuna, que se distinguia pelo emblema do macaco Maruti no
estandarte do seu carro, vendo o exército dos Couravas em ordem de batalha,
retesa o seu arco,
21 - E diz a Shri Crisna: «Senhor da terra! conduzi o carro no meio dos
dois exércitos em fileiras.
22 - «Verei os arrojados que desejam combater na batalha e visarei
também aqueles com quem terei de pelejar.
23 - «Volverei, também, os olhos àqueles que se arrojaram ante a morte
nesta batalha decisiva, com o único fim de satisfazer a vontade do facínora
Duriodhana».
24 - SANJAIA: — Mal Shri Crisna ouviu estas palavras, dirigiu o
sumptuoso carro para o meio dos dois exércitos alinhados;
25 - E, fitando Bhisma, Dronacharia e outros príncipes, disse a Arjuna:
«Eis, acolá, todos os Couravas».
26 - Arjuna contempla os dois exércitos e descobre logo que são seus
tios paternos, avós, mestres, tios maternos, irmãos, filhos, amigos e sogros
que os constituem.
27 - E notando que todos eles são seus parentes consanguíneos,
invade-o a piedade, e, na consternação, diz:
28 - «Todos estes guerreiros que estão prestes a combater são parentes
consanguíneos meus!
29 - «Ai! os meus membros tremem, seca a boca!
Tenho arrepios, eriça-se-me o pêlo!
30 - O arco Gandiva parece descair-me das mãos; arde-me a pele toda!
Não posso suster-me, sinto desvairar-me!
31 - «Nada de bom presageio nesta guerra; nenhuma felicidade com a
morte dos meus parentes na batalha!
32 - «Não ambiciono nada; nem a vitória, nem o governo, nem os
prazeres. Dize-me, ó Crisna, que vale o governo, que valor têm os prazeres ou a
própria vida?
33 - «Se aqueles para quem almejamos o governo e os prazeres estão cá
no campo de batalha, renunciando às suas riquezas e até à vida!
34 - «São mestres, tios paternos, filhos, avós, tios maternos, sogros,
netos, cunhados, todos parentes consanguíneos e espirituais!
35 - «Ó Crisna, nunca levantarei as minhas armas contra eles, mesmo que
se me ofereça o império do universo inteiro, quanto mais o governo desta terra;
que eles me tirem a vida, não me importa.
36 - «Que prazeres poderemos desfrutar, ó Crisna, com a morte dos
Couravas, embora eles a mereçam por serem agressores? Nenhum; só perpetraremos
um crime inexpiável.
37 - «Iníquo será, por nossa parte, exterminar os Couravas, uma vez que
reconhecemos neles os nossos irmãos; e, ó Crisna, como nós poderemos ser
felizes aniquilando os nossos próprios parentes?
38 - «Eles, desvairados, não compreendem as consequências do crime de
traição dos amigos e o de destruição das famílias.
39 - «E nós, que sabemos que o arruinamento das famílias é crime
sacrílego, porque o não evitaremos, sendo possível?
40 - «Com a destruição das famílias, as suas vetustas tradições são
aniquiladas e este aniquilamento concorre para as tornar descomedidas.
41 - «E, ó Crisna, o desregramento na família é a causa da corrupção
das mulheres, e esta prevaricação impele-as à mistura do sangue.
42 - «E esta mescla conduz para o Inferno tanto os autores da
destruição das famílias como também toda a descendência destas, porque os antepassados,
privados de libações e oferendas, se apartam delas.
43 - «E o pior é que esses aniquiladores, sujeitando-as à mescla,
destroem, para sempre, as leis morais da instituição da família e das raças.
44 - «E as pessoas cujos costumes familiares são devassados, vivem no
Inferno, não o ouvimos, ó Crisna?
45 - «Que horrendo crime que nós perpetraríamos com a exterminação dos
nossos irmãos, com a mira do governo e avidez de prazeres!
46 - «Acho conveniente, por isso, depor as armas e manter-me indefeso,
para os Couravas me aniquilarem, na batalha; é a única solução para mim».
47 - SANJAIA: — Desabafando desse modo, no campo de batalha, Arjuna,
comovido, lançou abaixo o seu arco e setas e repousou no assento traseiro do
seu carro.
Canto - 2
Ética indiana e concepção
idealista do homem
1 - SANJAIA: — Shri Crisna, vendo Arjuna assim consternado, com o olhar angustiado, cheio de lágrimas, dirige-lhe as seguintes palavras:
2 - SHRICRISNA: — Que frenesi é este que se
apoderou de ti, nesta conjuntura tão séria e que não
tem guarida nos árias! Não te gloriará esta tua atitude; pelo contrário, denegrirá o teu renome.
3 - Não te deixes arrastar por essa cobardia
desairosa para ti; sacode essa fraqueza ignóbil
e levanta-te, ó terror dos inimigos!
4 - ARJUNA: — Ó Crisna, com que coragem devo eu
lançar o ataque, nesta batalha, contra Bhisma e
Drona, veteranos que nos inspiram sempre veneração e respeito?
5 - Preferirei viver na mendicidade a ser a causa da morte destes veteranos, benevolentes e sempre respeitáveis,
pois a morte deles nos dará só gozos pungentes.
6 - Não sei o que devo antepor para a nossa
felicidade: vitória dos Couravas ou a nossa. Certo é, porém, que eu não
sobreviverei à derrota daqueles que nos defrontam.
7 - Desmoronado está o meu coração, mudado
todo o meu ser; um turbilhão de ideias fervilha no meu
cérebro, não podendo destrinçar os meus
deveres. Dize-me, claramente, ó Crisna, o que é preferível — eu refugio-me em ti, como teu
discípulo.
8 - Não vejo remédio algum para este meu estado de tormentos que me
desalenta; nem a hegemonia do país rico e irrivalizável, nem a soberania sobre
os deuses curará este meu mal.
9 - SANJAIA: — Manifestando-se
dessa forma a Shri Crisna, terminou Arjuna por dizer: «Depus já as
armas; não quero combater». E guardou silêncio.
10 - Shri Crisna, vendo-o assim no estado de desalento, no pleno campo da batalha, com o sorriso nos lábios,
começou por dizer:
11 - SHRI
CRISNA: — Tu deploras aqueles que não deves deplorar e discorres como um sábio.
Certamente, o sábio é indiferente perante a vida e a morte.
12 - Não é verdade que eu, tu e estes príncipes, em tempos remotos não
existíamos, e nem é menos verdade também que, no futuro longínquo, não havemos
de existir.
13 - Assim como o ser humano passa pelos estádios de infância,
adolescência e velhice, assim também passa ele através de mudanças dos corpos;
e este fenómeno não deixa perturbado o homem forte.
14 - As sensações de calor e frio e as impressões de prazer e dor
provêm das relações dos nossos órgãos dos sentidos com objectos exteriores; são
fenómenos efémeros, transitórios; compenetra-te disso, ó Arjuna!
15 - E o homem que não se
impressiona por esses fenómenos e é equânime diante do prazer e da dor torna-se
digno da imortalidade.
16 - Tudo
o que não permanece é irreal. Somente o real tem existência. É a conclusão dos
sábios depois de longas experiências.
17 - O
substrato de que emana todo este universo é imperecível, ninguém o pode
exterminar.
18 - Ele é eterno, imortal e
infinito. Somente os corpos em que
ele se acha inserido são finitos, temporais; pois, prepara-te para a
batalha.
19 - Aqueles que o consideram como mortífero ou mortal ignoram a
verdade; ele não leva à morte ninguém nem se
extingue.
20 - Ele
não nasce nem morre, não é uma coisa que um dia teve existência e que,
extinguindo-se, nunca voltará a tê-la. É inascível, eterno, imortal e vetusto,
não obstante a desagregação do corpo.
21 - Aquele que o concebe como a
realidade espiritual, eterna, imortal, inascível, imutável, como poderá
admitir que ele cause ou leve à morte alguém, ó Arjuna?
22 - Assim como o homem muda o seu traje estragado, retomando o outro
novo, assim também o espírito incarnado (Atman) rejeita o corpo já velho e se
reveste do outro novo.
23 - As
armas não o ferem, nem o fogo o consome; as águas não o molham, nem o vento o desseca.
24 - É invulnerável, incombustível, humedífugo e
insecável. É eterno, omnipresente,
estável, imutável e primordial.
25 - É indeterminável, inconcebível e imutável.
Dão-se-lhe estes atributos.
Concebendo-o como tal, não te deves afligir.
26 - E se pensas que ele está, constantemente, sujeito a
nascimento e à morte, mesmo assim, não há razão para
as tuas angústias.
27 - Porque a morte é inexorável para quem nasce e é irrevogável o
nascimento para quem morre, e este inevitável facto não te deve atormentar.
28 - Ó Arjuna, é indeterminado o princípio e o
fim de todo o ser, que só se patenteia no meio, na sua existência actual. Que
há nisso para tanta aflição?
29 - Um certo vê Atman como uma
maravilha, outro retrata-o como uma maravilha, um terceiro ouve cantá-lo como uma maravilha, e, no final das contas, ele é
ininteligível.
30 - Este Atman, ó Arjuna, inserto no corpo de cada um, é eterno e indestrutível. É por esta razão que tu
não deves lamentar nenhuma criatura.
31 - Ainda considerado pelo lado do teu natural, não há motivos para a tua agitação; pois, para o xátria
não há melhores bens que uma justa
batalha.
32 - E estes bens, quando te são oferecidos pelo acaso,
são como o abrir das portas para o
céu; pois, só o feliz xátria encontra
semelhante oportunidade.
33 - Se tu te absténs desta batalha justa, trais o teu
natural e a glória toda e te arrastas ao
pecado.
34 - E, desta forma, serás o escárnio de todo o povo,
que te menosprezará, o que, para quem é
nobre, será mais doloroso que a
morte.
35 - Os marechais do exército pensarão que tu desertaste
por medo, e tu, que eras
altamente considerado por eles, serás
desconsiderado.
36 - Os teus adversários farão pouco da tua coragem com a crítica mordaz; que haverá mais deplorável que
isso?
37 - Morto, ganharás tu o céu, vitorioso desfrutarás a terra; pois,
levanta-te, ó Arjuna, resoluto para a batalha!
38 - Equipara o prazer e a dor, o ganho e a perda, a
vitória e a derrota e arremessa-te à
batalha, e desta forma não incorrerás
no pecado.
39 - Tudo o que acabei de dizer é o tema fundamental do conhecimento, segundo Sânquia; vou agora explaná-lo
segundo o Yoga; compreende-o, ó
Arjuna, porque ficarás livre de
todos os vínculos de acção, neste mundo.
40 - Uma
vez encaminhado nesta via, verás que nada é em vão e não haverá obstáculo algum
para o avanço na direcção; um pequeno esforço nesta via livrar-te-á de muitas
faltas.
41 - Nesta via, a inteligência polarizada concentra-se no seu objectivo, não havendo a sua dispersão em
imaginações vãs.
42 - Mas, ó Arjuna, aqueles que ignoram este
conhecimento e cujo saber só se limita à interpretação dos
textos dos Vedas, sustentam, em palavreado,
que só os Vedas são tudo.
43 - E estes, cuja aspiração suma
é o paraíso, impregnam o homem com o
ritual das cerimónias variadas como o único suficiente para
ganhar riquezas e prazeres e alcançar o Paraíso.
44 - E
o homem, em geral, sempre ávido de riquezas, que, segundo ele, condicionam a felicidade, imbuído deste princípio, torna incapaz da concentração do seu
espírito.
45 - Os Vedas têm por assunto a hierarquia das
qualidades (Satva, Raja e Tama). Tu; tens de
ultrapassá-las, destruindo a dualidade de atracção e repulsão, e firmar-te no Eu desatendendo à vida orgânica.
46 - Para
quem conhece Brahman a utilidade dos Vedas é tal qual a da água do poço situado
no terreno todo alagado.
47 - Tu
tens direito à acção, somente à acção, e não aos seus frutos; e estes nunca
sejam o móbil do teu agir, nem te inclines
para a inacção.
48 - Ó
Arjuna, age de maneira tal que, sem preferências, mantenhas o espírito firme na direcção dada, sendo
equânime perante o sucesso e o insucesso, o que, em suma, é Yoga.
49 - Mas,
ó Arjuna, a acção, só, é muito inferior ao Yoga da inteligência; procura, por
isso, o refúgio na tua inteligência, pois
infundem piedade, aqueles que praticam acções inspiradas pelo interesse.
50 - O intelectual consumado é, neste mundo, desprendido de frutos bons
ou maus de acção; por isso, prepara-te para o Yoga, porque o Yoga torna
proficiente o homem nas obras.
51 - E este sábio, renunciando aos frutos da acção, livra-se do ciclo do nascimento e morte e chega ao estado
de perfeição, condição suprema.
52 - Quando
fores iluminado, depois de expurgar todas as ideias quiméricas, reconhecerás,
então, a insignificância de tudo o que ouviste e te resta ouvir.
53 - E alcançarás o Yoga, quando a tua inteligência, desanuviada dos preconceitos criados pelos textos dos
Vedas, tiver estabilidade no êxtase.
54 - ARJUNA: — Dize-me, ó Crisna, quais são os traços predominantes do homem Metabrâhmico (homem identificado
com a realidade por êxtases). Como se porta ele?
55 - SHRI CRISNA: — Quando o homem suprime todos os seus desejos e está
satisfeito com o seu eu, no Eu, este, super-homem, se chama Metabrâhmico.
56 - Aquele que se não inquieta no infortúnio e não é atreito aos
prazeres, sem apetites nem desejos, arredado do medo e da cólera, é Metabrâhmico.
57 - Aquele que se não afeiçoa a
coisa alguma, não se rejubila com a ventura, nem detesta o infortúnio,
é Metabrâhmico.
58 - O Metabrâhmico tem o poder de retrair os seus
órgãos dos sentidos das suas funções
específicas, tal como a tartaruga encolhe os seus órgãos na
sua casca.
59 - A abstenção da alimentação faz afrouxar os órgãos dos sentidos,
mas os desejos
se mantêm; estes se suprimem com a participação no Ser Supremo.
60 - Ó Arjuna, o sábio privilegiado que se esforça para a perfeição é,
muitas vezes, arrastado a se desviar do seu objectivo
pela insistência veemente dos seus sentidos.
61 - Por
isso, é preciso, metodicamente, disciplinar os sentidos para depois fixar em
Mim toda a atenção, e, desta forma, sendo senhor dos seus sentidos, tornar-se Metabrâhmico.
62 – O pensamento
dum objecto qualquer cria no homem a afeição por este objecto, e esta afeição
gera o desejo que, não sendo satisfeito, provoca a cólera.
63 - A cólera prolongada conduz à
ataxia mental; da ataxia mental
resulta a amnésia, e esta leva, consequentemente, à despersonalização, degenerando o homem em um
autómato.
64 - Por isso, restringidos os sentidos de atracção e
repulsão, ganha-se o domínio sobre eles e,
sendo senhor dos sentidos, consegue-se
a serenidade do espírito.
65 - Perante a serenidade do espírito não prevalece
nenhum sofrimento e se consegue,
rapidamente, a sua concentração.
66 - O
homem inculto não é atraído pela concentração do espírito, que dá em resultado
a paz. E quem não tem a paz do espírito não
alcança a felicidade suprema.
67 - Quando os sentidos não são refreados, arrastam o
espírito, tal qual o navio no oceano,
à mercê do vento.
68 - Por isso, ó Arjuna, quem refreia, inteiramente, os
sentidos, desviando-os dos seus
objectos específicos, é Metabrâhmico.
69 - E, na sociedade dos
homens em que para todos os restantes é noite (ignorância do estado da
identificação com a realidade), é dia para o Metabrâhmico (viver em unidade com
a realidade); e o dia daqueles (preocupar-se com os afazeres mundanos) é a
noite para este (desatenção à vida mundana).
70 - Assim
como o oceano absorve, imutável, inúmeras torrentes que lhe afluem dos rios,
assim o Metabrâhmico dilui todos os seus desejos na
sua paz, o que é impossível aos mundanos.
71 E finalmente, o Metabrâhmico vive e age livremente, isento de todos os desejos, sem egoísmo, nem
possessivos, na sua paz suprema com que se identifica.
72 - Tal é
o estado Brâhmico, ó Arjuna, que, uma vez atingido, o homem não se extravia.
Firme neste estado, até o seu término, extingue-se no Brahman.
Canto - 3
A acção e o seu determinismo
1 - ARJUNA: — Se tu sustentas que a inteligência é superior à acção, porque
me incitas à acção terrível, ó Crisna?
2 - Tu deixas-me perplexo pela ambiguidade do sentido das tuas
palavras. Dize-me, categoricamente, sem circunlóquios, uma única coisa pela
qual eu possa assegurar a felicidade suprema.
3 - SHRI CRISNA: — Ó Arjuna, como te acabei de dizer, há, neste mundo,
duas vias de conhecimento: uma de Sânquia, pelo Yoga da inteligência, e a outra
de Yoguis, pelo Yoga da acção.
4 - Abstendo-se da iniciativa da acção, é inalcançável a quietude, e,
renunciando à prática de acção, é impossível a perfeição.
5 - Ninguém pode eximir-se, um instante sequer, da acção, pois todo o
ser é impelido, forçosamente, à acção pela própria natureza, segundo as
qualidades de cada um.
6 - Todo aquele que patenteia a repressão dos órgãos da acção,
evocando, porém, no interior as sensações de objectos, além de ser insensato, é
tido por hipócrita.
7 - Mas, ó Arjuna, aquele que, sendo senhor dos seus sentidos, se
inicia, com desinteresse, no Yoga da acção, pelos próprios órgãos dela, é homem
excelso.
8 - Pratica tu todas as acções que se te
impõem, porque a acção, qualquer que ela seja, vale mais que a inacção; pois as
funções orgânicas elementares até são impossíveis na inacção.
9 - Toda a acção não inspirada pelo ideal alto sujeita o homem ao seu determinismo;
por isso, ó Arjuna, pratica tu a acção, renunciando
aos seus frutos, como sendo o sacrifício.
10 - Terminada a criação e inferindo o sacrifício como lei dela, o
criador disse às criaturas: «Crescei e multiplicai-vos por esta lei e ela seja
o manancial de todas as vossas riquezas».
11 - Sustende por este meio os deuses, que, por sua vez, vos susterão;
e, assim, sustendo-se, mutuamente, atingireis o bem supremo.
12 - Os deuses satisfeitos com o sacrifício; dar-vos-ão todos os bens
desejados; mas, aquele que só os usufrui, sem nada consagrar aos deuses, é
traficante.
13 - Os bons, vivendo do que lhes sobra dos sacrifícios, livram-se dos
pecados; enquanto os incultos, vivendo só para si, os cometem.
14 - De nutrição nascem as criaturas; à chuva sucedem os alimentos; de
sacrifício provém a chuva e da acção surge o sacrifício.
15 - A acção provém da natureza; a natureza tem a sua existência no
Brahman imutável, e assim Brahman omnipresente está sempre no sacrifício.
16 - Aquele que não observa, neste mundo, este ciclo universal, vã é a
sua existência, sensuais são as suas delícias, e, ó Arjuna,
vive em vão este homem.
17 - Mas, ao homem que funda as suas delícias no seu Eu, satisfeito com
o seu Eu e imerso no Eu, não existe acção alguma que tenha de praticar.
18 - Porque este homem nada tem a ganhar, neste mundo, com a acção ou a
inacção, não depende ele de nenhuma criatura para o seu interesse.
19 - Pois, pratica tu sempre, com desinteresse, todas as acções que se
te impõem. Todo o homem que faz obras com desinteresse atinge o supremo.
20 - É pelas obras desinteressadas que Janaca e outros alcançaram a
perfeição. Tu deves agir da mesma forma, com a mira de realizar a solidariedade
entre os homens.
21 - É apanágio da massa imitar o escol; os modelos criados pelo escol
são sempre seguidos pelo povo.
22 - Ó Arjuna, não existe obra alguma, que eu deva fazer; neste mundo,
nada existe que eu não tenha ganho ou tenha a ganhar; contudo, só vivo em acção.
23 - Porque, ó Arjuna, se eu não agir, sempre vigilante, a humanidade
seguirá o meu exemplo de todas as formas ou maneiras.
24 - E se me conservar inactivo, será a ruína de todos os povos e a
causa do caos e destruição de todas as criaturas.
25 - Ó Arjuna, o afinco com que o não instruído trabalha, no seu ofício
de proveito material, igual afinco deve ter o sábio em todas as obras da
unidade social, sem o interesse pessoal.
26 - O sábio não causa confusão no espírito dos não instruídos,
exortando-os, mas encoraja-os em todas as acções, praticando-as ele próprio com
desinteresse.
27 - Todas as acções humanas são derivadas das qualidades (Satva, Raja
e Tama) da Natureza; e o homem, confundindo o Eu com a sua natureza egoísta,
pensa: é o Eu que age.
28 - Mas, ó Arjuna, o sábio que conhece todas as modalidades da
Natureza, considerando as acções como resultantes da interacção das qualidades
dela, não se interessa por elas.
29 - Por esta mesma razão, não deve ele abalar as concepções sobre a
acção dos ignaros, que, sendo cativos da natureza e ignorando as actividades
dela, se prendem à acção com interesse.
30 - Com a concentração do teu espírito, e renunciando todas as tuas
acções em Mim, sem mínimo desejo, nem egoísmo, luta tu, livre da febre da tua
alma.
31 - Aqueles que seguem sempre estes meus ensinamentos com fé, não os
pondo em dúvida nem os criticando, ficam livres do determinismo da acção.
32 - Mas aqueles que, sem os seguir, os condenam, são cretinos,
destituídos da razão e destinados a perecer.
33 - O sábio age segundo a sua natureza; todas as criaturas obedecem à
sua. É inútil constrangê-la.
34 - Os sentidos têm predilecção pelos seus objectos, dissimulando
neles a dualidade de atracção e repulsão. O homem não deve cair em poder deles.
São inimigos que armam ciladas no caminho da sua ascensão.
35 - É preferível a cada um seguir a sua lei de acção, mesmo
imperfeita, a adquiri-la a outrem. Prefira-se perecer na sua própria lei a
seguir a doutrem, o que é desastroso.
36 - ARJUNA: — Porque é que o homem é impelido para o pecado? Quem o
obriga a cometê-lo, contra a sua vontade?
37 - SHRI CRISNA: — É o desejo e a sua companheira, a cólera, ambos
nascidos da qualidade Raja, extremamente insaciáveis e traiçoeiros.
38 - Assim como o fumo oculta o fogo, a poeira embacia o espelho, o
âmnio envolve o feto, assim o desejo obscurece a razão humana, ó Arjuna!
39 - A razão humana é obscurecida pelo desejo. É o eterno inimigo do
sábio. É o desejo qual fogo, que devora tudo e é sempre insaciável.
40 - Os sentidos, a inteligência e a razão são os seus abrigos, e, por
via delas, obscurece ele o saber e bestializa o homem.
41 - Por isso, ó Arjuna, dominando, primeiro, os teus sentidos,
extermina esse delinquente e destruidor de dois saberes humanos (intuitivo e
discursivo).
42 - Dizem que os sentidos são supremos: o soberano dos sentidos é a
mente, o soberano da mente é a razão e o soberano da razão é o Eu (Atman).
43 - Assim, conhecendo perfeitamente o Eu, soberano da razão, consolida
o conhecimento dele, concentrando a vida na espiritualidade, e extermina o
desejo, inimigo este dificilmente vencível.
Canto - 4
Revelação do divino na humanidade
e significação do sacrifício
1 - SHRI CRISNA: — Este imperecível Yoga revelara eu, primeiro, a Vivasvana,
que, por sua vez, o transmitira a Manu e este o fizera conhecido de Ixavacu.
2 - Ó Arjuna, assim, este Yoga, transmitido tradicionalmente até aos
sábios da corte dos reis, tornou-se antiquado, no volver dos tempos.
3 - É o mesmo Yoga original e antigo que te acabei de explicar, porque
tu és meu amigo dedicado. De facto, é o supremo segredo este Yoga.
4 - ARJUNA: — Tu és do meu tempo, e Vivasvana pertence a tempos
prístinos. Como posso eu acreditar que tu lho tivesses revelado, no começo do
tempo?
5 - SHRI CRISNA: — Numerosas são as minhas vidas passadas e as tuas
também, ó Arjuna; eu conheço-as todas, tu as ignoras, ó terror dos inimigos!
6 - Não obstante ser eu inascível, imperecível, senhor de todas as
existências, obrigo-me a manifestar no mundo, apoiando-me na minha própria
natureza, pelo meu misterioso poder.
7 - E, ó Arjuna, venho ao mundo todas as vezes que as leis sociais são
postergadas e impera a injustiça social.
8 - E é para livrar os bons, aniquilar os inimigos da ordem e restabelecê-la
que eu me manifesto, de tempos a tempos.
9 - Aquele que conhece este meu mistério do nascimento e acção não se
reincarna, depois de abandonar o corpo mortal. Ele chega a Mim, ó Arjuna!
10 - Muitos homens, livres de desejos, do medo, da cólera, tomam o
refúgio em Mim e, purificados pela prática de ascese, têm chegado a Mim.
11 - A maneira como o homem Me deseja atingir, Eu lhe correspondo no
meu amor; variados que sejam os caminhos, todos Me encontram, ó Arjuna!
12 - Aqueles que desejam que as suas obras tenham sucesso, neste mundo,
fazem sacrifícios aos deuses, porque no mundo dos homens as obras dão rápida e
facilmente os frutos.
13 - A ordem quadrífida social foi criada por Mim, em conformidade com
a diferença de qualidades e funções activas; sabe que sou autor desta ordem,
não obstante ser Eu imperecível, não agente.
14 - As acções não Me sujeitam e Eu não desejo os seus frutos. Aquele
que Me conhece nesta atitude não está sujeito ao determinismo da acção.
15 - Por este conhecimento, os homens doutros tempos, que desejavam a
sua libertação, agiram neste mundo. Também pratica tu acções como as praticaram
esses homens dos velhos tempos.
16 - Perante a definição de acção e o enunciado de inacção, os próprios
sábios ficam perplexos. Vou explicar-te o que seja a acção, e este conhecimento
livrar-te-á de todos os males.
17 - É preciso conhecer a acção natural, formar ideias claras da acção
humana e compreender o significado da acção impessoal; é impenetrável o
mistério da acção.
18 - Aquele que sabe descobrir a impersonalidade na acção e a acção na
inacção é, entre os sábios, o Yogui, obreiro universal de infinita capacidade,
19 - Aquele cujos empreendimentos são denudados de desejos, sem
desígnios, e cujo agir se acha purificado pela luz do conhecimento da verdade é
chamado sábio,
20 - Aquele que, renunciando aos frutos da sua acção, sempre
satisfeito, sem nenhuma dependência, está imerso, profundamente, na acção, é o
homem da acção impessoal,
21 - Aquele que é isento de todos os desejos, tem domínio sobre o seu
corpo e intelecto e está desembaraçado da cobiça, embora pratique acção, não
está sujeito a vínculos dela,
22 - Aquele que, sempre satisfeito, aceita tudo o que lhe chegue,
destruiu a dualidade (atracção e repulsão), sem inveja, equânime perante o bom
ou o mau sucesso, está livre da sujeição da acção.
23 - Quando o homem expulsa os seus desejos e está livre deles,
consolida todo o seu intelecto no Eu, toda a sua actuação é sacrifício, e extingue-se-lhe
a acção.
24 - Brahman é oblação, Brahman é oferenda e é oferecida ao fogo, que é
Brahman, pelo oferecedor também Brahman; e o homem cujas acções se identificam
com Brahman identifica-se ele próprio com Brahman.
25 - Certos Yoguis atingem Brahman oferecendo o sacrifício aos deuses;
outros oferecem em sacrifício o eu próprio dominado no fogo de Brahman.
26 - Uns sacrificam os ouvidos e outros sentidos nas chamas de mestria,
e há outros que sacrificam as palavras e os objectos dos seus sentidos no ardor
dos sentidos.
27 - E ainda outros oferecem em sacrifício todas as acções e a força
vital ao fogo de Yoga do domínio de si, avivado pelo conhecimento.
28 - Em suma, uns sacrificam riquezas, outros praticam austeridades,
terceiros dedicam-se ao Yoga, quartos votam-se ao conhecimento e há ainda
outros que consagram toda a sua energia para o fim supremo.
29 - Ainda mais: há certos que se consagram a dirigir a sua respiração,
sacrificando a inspiração à expiração ou esta última àquela, dominando-a em
seguida.
30 - Há outros que, regulando a sua nutrição, sacrificam uma forma da
sua energia à outra. Todos aqueles que conhecem o sacrifício pela prática
expiam todas as suas faltas.
31 - Ó Arjuna, aqueles que vivem do que lhes resta, feito o sacrifício,
libam o néctar da imortalidade e atingem Brahman eterno, e aqueles que não
fazem sacrifícios não alcançam a felicidade nem neste mundo, nem noutro.
32 - Todas estas formas de sacrifício estão desenvolvidas nos Vedas.
Sabe tu que todos os sacrifícios procedem da acção; e serás livre conhecendo
este facto.
33 - Ó Arjuna, dedica-te todo e sempre ao conhecimento supremo; este
sacrifício está no mais alto grau que todo o sacrifício material, porque toda a
acção atinge culminância no conhecimento.
34 - Aprende-se tudo isso adorando, questionando e servindo o mestre
experimentado no conhecimento da verdade eterna. Só ele é capaz de te ensinar
este conhecimento.
35 - Possuindo este conhecimento, tu não continuarás na ignorância, ó
Arjuna, porque tu verás todas as existências, sem excepção, no teu Eu e em
Mim.
36 - Ainda que sejas o maior pecador, poderás atravessar o oceano dos
pecados pela nau deste conhecimento.
37 - Assim como o fogo aceso reduz toda a lenha em cinzas, assim também
o fogo do conhecimento reduz todos os vínculos da acção em cinzas.
38 - Não existe coisa alguma neste mundo que se possa comparar à pureza
do conhecimento. O homem, atingindo a perfeição pelo Yoga, descobre-a, com o
tempo, no seu Eu.
39 - Aquele que tem a fé ardente, ganhou mestria dos seus sentidos,
fixou todo o seu intelecto na realidade suprema,
atinge o conhecimento e, consequentemente, a paz suprema.
40 - O não instruído sem fé, o céptico, está fora do caminho da
salvação; e quem duvida de tudo, não gozará de felicidade nem neste mundo nem
noutro.
41 - Ó Arjuna, aquele que renunciou à acção pelo Yoga, dissipou as
dúvidas pelo conhecimento e está entregue ao seu Eu, fica isento dos vínculos
da acção.
42 - Por isso, ó Arjuna, corta tu, de vez, todas as dúvidas nascidas da
ignorância, pela espada do conhecimento, e levanta-te, triunfando, no Yoga.
Canto - 5
Yoga da acção
1 - ARJUNA: — Tu fazes a apologia do renunciamento da acção e, ao mesmo
tempo, proclamas o Yoga. Dize-me, claramente, qual é o melhor caminho entre os
dois.
2 - SHRI CRISNA: — Tanto o
renunciamento como o Yoga da acção conduzem ambos para a salvação da
alma; mas, dentre os dois, o Yoga da acção importa mais que o renunciamento da acção.
3 - Deve-se considerar como asceta aquele que não tem aversão por coisa
alguma, nem deseja nada neste mundo. Por isso, ó Arjuna, estando ele isento da
dualidade da atracção e repulsão, está livre da sujeição da acção.
4 - Considerar o Sânquia como diferente do Yoga é
concepção pueril, e não de sábio. Basta aplicar-se, integralmente, a um deles
para obter o resultado de ambos.
5 - A posição que se obtém pelo Sânquia,
consegue-a o Yogui também. Aquele que vê o Sânquia e o Yoga como idênticos, vê com os
olhos de ver.
6 - Mas, ó Arjuna, o renunciamento é difícil de se atingir sem o Yoga.
O sábio que tem a prática do Yoga alcança Brahman em pouco tempo.
7 - Aquele que se inteirou do Yoga, tornou pura a sua alma e é senhor
de si, triunfou dos sentidos, e cujo Eu é o Eu de toda a existência, não
obstante praticar acções, está livre da sua sujeição.
8 - O Yogui, conhecedor dos princípios das coisas, não se julga como
autor das acções: ver, ouvir, tocar, cheirar, comer,
ir, dormir e respirar,
9 - Bem assim, falar, despejar, aceitar, abrir e fechar dos olhos;
porque todas estas acções provêm do funcionamento
dos sentidos nas suas, esferas respectivas.
10 - Aquele que se desprende da acção, dedicando-a
a Brahman, torna-se impermeável às suas vaidades, como a folha de lótus é
impermeável à água.
11 - Os Yoguis só agem para a purificação da sua alma, do corpo,
consciência e intelecto e com os próprios órgãos da acção, mas sempre
desprendidos dela.
12 - O Yogui goza da paz eterna, renunciando a frutos de acção. O não
instruído no Yoga é arrastado à acção pelo desejo e esperança, e por isso está
preso dela.
13 - Quem dominou a sua natureza e renunciou a acções com consciência, goza da plácida serenidade na
cidadela de nove portas que é o seu corpo, sem agir nem ser causa de acção alguma.
14 - O Ente Supremo não cria actividades humanas nem acção, nem a
conexão entre a acção e o seu fruto. É a natureza que efectua tudo isto.
15 - Ele, Senhor, não deixa incidir sobre si o pecado ou o bem de quem
quer que seja. O conhecimento é envolto pela ignorância, e por isso todas as
criaturas se iludem.
16 - Mas aqueles que dissiparam a sua ignorância pelo conhecimento do
Eu, ressurgem resplandecentes como o Sol.
17 - E imergindo toda a sua vitalidade e intelectualidade n'Ele,
fazendo d'Ele o único objecto da sua devoção, identificando-se com Ele e
livrando-se dos pecados, se livram do nascimento e da morte.
18 - Estes sábios vêem na igualdade o brâmane erudito e culto, a vaca,
o elefante, o cão e o pária.
19 - E, assim, realizando a vida firmando o seu intelecto na
equanimidade de Brahman, se estabelecem n'Ele, que é a perfeição.
20 - O homem assim estabelecido em Brahman,
conhecendo Brahman e vivendo n'Ele, não se rejubila com o agradável nem detesta o
desagradável.
21 - Quando o homem se desprende das coisas exteriores, alcança a
felicidade do eu primeiro; e, unindo-se depois a Brahman, ele goza da
felicidade suprema.
22 - Os prazeres que derivam das coisas são a origem do sofrimento do
homem. Eles têm o seu começo e o seu fim, ó Arjuna. O sábio não se compraze
naqueles.
23 - Aquele que, neste mundo, é capaz de subjugar
os ímpetos do desejo e da cólera, é Yogui, homem
ditoso.
24 - Aquele que alcançou a felicidade, a paz
interior e que possui a luz interior, este
Yogui, unificando-se com Brahman, se extingue, afinal,
no Nirvana.
25 - Atinge também o
Nirvana aquele que dissipou todas as dúvidas, destruiu a dualidade e, tornando-se mestre de si,
trabalha sempre para o bem de todas as criaturas.
26 - Os ascetas que se livraram do desejo e da cólera e conquistaram a mestria de si,
vêem-se rodeados de Brahman, de todos os lados.
27
- E contemplam Brahman,
evitando o contacto com os objectos exteriores, convergindo o olhar no ponto de
união das sobrancelhas e tornando iguais a inspiração e a expiração.
28 - E se consagram à sua
libertação para sempre, dominando os sentidos, a consciência, o intelecto e
expurgando o desejo, o medo e a cólera.
29 - E gozam da paz
eterna, após o conhecimento de que sou Eu o fruitivo de todos os sacrifícios e
austeridades dos homens, o Senhor Poderoso do universo inteiro e amigo de toda
a criação.
Canto - 6
A prática do yoga
1 - SHRI CRISNA: — Aquele que pratica a acção que se lhe impõe, sem
pretensões aos seus frutos, é asceta e Yogui, simultaneamente, e não o é quem
se dispense do fogo sacrificial ou prescinda de agir.
2 - Sabe tu, ó Arjuna, o que se chama ascetismo é o Yoga, porque sem o
renunciamento dos desejos é impossível tornar-se Yogui.
3 - Para ascender a Yoga, a acção é a sua via, e para transcendê-lo, a
abnegação completa é a sua rota.
4 - Quando o homem não se prende a objectos sensíveis, é desprendido da
acção e renuncia a todos os desejos, diz-se, então, que ele está assente no
Yoga:
5 - Todo o homem deve trabalhar, sem esmorecer, para a sua ascensão,
por intermédio do seu eu, pois
o eu é amigo ou inimigo, segundo as circunstâncias.
6 - O eu torna-se
amigo quando é conquistado por Eu e é seu inimigo quando é desenfreado.
7 - O homem que conquistou o eu atinge a serenidade e torna-se equânime
perante o calor e o frio, o prazer e a dor, a glória e a infâmia.
8 - Diz-se Yogui quem está satisfeito com o conhecimento intuitivo e
científico de si, senhor dos seus sentidos e considera como iguais a terra, a
pedra e o ouro.
9 - E está na culminância do Yoga quem trata como seu igual o amigo
íntimo, o indiferente, o neutro, o inimigo, o irmão, o santo e o pecador.
10 - É necessário ao Yogui praticar continuamente a sua união com o Eu,
vivendo em retiro e só, banindo da sua mente todo o desejo e ideia de posse e
evitando as emoções que o possam abalar.
11 - Forma-se o assento, não muito alto nem muito baixo, consistindo na
erva sagrada coberta da pele de gazela, e por cima um tecido de algodão,
escolhendo para isso um sítio limpo.
12 - E coloca-se nele, mantendo sob o seu domínio todas as actividades
dos sentidos e a consciência e concentrando-as, com o fim da sua purificação.
13 - Mantém-se na linha vertical o corpo, a nuca, a cabeça e, imóvel,
converge-se o olhar na raiz do nariz, sem o desviar.
14 - E na serenidade do espírito, livre do medo, observando a
continência, orienta-se toda a atenção para o Eu, até ser absorto por Ele.
15 - Continuando desta forma a sua prática de dominar a mente, o Yogui
atinge a paz suprema, que tem a sua base em Mim.
16 - Este Yoga, ó Arjuna, não é para aquele que come em excesso e dorme
muito, nem é para quem se priva, por completo, da sua alimentação e sono;
17 - Mas para quem é moderado na sua alimentação, no sono e em todo o
seu agir, sendo este Yoga aniquilador de todos os sofrimentos.
18 - Quando o homem domina a sua mente e se tranquiliza no Eu, isento
completamente de desejos, diz-se então que ele tem a sua formatura no Yoga.
19 - A calma mental do Yogui pela prática da sua união com o Eu é
comparável à imobilidade da lâmpada de óleo conservada no lugar sem vento.
20 - Quando se consegue a calma, refreando os sentidos pela prática
contínua do Yoga, o homem sente a grande satisfação em mirar o seu eu no Eu.
21 - E quando se experimenta essa beatitude, concebível à razão pura,
sendo inacessível aos sentidos, o homem se não desvia deste estado.
22 - É a maior conquista humana, perante a qual todas as outras perdem
o seu valor, e, uma vez tendo a posse desta, o homem não se abala na maior
calamidade.
23 - Este estado é o Yoga disjuntivo do sofrimento, que todo o homem
deve conhecer e alcançá-lo com coragem e entusiasmo.
24 - Começa-se por deixar ao abandono, sem excepção, todos os desejos
nascidos da imaginação e reprimir os sentidos, de todos os lados, pela vontade
consciente.
25 - E, lentamente, faz-se cessar todo o pensamento pela reflexão,
orientando-o para o Eu, exclusivamente.
26 - Todas as vezes que a atenção fuja ou escape do alvo, é preciso
dominá-la e trazê-la à submissão do Eu.
27 - E, desta forma, a mente, tornando-se calma completamente, sem o
mínimo resíduo de desejo, chega-se à beatitude que o eleva a Brahman.
28 - Assim o Yogui, livre de desejos, continuando constantemente as
suas práticas, goza da beatitude suprema do encontro com Brahman.
29 - O Yogui, uma vez convertido em Brahman, vê na igualdade toda a
existência, isto é, vê o seu Eu em todas as criaturas e estas no seu Eu.
30 - Aquele que Me vê em todas as criaturas e estas em Mim, não se
separa de Mim nem Eu o deixo afastar de Mim.
31 - O Yogui que se apoia sobre a unidade e Me ama em todos os seres,
vive sempre em Mim, seja como for a sua maneira exterior de viver.
32 - E é tido por sumo Yogui aquele que cria em si a capacidade de
sentir os prazeres e penas de todas as criaturas e remediar estas últimas.
33 - ARJUNA: — O Yoga da equanimidade, que tu acabaste de me explanar,
parece-me, não tem bases sólidas para a sua realização, visto a mente ser
sempre instável.
34 - Além. da mente ser polimorfa, ó Crisna,
ela é veemente, forte e indomável. É difícil de ser dominada, tal como o vento.
35 - SHRI CRISNA: — Sem dúvida, a mente é difícil de ser dominada, mas,
ó Arjuna, pode ser refreada pela prática constante e desprendimento completo
das coisas mundanas.
36 - Para quem não conquistou a sua mente, é inacessível este Yoga; mas
quem dominou a sua mente alcança-o pelo esforço apropriado e perseverante.
37 - ARJUNA: — Qual é o destino daquele que empreendeu este Yoga com fé
e não logrou a perfeição nele, nesta vida, por não ter conseguido dominar a sua
mente errante, completamente?
38 - Com o malogro da sua, ascensão à consciência universal e
tornando-se inábil para a vida presente, perecerá ele, ó Crisna, como a neblina
que se dissolve?
39 - Só tu, ó Crisna, melhor do que ninguém, serás capaz de desfazer
completamente esta minha dúvida.
40 - SHRI CRISNA: — Ele não será perdido nesta vida nem noutra, pois o
mínimo bem que se pratique neste mundo nunca dará em resultado mal algum.
41 - Chegará ele ao mundo dos virtuosos, onde, demorando-se por tempo
imensurável, renascerá, neste mundo, na família dos puros e gloriosos.
42 - Ou, então, renascerá ele na família do sábio Yogui, situação mui
rara de se obter, neste mundo.
43 - E, ó Arjuna, lá ele recobrará o estado mental da sua união com
Brahman, da vida precedente, e novamente se esforçará para a perfeição.
44 - A prática residual do Yoga da sua vida anterior o impelirá,
irresistivelmente, avante e um pequeno esforço de conhecer o Yoga o fará logo
sábio na escritura sagrada dos Vedas.
45 - Mas com o esforço assíduo, purificado de todos os pecados,
aperfeiçoando-se através de vidas sucessivas, é que se atinge o fim supremo, o
Yoga.
46 - O Yogui está no mais alto grau que o asceta e é maior que o homem
do conhecimento, e é ainda maior que o homem da acção. Sê tu, portanto, o
Yogui, ó Arjuna!
47 - Entre todos os Yoguis, tenho-o por melhor unido comigo no Yoga
aquele que Me adora do fundo do seu ser e com toda a fé.
Canto - 7
Conhecimento intuitivo e
discursivo
1 - SHRI CRISNA: — Escuta, ó Arjuna, como tu
Me chegarás a conhecer integralmente, praticando o Yoga e amando-Me do fundo do
teu coração, fixando toda a tua atenção em Mim.
2 - Vou-te explicar, sem nada omitir, em que consiste o conhecimento
discursivo e bem assim o conhecimento intuitivo, e, inteirando-te destes, não
te restará nada a saber.
3 - Entre milhares de homens um e outro se consagra à perfeição, e
entre milhares destes um e outro Me chega a conhecer em todos os princípios da
minha existência.
4 - A terra, a água, o fogo, o ar, o espaço, a mente, a razão e a
personalidade: é a minha natureza octófida.
5 - Esta é a minha infra-natureza. Sabe tu, ó Arjuna, que existe a
outra que é supra ou real,
pela qual este universo é amparado.
6 - Sabe que estas são as matrizes de toda a existência. Sou Eu a
origem e o fim do universo inteiro.
7 - Fora de Mim, ó Arjuna, não existe nada supremo. É em Mim que tem
existência este universo como a enfiada de pérolas num único fio.
8 - Ó Arjuna, Eu sou a fluidez da água e a luz
do Sol e da Lua. Sou Pranava (sílaba Aum) em todos os Vedas e sou o som no éter
e a virilidade nos varões;
9 - Sou o puro aroma da terra e a energia calorífica do fogo. Sou a
força vital em todos os seres e sou a austeridade dos ascetas.
10 - Sabe, ó Arjuna, que sou o gérmen eterno de toda a existência. Sou
a inteligência dos inteligentes e a energia dos enérgicos.
11 - Sou a força do forte isento de desejos e atracção e sou o desejo
em todos os seres, não sendo contrário à lei da vida.
12 - Os estados sátvicos, rajásicos e tamásicos, neste mundo, procedem
de Mim, mas eu não Me limito àqueles; eles são limitados por Mim.
13 - Por esta tríade de qualidades todo o mundo é sequestrado e ignora
a Mim, que sou Supremo, imperecível e transcendente.
14 - É este o meu mistério, dimanado de três qualidades, que é difícil
de se transpor. Transpõem-no, somente, aqueles que se refugiam em Mim.
15 - Não Me compreendem, porém, aqueles que têm propensão para o mal,
celerados, tipos ínfimos da escala humana, vivendo nas trevas da ignorância,
cingindo-se só à matéria.
16 - Entre os virtuosos que Me adoram, há quatro tipos, ó Arjuna: os
que sofrem, os que procuram o bem material neste mundo, os que se consagram ao
conhecimento e, finalmente, os sábios.
17 - De entre todos é o sábio que está na primeira plana, pois está ele
em constante união Comigo, amando-Me com puro amor, e é de Mim mui amado.
18 - Nobres são todos eles, sem excepção, mas o sábio que Me ama
considero-o como Eu próprio, porque ele Me tem por seu
único fim supremo e como tal Me anda sempre unido.
19 - O sábio chega a atingir-Me, depois das suas vidas sucessivas e
após o conhecimento de que tudo o que existe é o Ser Omnipresente; raro, é,
porém, este acontecimento.
20 - Os homens, em geral, segundo as exigências da natureza de cada
um, iludidos pelos seus desejos, adoram tal ou tal divindade e fixam as regras
da sua devoção.
21 - Variadas que sejam as suas maneiras de adoração, faço Eu com que a
fé de cada um seja firme e não vacile.
22 - Com a fé ardente, os homens veneram esta ou aquela Minha forma, e,
pela força da sua fé de adoração, obtêm eles os frutos desejados que Eu próprio
lhes proporciono.
23 - Mas estes frutos procurados por estes homens de mentalidade fraca
são temporários. Os adoradores dos deuses chegam a deuses e os meus Me chegam a
Mim.
24 - Os homens de inteligência fraca julgam que Eu sou
limitado na única manifestação, visto eles não conhecerem a minha natureza
suprema, imperecível e de perfeição absoluta, não manifestada.
25 - Eu não sou revelado a todos os homens, envolto como estou no meu
misterioso poder, e eles na sua ilusão não Me compreendem a Mim, que sou
inascível e imperecível.
26 - Eu conheço todas as existências passadas, presentes e futuras, ó
Arjuna, mas ninguém Me conhece,
27 - Pela miragem da dualidade que provém do desejo e da repulsão, ó
Arjuna, todas as criaturas estão sujeitas à ilusão.
28 - Mas aqueles que dissipam os seus pecados pela prática de virtudes
e são livres da atracção e da repulsão, Me adoram firmes, consagrando-se
inteiramente.
29 - Aqueles que se refugiam em Mim e se esforçam por evitar a velhice
e a morte, chegam a conhecer Brahman e tudo o que concerne ao princípio
espiritual e à acção no seu princípio integral.
30 - Aqueles que Me conhecem como unicidade do princípio material,
teológico e de sacrifício e conservam este conhecimento até ao seu término,
atingem-Me.
Canto - 8
Conhecimento de Brahman
1 - ARJUNA: — Que vem a ser Brahman? Que relação tem com o princípio
espiritual? Que se entende por acção? E, ó Supremo, que vem a ser o princípio
material? Que se entende por princípio teológico?
2 - Que vem a ser o princípio do sacrifício? Qual é a sua relação com o
nosso corpo? Dize-me, também, ó Crisna, como tu podes ser conhecido, no final
da sua existência, por aquele que conquistou o auto-domínio.
3 - SHRI CRISNA : — O ser supremo absoluto é
Brahman e a sua manifestação no mundo dos vivos é chamada o princípio
espiritual, e o movimento criador da evolução universal chama-se acção.
4 - O princípio material é a minha forma perecível; o princípio
teológico é o ser subjectivo dos homens, e, ó Arjuna,
sou Eu próprio o princípio do sacrifício, em todos os homens.
5 - Quando o homem abandona o seu corpo, pensando, meditando, até ao
último suspiro, em Mim, é sem dúvida que ele chega a Mim.
6 - Porque são as ideias predominantes da vida, mantidas até ao último
suspiro, que se realizam no final.
7 - Por isso, ó Arjuna, pensando a todo o instante em Mim, luta tu, com
o espírito fixo e consagrado a Mim, e assim, infalivelmente, chegarás a Mim.
8 - Porque, ó Arjuna, pensando, meditando só no Supremo, com o espírito
orientado para Ele, com a prática constante do Yoga, é que se atinge o Supremo.
9 - Aquele que orienta todo o seu pensamento, unicamente, ao Supremo,
que é omnisciente, sempiterno, subtilíssimo, senhor e esteio de toda a
existência, inconcebível, radiante como o Sol para além do espaço e do tempo,
10 - E concentra firme e sereno, pelo amor e pela forca do Yoga, toda a
sua vitalidade na região entre as sobrancelhas, até ao momento do seu término,
chega ao Supremo.
11 - Vou-te dizer, rapidamente, a maneira de alcançar este estado
supremo, imutável, descrito nos Vedas, única guarida dos ascetas e anseio único
daqueles que fazem voto de castidade:
12 - Fecham-se todas as vias aferentes e eferentes dos sentidos,
interiorizando todas as actividades do espírito, e fixando-as em uma e única
ideia de Brahman, convergindo a vitalidade na região da fontanela anterior, e
nesta postura peculiar do Yogui,
13 - Pronunciando o monossílabo AUM, símbolo de Brahman, e fixando
todo pensamento em Mim, abandona-se o corpo mortal e, assim, chega-se ao
Supremo.
14 - Aquele que, a todo o momento, sem se subtrair, pensa em Mim e se
torna uno Comigo, Me atinge, facilmente, ó Arjuna!
15 - Desta maneira, muitas grandes almas, alcançando-Me, extinguiram o
ciclo do nascimento e morte, condição transitória e penosa para o homem, e
chegaram à perfeição Suprema.
16 - Toda a existência espaço-temporal está sujeita ao ciclo da vida e
morte, mas, uma vez tornada una Comigo, extingue-se-lhe esse ciclo.
17 - Aquele que é capaz de conceber o ciclo eterno do dia e da noite de
Bramá, cada um durando mil idades, só este conhece o significado do dia e da noite.
18 - Com o raiar do dia de Bramá entra em formação, no Ser virtual, o
universo cósmico e à chegada da noite regressa tudo ao seu estado primordial.
19 - E assim, todo o conjunto da criação, entrando na evolução
universal, se sume com a vinda da noite, para vir à luz, novamente, com o alvor
do dia.
20 - Para além desse Ser Virtual, existe o outro da suprema
potencialidade, eterno e imperecível, não obstante a dissolução do universo
cósmico.
21 - Chama-se este O Absoluto, Não Manifestado e Imutável. É a suprema
mansão, que, uma vez atingida, o homem se livra do ciclo cósmico; é a Minha
Mansão.
22 - E, ó Arjuna, conquista-se esse Absoluto,
princípio essencial de todo o universo, substância de toda a existência, por
uma devoção extremamente fervorosa.
23 - Agora, ó Arjuna, vou-te dizer os sinais que, ao finar-se o Yogui,
denunciam se ele escapará ou estará sujeito ao ciclo da vida e morte:
24 - O Yogui, conhecedor de Brahman, expira na pujança da sua vida de
sacrifícios com a inteligência lúcida, serenidade crescente do espírito,
radicando bons sentimentos em todos os circunstantes, e atinge Brahman.
25 - E aquele que se fina exaurido de forças, inteligência apagada,
serenidade minguante, incógnito aos outros, regressa para viver a vida mundana,
depois de curto tempo.
26 - São duas as vias, uma luminosa (da acção inteligente) e a outra
sombria (da acção sem inteligência), conhecidas, desde remotos tempos, para o
destino do homem. Uma, que é chamada a via divina (Devayana), leva-o até
Brahman, e a segunda, via ancestral (Pitrayana), faz regressá-lo para viver no
mundo.
27 - Mas o Yogui, conhecendo o segredo dessas vias, segue sempre, sem
errar, a divina. Por isso, ó Arjuna, sê tu Yogui
devoto.
28 - O Yogui, tendo o seu alvo em Brahman, sem se importar com os
frutos das acções do estudo dos Vedas, sacrifícios, austeridade e caridade,
considerados meritórios, atinge-O directamente.
Canto - 9
Conhecimento da devoção
1 - SHRI CRISNA: — Vou-te revelar, agora, o maior segredo, pois tu és capaz
de penetrá-lo e, compenetrando-te dele, livrar-te-ás de todos os males.
2 - É o conhecimento por excelência, segredo sumo, sabedoria excelsa,
luz resplandecente, verificável pela experiência directa, lei própria do ser,
facilmente praticável e imperecível.
3 - Mas aqueles que não têm fé neste conhecimento superior da verdade,
não Me atingem; sujeitam-se aos vaivéns da sorte da vida ordinária.
4 - O universo inteiro é emanado de Mim, é em Mim que ele tem a sua
existência, não sendo, porém, Eu imanente nele.
5 - Eis o misterioso poder: não obstante Ser Eu sustentáculo do
universo inteiro e Me reflectindo nele, não sou imanente em nenhuma criatura.
6 - Assim como o ar tem a sua existência no éter (dentro de certos
limites), assim o universo inteiro tem a sua existência em Mini.
7 - No fim de cada ciclo cósmico, todo o universo entra em dissolução
na minha natureza, ó Arjuna, e ao recomeçar o ciclo entra, novamente, em
formação.
8 - Imponho à minha própria natureza, cada vez, emanar inumeráveis
seres submetidos, em tudo, a ela.
9 - Estes actos não Me prendem, ó Arjuna; assisto indiferente a esses
actos, sem Me prender.
10 - Presido a toda essa criação do animado e do inanimado da natureza
e, ó Arjuna, é por isso que o mundo tem o seu
«devenir» incessante.
11 - Sou incompreendido dos ignorantes, como estou na forma humana, por
não conhecerem a minha suprema natureza, e ser Eu senhor de todas as
existências.
12 - Vãs serão as esperanças, vãs as acções e o saber desses que
perderam a razão, tomando a aparência pela realidade, deixando-se cair no
materialismo.
13 - Mas almas grandes, ó Arjuna, que têm propensão à perfeição, Me
conhecem como imperecível, princípio eterno de toda a existência, e, assim, Me
amam com toda a efusão do seu coração.
14 - E perseverando no seu esforço espiritual, glorificam-Me,
prosternam-se e Me prestam culto com suma devoção.
15 - Há outros que, fazendo voto do conhecimento, Me adoram na minha
unidade e bem assim na multiplicidade, considerando-Me omnímodo.
16 - Sou o ritual do sacrifício e o sacrifício também; sou a libação
dos defuntos e o alimento de todos; sou o hino sagrado e a oblação; sou o
fogo, a manteiga e todas as oferendas;
17 - Sou o pai e a mãe deste universo; sou o criador e ordenador dele;
sou o objecto do conhecimento puro; sou o AUM dos Vedas e os próprios Vedas:
Rig, Yajur e Sarna;
18 - Sou o destino, o sustentador, o senhor, a testemunha, o refúgio, o
guarda, o amigo, o criador e o destruidor de todas as existências; sou a mansão
da paz e da eternidade e a semente imperecível de todos os seres;
19 - Sou Eu que, Me tornando o Sol, desenvolvo o calor neste mundo e,
retendo os vapores da água, os transformo em chuva; sou a imortalidade, e bem
assim a morte; a existência e a não existência sou Eu, ó Arjuna!
20 - Ao revés, porém, os homens que conhecem a tríade védica e se
julgam purificados com a bebida de Soma, Me adoram pelo sacrifício védico com o
único fim de gozar os prazeres celestes, e alcançam o céu, realmente.
21 - Mas, esgotados os seus méritos, após a vida celeste de algum tempo
regressam eles ao mundo dos mortais. Assim, cingindo-se só no sacrifício
védico, cujo alvo é satisfazer os desejos, sujeitam-se ao ciclo cósmico da
vida e morte.
22 - Mas os homens que Me adoram com o amor
exclusivo, fazendo de Mim o único objecto do seu pensamento, Eu os provejo
em tudo.
23 - E, ó Arjuna, mesmo aqueles que, com a fé sincera e ardente, adoram
divindades, tomo-os por adoradores Meus, mas mediatos.
24 - Porque Eu sou fruitivo e senhor de todos os sacrifícios consagrados,
seja a quem for, e como eles Me não compreendem na
minha essência, permanecem nas suas ilusões.
25 - Aqueles que adoram as divindades atingem-nas; os que prestam culto
aos antepassados chegam para o mundo deles; os que se consagram aos espíritos
elementares alcançam-nos e os que Me adoram, Me chegam.
26 - Uma folha, uma flor, uma fruta ou um pouco de água até, oferecida
a Mim, com dedicação, por qualquer pessoa devota, é para Mim muito agradável.
27 - Renuncia tu, ó Arjuna, todas as tuas acções respeitantes à
subsistência, ao sacrifício, à caridade e à ascese, em Mim.
28 - Assim, ficando livre de vínculos da acção, ou antes renunciando
aos seus frutos, bons ou maus, estarás unido a Mim, para sempre.
29 - Eu sou igual para com todas as existências; ninguém Me é caro nem
odiento. No entanto, aqueles que se dedicam a Mim, com amor e devoção, existem
em Mim e Eu neles.
30 - Ainda o maior perverso deste mundo, se se Me dedica, com toda a
efusão do seu coração, deves tê-lo por santo, porque a perseverança dele o
caminhará sempre para a perfeição.
31 - Converter-se-á ele rapidamente em uma alma virtuosa e obterá a paz
eterna. Eis a minha promessa: «Quem me ama não morre».
32 - Ainda que seja o pária, descendente dos pecadores, bem assim todo
o género humano feminino, os váixias e sudras, se se refugiam em Mim, alcançam
o bem supremo, ó Arjuna!
33 - Nem se fale dos santos brâmanes e reis sábios e devotos que são
meus; e tu, ó Arjuna, que vieste a este mundo efémero, vale de lágrimas,
ama-Me, volvendo-te para Mim.
34 - Põe toda a tua aspiração em Mim, pelo amor puro adora-Me,
sacrifica-te a Mim, prosterna-te perante Mim. Deste modo, submerso em Mim,
unido a Mim, confundir-te-ás Comigo, que sou o fim último e supremo.
Canto - 10
Suprema palavra
1 - SHRI CRISNA: — Escuta, ó Arjuna, ainda uma vez, a minha palavra
suprema; vou-te dizer, para teu bem e porque te prezo muito:
2 - Nem os deuses nem os maiores rixis conhecem a minha origem, porque
Eu seu a origem desses deuses e desses rixis.
3 - Aquele que Me conhece, sem ilusão, como sem nascimento, sem
origem; Senhor Soberano do mundo e dos povos, fica
livre de todos os pecados e males.
4 - A inteligência, o conhecimento, o discernimento, a indulgência, a
verdade, o auto-domínio, a serenidade, o prazer, a aflição, o nascimento, a
morte, o medo e a coragem,
5 - Bem assim, a não-violência, a igualdade, a satisfação, a
austeridade, a generosidade, a glória, a infâmia, todas estas qualidades no
homem procedem de. Mim.
6 - Os sete grandes rixis e os quatro Manus de que descendem todos os
seres vivos deste mundo, são emanação intelectual
Minha.
7 - Aquele que conhece, em todos os princípios, essa Minha expansão
Yóguica, sem dúvida alcança o Yoga e se mantém firme e inabalável nele.
8 - Sou a origem de todas as criaturas e sou Eu que animo tudo.
Conhecendo profundamente esta verdade, certos homens Me adoram com um amor
fervoroso.
9 - E eles, concentrando todo o seu espírito em Mim, sacrificando toda
a sua vitalidade por Mim, ilustrando-se uns com os outros, Me gloriam e assim
exultam.
10 - A esses enlevados que me adoram com o amor profundo, dou-lhes a
claridade intelectual suficiente para Me atingirem.
11 - E, por piedade deles, com o facho Meu, qual lâmpada refulgente do
conhecimento, destruo todas as trevas da sua ignorância.
12 - ARJUNA: — Tu és o supremo Brahman, a suprema mansão, a suprema
pureza, a única existência, Deus único e original, não nascido, Senhor e
omnipresente.
13 - Todos os rixis Te louvam, unanimemente, nesses termos e os poetas
Narada, Acita, Devala e Viassa Te cantam da mesma forma, e Tu próprio me
declaras o mesmo.
14 - Acredito em tudo o que Tu me dizes. Mas,
ó Crisna, a Tua origem é uma incógnita, tanto para os deuses como para os
demónios.
15 - Tu, o criador e senhor do universo, animador de toda a existência,
Deus Único, só Tu Te conheces, ó Supremo, pelo Teu
misterioso poder.
16 - Dize-me, sem nada omitir, as tuas manifestações sublimes, pelas
quais Tu transpareces neste mundo cósmico.
17 - Dize-me, também, como eu Te posso conhecer, em todos os instantes
e em todos os lugares, e qual o Teu aspecto que eu devo tomar na minha oração
mental quotidiana, ó Crisna.
18 - Explica-me, ó Crisna, detalhadamente, todo este Teu mistério e as
Tuas manifestações. Será para mini o néctar da imortalidade e um encanto
ouvi-lo, sem me fartar.
19 - SHRI CRISNA: — Sim, vou-te enumerar, ó Arjuna, com prazer, só as
minhas manifestações proeminentes, porque todas elas são sem fim e sem limites.
20 - Sou a essência eterna, ó Arjuna, de todas as criaturas do universo
e sou o princípio, o meio e o fim de todos os seres.
21 - Entre os Adítias sou Visnum e o Sol radiante entre as luzes e
esplendores. Sou Marichi entre os Marutas e a Lua entre os astros que brilham
no céu.
22 - Sou o Sama entre os Vedas e Vassava (Indra) entre os deuses. Sou a
mente nos sentidos e sou a vitalidade de todos os seres vivos.
23 - Sou o Civa entre os Rudras e o senhor de riquezas entre os Yacxas
e Racxassas. Sou o fogo entre os Vassus, e Meru entre as montanhas.
24 - Sabe tu, ó Arjuna, que sou Brahaspati entre os predicadores
eminentes. Sou Scanda entre os comandantes dos exércitos e o oceano entre as
águas correntes.
25 - Entre os grandes rixis sou Brhagu e sou AUM, sílaba sagrada entre
as palavras. Sou Japa (repetição silenciosa dos nomes sagrados) entre as formas
de adoração e Himalaia entre os imóveis.
26 - Entre as árvores sou Ashvatha (árvore do pimpol) e Narada entre os
rixis divinos. Sou Chitraratha entre os Gandharvas e o sábio Capila entre os
perfeitos.
27 - Sabe tu que sou Ucheishravá, nascido do néctar, entre os cavalos,
e Airavat entre os elefantes, e entre os homens o chefe soberano sou Eu, ó Arjuna!
28 - Sou o raio entre as armas e Camadhenu (vaca da abundância) no
gado vacum. Sou o instinto genésico nos progenitores e Vassuqui entre as
cobras.
29 - Sou Ananta entre os Nagas e Varuna entre os povos marítimos. Sou
Ariamá entre os manes e Yama entre aqueles que sancionam as leis.
30 - Sou Pralada entre os aborígenes selvagens e o Tempo entre os
devoradores. Sou o leão entre os animais silvestres e a águia entre as aves.
31 - Entre os purificadores sou o vento e Rama entre os guerreiros. Sou
o crocodilo entre os aquáticos e Ganges entre os rios.
32 - Da criação sou Eu o princípio e o fim e também o meio. Nas
ciências sou o conhecimento espiritual e nos debates sou dialéctica, ó Arjuna!
33 - Sou A nas letras do alfabeto e composto dual nas palavras
compostas; sou o imperecível tempo e senhor soberano de toda a existência.
34 - Sou a morte que ceifa tudo, sem distinção, e o começo daqueles que
virão a nascer. No vocabulário feminino que diz respeito a qualidades, sou a
glória, a riqueza, a palavra, a memória, a inteligência, a constância e a misericórdia.
35 - Sou o grande Saman entre os hinos e Gaiatri na rítmica; sou
Margaxirxa entre os meses e a Primavera entre as estações.
36 - Nas artimanhas especulativas sou o jogo dos dados, e nos poderosos
a força. Sou a resolução, a perseverança e a vitória e sou a qualidade sátvica
dos bons.
37 - Sou Crisna no clan dos Vrasnis e Arjuna entre os Pandavas. Sou Vi
assa entre os sábios e Uxaná entre os poetas-profetas.
38 - Sou a soberania e o poder dos governantes e a diplomacia dos
conquistadores. Sou o silêncio do segredo e dos grandes sábios o conhecimento.
39 - Sou a semente de todas as criaturas. E, ó Arjuna, nenhum ser, quer
animado quer inanimado, pode existir, neste universo, sem Mim!
40 - As minhas manifestações proeminentes são sem fim, ó terror dos
inimigos. O que te acabei de expor é um sumário delas, para tua ilustração.
41 - Tudo o que te inspira o respeito, bem assim, tudo o que é belo e
sublime, considera-o como originado do facho da Minha essência.
42 - Mas, que te importa a ti conhecer tudo isso em detalhes? Sabe tu,
ó Arjuna, que o universo inteiro tem o seu «devenir» na pequena parcela da
Minha. Essência.
Canto - 11
Visão do macrocosmo
1 - ARJUNA: — Pela Tua misericórdia, Tu me desvendaste o segredo
supremo do conhecimento espiritual, e, assim, dissipaste todas as minhas
ilusões.
2 - Dissertaste sobre a criação e a dissolução do universo e, bem
assim, sobre a maravilha do Teu poder.
3 - Convenço-me da verdade inteira da Tua lição. Mas, ó Supremo, não me
darei por satisfeito sem Te ver na forma divina, tal qual acabaste de me
descrever.
4 - Descobre-me, portanto, essa tua forma imperecível, ó Supremo Yogui,
para eu a ver, se não achares inconveniente algum da Tua parte.
5 - SHRI CRISNA: — Vais tu contemplar, ó Arjuna, em centenas e
milhares, as minhas formas, variadas em género e diversas em cores.
6 - Contempla os Adítias, os Marutas, os Vassus, os Rudras, os dois
Asvinas, e muitas outras maravilhas que ninguém, até hoje, contemplou.
7 - Hoje mesmo, e neste mesmo lugar, vais tu contemplar, ó Arjuna, o
mundo inteiro dos animados e inanimados, unificado no Meu corpo, e tudo o que
tu desejas observar.
8 - Persuado-Me, porém, de que tu não poderás atingi-lo com esses olhos
humanos. Vou-te dar a visão divina com que, num relance, apanharás toda a Minha
maravilha.
9 - SANJAIA: — Dito isto, ó Majestade, Shri Crisna, o maior Yogui,
revelou a Arjuna a sua magna forma.
10 - Era uma forma majestosa, com miríades de faces e inúmeros olhos,
que se multiplicava em outras tantas formas, com inumeráveis ornamentos e armas
variadas nas suas mãos.
11 - Trazia grinaldas e trajes sublimes, com o corpo todo odorífero,
untado dos bálsamos aromáticos divinos, com as faces numerosas dirigidas para
todos os lados, portentoso no seu aspecto singular.
12 - O seu esplendor era tão grande que se não poderia comparar com a
luz de milhares de sóis reunidos e brilhando simultaneamente no céu.
13 - E Arjuna viu nela o mundo inteiro dividido em miríades de formas,
mas unificado no corpo do Deus dos deuses.
14 - E com essa visão, Arjuna, todo espavorido, com arrepios,
prosternou-se perante aquela figura grandiosa, e com as mãos unidas, disse:
15 - ARJUNA: — No vosso corpo que ostentais, ó Deus, vejo eu todos os
deuses em peso e variadas legiões dos seres: Brama, o Deus criador sentado na
flor de lótus, com rixis na máxima serenidade e a serpente divina ao seu lado.
16 - Vejo os vossos braços, os ventres, os olhos e as faces em número
ilimitado. Vejo também vossas formas infinitas percorrerem por todos os lados;
não descubro, porém, o começo nem o meio, nem o fim, ó Senhor do Universo, ó
Mestre Soberano!
17 - Vejo-Vos, Senhor, com a coroa, o disco e a maça de uma refulgência
tal que me ofusca a vista, irradiando por toda a parte, como a luz do fogo ou
do Sol.
18 - Vós sois o Imutável Supremo que primeiro temos que conhecer. Sois
o alto suporte e a grande mansão do universo. Sois o guarda imperecível das
leis eternas e essência sempiterna do universo.
19 - Sem o começo, nem o meio, nem o fim, sois infinito no poder, com
os braços inúmeros e os olhos brilhando como o Sol ou a Lua. Eu
Vos contemplo a fisionomia a arder de fogo, transparecendo que tendes o firme
propósito de consumir o universo inteiro nas suas chamas.
20 - Vós, o único, ocupais todo o espaço entre a terra e o céu, e o
mundo todo já perdeu o alento em vendo essa Vossa temerosa figura.
21 – Eis-me aqui diante das legiões dos deuses que se incorporam na
vossa colossal figura, com as suas mãos unidas, a Vos venerar. Eis lá os rixis
e os perfeitos a implorar a paz e felicidade para todos, gloriando-Vos com
hinos laudatórios;
22 - Eis acolá os Rudras, os Adítias, os Vassus, os Sadhias, os
Asvinas, os Marutas, os Usmapas, os Gandharvas, os Yacxas, os Assuras, os
Sidhas, todos a fitarem espantados a Vossa majestosa figura.
23 - O pavor e a angústia apoderaram-se deles e de mim, também, em ver
essa Vossa figura colossal, com miríades de cabeças, de olhos, de braços, de coxas,
de pés e de ventres e de miríades de bocas com as dentaduras horrorosas.
24 - Vejo-Vos ocupando todo o espaço, flamejando em cores variadas, com
as bocas abertas e os olhos enormes e brilhantes, o que me infunde o medo e a
inquietação.
25 - Tende misericórdia por mim, ó Deus dos deuses! Vou perdendo o
alento e não sei orientar-me, vendo-Vos com miríades de bocas com dentes
terríveis a vomitar chamas, para acabar, duma vez, o mundo.
26 - Eis os filhos de Dhratarashtra e todos os príncipes e, bem assim,
os heróis Bhisma, Dronacharia e Carna, e também os principais combatentes do
nosso exército,
27 - Vejo-os caírem, uns após outros, nas Vossas mandíbulas terríveis
e alguns, já, com as cabeças esmagadas e sangrentas, estão engasgados nos
Vossos queixais.
28 - Assim como as águas dos rios correm pressurosas para se lançarem
no mar, assim esses grandes heróis se precipitam nas Vossas bocas flamejantes;
29 - Assim como os insectos fototácticos voam céleres à chama
incandescente que os consome, assim essas legiões de homens se precipitam nas
Vossas mandíbulas fatais.
30 - E Vós, já depois de consumirdes todos eles que entraram nas
braseiras das Vossas bocas, estais a lamber os Vossos beiços com línguas
flamantes. Ó Infinito, o mundo todo se sente abrasado com o Vosso fogo!
31 - Revelai-me quem sois Vós, que revestis essa forma tão gigantesca e
cruel! Ó Deus Supremo, curvo-me reverente perante
Vós. Dai-me a Vossa graça; desejo conhecer-Vos! Donde viestes? Incompreensível
é para mim o plano das Vossas obras!
32 - SHRI CRISNA: — Sou o Tempo, o destruidor do mundo; eis-me aqui
para exterminar todos os povos. Exceptuando tu, ó Arjuna, ambos esses exércitos
alinhados acabarão para sempre.
33 - Levanta-te, ó Arjuna, para conquistar a glória, triunfando dos
inimigos, e desfrutar o governo deste território opulento. Para Mim, eles já
são mortos. Sê tu, somente, a causa ocasional da exterminação deles.
34 - Acaba com eles, que são mortos, por Mim: o Drona, o Bhisma, o
Jaiandratha, o Carna e outros cabos de guerra. Luta tu; vencerás, certamente,
os adversários na batalha.
35 - SANJAIA: — Arjuna, ouvindo essas palavras de Shri Crisna, com as
mãos unidas, todo atrapalhado, curvou-se perante ele e com a voz trémula disse:
36 - ARJUNA: — Ó Soberano Mestre, é alegria e enlevo para os homens
gloriar-Vos; é natural que os infiéis selvagens fujam de Vós, por não Vos
conhecerem, e os perfeitos Vos venerem.
37 - E estes Vos prestam homenagens sabendo que Vós sois o Criador
original, maior que Brama, o criador. Ó Infinito! Senhor dos deuses! Ó Mansão
do universo, Vós sois o Absoluto Imutável, superior ao
ser e não ser.
38 - Vós sois Deus Primordial, Deus Original, Deus Único, Mansão
Suprema de todo o universo; sois o conhecedor, o conhecimento e a condição
suprema; ó Infinito, Vós revestis todo este universo!
39 - Vós sois o Poder executivo das leis eternas; sois o fogo, o ar, a
água, a Lua, o Pai do criador Brama e de todas as criaturas. Eu
Vos saúdo mil vezes, muitas vezes, sempre!
40 - Saúdo-Vos pela frente, por trás, por todos os lados; porque Vós sois cada coisa e tudo deste universo. Sois
infinito no poder e sem limites na produção. Ocupais tudo; sois
omnímodo!
41 - Mas eu, sem me compenetrar da Vossa majestade, quer pela minha
imprudência, quer por irreflexão, ou em consideração da nossa amizade, Vos
dirigi dizendo sempre: «Ó Crisna, ó Yadava, ó amigo!»;
42 - E por ignorância, me portei sempre sem cortesia, nos passeios
fluviais, ao descansar, ao sentar, ao jantar, e em todas as ocasiões, quer
privadas, quer públicas. Imploro-Vos o perdão por tudo isso.
43 - Vós sois o Pai deste mundo dos animados e inanimados; sois o
Soberano Mestre, o único venerável neste universo, incomparável e inigualável.
44 - Curvo-me reverente perante Vós; prosterno-me humildemente para a Vossa
graça; Senhor Venerável, sede indulgente para comigo, como um pai para com o
seu filho, um amigo para com o seu amigo, ou um amante para com a sua amada.
45 - Rejubilo-me de ter visto a maravilha sublime; mas, o pavor que se
tinha apoderado de mim não passou ainda. Imploro a Vossa graça para eu poder
tornar a ver a Vossa forma primitiva.
46 - Desejo-Vos ver na vossa forma humana, com a coroa, o disco e a
maça. Ó Infinito, absorvei esses miríades de braços,
deixando, somente, os quatro usuais!
47 - SHRI CRISNA: — Por graça, e pelo poder maravilhoso, apresentei-te
a Minha forma suprema, da potencialidade extrema, infinita, original,
universal, que ninguém, exceptuando tu, jamais viu.
48 - Só tu, ó Arjuna, tiveste a sorte de observar essa Minha forma, entre
os mortais. Nem pelo estudo dos Vedas e pelos sacrifícios, nem pelas grandes
oferendas, nem pelo ritual grandioso das cerimónias, nem pelas austeridades severas,
se consegue vê-la.
49 - Não te inquietes com essa visão terrível da Minha forma nem te
deixes comover nem desfalecer. Larga o medo e vai tu ver, com alegria, esta
Minha forma.
50 - SANJAIA: — Shri Crisna, o Supremo, falando assim a Arjuna,
manifestou-se de novo na sua forma afável habitual, e deste modo consolou-o.
51 - ARJUNA: — Vendo-Vos, agora, na Vossa doce forma humana, ó Shri
Crisna, já me sinto tranquilo e regressei ao meu estado habitual.
52 - SHRI CRISNA: — A forma suprema que tu acabaste de contemplar é a
que os próprios deuses aspiram ver sempre.
53 - Nem o estudo dos Vedas, nem a caridade, nem os sacrifícios, nem
as austeridades permitirão alcançá-la.
54 - Só com a devoção intensa, ó Arjuna, é possível vê-la, conhecê-la e
penetrar na essência desta minha forma.
55 - E, ó Arjuna, aquele que se considera a si como instrumento Meu,
em todas as acções aceita-Me como Supremo e Me ama com o amor sublime,
desprendido de todas as coisas deste mundo e sem inimizade para com nenhuma
criatura, esse atinge-Me.
Canto - 12
Caminho da devoção
1 - ARJUNA: — Os Yoguis adoram o Deus pessoal e os sábios amam o
Absoluto imutável, não manifestado; desejo saber quem prima entre os dois.
2 - SHRI CRISNA: — Aquele que, com a fé extrema, concentra o seu
espírito em Mim, está em união comigo, Eu o tenho por Yogui devoto.
3 - Aquele que adora o Absoluto omnipresente, não manifestado,
essência eterna de tudo, imutável e inconcebível,
4 - E tendo ele conquistado o auto-domínio, trata como iguais todas as
criaturas e consagra toda a sua existência para o bem de todos, Me chega,
também.
5 - Mas é pesado o esforço a que esse tem de se sujeitar para amar o
Absoluto. É uma tarefa árdua para o homem, em geral.
6 - Porém, se renuncia em Mim todas as suas acções, dedicando-se-Me
inteiramente, adorando-Me ininterruptamente, meditando em Mim, profundamente,
7 - E fixa todo o seu espírito em Mim, Eu o livro deste oceano
tempestuoso do viver e do agir que o leva, no final, à morte.
8 - Por isso, concentra tu toda a atenção em Mim, polariza toda a tua
inteligência em Mim, e desta forma, sem dúvida, residirás em Mim.
9 - Se não és capaz de fixar todo o teu espírito em Mim, persevera em
habilitar-te na prática do Yoga, e assim Me atingirás a Mim.
10 - Se, ainda, és incapaz dessa prática, então adopta tu o princípio
de servir-Me, isto é, praticar todas as acções pelo amor de Mim, e assim
alcançarás a perfeição.
11 - E se tu te julgas, ainda, incapaz disso, então o único meio que
tens é o de capitular e, conseguintemente, com a reflexão, renunciar a Mim
todos os frutos das tuas acções.
12 - Pois do esforço do homem ao conhecimento da verdade é um passo; do
conhecimento da verdade à sua contemplação, é outro; da contemplação ao
renunciamento dos frutos das acções, é o terceiro; e logo em seguida a paz
suprema. Eis a norma natural da devoção.
13 - Assim, aquele que não odeia nenhuma criatura e é amigo de todos e
piedoso, sem egoísmo nem possessivo, equânime perante o prazer e a dor, e
indulgente,
14 - E bem assim, sempre contente e mestre de si, da resolução firme,
Me ama dedicando-Me toda a sua mente e a razão, é devoto Meu querido.
15 - Aquele que não enfastia ninguém, nem é enfastiado pela sociedade,
e é isento da paixão, da cólera, do medo e da angústia, é devoto da Minha
predilecção.
16 - Aquele que não ambiciona coisa alguma deste mundo, é puro, sempre
pronto para servir quem quer que seja, abnegado, sem paixões, renunciou todas
as iniciativas, é devoto a quem amo.
17 - É devoto, também, aquele que não exulta nem se entristece, não
deplora nada, sem desejos, renunciou ao bem como ao mal e sempre dedicado para
Mim.
18 - Aquele que vê na igualdade os amigos e os inimigos, é equânime
perante a honra e o opróbio, o calor e o frio, o prazer e a dor, desprendido de
tudo,
19 – E é indiferente perante a glória e a obscuridade, silencioso,
sempre satisfeito, sem o domicílio fixo, e imerso em Mim, é devoto que prezo.
20 - E tenho por melhor devoto quem faz de Mim o seu único fim supremo
e, com a fé e a exactidão perfeitas, segue as normas enunciadas na lei imortal
da devoção.
Canto - 13
Primeiros princípios
1 - SHRI CRISNA: — O nosso corpo é chamado o campo, ó Arjuna, e quem
conhece esse campo é chamado o conhecedor do campo, pelos sábios.
2 - Compreende tu que sou Eu o conhecedor do campo, em todos os corpos
e, ó Arjuna, o conhecimento desse campo e o do seu conhecedor constitui o
conhecimento propriamente dito.
3 - Que é esse campo? Qual é a sua natureza? Quais são as suas
propriedades? Donde provém ele? Bem assim, quem é esse conhecedor do campo?
Quais são as suas actividades? Vou-te explicar, resumidamente, para teu saber:
4 - Todas essas questões têm sido abordadas pelos rixis, a seus modos,
nos Vedas, dedicando-lhes até estrofes sublimes; mas a análise racional do
problema encontra-se em Bramassutras, em linguagem clara e concisa.
5 - Esse campo é um agregado de Prakriti (a Natureza não diferenciada,
princípio eterno do «devenir» e da acção), do produto da sua evolução
inorgânica: os cinco elementos (o espaço, o ar, a água, o fogo e a terra), do
resultado da sua evolução orgânica: os dez sentidos e uma mente, a inteligência,
a intuição do eu, e, enfim, os cinco objectos dos sentidos;
6 - A coesão destes elementos, a sua organização, a força vital, a
atracção e a repulsão, o prazer e a dor, tudo isto é o campo com as suas
formações.
7 - A antipatia pelas honras e estima, a isenção total da hipocrisia, a
não violência, a indulgência, a rectidão, a veneração
do mestre, a pureza, a firmeza, o auto-domínio,
8 - O desprendimento dos prazeres dos sentidos, a eliminação radical
do egoísmo, a compreensão nítida de que o nascimento, a morte, a velhice e as
doenças são o sofrimento e a dor no homem,
9 - Não ser absorto pelo lar, nem ser preso absolutamente à família, a
equanimidade perante a adversidade e, bem assim, perante a prosperidade,
10 - Uma devoção fervorosa, sem afrouxamento, a adoração constante da
presença universal do eterno, o gosto pela solidão, a vida apartada de toda a
multidão ou agregados sociais,
11 - A meditação dos problemas metafísicos, a consciência de que a
ciência espiritual é eterna, tudo isto é declarado como sapiência, o reverso é
a ignorância.
12 - Agora, vou-te abordar o conhecimento fundamental que, uma vez
assimilado, te enlevará para a imortalidade: é o Supremo Brahman Eterno, que se
não pode designar pela palavra existência ou não existência:
13 - As suas mãos e os seus pés existem em toda a parte, ao redor de
nós. São inúmeras as suas cabeças, as suas faces, as suas bocas; os seus olhos
dirigindo-se em todos os lugares; as suas orelhas se encontram em toda a parte;
abrangendo todo o universo, se excede;
14 - Evidencia-se por todas as actividades dos sentidos, mas sem os
respectivos órgãos. Não se prende a coisa alguma, não obstante ser suporte de
tudo. Tem todas as qualidades, não sendo, porém, qualificável;
15 - É o único que existe no íntimo de todos os seres animados e
inanimados e fora também. É móvel e imóvel ao mesmo tempo. Está longe,
encontrando-se, porém, perto. É a subtileza dos subtis, e por isso é incompreensível;
16 - Ele é uno e indivisível, mas mostra-se dividido em variadas
criaturas, dando aparência de existências distintas. É a origem eterna de
todas as existências, o amparo de todos os seres e, enfim, o absorvedor de
tudo, na sua eternidade.
17 - É a luz das luzes, o esplendor além das trevas profundas da nossa
ignorância. É o conhecimento e o objecto do conhecimento, residindo no íntimo
de tudo.
18 - Já te expliquei, sumariamente, o que é o campo, o que é o
conhecimento e o que é o objecto do conhecimento. Todo o meu devoto que conhece
essa verdade, atinge-Me.
19 - Sabe tu que a Natureza e o Espírito são ambos sem origem e
eternos; e sabe, também, que a Natureza é a causa determinante do «devenir»
universal.
20 - O princípio da causalidade e o da acção provêm da Natureza. O
Espírito, colhendo as sensações dos objectos exteriores, converte-as em
percepções do prazer e da dor.
21 - O Espírito, sendo inseparável da Natureza, reflecte em si as
actividades dela, e esta atracção pelas qualidades sujeita-o a moldes variados,
bons ou maus, do seu nascimento, na Natureza.
22 - O Espírito, inserido no nosso corpo, assistindo a todos os actos
da Natureza, anuindo-os, sustentando-os, desfrutando as suas produções, é o Eu
Supremo, soberano, todo poderoso.
23 - Assim, aquele que conhece, desse modo, o Espírito e a Natureza com
as suas qualidades, qualquer que seja a sua maneira de viver e agir, não está
sujeito ao ciclo da vida e morte.
24 - Esse conhecimento se adquire pela introspecção, em que o Eu eterno
se torna aparente na própria existência humana, ou se adquire peio Yoga da
inteligência ou pelo Yoga da acção.
25 - Mas o homem, em geral, que ignora essas vias do Yoga, adquire a
Verdade escutando com fé e atenção os preceitos ditados pelos mestres e
meditando-os, e, assim, evita o ciclo da vida e morte.
26 - Sabe, ó Arjuna, que todo o ser que vem ao mundo, quer animado quer
inanimado, é o resultado da união do Espírito e da Natureza.
27 - Aquele que vê o Ente supremo, indistintamente, em toda a
existência espaço-temporal, isto é, o imperecível no perecível, só este vê
realmente.
28 - Aquele que compreende que o Ente supremo existe em todas as coisas
e em todos os seres e, sendo incapaz de se deixar arrastar pelas paixões,
atinge a condição suprema,
29 - Aquele que compreende que toda a acção é o atributo da Natureza, e
que o Espírito só assiste impassível aos actos dela, é o sábio,
30 - E quem chega a compreender que toda essa multiplicidade de
existências se sucede no único Ser Supremo, e que tudo dimana d'Ele, atinge o
Brahman.
31 - Ó Arjuna, o Ser Supremo é sem origem e Eterno, não limitado pelas
qualidades da Natureza, imperecível, e não obstante se encontrar no nosso
corpo, Ele não age nem é afectado.
32 - Assim como o éter subtil enche todo o espaço e penetra todos os
corpos, sem se alterar, assim o supremo Espírito, existindo em todas as partes
do nosso corpo, não é afectado.
33 - Assim como o único Sol ilumina a terra inteira, assim o senhor do
campo ilumina o campo inteiro, ó Arjuna!
34 - Aquele que, pelos olhos do conhecimento, chega a compreender a
distinção entre o campo e o seu conhecedor e o segredo da libertação do jugo da
Natureza, atinge o Supremo.
Canto - 14
A natureza e as suas qualidades
1 - SHRI CRISNA: — Vou-te introduzir agora, ó Arjuna, no conhecimento supremo,
sabedoria em extremo, cuja integração conduziu muitos sábios à perfeição.
2 - Recorrendo-se a esse conhecimento, os sábios identificam-se
Comigo, e assim evitam o nascimento durante a criação universal e a aflição da
dissolução do universo cósmico.
3 - A Natureza é a matriz em que Eu projecto o
gérmen para se desenvolver; e brotam dela todos os seres deste mundo, ó Arjuna!
4 - Ela é a mãe, origem de todas as espécies vegetais e animais,
variadas que sejam, na aparência, as suas matrizes geradoras, e Eu, o pai que
lanço semente em todas elas.
5 - As três qualidades Satva, Raja e Tama, nascidas da Natureza, fazem
aprisionar, no nosso corpo, o seu senhor imperecível, ó Arjuna!
6 - Dentre elas a Satva é o farol da luz e a fonte da saúde, que, pela
sua pureza, prende o homem ao conhecimento espiritual e à bem-aventurança.
7 - A Raja tem por essência a atracção pelos objectos, que, gerando o
desejo, prende o homem à acção.
8 - A Tama envolve todos os mortais no véu da ignorância, arrastando-os
à preguiça, à indiferença e ao sono.
9 - Em suma, a Satva liga o homem à felicidade suprema, a Raja condu-lo
à acção e a Tama, cobrindo-o com o véu da ignorância, encerra-o na inércia, na
apatia.
10 - Umas vezes é a Satva que predomina, vencendo as duas, a Raja e a Tama;
outras vezes a Raja domina a Satva e a Tama; ou a Tama se eleva acima da Satva
e da Raja, ó Arjuna!
11 - Quando no homem os órgãos dos sentidos se mostram vivos e a
inteligência é lúcida, deve-se compreender que na natureza dele há acréscimo da
qualidade Sátvica.
12 - A ambição, o dinamismo, a iniciativa da acção, a inquietação e o
desejo, são sinais da predominância da Raja.
13 - A ignorância, a preguiça, a negligência, a aberração, tudo isto
nasce quando a Tama predomina.
14 - Quando a qualidade Satva persiste no homem até ao último suspiro,
o seu espírito atinge o mundo dos sábios virtuosos, e lá retoma ele o novo corpo.
15 - Aquele que expira com a predominância da qualidade Raja renasce no
meio social activo e o da Tama no meio dos ignorantes e brutos.
16 - O fruto das obras praticadas com rectidão (obras Sátvicas) é a
pureza de todos os sentidos. A dor é a consequência das obras Rajásicas e a
ignorância é o resultado da acção Tamásica.
17 - O conhecimento espiritual procede da qualidade Satva; a ambição
nasce da Raja; e a ignorância, a ilusão e a negligência provêm da Tama.
18 - A ascensão espiritual é apanágio do homem Sátvico; a vida mundana
cabe ao Rajásico; o aviltamento é a sorte do Tamásico, praticando actos
indignos.
19 - Quando o homem chega a conhecer, profundamente, que todas acções,
quer físicas quer morais, procedem das qualidades da Natureza e que, para além
delas, existe o Supremo, que assiste a todos os mecanismos vitais, e se dirige
a Ele, este atinge-Me;
20 - Quando o homem transcende as qualidades da Natureza que dirigem
todas as actividades vitais, livra-se do nascimento, da decrepitude, da
velhice, de todos os sofrimentos e da morte e chega à imortalidade.
21 - ARJUNA: — Dizei-me, Senhor, os sinais evidentes daquele que
transcendeu as três qualidades da Natureza. Como se porta ele? De que modo
transcendeu ele essas qualidades?
22 - SHRI CRISNA: — Ó Arjuna, aquele que não se escusa, nem foge à luz
súbita no espírito (resultado da Satva crescente), ao impulso à acção (resultado
da Raja crescente) e ao obscurecimento mental (resultado da Tama crescente),
nem os deseja quando eles cessam;
23 - Indiferente a tudo, não se deixando influenciar pelas qualidades,
conserva-se impassível, pela razão de que toda a acção procede do jogo da
Natureza;
24 - Considera o prazer e a dor como sendo da mesma categoria, e toma
por iguais a terra, a pedra e o ouro; firme, equânime perante o agradável e o
desagradável, a glória e o ultraje;
25 - Considera também que a honra e o ultraje são da mesma ordem, igual
perante a facção dos amigos e a dos inimigos, e não é atreito à iniciativa do
proveito material, esse homem transcendeu as qualidades da Natureza; ele é
espiritual.
26 - E esse, quando Me ama, Me adora com amor fervoroso, ultrapassando
as qualidades da Natureza, se torna capaz de se identificar com Brahman.
27 - Porque sou Eu a base de Brahman, da imortalidade, do princípio
espiritual, da lei da vida eterna e da beatitude.
Canto – 15
O princípio espiritual no cosmo e
no homem
1 - O universo cósmico é figurado, pelos sábios, no Ashvatha
imperecível (árvore do pimpol), que tem as suas raízes no alto (eternidade), os
seus ramos se estendem em baixo (no mundo) e as suas folhas representam os
hinos védicos. Quem o conhece é o conhecedor dos Vedas;
2 - Os seus ramos, estendendo-se em baixo, dirigem-se para o alto e,
impregnando-se das qualidades da Natureza, brotam gomos para novos ramos e
novas raízes; as suas folhas verdes são os objectos dos sentidos e as suas
novas raízes, irrigadas pelos desejos, dando o impulso à roda da acção,
aprofundam mais e mais, neste mundo.
3 - A sua forma completa, tal como se acha descrita, é um mistério
neste mundo material dos homens; não se sabe o seu começo, nem o seu termo, nem
a sua situação. Enraizado profundamente esse Ashvatha, é indispensável derrubar
o seu trono com o machado do ascetismo;
4 - Entranhar-se e, descobrindo as suas raízes, caminhar e caminhar até
atingir o Ser Supremo original de que dimana este mundo da acção e donde
ninguém regressa, lá chegado uma vez.
5 - Mas atingem esse Infinito Supremo só aqueles que são isentos de
orgulho e vaidade e de tudo o que alimenta ilusão, sem ambições, tipos
concentrados, livres dos desejos e da dualidade do prazer e dor e que têm
conhecimentos profundos de tudo.
6 - Lá não há sol que os ilumine, nem a Lua que lhes dê o fresco luar,
nem o fogo que os aqueça, e os homens que o atingem não mais regressam. É a
Minha Suprema Mansão.
7 - Uma pequena fracção do meu Ser Supremo se torna espírito em todas
as criaturas vivas, neste mundo cósmico, atraindo os cinco sentidos e o mental
da Natureza.
8 - Assim, o espírito, quando reveste o corpo, da mesma forma quando o
rejeita, leva consigo esses sentidos e o mental, tal como a corrente aérea
arrasta consigo o aroma exalado das flores.
9 - Imperando nos sentidos do ouvido, da vista, do tacto, do gosto, do
olfacto e no mental, o espírito do homem frui todos os prazeres dela.
10 - O espírito, quando rejeita o corpo ou quando o reveste, aliando-se
às qualidades da Natureza, desfruta os prazeres dos sentidos e é incompreendido
do homem vulgar; só o vê aquele que tem olhos de sabedoria.
11 - Os Yoguis, pelos seus esforços perseverantes, chegam a observá-lo
em si próprio; o homem vulgar e, bem assim, o ignorante, mesmo com maiores
esforços, não conseguem vê-lo.
12 - A energia do Sol que vivifica todos os seres, o luar, o calor do
fogo, todas estas energias emanam de Mim.
13 - Penetrando na terra, pelo Meu poder, sustento nela toda essa
multiplicidade de seres e, tornando-Me a seiva, nutro todo o reino vegetal.
14 - Tornando-Me a flama da vida no corpo de todas as espécies
animais, dirijo o sistema nervoso e muscular do aparelho digestivo e faço
assimilar toda a diversidade de alimentos, a fim de assegurar a sua conservação.
15 - Estou no íntimo de todos os homens e de Mim procedem neles a
razão, a memória, o conhecimento e também a carência dessas faculdades; sou Eu
o cognoscível dos Vedas, o autor do Vedanta e o conhecedor dos Vedas também.
16 - Há dois seres no universo: o perecível e o imperecível. O primeiro
abraça as formas de todas as criaturas e o segundo é a essência de todas elas.
17 - Além destes dois seres, existe o terceiro, que é chamado
Paramatman (Supremo Ser Imutável), essência primordial eterna, origem de tudo e
penetrando tudo.
18 - Esse ser sou Eu e, estando além do
perecível e muito acima do imperecível, sou proclamado Purushotama (Supremo
Ser) pelos sábios nos Vedas e, por consequência, no mundo.
19 - Assim, o sábio que Me considera como Supremo Ser, expulsando
todas as suas ilusões e conhecendo profundamente tudo, adora-Me com todo o seu
coração, em todas as formas.
20 - Já te instruí sobre o conhecimento, o mais misterioso, ó Arjuna.
Assimilá-lo absolutamente é tornar-se perfeito e, no sentido mais lato, é
realizar a vida
Canto – 16
Espiritualidade e materialidade
1 - SHRI CRISNA: — A coragem, a candura, a firmeza no Yoga da
inteligência, a beneficência, o auto-domínio, o sacrifício, a meditação, a
ascese, a rectidão,
2 - A não violência, a verdade, a moderação, a
abnegação, a calma, a magnanimidade, a compaixão por todos os seres, a ausência
da cobiça, a humildade, a consciência pura, o equilíbrio estável,
3 - A energia, a indulgência, a paciência, a pureza, a tolerância, a
aversão pela celebridade, todas estas qualidades são prerrogativas da
espiritualidade no homem.
4 - A presunção, a arrogância, o amor-próprio, a cólera, a rudeza e a
ignorância são atributos dos que propendem para a materialidade.
5 - A espiritualidade conduz o homem para a sua libertação do mundo
cósmico; ao contrário, a materialidade para a escravidão desse mundo; não te
aflijas, ó Arjuna, pois tu nasceste para a espiritualidade.
6 - São duas as constituições distintas dos homens que nascem neste
mundo: uma propende para a espiritualidade e a outra para a materialidade. Já
te dei os pormenores da primeira; compreende agora os da segunda:
7 - Os homens que tendem para a materialidade não têm o conhecimento da
acção, isto é, não sabem eles o que é permitido e o que é proibido fazer; não
têm a pureza dos costumes e são completamente ignorantes da verdade.
8 - Dizem eles que o mundo é um acaso, sem leis nem ordem, e não
admitem a existência de Deus, atribuindo a origem das criaturas à união sexual,
que tem a sua base unicamente no desejo.
9 - E firmando-se nessa ignorância crassa, arruínam a sua alma e a
razão e se tornam instrumentos da acção violenta, feroz e demoníaca da
destruição do mundo e a sua ordem.
10 - Orientados pelo insaciável desejo, esses arrogantes com amor próprio, cegos de orgulho, mal dirigidos, persistem nas
suas aspirações falsas e, obstinados, praticam actos indecorosos da dignidade
humana.
11 - Imaginam eles que os prazeres sensuais são o único fim da vida, e
com esta convicção firme se lhes prendem até ao momento da sua morte, com furor
extremo.
12 - Presos por ambições desmedidas, devorados pela cólera e cobiça,
dão-se aos ganhos ilícitos, sem se fatigarem, com o único fim de satisfazer os
seus apetites baixos.
13 - Cada um deles diz: «Hoje eu ganhei tanto, amanhã satisfarei
outros meus desejos; tenho esta riqueza, amanhã
multiplicá-la-ei.
14 - «Suplantei hoje um rival, amanhã vencerei outros. Sou o senhor, o
fruitivo, o perfeito, o poderoso e o feliz.
15 - «Sou o rico e pertenço a nobre linhagem, sou inigualável, farei o
sacrifício, a caridade e gozarei». Ê desta forma que eles alimentam as suas
ilusões.
16 - Assim, alucinados pelas ideias egoístas, entregues à embriaguez de
gozos sensuais, caem no inferno impuro dos seus próprios vícios.
17 - Com orgulho e soberba, cheios de riquezas, oferecem sacrifícios e
praticam caridade com o mero fim de ostentação, não seguindo a ordem prescrita
em semelhantes actos.
18 - Na embriaguez do seu egoísmo, da força, da arrogância, cheios de
desejos e cólera, odeiam os seus semelhantes, rebaixando desta forma o Deus
oculto neles e em si.
19 - E esses que odeiam o bem e Deus, tipos cruéis, os mais vis entre
os homens deste mundo, dão contínuas reviravoltas na materialidade pela lei da
acção por Mim regulada.
20 - E permanecendo na materialidade durante as suas vidas sucessivas,
descem mais e mais e, enfim, perdem-se sem Me atingirem.
21 - O desejo, a cólera e a cobiça arruínam a alma humana; são três
portas que se abrem para o inferno. O homem deve sempre evitar aproximar-se
delas.
22 - O homem que escapa a essas portas de trevas e segue o caminho do
seu bem alcança a condição suprema, ó Arjuna.
23 - Aqueles que, rejeitando as leis da experiência dos sábios, seguem
os seus apetites, não atingem a perfeição nem a felicidade suprema.
24 - Por isso, a lei deve ser considerada como a autoridade para
decidir o que se deve fazer e o que se deve evitar. Tendo, primeiro, o
conhecimento da lei prescrita, deves tu exercer as tuas actividades no mundo.
Canto – 17
Variadas tríades
1 - ARJUNA: — Aqueles que oferecem sacrifícios a
Brahman, com todo o coração, mas sem a observância da regra prescrita pelos
sábios, como Tu classificas a fé deles? É Sátvica, Rajásica ou Tamásica?
2 - SHRI CRISNA: — A fé no homem corresponde à sua natureza particular,
e é Sátvica, Rajásica e Tamásica. Compreende tu, ó Arjuna.
3 - Ela toma a matiz que lhe dá a substância do seu ser. O homem é o
que é a sua fé.
4 - Os homens Sátvicos adoram deuses, os Rajásicos prestam culto aos
guardas das riquezas e às forças extraordinárias e os Tamásicos veneram os
fantasmas e os demónios.
5 - Os homens que praticam austeridades estupendas, interditas pelas
regras, com egoísmo e hipocrisia, impelidos unicamente pelos desejos e
paixões,
6 - E mortificam o seu corpo, e torturam em vão o espírito, são a
execração do género humano.
7 - A alimentação é variável segundo os homens, e são três as suas espécies; da mesma maneira há tríade do sacrifício, da
austeridade, da caridade prática. Eis as diferenças:
8 - Os Sátvicos preferem os alimentos que aumentam a vitalidade, a
força, a pureza, a saúde, a felicidade e o amor e que são sumarentos, doces,
substanciais e saborosos.
9 - Os Rajásicos são atraídos pelos alimentos amargos, ácidos,
salgados, picantes, quentes, secos e acres, que trazem o mal-estar da saúde e
provocam doenças.
10 - Os Tamásicos tomam gosto aos alimentos frios, impuros,
estragados, fermentados e contagiados.
11 - O sacrifício é Sátvico quando é feito com serenidade, sem o desejo
ao seu fruto, praticado como um dever e realizado segundo a regra prescrita.
12 - O sacrifício feito com o fim do proveito pessoal e realizado com
ostentação e hipocrisia é Rajásico, ó Arjuna.
13 - O sacrifício sem a regra prescrita, sem a oblação, sem hinos, sem
dádivas e sem fé, é chamado Tamásico.
14 - A homenagem a Deus, o respeito pelo brâmane, pelo mestre
espiritual e pelo sábio, a pureza, a rectidão, a continência e a não-violência
formam a essência da austeridade física;
15 - Falar gentil e agradavelmente, falar sempre a verdade, falar com
urbanidade, dissertar sempre sobre os textos da escritura sagrada, tudo isto
constitui a austeridade da linguagem;
16 - A alegria viva, a afabilidade, o silêncio, o auto-domínio e a
candura constituem a austeridade mental;
17 - Essa tríade de austeridades praticadas pelo homem, com fé perfeita
e com a luz da razão, sem aspiração aos seus frutos, é chamada ascese Sátvica.
18 - A mesma tríade praticada com vaidade e hipocrisia, com o fim de
ser respeitado, ter honras e veneração, é chamada ascese Rajásica; ela é
instável e efémera.
19 - Essa mesma praticada com obstinação doida, com torturas a si
próprio e com o fim de causar dano a outrem, é chamada Tamásica.
20 - A caridade é chamada Sátvica quando o donativo é oferecido à
pessoa merecedora, pelo amor de dar e para o bem, em tempo e em lugar próprio,
sem esperar retribuição alguma.
21 - A caridade, quando é feita com constrangimento e com a esperança
de recompensa, é, chamada Rajásica.
22 - A caridade sendo praticada sem consideração às condições do tempo
e do lugar e o donativo oferecido a pessoa indigna e com desdém, é chamada
Tamásica.
23 - AUM-TAT-SAT, esta tríade de palavras monossilábicas simboliza o
Brahman que, nos prístinos, tempos deu origem aos brâmanes, aos Vedas e ao
sacrifício.
24 - Eis a razão porque todo o devoto começa os actos de sacrifício, de
caridade e de austeridade pronunciando a sílaba AUM segundo a lei prescrita.
25 - Pronunciando TAT, procura a sua libertação do ciclo da vida e
morte no mundo cósmico, renunciando aos frutos de sacrifício, de caridade e de
austeridade a Brahman.
26 - SAT significa o bem, a existência, e se emprega também no sentido
de boa acção, e se pronuncia essa palavra a fim de habituar o homem às boas
acções.
27 - O SAT é também dedicar toda a vida aos sacrifícios, à caridade, à
austeridade, e fazer destas acções o seu dever.
28 - O sacrifício, a caridade, a austeridade e todas as outras acções
praticadas sem fé são inconsequentes neste mundo e noutro também.
Canto – 18
Conclusão
1 - ARJUNA: — Desejo conhecer, ó Crisna, o princípio essencial do
renunciamento e o do ascetismo e a diferença entre os dois.
2 - SHRI CRISNA: — Os sábios chamaram ascetismo ao abandono das acções
motivadas pelos desejos e denominaram renunciamento ao abandono completo dos
frutos das acções.
3 - Declaram uns sábios que se deve renunciar a toda a acção por maléfica;
dizem outros que nunca se deve renunciar a acções tais como o sacrifício, a
caridade e a austeridade.
4 - Compreende, agora, ó Arjuna, o meu juízo sobre o assunto; o
renunciamento das acções tem também a sua tríade diferencial.
5 - De forma alguma se deve renunciar às acções de sacrifício, de
caridade e de austeridade; pelo contrário, é preciso praticá-las, porque são
elas necessárias para tornar pura a razão do sábio.
6 - E essas acções de bem devem ser praticadas, ó Arjuna, com
desinteresse, sem aspiração aos seus frutos. É esta a minha opinião definitiva.
7 - Em verdade, não convém renunciar às acções justamente prescritas;
abandoná-las, por ignorância, é praticar o renunciamento Tamásico.
8 - O abandono da acção, por ser penosa ou porque é um tormento para a
carne, é considerado como o renunciamento Rajásico; não tem ele o efeito do
renunciamento propriamente dito.
9 - Praticar as acções prescritas com desinteresse, sem desejos aos
seus frutos, e considerá-las como o seu dever, é Sátvico esse renunciamento.
10 - O sábio que dissipou todas as suas dúvidas,
pratica o renunciamento à luz do seu pensamento Sátvico, não desdenhando a
acção desagradável, nem se prendendo à acção agradável.
11 - Na verdade, não é possível ao homem abandonar completamente as
acções. Abandonar o fruto da acção é praticar o renunciamento.
12 - Há tríade de frutos da acção: agradável, desagradável e misto; e
estes só a obtêm aqueles que são escravos dos seus desejos, e isso também
noutro mundo; ficam isentos deles, aqueles que os renunciaram, previamente.
13 - Vou-te enumerar, ó Arjuna, as cinco causas da acção, segundo
Sânquia. Compreende tu que esses factores são necessários para realizar
qualquer acção.
14 - São os seguintes: o corpo, o agente, os diversos instrumentos, as
variadas actividades e, enfim, o destino.
15 - Em qualquer acção empreendida pelo homem, seja corporal, seja
mental ou da palavra, quer boa quer má, são cinco os elementos que entram na
sua realização.
16 - Mas o homem ignaro julga que o Eu é o autor da acção, e deste modo
demonstra ele a sua ignorância, ou a fraqueza da inteligência, ou a cegueira
mental.
17 - Aquele que é isento do egoísmo e que tem a luz da razão perfeita,
mesmo que extermine todos os seus semelhantes deste mundo, não é o autor do crime,
porque transcendeu ele a natureza, diluiu o seu eu no Ser Supremo, e por isso
não está ele sujeito aos vínculos da acção.
18 – O conhecimento, o cognoscível e o conhecedor, são três os factores
que concorrem para o impulso à acção; do mesmo modo, o autor, os instrumentos e
o acto constituem a acção total.
19 - Há tríade, também, do conhecimento, da acção e do autor, segundo
Sânquia, em conformidade com as suas qualidades; compreende tu, ó Arjuna:
20 - O conhecimento pelo qual o homem vê um único Ser imperecível no
«devenir» universal, um todo indivisível em toda a multiplicidade de seres,
este é Sátvico;
21 - O conhecimento pelo qual se vê toda a multiplicidade como
existências distintas e de vários aspectos, este conhecimento é Rajásico;
22 - O conhecimento pelo qual o homem vê as coisas de uma maneira
estreita, sem nada compreender da natureza real do mundo, relacionando tudo à
sua parte material em que convergem todas as suas actividades, é chamado
Tamásico.
23 - A acção é chamada Sátvica quando ela é justamente regulada,
realizada com desinteresse, sem atracção nem repulsão e sem aspirar aos seus
frutos;
24 - A acção empreendida sob o ímpeto de desejos, com egoísmo e com
esforços desmedidos, é chamada Rajásica;
25 - A acção praticada cegamente, sem consideração à força ou
capacidade, nem às suas consequências, sem calcular o dano ou violência a
outrem, é considerada como Tamásica.
26 - O autor é chamado Sátvico quando age com abnegação, sem egoísmo,
com resolução firme e com entusiasmo, sendo indiferente perante, o bom ou mau
sucesso;
27 - O autor é chamado Rajásico quando age com paixão, com ambição dos
frutos de acção, cobiçoso, impuro, violento e brutal nos meios, alegre quando
tenha bom sucesso e triste com mau sucesso;
28 - O autor, quando é indisciplinado, vulgar, pérfido, dissimulado,
negligente, triste e trapaceiro, é chamado Tamásico.
29 - Compreende, ó Arjuna, que a inteligência e a vontade têm cada uma três aspectos,
segundo as suas qualidades; vou-te explicar tudo, sem nada omitir:
30 - É Sátvica a inteligência quando ela faz compreender o que se deve
fazer e o que se não deve fazer, o que é legítimo e o que é ilegítimo, o que é
prejudicial e o que é útil, o que sujeita à escravidão e o que dá liberdade;
31 - A inteligência que não sabe discernir o que é lícito e o que é
ilícito, o que é justo e o que é injusto, é Rajásica, ó Arjuna!
32 - A inteligência obscura, que toma o imoral por moral, o injusto por
justo e vê todas as coisas obtusamente, é Tamásica.
33 - A vontade que nunca vacila e que dirige firmemente a mente, os
sentidos e o sopro vital, esta é chamada Sátvica;
34 - A vontade que vigia com interesse a ambição dos frutos da acção,
os deveres, a riqueza e os desejos, é chamada. Rajásica;
35 - A vontade que torna o homem estúpido e o impede de largar o sono,
o medo, a dor, a angústia e o orgulho, é chamada
Tamásica.
36 - Compreende, agora, ó Arjuna, o que te vou expor sobre a tríade do
prazer e, compenetrando-se deste conhecimento, o homem pode evitar,
completamente, a dor:
37 - O prazer que se alcança empregando, no início da acção, esforços
gigantescos e penosos e que dá em resultado a paz da alma, é chamado Sátvico;
38 - O prazer causado pelas relações dos sentidos com os seus objectos,
que no início é como o néctar, mas no final é peçonha, é chamado Rajásico;
39 - O prazer que, tanto no início como no fim, é uma ilusão e que
provém do sono, da preguiça ou da indolência, é chamado Tamásico.
40 - Tanto na terra como no céu, não existe ente algum que possa
isentar-se das três qualidades originadas da Natureza.
41 - E, segundo a combinação das variantes dessas qualidades, se
constitui o natural do brâmane, do xátria, do vaixia e do sudra.
42 - A calma, o auto-domínio, a austeridade, a pureza, a indulgência, a
rectidão, o conhecimento intuitivo e discursivo, a fé religiosa, são atributos
do brâmane;
43 - O heroísmo, o valor, a coragem, a vigilância, a não deserção, a
generosidade, a autoridade, são atributos do xátria;
44 - A agricultura, a criação do gado e o comércio são actividades
naturais do vaixia. Todo o trabalho tendo o carácter de serviço é função
natural do sudra,
45 - Todo o homem que se concentra na acção que convém à sua própria
natureza, atinge a perfeição. Compreende, ó Arjuna,
como se atinge a perfeição praticando as acções adequadas à sua natureza:
46 - O homem atinge a perfeição adorando, por meio das suas obras, o
Ser Supremo, que é origem de todos os seres e que penetra todo o universo.
47 - É preferível a cada um a sua própria lei da acção, por imperfeita
que seja, à doutrem bem aplicada. Ninguém incorre no pecado quando age segundo
a lei da sua própria natureza.
48 - Nunca se deve abandonar a acção que se coaduna com a sua natureza,
por ser defeituosa; porque toda a acção consuma tem os defeitos que a encobrem, tal como a fumaça encobre o
fogo.
49 - Aquele que, com desinteresse, pratica a acção, dominando o
mental, extinguindo todos os desejos, com renúncia inteira de si mesmo, alcança
a quietude e chega à perfeição.
50 - E, chegado desta forma à perfeição, atinge ele o limiar de
Brahman, ordem suprema da culminância do conhecimento. A maneira como ele o
transpõe, vou-te expor resumidamente, ó Arjuna:
51 - Aquele que purificou a inteligência, dominou o ser inteiro por uma
vontade firme e estável, surdo ao som e a todos os objectos dos sentidos,
isento da dualidade da atracção e repulsão,
52 - Vivendo na solidão, sóbrio, dominou a palavra, o corpo e a mente,
unido ao seu Eu por meditação constante, e extinguiu todos os desejos,
53 - Isento do egoísmo, da violência, da arrogância, da cólera, livre
do desejo da posse, ganhou calma e a impassibilidade, tal homem está prestes a
tornar-se Brahman.
54 - Quando se converte em Brahman e quando na sua beatitude não sente
aflição e não deseja nada, começa a adorar-Me, vendo tudo na igualdade.
55 - E por essa via de adoração, chega ele a conhecer, profundamente,
quem sou Eu e quanto Eu sou, e, assim, conhecendo-Me na essência, penetra em
Mim.
56 - E, desta forma, continuando ele a praticar as acções,
refugiando-se em Mim, atinge, por minha graça, a condição eterna e
imperecível.
57 - Por isso, ó Arjuna, dedicando-te a Mim, renunciando todas as tuas
acções a Mim, recorrendo ao Yoga da inteligência, sê tu, de todo o teu coração,
uno Comigo.
58 - Continuando tu uno Comigo, por minha graça, serás capaz de
arrostar todos os perigos. Mas, se perseverares no teu egoísmo, sem atenção aos
Meus preceitos, cairás na perdição.
59 - Tu, na tua obcecação, tens decidido não tomar parte na batalha; é
em vão a tua resolução, pois a tua própria natureza obrigar-te-á a arremessar a
ela.
60 - Ó Arjuna, conquanto tu asseveras, na tua ilusão, não efectuar a
acção coerente com a tua natureza, esta mesma te impelirá a praticá-la contra a
tua expectativa.
61 - O Ser Supremo tem a sua sede no coração de todas as criaturas e
Ele, pelo seu misterioso poder, nos faz mover no rodar da Natureza.
62 - Por isso, ó Arjuna, vai tu refugiar-te n'Ele, que, com a sua
graça, te fará atingir a paz Suprema, condição eterna.
63 - Já te acabei de expor, com clareza, o conhecimento o mais secreto,
e agora, reflectindo bem nele, procede tu como quiseres.
64 - Ainda, uma vez, te vou repetir a Minha palavra suprema, o maior
segredo que te vou dizer para teu bem e porque te prezo muito:
65 - Fixa tu todo o pensamento em Mim,
adora-Me, sacrifica-te a Mim, prosterna-te diante de Mim. Asseguro-te que
chegarás a Mim, pois és meu querido.
66 - Renuncia tu a todos os teus deveres e obrigações e outros
afazeres e refugia-te em Mim único; salvar-te-ei, está tu em paz.
67 - Recomendo-te mais que não transmitas estes meus ensinamentos aos
que desconhecem a austeridade, aos irreligiosos, aos ímpios e aos ateus.
68 - Aquele que proclamar este segredo entre os meus devotos, atingirá a suprema devoção e chegará a Mim.
69 - E esse será para Mim o mais caro entre os homens, pelos seus actos
mui agradáveis para Mim.
70 - Aquele que estudar este nosso diálogo sagrado,
tomá-lo-ei por um devoto que Me ama pelo seu voto do conhecimento.
71 - E aquele que estudar com fé, e sem sofismas, este diálogo, chegará
ao mundo dos justos e felizes, após abandonar o seu corpo mortal.
72 - Dize-Me, ó Arjuna, se tu compreendeste bem tudo o que te acabei de
explicar e se te dissiparam as tuas ilusões?
73 - ARJUNA: — Ó Shri Crisna, a Tua graça dissipou todas as minhas
ilusões; recobrei já o ânimo; cá estou livre de dúvidas, pronto para cumprir os
Teus preceitos.
74 - SANJAIA: — Tive a dita de escutar este maravilhoso e exortativo
diálogo entre Shri Crisna e Arjuna.
75 - Por graça de Viassa cheguei a ouvir esse segredo supremo do Yoga
explicado pelo próprio Shri Crisna, Mestre Divino do Yoga.
76 - Majestade, rememorando, cada vez, esse maravilhoso diálogo entre
Shri Crisna e Arjuna, rejubilo-me mais e mais.
77 - E ainda mais me rejubilo e espanto, quando evoco aquele prodigioso
vulto de Shri Crisna.
78 - Enfim, lá onde se encontram juntos o Mestre do Yoga, Shri Crisna,
e o arcipotente Arjuna, está assegurada a glória, a vitória, a prosperidade e a
lei imutável da justiça.
Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas
http://www.estudos-biblicos.net