Parábola do administrador infiel e a actualidade (CC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

Lucas 16:1/8 (Na Bíblia de Jerusalém)

1 Dizia ainda a seus discípulos: Um homem rico tinha um administrador que foi denunciado por estar dissipando os seus bens. 2 Mandou chamá-lo e disse-lhe: Que é isso que ouço dizer de ti? Presta contas da tua administração, pois já não podes ser administrador! 3 O administrador então reflectiu: Que farei, uma vez que meu senhor me retire a administração? Cavar? Não posso. Mendigar? Tenho vergonha… 4 Já sei o que vou fazer para que, uma vez afastado da administração, tenha quem me receba na própria casa.

5 Convocou então os devedores do seu senhor um a um, e disse ao primeiro: Quanto deves ao meu senhor? 6 Cem barris de óleo, respondeu ele. Disse então: Toma tua conta, senta-te e escreve depressa cinquenta. 7 Depois, disse a outro: E tu, quanto deves? – Cem medidas de trigo, respondeu. Ele disse: Toma tua conta e escreve oitenta.

8 E o senhor louvou o administrador desonesto por ter agido com prudência. Pois os filhos deste século são mais prudentes com sua geração do que os filhos da luz.

 

 

1 - Introdução:

Esta parábola que Jesus contou, conhecida como a “ Parábola do Administrador infiel” como está na tradução da Jerusalém, ou “Administrador sagaz” na tradução dos Capuchinhos, ou “Mordomo infiel” na tradução de Almeida, ou do “Gerente astuto” na TEB, ou “Feitor desonesto” como está na BPT embora seja bem conhecida, não tem sido muito divulgada.   

Penso que há algumas dificuldades de interpretação, que começam logo com o título da parábola, embora o título não faça parte dos textos bíblicos. Esta primeira dificuldade começa logo com a tradução da palavra grega oikonomos como está nas cópias (dos manuscritos originais em grego) que chegaram aos nossos dias, palavra que não tem uma fiel tradução para a nossa língua nem para as outras línguas actuais.

Oikonomos era geralmente um escravo nascido em casa dos seus donos, pessoa da máxima confiança pela sua lealdade e sabedoria. Mas este certamente que era homem livre, mas pessoa da máxima confiança do proprietário, pois um escravo não seria despedido.

O dono dessa grande propriedade delegava a sua administração no oikonomos (deixemos estar assim a palavra em grego). Não sabemos ao certo, quais os poderes que o patrão lhe terá concedido mas, diz a parábola, que quando teve de prestar contas, decidiu chamar os devedores e reduziu as suas dívidas ao seu patrão, emitindo novas declarações de dívida, para que estes o ajudassem depois de perder o seu emprego. Portanto, deu o que não era seu e falsificou os documentos.

Mas o mais difícil de aceitar é que o proprietário dessa grande propriedade elogiou o oikonomos embora afirmasse que este era desonesto.

 

2 – Interpretações possíveis

Enquanto alguns destacam a desonestidade ou infidelidade do administrador dessa propriedade, outros dão realce à sua astúcia.

Vejamos as principais interpretações desta parábola.

 

2.1 Primeira interpretação (a mais vulgar)

Na interpretação de qualquer parábola, temos de atender ao pensamento principal a que se pretende dar maior ênfase e não a afirmações que são simplesmente acessórias e não fazem parte do objectivo principal da ideia que se pretende ilustrar.

Neste caso, o pensamento principal, a que o Mestre se refere é a astúcia ou prudência do administrador, como vemos no versículo 8. o senhor louvou o administrador desonesto por ter agido com prudência.

Assim, o exemplo do administrador é um incentivo a que os crentes sejam previdentes em relação ao seu futuro. Jesus até afirma que os incrédulos são mais prudentes que os crentes.

Mas então, o que fazer com Mateus 6:25/34? Não estarão estas duas passagens em nítida contradição?  

Ninguém põe em dúvida a astúcia do administrador. Mas, não é fácil dissociar a falta de honestidade nas práticas comerciais do administrador da sua astúcia.

Sem autorização do patrão, ele diminuiu as quantidades de óleo e de trigo que teria a receber dos devedores. Assim, à fraude, ele acrescenta a falsificação de documentos, mas mais difícil ainda é aceitar que o patrão o elogie. O senhor da propriedade considera o administrador como desonesto e ao mesmo tempo elogia a sua prudência, sendo ele próprio o principal prejudicado?!

 

Esta é a interpretação mais habitual desta parábola. Mas tem levado alguns a atacar o Mestre com a afirmação de que, se Jesus elogiou um administrador desonesto, então o Mestre defendia, ou pelo menos aceitava a teoria maquiavélica, que apareceu muitos séculos mais tarde afirmando que para se atingir uma finalidade boa por vezes é necessário utilizar métodos ilícitos.

 

2.2 Segunda interpretação

Nesta segunda possibilidade de interpretação, o patrão é um multimilionário, dono de muitas propriedades em terras distantes, que não tem possibilidades de dirigir todas as suas propriedades. Assim, arrendou as suas terras a vários administradores, com a condição de receber uma parte da produção. Admitimos que seria uma percentagem justa e realista.

Um desses arrendatários (o administrador desta parábola) em vez de trabalhar no campo, decide por sua vez subarrendar o terreno, tornando-se intermediário e cobrando juros exorbitantes aos trabalhadores das terras, para passar a viver da diferença entre o que teria de pagar ao dono das terras e o que recebia dos que nela trabalhavam.

Assim, não só enganava o seu patrão como explorava os trabalhadores exigindo um esforço adicional sem conhecimento do dono das terras.

Seu procedimento talvez fosse legal, mas certamente que seria eticamente reprovável.

Também a sua reacção foi legal. Os contratos foram celebrados entre o administrador e os trabalhadores sem interferência do dono dos terrenos. Assim como os novos contratos que foram redigidos por mútuo acordo entre as duas partes. Foram os próprios trabalhadores que escreveram, com a sua letra, como vemos nos versículos 6 e 8.

Nesta interpretação, Deus seria o patrão, o dono das terras que nos dá liberdade para actuar como desejarmos e nós o administrador desonesto que coloca o seu lucro acima dos direitos do nosso próximo, quando legalmente o podemos explorar. Mas chegará o dia em que o Patrão que está ausente, voltará, quando ninguém O esperar.      

 

2.3 Terceira possível interpretação

Não podemos esquecer de que vinte séculos nos separam da época em que Jesus apresentou esta parábola. O importante, para compreendermos esta parábola, será raciocinar no contexto histórico e cultural que lhe deu origem.

Todos nós temos pelo menos uma ideia das atribuições dum administrador, ou dum gerente, ou feitor etc. pois são palavras da nossa língua e dos nossos dias. Mas quais as atribuições do oikonomos? Este pormenor é muito importante para a compreensão da parábola. Ele podia negociar com os devedores. Mas quais eram propriamente as suas funções, seu poder de decisão e os limites que lhe eram impostos?

Também parece estranho que a redução da dívida não foi objecto duma sã discussão até chegar a um acordo com os devedores. Diz o 6 …senta-te e escreve depressa cinquenta. De onde veio esse valor dos cinquenta barris (a) de óleo?! O mesmo acontece com as oitenta medidas (b) de trigo!

Deve haver, certamente, algum pormenor bem conhecido nesse contexto cultural, que nem foi necessário mencionar aos primeiros destinatários desta parábola, mas que, vinte séculos mais tarde, nos fazem falta para compreendermos esta parábola.

 

Encontrei, na tradução da Jerusalém, a seguinte nota de esclarecimento:

Segundo o costume tolerado na Palestina naquela época, o administrador tinha o direito de conceder empréstimos com os bens do seu senhor. E, como não era remunerado, ele se indemnizava aumentando, no recibo, a importância dos empréstimos. Assim, na hora do reembolso, ficava com a diferença como um acréscimo que era o seu juro.

Quanto ao valor do juro dos empréstimos, encontrei as seguintes passagens: Êxodo 22:25, Levítico 25:35/37, Deuteronómio 23:19/20. 

Em todas estas passagens se verifica que não era lícito cobrar juros dos judeus pobres como era certamente o caso dos devedores desta parábola, embora este procedimento fosse costume tolerado nessa época na Palestina.

Possivelmente, parte do juro seria para o patrão e outra parte para o administrador.

Mas é também possível a seguinte interpretação:

No presente caso, ele não havia emprestado, na realidade, senão cinquenta barris de óleo e oitenta medidas de trigo. No entanto, no recibo constava cem baris de óleo e cem medidas de trigo, importância que deveria ser paga, incluindo os juros.

Será que esses juros eram para o patrão e para o seu administrador? Quais as percentagens para cada um? Seria todo o juro para ele, sem conhecimento do Patrão? Na verdade, como vimos, tudo isso era ilegal perante a Velha Lei.

Assim, colocando no novo recibo a quantia que na verdade tinha emprestado, ele simplesmente desistia do juro dos empréstimos, como estava escrito na Velha Lei.

O patrão certamente que ficou prejudicado por não receber o juro que esperava…. Mas que podia ele fazer?

Queixar-se do seu administrador por ter reduzido a dívida, transformando-o em herói por cumprir escrupulosamente e Lei de Moisés?

Despedir o administrador, transformando o herói em mártir pela sua fidelidade à Lei de Moisés, ficando ele próprio (o patrão) sujeito às críticas dos religiosos do seu tempo?

Certamente que o patrão elogiou o comportamento do seu administrador, para mostrar também a sua “espiritualidade” e sua lealdade à Velha Lei de Moisés.

 

3 – Conclusão

Alguns visitantes da minha página, já perguntaram a minha opinião sobre esta parábola. Já mais de uma vez peguei nisto e… acabei por desistir. Mas agora, ao ter conhecimento de certas notícias, pela TV e pela internet, que nos falam de casos de corrupção de ministros, ministras e outros altos cargos do governo dos vários países, lembrei-me desta parábola que não consigo explicar.

Noto nos nossos dias, a preocupação em fugir às responsabilidades, o que não é o mesmo que fugir às transgressões. É bem vulgar o caso de empresas do Estado que, para não explorar os trabalhadores, são privatizadas e depois entregues a subempreiteiros que as entregam a outros subempreiteiros. Assim, os trabalhadores terão de dar lucro a todos os intermediários, através do seu trabalho e baixos salários. Assim, todos os intermediários beneficiam duma diluição das responsabilidades em que todos eles beneficiam, menos quem trabalha.

Talvez também possa dizer que não apoio estes casos de corrupção dos nossos dias, mas tenho de agradecer a esses ministros e ministras as pistas que nos deram para tentar compreender esta parábola.

Aos que não me conhecem, devo dizer que estou em Portugal. Mas se estivesse em Moçambique, Brasil, Angola ou qualquer outro país, julgo que as pessoas seriam outras, mas o problema o mesmo. Em todos os países haverá quem pense: Ele está a referir-se a fulano ou fulana de tal…. pois há sempre quem se assemelhe ao Administrador infiel que ajuda fraudulentamente determinadas empresas para mais tarde se tornar director ou gestor dessas mesmas empresas.

Àqueles que me perguntaram qual minha interpretação desta parábola, tenho de lhes confessar que não sei. Julgo que haja informações importantes que eram do conhecimento de todos que ouviram esta parábola quando Jesus a apresentou, e por esse motivo não ficaram registadas, nomeadamente quais os limites de decisão do administrador. Mas aqui lhes deixo estas pistas de reflexão.

Afinal, esta e outras parábolas que Jesus contou há mais de vinte séculos, se fizermos a sua transculturação para a nossa realidade, continuam bem actuais.

 

Camilo – Marinha Grande, Portugal

Março de 2016

 

 

 

(a)     Esta expressão “barris de óleo” não é tradução rigorosa, mas uma transculturação. Nas cópias está cem bath de azeite. A tradução da TOB em francês, que é a TEB completa, tem a informação de que o “bat” corresponde a cerca de 21 a 45 litros. Segundo Joachim Jeremias, cem bat correspondia à produção de 146 oliveiras que nessa região em média produzem 120 quilos de azeitonas cada oliveira, que correspondem a 25 litros de azeite.  

(b)     Também segundo Joachim Jeremias “cem medidas” de trigo é tradução livre de cem kor, que corresponde a 364,4 hl ou sejam 364 400 litros. Nesses campos os cem kor seriam a produção de cerca de 42 hectares. A tradução da TEB completa com todos os comentários, também tem uma chamada em que indica o valor do kor como 210 a 450 litros. Foram as únicas informações que encontramos. 

 

Literatura Consultada:

Bíblias: TEB com comentários, TOB em francês, Jerusalém, Almeida, Capuchinhos, BPT.

Parábolas de Jesus de Joachim Jeremias. Tradução do alemão publicado pela Edições Paulinas.

Jerusalém no tempo de Jesus de Joachim Jeremias. Também das Edições Paulinas.

Comentário de Lucas por J. C. Ryle - Publicado pela Confederação Evangélica do Brasil - Rio

Comentário de Lucas por Leon L. Morris – Tradução do inglês pulicado pela Ass. Mundo Cristão – São Paulo

Comentário de Lucas por Fritz Rienecker – Tradução do alemão publicado por Editora Esperança. Curitiba. 

 

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