Andar
segundo o Espírito (MC)
DOIS MODOS DE ANDAR NA VIDA
(Deverá “clicar” nas referências
bíblicas, para ter acesso aos textos)
INTRODUÇÃO
Em Romanos 8:1, São Paulo
fala de duas formas divergentes de a pessoa orientar a sua vida: vivê-la
segundo a carne ou segundo o Espírito. Neste artigo procurarei meditar sobre o
que caracteriza cada um desses modos de andar na vida.
A tradução da Bíblia por Ferreira de
Almeida, chamada versão tradicional, em Romanos 8:1 escreve:
Portanto, agora
nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam
segundo a carne, mas segundo o espírito. A segunda parte do
versículo, que sublinho, é de duvidosa legitimidade, pois não aparece nos
melhores manuscritos, mas no contexto de toda a Epístola, e especialmente neste
capítulo oitavo, a explicação é consequente. No desenvolvimento do capítulo 8º
vê-se que os dois caminhos alternativos são, de facto, “viver segundo a carne”
ou “viver segundo o Espírito”, grafado com maiúscula por se referir ao Espírito
divino.
É do ser humano que o apóstolo fala,
quando fala da carne (sarx), como o faz em Romanos 3:20 e
noutros lugares Gálatas
2:20, Filipenses
1:22, etc. No Novo Testamento, o ser humano é apresentado como sendo
tridimensional:
Swma (sôma) Corpo
Yukh (psyché) Alma
Pneuma (pneuma) Espírito
Sendo o Swma (sôma) a sua dimensão material, a Yukh (psyché) a sede do pensamento e dos sentimentos, e o Pneuma (pneuma)
o elemento vital. Algumas vezes fala-se apenas do corpo e do espírito,
associando no corpo os valores da Yukh (psyché =
alma), como neste capítulo 8 no versículo 13: Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas se
pelo espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Este
versículo mostra também que as palavras “carne” e “corpo” podem ser usados como
sinónimos e incluir uma e outra a ideia de “alma” ou mente. As obras do corpo
não são apenas acções mas são também os pensamentos e os sentimentos que dão
origem a tais acções. De resto, com a liberdade com que os semitas usam as
palavras, em que conta mais o contexto que a lógica rigorosa, até a palavra
corpo (soma) pode significar o homem completo (corpo, alma e espírito) como em Mateus 5:29; Romanos 12:1 e Tiago 3:6. Um
ponto é claro: ao contrário do que alguma teologia cristã fez depois, no
pensamento bíblico não há um dualismo matéria-espírito ou corpo-espírito em que
o primeiro elemento seria totalmente negativo e o segundo positivo. O homem na
visão bíblica é uma unidade corpo-alma-espírito e a esperança cristã não é,
como nos gregos, que o espírito será um dia liberto da prisão do corpo, mas o
cristão espera a ressurreição da pessoa integral. Jesus disse em João 6:40: A vontade d’Aquele
que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho e crê n’Ele, tenha a vida
eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. O Credo dos Apóstolos,
que traduz bem o ensino bíblico, diz: “Creio na ressurreição da carne (sarkx) e na vida eterna”. Esperamos viver eternamente na
nossa entidade integral. Este corpo que agora temos será transformado (corpo
glorioso), mas será o nosso corpo, como Jesus ressuscitado tinha o seu corpo 1ª Coríntios
15:53/54.
DUAS ORIENTAÇÕES
Há, pois, duas formas de orientar a
vida: uma em que o homem se guia segundo as exigências, as apetências e as
possibilidades do seu corpo e da sua mente; e outra em que o homem entrega a
orientação da sua vida ao Espírito. No mesmo texto de Romanos 8:1 o
apóstolo usa a expressão “estar em Cristo”. São esses que não andam segundo a
carne, mas “segundo o Espírito”. “Estar em Cristo” é, em termos práticos, estar
convertido a Cristo e ao seu Evangelho, ter comunhão com Ele no Espírito, e
estar integrado no Corpo de Cristo, que é a Igreja. Sem nos determos ainda no
sentido de “viver segundo o Espírito”, avançamos já que, obviamente, não se
entra na “vida segundo o Espírito” de forma automática pelo facto de a pessoa
ser baptizada e subscrever o Credo. Ser cristão é ter nascido de novo, em
Cristo, mas é um facto que no cristão continua presente o “homem velho”. Na
verdade, mesmo os melhores cristãos andam repetidamente segundo a carne. Como
lembrou Lutero, o cristão é simultaneamente justo (anda segundo o Espírito) e
pecador (anda segundo a carne). Paulo diz de si mesmo que é carnal Romanos 7:14, embora
seja, acima de tudo, alguém que vive em Cristo. 2ª Coríntios
5:14/19. Mas o apóstolo lembrou: embora andando na carne, não militamos segundo a carne
2ª Coríntios 10:3.
O HOMEM DO CONHECIMENTO
Há a tendência de se pensar que “andar segundo a
carne” é uma forma de falar do homem sem religião ou moralmente condenável,
mas devemos sublinhar que falar do homem “carnal” não implica forçosamente um
julgamento moral. Jean de Saussure, teólogo suíço,
num comentário ao Credo dos Apóstolos escrevia: “A Bíblia chama «carne» a tudo
o que é humano, tudo o que é terrestre, e designa exclusivamente como
«Espírito”, o Espírito divino, o Espírito Santo. Segundo a Escritura, o nosso
ser inteiro é carnal, a nossa inteligência, tanto como o nosso corpo, a nossa
alma, o nosso espírito é carnal. A «carne» é todo o nosso ser terrestre”. (Crois-tu cela? p.191) Assim, mesmo na religião, podem
distinguir-se os aspectos da orientação “carnal”. Há pessoas que praticam muita
religião, mas vivem segundo a carne. A sua adesão é a doutrinas, é apenas um
assentimento intelectual, mesmo que as doutrinas em questão não sejam
inteligentes.
Essa orientação da vida, que mais
adiante se verá melhor em que consiste, manifesta-se em ateus e agnósticos, mas
está muito presente na vida de seguidores de diferentes religiões, é muito bem
tipificada no comportamento dos fariseus do Novo Testamento mas continua para
além do Novo Testamento e chega até aos nossos dias.
O famoso teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer dedicou na sua Ética algumas páginas muito
expressivas ao fenómeno fariseu, páginas que começam com este período: “É no
encontro de Jesus com o fariseu que a antiga e a nova situação são mais bem
esclarecidas. A boa interpretação deste encontro é da maior importância para a
compreensão do Evangelho em geral. O fariseu não é um acidente histórico e acidental,
mas o homem para quem apenas o conhecimento do bem e do mal se torna o tema de
maior importância para a sua vida. Por outras palavras, ele é simplesmente o
homem da divisão. Todo o retrato distorcido dos fariseus rouba a seriedade da
discussão de Jesus com eles. O fariseu é esse homem extremamente admirável que
subordina toda a sua vida ao seu conhecimento do bem e do mal e é um juiz tão
severo de si próprio como do seu próximo para glória de Deus, a quem ele
humildemente agradece pelo seu conhecimento” (Ethics,
p.26-27).
O farisaísmo foi o movimento que maior
combate mereceu da parte de Jesus. A razão por que Jesus tanto combateu o
farisaísmo está no carácter profundamente nocivo que o farisaísmo é para o ser
humano, anulando de forma subtil a graça de Deus. É o facto de o farisaísmo ser
um caminho “segundo a carne” mas que dá a ilusão ao homem de estar no “caminho
segundo o Espírito” que o torna mais perigoso.
Viver segundo a carne é, essencialmente,
viver segundo os padrões humanos, estabelecer os valores que o homem aceita
para sua orientação, a direcção que quer tomar, os interesses que decide
servir, o projecto ou projectos que escolhe para si. Aquilo que o homem pensa,
é aquilo que ele é: Como o homem imagina em sua alma, assim ele é. Provérbios 23:7.
Viver segundo a carne não é algo que tenha uma conotação moral ou especialmente
relacionado com baixos pecados, mas tem de ver com uma orientação geral em que
o homem quer ter firme condução da sua vida.
O homem que vive segundo a carne é o
homem da razão, o que não significa viver sempre inteligentemente, pois a nossa
razão ocupa-se muitas vezes de ideias que não são nem inteligentes nem
superiores. No dia em que escrevo estas linhas vi no noticiário da televisão
manifestações de ódio religioso numa área do Médio Oriente. As pessoas que ali
gritavam histericamente não manifestavam de modo algum inteligência e
discernimento mas tinham claramente, com verdade ou não, a sua razão tomada por
ideias de hostilidade. Nelas a mente (psyche, alma)
estava exaltada em extremo, mas não se pode dizer que a multidão estivesse a
agir com racionalidade, no sentido superior que damos a esta palavra. No mesmo
dia, vejo a multidão num estádio de futebol vibrar com o que se passava no
relvado. Este ânimo não é eticamente reprovável mas não se pode dizer também
que é inteligente. E na verdade, se manipulada, essa exaltação pode
transformar-se rapidamente em selvajaria e violência. Os “holigans”
são prova do que pode fazer a exaltação do pensamento, que dá origem ao
sentimento. É nos cérebros que se formam ideias de simpatia ou antipatia em
relação a esta ou aquela equipa, a este ou aquele povo, e são os pensamentos
que fazem nascer os sentimentos que dominam a multidão. Eticamente condenáveis
ou não, estas formas de viver para a sua alma e para o seu corpo são formas de
orientação na carne. Não estou a dizer que o cristão não pode gostar de futebol
e vibrar por uma equipa ou pela selecção do seu país, mas que a vivência desse
espectáculo com sentimentos de inimizade, emulações, hostilidade, cólera, por
exemplo, mostra o seu carácter “carnal” Gálatas 5:19/21.
TRADIÇÕES E LEIS
Saulo de Tarso, o fariseu, era uma boa
ilustração, antes de se tornar cristão, do que é viver segundo o pensamento
carnal. É o crente temente a Deus que “respira ameaças” contra os cristãos,
porque lhe parece que essa seita blasfema contra Deus. Podia dizer-se que Saulo
é um homem coerente. É fariseu e está convencido na sua própria mente (razão)
de que conhece a verdade, que sabe o que é certo e errado acerca de Deus, por
isso quer livrar o mundo dessa peste, desse mal, que é o Cristianismo nascente.
Na sua perspectiva, trata-se de uma luta do Bem (representado na sua facção)
contra o Mal (representado pelos cristãos). Não devemos ser fiéis à nossa
própria consciência? Ora a consciência de Saulo, formada no Judaísmo farisaico,
lavava-o a ver nos cristãos inimigos de Deus. O Cristianismo surgia aos olhos
do fariseu como uma corrente perigosa, que desprezava as tradições e as leis, e
para o homem na carne umas e outras são indispensáveis. O homem religioso,
fariseu ou de outra religião, vivendo “segundo a carne”, é radical porque
precisa de verdades “palpáveis”, afirmações muito concretas, nada de
meios-termos. Tudo tem de ser cumprido escrupulosamente. A parábola do Bom
Samaritano, que Jesus contou, denuncia esse tipo de religião do “homem segundo
a carne”. O sacerdote o e levita passam e não socorrem o homem que fora
assaltado e jazia quase morto. O que eles fazem, vendo o ferido e passando ao
lado, fazem-no para não ficarem impuros caso o homem estivesse morto. Ficariam
impedidos de desempenhar as suas funções no templo Números 19:13/14.
O samaritano também, em princípio, aceitava o livro de Números (Os samaritanos
só aceitavam os cinco primeiros livros da Bíblia), mas a compaixão levou-o a arriscar
a sua pureza. A parábola condena os homens que põem as regras, mesmo quando
sagradas, à frente do próximo. Lucas 10:25/37.
Aliás, um episódio também do Evangelho de Lucas, em que se pode ver igualmente
sério aviso à mesma tendência de pôr as leis à frente do acolhimento da pessoa
é o que tem como protagonistas as irmãs Marta e Maria Lucas 10:38/42.
Marta está ocupada com muitas coisas mas Maria escolheu a boa parte: escolheu dar atenção
pessoal, ouvir, o hóspede que estava em sua casa. A generalidade das pessoas
vive em obediência a padrões de pensamento e sentimentos que encontrou na sua
família ou a que aderiu, mesmo que a maioria, felizmente, não tome todos os
dias atitudes radicais.
O que leva à preferência por regras e
tradições é o medo que as pessoas têm do caos, e Jesus, apresentando-se como o
Messias que põe em questão esse modo de viver, é um perigo. Também Pedro, o
pescador, teve medo de caminhar sobre o mar. Mar que representa na simbólica
judaica a insegurança total. Pedro sabe que no mar a pessoa afoga-se. O homem,
no estágio em que Pedro então se encontrava, habituou-se a um sistema de
pensamento, associou esse sistema à segurança, e tudo quanto ameace mexer com
tal sistema faz nascer nele o medo. Nas religiões e na política, a
predominância desta orientação carnal tem como consequência a dificuldade em
aceitar a mudança. A nível popular conhecemos esta reacção: “nasci nesta lei e
nela vou morrer”. A “lei” é a religião dos seus pais, e quem assim fala,
geralmente, não tem argumentação forte em favor dessa religião, senão apenas o
facto de ser a religião que aqui encontrou. Os adversários de Jesus também lhe
diziam, para recusarem a sua mensagem: “Somos filhos de Abraão!”, como que a
dizerem-lhe: “Seguimos a religião de Abraão!”. Mas Jesus respondia: Se vocês fossem
filhos de Abraão, faziam aquilo que Abraão fez! João 8:39. Ora
Abraão é o homem que se destaca por obedecer à chamada que recebeu de Deus.
“Partiu, sem saber para onde ia” Hebreus
11:8. Abraão é o homem que rompe com a segurança, que aceita a mudança, que
dá o “salto da fé”.
NA BUSCA DE PODER E GLÓRIA
Na orientação “segundo a carne”, o homem
busca o poder e a glória. Justamente porque se sente inseguro, porque tem medo
da vida, busca ter poder. Jesus denunciou essas pretensões de poder e glória
nos chefes religiosos do seu tempo: Na cadeira de Moisés estão sentados os escribas e fariseus.
Observai, pois, e praticai tudo o que vos disserem; mas não procedais em conformidade
com as suas obras, porque dizem e não praticam. Eles atam fardos pesados e
difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com o
dedo querem movê-los. E fazem todas as obras a fim de serem vistos pelos homens
Mateus 23:2/5.
Buscavam poder e glória. De outra vez disse: Sabeis que os que julgam ser príncipes das
gentes, delas se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas:
Mas entre vós não será assim. Antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal. E qualquer que entre vós quiser ser o
primeiro, será servo de todos. Porque o Filho do Homem
também não veio para ser servido mas para servir e dar a sua vida em resgate de
muitos. Marcos
10:42/45. Dirigentes religiosos e dirigentes políticos, ou mesmo qualquer
um que não se pode considerar dirigente seja do que for, mas vive a nível “da
carne”, procura impor-se, dominar, mandar. Quando duas pessoas entram em
relação, não é difícil perceber que desde o primeiro encontro começam por
se “medir” para saber quem é que manda e quem deve sujeitar-se. Não são apenas
os chimpanzés, nem os leões, nem os elefantes, nem outros animais irracionais
que, quando se encontram, têm de decidir quem é o chefe: essa exigência é mais
subtil entre os humanos, mas faz-se também. O mais forte entre os humanos
impõe-se, pode não ser pela força física, mas pela astúcia, pelo dinheiro que
possui, pelos apoios que tem, pela arte de seduzir, pela intriga. Em algumas
igrejas até há tentativas de dominar por aparentar maior santidade! O domínio
do homem sobre a mulher é resultado desta forma de viver segundo a carne: os
textos bíblicos que alguns usam para justificar o domínio são astúcia
inconsciente. No sistema de pensamento mais generalizado, com mais de cinco mil
anos de história, a orientação é esta: Todo o homem que encontramos é em
princípio um inimigo e se não dominarmos o inimigo seremos dominados por ele.
“Quem o seu inimigo poupa, morre-lhe nas mãos”. É a vida segundo a carne que
explica, pois o domínio do homem sobre a mulher, o colonialismo, o
esclavagismo, as formas de exploração do homem pelo homem, o autoritarismo nas
Igrejas. Quando muito, só se poupa o fraco, o pobre diabo que não é ameaça. Um
cínico disse de um homem que morreu: “Era tão pobre, tão destituído de méritos,
tão apagado, que nem sequer tinha um inimigo”. Não é caso para procurarmos
fazer inimigos, mas dá para perceber que a vida dos seres humanos pode ser
dolorosa, e isso quando o homem em geral inscreve nos diversos sistemas de
pensamento ideais muito nobres. A nível da ideologia escrita há ideais muito
belos – mas na prática descobre-se como tais ideologias podem ser monstruosas.
Um dia, ainda existia em Portugal a ditadura corporativista, um amigo nosso, na
Suíça, disse-nos: “Por curiosidade, escrevi ao vosso Secretariado Nacional de
Informação pedindo que me enviasse algum texto sobre o Estado Novo. Mandaram-me
e fiquei espantado: aquilo no papel é maravilhoso”. Sim, no papel. O
papel consente tudo. O capítulo 7 da Carta aos Romanos diz: o homem pode
desejar fazer coisas boas, mas é o mal que acaba por fazer.
PENSAR E AGIR
Não é por falta de ideias elevadas que a
humanidade tem problemas. Na filosofia, na política, na religião, há sistemas
cheios de atracção, cheios de lógica, muito generosos. O mal é que não são
aplicados. Um homem bem intencionado que conheço tem o
sonho de publicar um livro que está a escrever e que, na sua opinião, tornará
tão evidente a existência de um Deus Criador que, por assim dizer, obrigará
“todos os homens de boa-vontade” a verem a humanidade como uma família de
irmãos e de irmãs e a tratá-los assim. Esse homem é uma pessoa simpática, mas
está a ser demasiado confiante na sua capacidade de converter os homens. A
conversão das pessoas ao Deus Supremo não se faz com mais uma elaboração
teórica, embora, obviamente, seja da maior necessidade que nos aproximemos de
Deus com inteligência. Contudo, a prova imediata de que as “demonstrações
científicas” ou “demonstrações filosóficas” da existência de Deus têm uma
influência mais do que reduzida é que há séculos que são publicados trabalhos
com “provas infalíveis” da acção amorosa de Deus – e nem por isso se pode dizer
que sejam muitos os que põem em prática os valores da fé. Mesmo dentro das
Igrejas não é difícil encontrar homens e mulheres que pregam e ensinam
comportamentos elevados, mas todos os dias os desmentem com suas vidas. Não estou
a falar de falhas que os próprios lamentam e de que se arrependem, mas de frias
traições ao Evangelho. E provavelmente todos os dias pessoas humildes, que
nunca precisaram das provas da existência de Deus, actuam com elevação. O que
acontece, e em certo sentido estamos a repetir-nos, é que na maior parte dos
casos as doutrinas, os princípios, os valores que são anunciados – na política,
na filosofia, na religião – são meros sistemas de pensamento que servem como
uma veste que a pessoa põe sobre si, mas sem ter alguma coisa de ver com o
“coração” do seu autor. Um político rodeia-se de uma comissão que o ajudará a
escrever o seu programa eleitoral. Cada pessoa da comissão dá a sua sugestão,
talvez com sinceridade, sobre medidas que devem ser postas em prática se o
político for eleito. Mas as ideias sinceras não têm nada de ver com o próprio
candidato e assim, se eleito, ele actuará sem ter em conta as promessas
eleitorais. Um pregador prepara o seu sermão. Fechado na sua biblioteca, busca
neste autor, naquele, ideias que tornam atraente o sermão. Mas as ideias pouco
têm de ver com o pregador, ou saem-lhe apenas da cabeça, como um dramaturgo
inventa um discurso para uma personagem piedosa – e o que é dito será ouvido
pela assembleia com a atenção com que se ouve um poema.
Sabemos o que fez e disse Jesus; o que
disse Paulo de Tarso; o que disse o vidente de Patmos; mas sabemo-lo como
sabemos o que disse o rei D. Dinis ou o que disse Pedro I do Brasil: são coisas
da história, do passado, de outros, que constituem um saber e pouco mais do que
isso. Quando a nossa acção se faz de conhecimentos desse tipo pode inspirar-nos
uns traços de ética, um interesse religioso, uma estética – mas dificilmente
nos transforma. Há pouco, numa intervenção, um pastor brasileiro dizia que o
fracasso de uma Igreja mede-se pela ausência nela de fraternidade entre os
crentes. Tem toda a razão – embora nas Igrejas se proclame que somos irmãos e
irmãs; os cultos são fastidiosos – embora os hinos falem muito de alegria; a
mobilização dos crentes é quase nula, ainda que se proclame a evangelização
como a Grande Comissão. A vida segundo a carne é inclinação para a morte Romanos 8:6.
VIVER NO ESPÍRITO
A alternativa à vida segundo a carne é a
vida segundo o Espírito. Mas haverá vantagem em procurar alternativa? O homem
segundo a carne sente que sim, só não vai muito longe na busca da alternativa
que lhe é proposta no texto porque a alternativa apresentada lhe parece um
disparate, uma loucura. São Paulo comentou: A palavra da cruz é loucura para os que perecem. I Coríntios 1:18.
Na verdade, o homem carnal procura sempre alternativas aos seus sistemas de
pensamento – e acaba sempre por criar mais um novo sistema de pensamento, mais
doutrinas, mais dogmas, que combatem outras doutrinas e outros dogmas. Mas a
adesão que o Novo Testamento requer não é a doutrinas e a dogmas mas a uma
Pessoa, Jesus Cristo, que só conhecemos segundo o Espírito 2ª Coríntios 5:16.
Se conhecemos Cristo segundo a carne, limitamo-nos a fazer do seu Caminho
apenas mais um “ismo” na História das Religiões. Tal como quando um sistema político,
posto em prática, mostra-se ruinoso para a sociedade e pensadores sérios fazem
nascer um outro “ismo” em alternativa. Mas esta alternativa acaba por causar
tanto sofrimento como o que existira antes. Um sistema religioso revela-se
opressivo e desumanizante, e os homens criam uma
alternativa, mas também aí a alternativa acaba por causar sofrimento e impede o
desenvolvimento do homem. Vê-se isso com a história do Cristianismo. Nasceu
para denunciar a religião formalista e opressiva dos judeus e tem passado, ao
longo de dois mil anos por inúmeras fases de formalismo e opressão.
O que o homem pode encontrar como
resultado das suas buscas – os seus projectos, as suas ideologias, as suas
religiões – mostra-se sempre frustrante. Isso não significa que tudo o que o
homem produz seja inútil ou que tudo é inútil ao mesmo nível. Há produtos do
pensamento humano que são generosos e acabam mal ou de forma frustrante porque
é da sua natureza assim acabarem. E há produções humanas que são já à nascença
expressões de maldade. Reconheçamo-lo: há ideologias e religiões piores do que
outras. Temos de viver com pensamentos – mas com a certeza de que todo o
pensamento humano tem de ser confrontado constantemente pela forma alternativa
de viver – que é viver segundo o Espírito.
A alternativa a “viver segundo a carne”
é simples, tão simples que, ansioso como o ser humano é pela complexidade, tem
dificuldade em aceitá-lo. Lembramos a história de Naamã, o chefe dos exércitos
da Assíria que ficou leproso. Foi aconselhado a consultar o profeta Eliseu e
seguiu para Israel, mas Eliseu mandou-o lavar-se sete vezes no rio Jordão e
Naamã achou a ideia doida ou simples demais. Para mergulhar num rio teria
ficado na sua terra. Um criado foi sensato: Se o profeta tivesse exigido algo difícil não o farias?
Então porque te recusas a fazer uma coisa simples? 2º Reis 5:10/14
Naamã seguiu o conselho, mergulhou no Jordão e ficou limpo.
ALGUNS SEGUNDOS PARA A MUDANÇA
Não é preciso fazer nenhum curso
complicado para a pessoa mudar da orientação segundo a carne para a orientação
segundo o Espírito. Alguns cristãos, pensando no que aconteceu no Pentecostes,
quando os discípulos receberam o dom do Espírito Santo, pensam que é preciso
esperar um tempo até que se opere um milagre. Pensam alguns em jejuns, em
longos tempos de oração e súplicas para que o Espírito venha. Mas há um ponto
que deve ser realçado: o Espírito Santo já foi dado, justamente no primeiro
Pentecostes cristão. Todos os que confessam com sinceridade que Jesus Cristo é
o Senhor, já são habitados pelo Espírito I Coríntios 12:3.
O sobrenatural já está no crente, ainda que a opção do crente por viver segundo
a carne impeça o Espírito de dirigir. Agora, o crente sente a insatisfação, que
é sinal de estar a viver na luta entre a carne e o Espírito Romanos 8:7. Se
fosse complicado alcançar a via do Espírito, Deus seria injusto e o apóstolo
Paulo pouco sábio. Deus seria injusto porque daria oportunidade só a alguns, os
que encontrassem um professor hábil para os ensinar ou tivessem tempo e
dinheiro para seguir algum retiro. Há dias, uma senhora disse-me: “Estive num
retiro espiritual durante quinze dias com um guia preparado no movimento
carismático e vim de lá cheia de felicidade”. Era evidente a alegria da
senhora. Mas as pessoas mais pobres, que não têm, como esta senhora, quinze
dias para se afastarem dos seus deveres familiares ou profissionais, nem
dinheiro para pagarem a estadia na casa de retiros? E Paulo, que faz tantas
referências à vida segundo o Espírito, não devia ser mais concreto, dizer em
pormenor em que consiste isso?
Insisto: viver segundo o Espírito é
simples. Basta renunciar aos objectivos da vida segundo a carne. O homem
segundo a carne, como vimos, é o homem do sistema de pensamento, das leis, das
tradições - viver segundo o Espírito é deixar de referenciar tudo a um sistema,
mas ficar aberto à novidade, àquilo que o Espírito vai trazendo à nossa vida.
Entregar a nossa vida ao Espírito é entregá-lo à liberdade: O Senhor é
Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. 2ª Coríntios 3:17.
Deixar de querer viver exclusivamente segundo as directivas da nossa razão, de
um sistema de pensamento que herdámos da família ou a que aderimos, e passar a
estar atento ao que o Espírito de Deus diz ao nosso espírito.
Não vimos nós que o “homem segundo a
carne” vive em busca de poder e glória? Pois viver segundo o Espírito é também
renunciar ao poder e à glória. Colocar-se na vida como um servo Marcos 10:45. Não
ter a obsessão de um novo conjunto de regras, de um discurso ideológico fechado
(os gregos
buscam sabedoria, I Coríntios 1:22)
mas assumir-se como Abraão, o peregrino, partindo à aventura com Deus.
DESPOJAMENTO EM CRISTO
Conclui-se que a vida segundo a carne é
a vida a nível natural e que a vida segundo o Espírito é a vida a nível
sobrenatural. O homem será naturalmente egoísta, mau, lobo do homem, e precisa
de “morrer” e nascer de novo em Cristo. Essa interpretação tem muitos textos
bíblicos a apoiá-la e é a mais adoptada pelo Protestantismo – mas julgo que
essa visão negativa, muito calvinista, do “homem natural”, que pessoalmente
adoptei desde a minha juventude, deve ser repensada. O Catolicismo tem uma
concepção menos negativa do homem (semipelagianismo), assim como as Igrejas
Ortodoxas, o Anglicanismo e o Metodismo (arminianismo). Observo também que o
movimento Quaker fala mesmo da “centelha divina que
existe em cada homem” e talvez por isso tem uma admirável acção em favor da paz
e da amizade entre os povos. Mais importante do que especular se o homem é um
ser que nasce naturalmente mau ou nasce bom é percebermos que aquilo que nos
leva a tornar infeliz a vida são atitudes ou valores adquiridos, são como que
“armas” de que nos munimos para a “guerra da vida”. No fundo, os “saberes” que
vou organizando sobre a vida, incluindo este “saber” que o homem é um ser
depravado (Calvino), torna-se um saber de homem carnal I Coríntios 1:26.
E a libertação acontece quando nos despojamos dos nossos “saberes”. Em Cristo
eu terei de me despojar de tudo o que eu acreditava ser “sabedoria”, porque, na
verdade, a única sabedoria que conta é a de Deus Daniel 2:20. Mas a
sabedoria de Deus não se faz coisa, não se faz código que eu possa manusear.
Ela é sempre o mais além, e enquanto caminho nesta dimensão da vida eu conheço
apenas “em parte”
I Coríntios 13:9.
A causa de muitos dos fracassos das Igrejas e dos obreiros deve-se sem dúvida
ao facto de a sua preocupação maior ser apresentarem-se diante dos homens com “sabedoria carnal”
2ª Coríntios 1:12
e não se limitarem a ser servidores da “sabedoria de Deus”, que sempre pode ser
objecto das nossas petições Tiago 1:5, mas
nunca do nosso orgulho. O trabalho da teologia não é dizer o que Deus e o Seu
mundo são, mas afastar os saberes errados que sobre Deus e o Seu mundo foram
sendo construídos.
HABITADOS PELO ESPÍRITO
A promessa que Jesus fez aos seus
discípulos foi de que, após a sua ascensão, o Pai enviaria o Espírito Santo.
Chama-lhe o Espírito de verdade, que os discípulos conheceriam “porque habita
convosco e estará em vós” João 14:17. Não
temos que O procurar fora de nós, mas dentro de nós. Isto não significa que o
Espírito esteja aprisionado em nós, porque Ele é o Espírito de Deus e Deus está
em todo o lado. Mas é preciso acentuar este ensino do Novo Testamento da
presença em nós do Espírito de Deus, para que a nossa relação com Deus se não
veja apenas como uma relação de busca do Todo-Poderoso que está algures “lá em
cima”, mas é também o encontro com o Deus mais íntimo que um amigo, o Emanuel,
Deus connosco.
Viver no Espírito é viver numa comunhão
tranquila com o Espírito de verdade que nos habita. É portanto um caminho
místico, de atenção ao mais próximo de nós, e não mais um caminho de leis, de
regras, de rituais exteriores. A exterioridade só merece ser exercida se não
for obstáculo à acção do Espírito. É por isso que entre os Quakers
não há um conjunto de artigos de fé escritos ao qual todos os crentes se devam
submeter nem uma liturgia fixa que se deva cumprir. E no entanto há profunda
harmonia entre eles, porque valorizam acima de tudo a comunhão no Espírito.
O misticismo não está isento de perigos,
porque o místico é como um rio que se aproxima do mar. Num momento, o rio sente
tanto o sal do mar que chega a pensar-se oceano. Por isso Deus providencia a existência
da Palavra escrita. Não é uma lei que a Igreja consulta, mas a margem que
limita. O que o Espírito de verdade nos diz tem eco na Escritura ou não é
palavra divina. O Espírito não deixa de falar, mas a sua fala não contradiz o
que já foi inspirado; as coisas novas que diz são novas apenas na aplicação dos
casos, porque a vontade de Deus está formada desde o começo dos tempos.
Na comunhão com o Espírito, o homem será
guiado pacientemente, mas com humildade não saberá mais do que convém
saber Romanos 12:3,
isto é, não se apresentará com sabedoria humana perante o mundo, mas viverá da
sabedoria de Deus. O Protestantismo sublinhou o princípio da “Sola Scriptura” (é apenas na Escritura que encontramos a
revelação de Deus), e fez bem, porque a crença medieval de que o papa e os
concílios (a Tradição) são veículo da revelação salvífica trouxe dogmas,
doutrinas e práticas perturbadoras. Mas um perigo desse princípio protestante,
retirado do seu contexto histórico, é cair-se no fundamentalismo, que é a
pretensão de aceitar a Bíblia à letra. A prioridade dada ao Espírito Santo
corrige esse perigo. Deus revela-se ao crente, mas nenhuma revelação pessoal
contradiz a revelação canónica das Escrituras. A actividade principal do crente
é a oração – e o estudo da Bíblia, que é lida na comunhão do Espírito, é a sua
grande necessidade. Os que são guiados pelo Espírito encontram nas páginas da
Escritura a Voz do Bom Pastor.
AMOR, ARREPENDIMENTO E GRATIDÃO
O amor de Deus está derramado em nossos corações, pelo Espírito
Santo que nos foi dado Romanos 5:5. Não há
outra “pedra de toque” para se saber se um homem ou uma mulher está, de facto, habitado/a
pelo Espírito Santo do que o amor que ele ou ela manifestar. Qualquer que ama
conhece Deus 1ª João
4:7. Ama a Deus e ao próximo: Se alguém diz: Eu amo a Deus mas não ama a seu irmão, é
mentiroso. Pois, quem não ama o seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus,
a quem não viu? 1ª João 4:20. Mas
atenção: o amor de Deus foi derramado nos nossos corações. É dádiva: é o primeiro
fruto do Espírito Santo Gálatas 5:22. Não é
produto do esforço humano, é espontâneo. Alguns fingem amar, mas aquele que
sabe discernir espiritualmente conhece bem qual é o amor autêntico.
Quando o crente sente o amor de Deus
dentro de si, Deus amando através de si, toma consciência das suas faltas,
reconhece o seu pecado. O arrependimento que o discurso moralista e farisaico
não consegue, nasce naturalmente naquele que tomou o sabor do amor do Pai,
pronto a perdoar. O arrependimento não é uma boa obra que fazemos para
merecermos o amor de Deus, como crê o homem na carne religioso, mas é ele mesmo
o resultado do amor de Deus derramado no crente. Deus toma a iniciativa. Se nem
todos se arrependem é porque muitos rejeitam o amor de Deus. A Parábola do
Filho Pródigo Lucas
15:11/32, ilustra esse ensino. O filho perdido não
se arrepende por lhe terem chamado a atenção para o seu pecado ou por, por si
só, ter tomado consciência do seu pecado, mas o arrependimento veio-lhe de ter
tido consciência de que podia ir bater à porta da casa do Pai, onde havia
fartura de comida. Sabia que o Pai o receberia. Se o amor do Pai não fosse evidente
para o filho, este não teria chegado ao arrependimento. Se Jesus não se tivesse
manifestado como sendo o rabi que amava, Maria de Magdala não teria tido a
ousadia de se aproximar dele, não se teria arrependido e ficado grata,
tornando-se uma das mais devotadas das suas seguidoras.
Ao arrependimento segue-se a vida em
gratidão, e esta torna-se o sentimento central da vida. Não há discipulado
cristão feliz que não seja um discipulado fortemente marcado pela gratidão. É a
gratidão que leva a dizer: A vida que agora vivo, na carne, vivo-a na fé do Filho de
Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim
Gálatas 2:20.
Infelizmente, não é fácil ao ser humano
cultivar a gratidão. Temos a tendência de passar indiferentes pelas muitas
bênçãos que recebemos na nossa vida. Mas a alma crente tem de aprender com o
salmista e proclamar: Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim
bendiga o seu santo nome. Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças
de nenhum dos seus benefícios Salmo 103:1/2.
Um velho hino protestante exorta também:
Conta as
bênçãos, conta quantas são,
Recebidas
da divina mão.
Vem
dizê-las, todas de uma vez,
E verás
surpreso quanto Deus já fez.
Em Junho de 2006, esteve de visita a
Portugal, na qualidade de embaixadora da UNESCO, a actriz americana Mia Farrow. Numa entrevista a um canal da televisão portuguesa,
não faltou a pergunta indiscreta sobre os seus sentimentos quando do fim
desastroso do seu casamento com Wood Allen. Tranquila, a actriz de 70 anos respondeu que na
altura sofrera mas descobriu que mesmo acontecimentos dramáticos como esse
podiam concorrer para aprofundar o sentido da vida. Agora sente-se uma mulher
feliz e realizada. Não sei se Mia Farrow é cristã mas
a sua resposta mostra sabedoria. É preciso aprendermos a descobrir em cada
acontecimento os aspectos que concorrem para enriquecer a nossa personalidade e
tornar-nos mais felizes. A gratidão é a essência da felicidade. Estar grato a
Deus ou à Vida e “contar as bênçãos recebidas da divina mão” é o mesmo que
dizer: “Sou feliz”.
ESPÍRITO E EUFORIA
O movimento dentro das Igrejas que, com
maior visibilidade, a partir do século XVIII, tem procurado sublinhar a
necessidade de os cristãos terem a experiência da acção do Espírito Santo na
sua vida, tem sido, em geral, de muito benefício. Foi o movimento metodista de
Wesley; o movimento pentecostal; o movimento carismático mais recente. No
entanto, há entre muitos cristãos alguns exageros e os exageros têm, por vezes,
resultados perversos. Um dos exageros é querer fazer passar a ideia de que
“viver no Espírito” é sempre viver em estado de euforia, isto é, em grande contentamento
e animação. Aos que vivem em constante animação é costume chamar “entusiastas”,
vindo esta palavra do grego “en Theos”,
em Deus, salientando que a animação vem da presença de Deus nessas pessoas. Mas
é preciso lembrar que Deus é também Paz e a Sua presença muitas vezes traduz-se
numa grande serenidade no crente.
Não há nas Escrituras sinais de que a
euforia permanente exista, e a razão mostra que a verdade tem de ser diferente.
O que, por exemplo, lemos sobre São Paulo, no Livro dos Actos dos Apóstolos, e
o que dele lemos nas suas epístolas torna claro que ele é alguém que, no
essencial, vive “no Espírito”. Paulo diz de si mesmo: Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não
mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo, na carne, vivo-a na
fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim Gálatas 2:20.
Quando Paulo fala em “agora”, está a referir-se ao tempo que decorre desde a
sua conversão – e no entanto, não faltam textos escritos pela mão do mesmo
apóstolo em que ele está longe de se expressar com euforia, mas antes fala, sem
queixume, da sua fraqueza como homem, das suas lágrimas, do seu sofrimento, das
suas provações. Os discípulos, no dia de Pentecostes, ao receberem o Espírito
Santo, ficaram, sem dúvida, eufóricos, até levarem os seus detractores a
dizerem que estavam embriagados – mas essa euforia não esteve permanentemente
com eles, pois vieram horas de recolhimento, de dor mesmo, de sério confronto
com problemas concretos.
Pensemos também que os cristãos, como
todas as pessoas, têm de passar pela morte. Mesmo que vivam na maior segurança,
rodeados do maior bem-estar, chega o dia em que terão de ir “pelo caminho de
toda a terra” 1º Reis 2:2, uns
ainda jovens, outros menos jovens e alguns ainda com muita idade. É natural
então, quando o tempo da partida se aproxima, que as forças vão faltando, tanto
físicas como mentais. E que acontecerá àqueles que vivem no Espírito? O que tem
acontecido a grandes servos de Deus quando a doença toma os seus corpos é
manterem-se serenamente na submissão ao Espírito, e terminarem tranquilamente a
sua carreira. Nas horas do declínio, nem por isso deixam de ter a bênção de
Deus, mas já com voz fraca e corpo em sofrimento.
Faleceu há dias um irmão na fé, que foi
um leigo de grande dedicação à obra de Deus. Foi o que se chama um dirigente
leigo (presbítero), pregador, presidente durante um mandato da sua Igreja.
Tinha, ao morrer, 94 anos, e nos últimos três anos a doença minou-o muito.
Perdeu a vista e tinha problemas no andar, de modo que tudo quanto podia fazer
era telefonar aos seus amigos e irmãos na fé. E enquanto pôde falar ao telefone
foi um comunicador que inspirava alegria e tranquilidade nos seus
interlocutores. O seu corpo e mente (carne) sofriam o desgaste de uma vida
inteira, mas o seu espírito estava lúcido e serenamente em comunhão com o
Espírito de Deus. Um grupo de crentes da sua igreja, com o pastor, visitou-o
poucos dias antes de adormecer no Senhor e todos ficaram impressionados com a
firmeza da sua fé. Na verdade, esse irmão vivia na fraqueza a força do Espírito
Santo e esperava tranquilo o encontro com o Senhor.
Mas nem precisamos de pensar nesses
tempos de fraqueza natural que estão perto da morte. Basta reflectirmos no
facto de que também os crentes têm aflições na vida e a doença de um ente
querido ou a separação pela morte há-de reflectir-se na sua vida. O Espírito
estará bem presente e desempenhará a Sua missão de Consolador, co-existente,
por certo, com a lágrima discreta, a mágoa furtiva. E também os crentes são
susceptíveis de um vírus de gripe, de uma pneumonia, que lhes tiram as forças e
os deixam fisicamente cambaleantes, não obstante o Espírito de Deus os habitar.
Também isso faz parte desta verdade: “No mundo tereis aflições” João 16:33. Só
quando o Reino de Deus chegar à sua plenitude, no fim dos tempos, é que o crente
viverá também na plenitude da sua libertação.
GUIADOS PELO ESPÍRITO
Foi pelo Espírito Santo que a Palavra de
Deus guiou o povo israelita (Números 24:2; 1º Samuel 16:13; Isaías 61:1; Ezequiel 11:5; Ezequiel 36:27; Mateus 22:43; Actos 1:16; 1ª Pedro 1:11; 2ª Pedro 1:21). Na
Nova Aliança, feita na cruz por Jesus Cristo, a promessa é de que a direcção do
Espírito é agora acessível a todos os crentes. Disto já falava o Antigo
Testamento quando ficou escrito: Este é o concerto que farei com a casa de Israel, depois
daqueles dias, diz o Senhor: porei a minha lei no seu interior, e a escreverei
no seu coração. E eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Jeremias 31:33. A
diferença fundamental entre o Antigo e o Novo Testamento era que, com a vinda
do Messias todo o crente nele passaria a receber a direcção interna de Deus. É
assim também que se entende a promessa feita em Joel 2:28: Derramarei o meu
Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os
velhos terão sonhos e os vossos mancebos terão visões. Essa promessa, concluíram os primeiros cristãos, cumpriu-se no dia do
primeiro Pentecostes cristão Actos 2:1/11.
Jesus confirmou a promessa anunciada
pelos profetas do Antigo Testamento e anunciou que depois da sua “ida para o
Pai” os discípulos seriam habitados pelo Espírito, que lhes ensinaria todas as coisas
João 14:26. A
Igreja primitiva actuou com a convicção que o Espírito a guiava. O Livro de
Actos conta-nos este episódio significativo: Paulo e seus companheiros viajavam
uma vez para proclamar o Evangelho na Frigia e na província da Galácia.
Aparentemente planeavam pregar na Ásia mas, diz o autor do livro, foram impedidos
pelo Espírito Santo de anunciarem a Palavra na Ásia Actos 16:6.
“Sim”, objectarão alguns, “mas isso
deu-se com Paulo, que tinha uma chamada especial”. Não encontramos
fundamente bíblico para tal ideia. O Espírito é para
toda a Igreja, para todos os que são chamados filhos de Deus. É o próprio Paulo
quem o diz: Todos
os que são guiados pelo Espírito, esses são filhos de Deus Romanos 8:14. Como
todos os que crêem são filhos de Deus João 1:12, segue-se
que a todos é dada a oportunidade de serem guiados pelo Espírito.
É menos difícil do que pode supor receber
a orientação do Espírito de Deus. Já lembrámos que o ser humano é
tridimensional – corpo, alma e espírito. É no nosso espírito que recebemos a
comunicação do Espírito de Deus. Ou seja, não é de uma forma material, física,
através dos ouvidos ou através dos olhos, que o Espírito nos guia. Nem é
através da alma (mente, sentimentos), mas pelo espírito. Não é pensando muito,
pensando melhor, que recebemos a orientação do Espírito, mas é adoptando uma
atitude receptiva.
Muitos de nós certamente já tivemos esta
experiência: estávamos preocupados com um problema na nossa vida e por muito
que pensássemos não encontrávamos solução. Orámos, meditámos, mas nada
nos mostrou uma saída. Então, parámos de pensar – e subitamente surgiu-nos uma
ideia que, sentimos bem, ultrapassava-nos. Não desprezamos a razão humana; não
dizemos inútil a reflexão sobre os nossos problemas, mas defendemos que há uma
luz diferente que nasce no silêncio e que é mais forte do que nós. Não temos o
direito de dizer aos outros: “Esta palavra que digo veio-me pelo Espírito
Santo”, porque humanamente nem sequer podemos provar nada, mas modestamente
enchemo-nos de alegria porque percebemos que não se trata de sabedoria nossa.
Quando ouvimos um sermão ou uma
conferência; quando lemos um livro ou um artigo e sentimos que estamos diante
de algo verdadeiramente inspirado, acontece-nos o mesmo que aos discípulos de
Emaús que caminharam com o Senhor na primeira Páscoa. Já em casa, depois do
Partir do Pão, eles disseram: Porventura não ardia em nós o nosso coração quando, pelo
caminho nos falava e quando nos abria as Escrituras? Lucas 24:32.
Outra vez Paulo e outra vez em Romanos 8:16: O mesmo Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.
FILHOS POR ADOPÇÃO
Os dois modos de andar na vida, de que
nos ocupámos hoje, podem ser ilustrados com a analogia que se segue. Um jovem, órfão
de pai e mãe, trabalha já há alguns anos para um casal generoso. Nenhum mérito
distingue esse jovem, mas um dia o patrão diz-lhe: “Eu e a minha mulher
gostávamos de te adoptar como filho”. O jovem aceita com alegria e, cumpridas
as formalidades, passa a viver com seus pais adoptivos, não deixando contudo de
manter o seu emprego. Continua a ser a mesma pessoa, mas agora é filho e isso
faz a diferença.
Os que nasceram numa família religiosa,
cumpriram as regras e confessaram as doutrinas de uma Igreja, mas vieram a
fazer uma entrega pessoal a Jesus Cristo sabem qual é a diferença entre ser
apenas empregado de um patrão ou ser filho – supondo, claro, que falamos de um
filho adoptivo grato e de um pai que inspira gratidão.
É ainda São Paulo, no mesmo capítulo 8
da Carta aos Romanos, que usa justamente o conceito de adopção para explicar a
situação do crente. Na versão francesa ecuménica da Bíblia, lemos assim em Romanos 8:15: Vós não recebestes
um espírito que vos torna escravos e vos conduz ao medo, mas um Espírito que
faz de vós filhos adoptivos e pelo qual nós clamamos: Abba,
Pai. O contexto mostra que é bem do Espírito Santo, Espírito de
Deus, que se trata.
Em Gálatas 4:5 fala
dos que Jesus Cristo reúne num povo como tendo recebido a adopção de filhos, e em Efésios 1:5 refere
a predestinação para
filhos de adopção, por Jesus Cristo.
Não é expressão de orgulho os cristãos
dizerem-se “filhos de Deus”, sabendo que o não são naturalmente mas por
adopção, mas o modo altivo como muitos religiosos, também cristãos, usam esse
título aconselha a não o proclamar, pois do mal devemos evitar até a aparência.
O Espírito de Deus concede dons para o
serviço de Deus I
Coríntios 12:4/30; Efésios 4:1/16
e é como servos humildes e actuantes que os cristãos se devem apresentar ao
mundo, não com títulos.
Figueira da Foz – Portugal
Julho de 2006
Estudos bíblicos sem fronteiras
teológicas