Homossexualidade: Uma perspectiva cristã (MC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

 

 

É interessante observar que a Bíblia, com destaque para o Antigo Testamento, condena severamente a homossexualidade masculina, punida com pena de morte por apedrejamento Levítico 18:22/28, mas no mesmo conjunto de livros que os cristãos chamam “Antigo Testamento” não se menciona sequer a homossexualidade feminina e no Novo Testamento a homossexualidade feminina é geralmente apontada com uma só referência Romanos 1:26, texto que permite até uma interpretação heterossexual.

Poderia dizer-se que essa diferença de tratamento significa que a homossexualidade feminina (lesbianismo) não existia na sociedade israelita e que, portanto, não havia necessidade de legislar sobre tal comportamento. No entanto, essa hipótese seria estranha, sabendo-se que a homossexualidade feminina era muito praticada e aceite entre povos da antiguidade, como o Egito, a Grécia e Roma, e ainda que houvesse apenas duas mulheres lésbicas em Israel já se justificava legislação sobre essa prática.

É possível que a diferença de tratamento se explique antes com o carácter patriarcal da sociedade que produziu os textos bíblicos. Os escritores bíblicos foram inspirados por Deus mas mantiveram a sua personalidade distinta, a sua mundividência, os seus conhecimentos. Numa sociedade tradicional, de tipo agrário, em que o homem tem um papel hegemónico, os escritores bíblicos, forçosamente, hão-de espelhar no que escrevem os seus próprios preconceitos. Ora é fácil de perceber que numa sociedade de hegemonia do masculino verifica-se em geral esta dupla maneira de lidar com o tema da homossexualidade: a forte rejeição da homossexualidade masculina a par de uma grande condescendência, senão mesmo simpatia, em relação à homossexualidade feminina. Essa dualidade verificou-se na sociedade portuguesa, onde a hegemonia do macho era mais acentuada há cinquenta anos num mundo de grande ruralidade, situação que, entretanto, foi mitigada, e deu surgimento a uma sociedade mais urbana. 

Uma perspetiva cristã deste ou qualquer outro tema não é apenas “uma perspetiva bíblica”. Não basta encontrar um texto bíblico e procurar segui-lo à letra, pois isso significaria que Jesus Cristo não trouxera nada de novo à humanidade. Mas João, o vidente de Patmos, dá testemunho desta palavra do próprio Cristo: Eis que faço novas todas as coisas Apocalipse 21:05. Com o Seu ministério, a Sua morte e Sua ressurreição Jesus veio inaugurar a Nova Aliança, de que falaram os profetas Jeremias 31:31/34. Tudo se tornou novo com a era cristã 2ª Coríntios 5:17.

 

Sábado e morte

A nova maneira de caminhar perante Deus pode ser ilustrada com o modo como Jesus atua em relação ao Sábado, tão escrupulosamente guardado pelo povo judeu. Transgredir em algum aspeto o Sábado era uma falta tão grave que devia ser castigada com pena de morte Números 15:32. Pois Jesus defende os apóstolos quando estes transgridem a lei do Sábado e afirma, falando de Si mesmo: O Filho do Homem até do Sábado é Senhor Lucas 6:1/5.

Os discípulos aceitaram bem esta palavra e por isso já no Novo Testamento vieram a festejar o 1º dia da semana como o Dia do Senhor (Domingo: Dominicus dies).

Outra transgressão da lei que o Antigo Testamento considera de muita gravidade é o adultério Levítico 20:10. Os adversários de Jesus, querendo forçá-lo a revelar-se como um rabi que se opunha à lei, trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério João 8:01/11. - Note-se, entretanto, que os falsos respeitadores da Escritura não trouxeram o homem com quem a mulher fora apanhada em adultério … Na sociedade patriarcal tradicional há uma atitude de cumplicidade tolerante em relação ao adultério masculino, mas de grande severidade em relação ao adultério feminino.

Pense-se na cena: a mulher colocada diante de Jesus está em pânico. Sabe que os adversários do rabi querem a sua morte por apedrejamento. Chegou a sua hora. Um dos fariseus dirige-se a Jesus: A Lei de Moisés manda que o adultério seja punido com a pena de morte. Tu, rabi Jesus, o que é que dizes? Se Jesus se limitar ao texto escrito, a mulher deve ser apedrejada até à morte. Jesus, porém, não dá uma resposta imediata. Com um dedo começa a escrever na areia. Não sabemos o que escreveu, mas percebe-se que não julga precipitadamente. Depois diz tranquilamente: Aquele de entre vós que nunca pecou atire a primeira pedra. Perplexidade entre os acusadores da mulher. Quem é tão puro que nunca tenha pecado? Jesus obriga os homens a confrontarem-se com a sua consciência. A começar pelos mais velhos, os acusadores vão-se afastando. A mulher poderia ter aproveitado a ocasião para fugir, ou sair sorrateiramente. Mas fica paralizada diante do rabi que ela percebe ter uma palavra a dizer-lhe. Essa palavra de misericórdia chega: Vai em paz e não peques mais. Jesus não trata o adultério com ligeireza, mas julga com misericórdia aquela que pecou.

Não é correto limitarmo-nos a citar textos das Escrituras para dizer como devemos julgar um comportamento. Pense-se, por exemplo, que Levítico 11 estabelece os tipos de alimento que os crentes da Antiga Aliança (Antigo Testamento) deviam consumir. Se obedecermos hoje à letra do texto da Lei não podemos comer coelho, nem porco, nem avestruz, nem lagosta, nem lampreia, nem camarão, entre muitos outros.

 

 A questão do escândalo

Jesus disse: É impossível que não haja escândalos, mas ai daqueles por quem o escândalo vier. Melhor lhe fora que lhe atassem ao pescoço uma mó de moinho e o atirassem ao mar do que escandalizar um desses pequenos. Lucas 17:01/02.

A partir deste princípio, o Evangelho compreende-se melhor. O Apóstolo Paulo escreve: Tudo me é lícito, mas nem tudo me convêm 1ª Coríntios 6/12. E noutra parte da mesma epístola dá esta orientação para cada cristão, homem ou mulher: Se o manjar escandaliza o meu irmão, nunca mais comerei carne 1ª Coríntios 8:13.

Este princípio pode levar a uma sociedade paralisada. Pensemos, por exemplo na palavra do mesmo São Paulo: Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos como ao Senhor Efésios 5:22. Como sair deste machismo sem escandalizar? Mas na mesma secção da mesma epístola não diz sujeita-vos uns aos outros ? Efésios.5:21.

Aliás, é preciso ter presente esta constatação fundamental: o próprio Jesus foi, com o seu ensino e a sua prática, um escândalo para muitos! (Veja-se em Marcos 6:13).

A questão está em quem se escandaliza e a razão por que se escandaliza. O Evangelho pode escandalizar, mas é nesse escândalo que o ser humano é liberto.

 

Manuel Pedro Cardoso

Figueira da Foz, Portugal – Janeiro de 2017