Arsénio Nicos da Silva (MC)

(Deverá “clicar” nas referências bíblicas, para ter acesso aos textos)

  

 

“O seu nome é associado a alguns dos mais espantosos e emocionantes acontecimentos deste século. O Rev. Arsénio Nicos da Silva será recordado nos tempos futuros”. -  Herman Norton

 

Há 165 anos, com a acção do médico e pastor presbiteriano Robert Kalley, começou, na ilha da Madeira, o movimento protestante português. O êxito da acção missionária do Dr. Kalley foi enorme e em poucos anos havia ali um número significativo de pessoas que abraçavam a fé evangélica. O Dr. Kalley ajudou-os a aprender a ler e a escrever e logo se tornaram leitores da Bíblia e seguidores de Jesus Cristo. 

Toda essa história está cheia de admiráveis situações de   que ilustram a transformação extraordinária que a Palavra de Deus opera naqueles que a aceitam – mas falaremos hoje apenas de um caso. Trata-se de um homem que se chamava Arsénio Nicos da Silva.

Embora os acontecimentos não tenham ainda sequer duzentos anos, a verdade é que não tem sido possível ainda encontrar elementos que nos dêem um conhecimento documentado sobre esse notável cristão. O que dele sabemos deve-se, quase exclusivamente, a Herman Norton, que publicou logo em 1849, pouco depois dos acontecimentos, o livro “Redord of the Facts Concerning the Persecutions at Madeira” (Relatório dos Factos Relacionados com as Perseguições na Madeira), livro que dá um testemunho digno de todo o crédito dos eventos e das pessoas neles envolvidas.

Não sabemos, por exemplo, o ano do nascimento de Arsénio Nicos da Silva ou o ano da sua conversão, mas estimamos que teria já perto de quarenta anos quando, pela primeira vez, se encontrou com o grande missionário Robert Kalley. Esse encontro ter-se-á dado por 1841 ou 42. Este Sr. Arsénio da Silva era um madeirense que tivera muito sucesso nos negócios, pois era um comerciante muito hábil e de grande simpatia, agradando muito aos clientes, não se sabendo em que ramo de negócio. Era um homem rico, casado, gostando muito de sua mulher, com quem tinha uma filha única. Com as qualidades de carácter que tinha, pode imaginar-se como amaria também a sua única filha. A madrinha desta menina era também uma pessoa rica e deixara no seu testamento uma boa fortuna à menina.

Um dia, a menina, adolescente, adoeceu gravemente. Chamaram vários médicos, mas a doença progrediu tão de pressa que os médicos recomendaram que rezassem á Virgem e aos santos para a salvarem, pois a medicina, informaram, já nada podia fazer. Então, no meio da aflição daquele pai católico, alguém falou no protestante Dr. Kalley, que já começava a ser bastante criticado pela sua acção evangelizadora, mas de quem se dizia ser um médico com grande competência. Há pessoas desesperadas que quando sentem a morte a rondar um ente amado até consultam bruxas, o que é condenável, porque não chamar o médico protestante? Chamaram-no e o Dr. Kalley veio imediatamente. Observou com todo o cuidado a menina, reconheceu que o seu estado era muito grave mas receitou medicamentos e por fim ajoelhou-se ao lado da cama da menina e orou a Jesus Cristo, pedindo a cura dela. O pai da doente assistiu a tudo com olhar atónito. Depois o Dr. Kalley levantou-se e leu uma porção da Sagrada Escritura que trazia consigo.

A menina, dentro de dias, estava fora de perigo e o pai dela, esse Arsénio da Silva, não sabia como agradecer a Deus ter a sua menina de volta. Embora soubesse que iria ser muito criticado por isso, Arsénio Silva no Sábado seguinte dirigiu-se a casa do médico presbiteriano e foi assistir ao estudo bíblico que ali se fazia com umas cinquenta pessoas. Nunca mais deixou de participar dos estudos bíblicos.

Nem a esposa nem a filha seguiram o exemplo dele, mas permaneceram no Catolicismo. Arsénio da Silva, porém, embora criticado por todos os antigos amigos, sendo mesmo agredido nas ruas, nunca mais voltou atrás. Em pouco tempo, devido ao seu amor à Bíblia e à sua cultura, era ele quem discursava perante o povo, com grande apreço de todos. Tornou-se cristão evangélico, e em 8 de Maio de 1845 foi eleito presbítero, quer dizer, oficial, da então formada Igreja Presbiteriana Portuguesa, a primeira congregação protestante em território nacional, e logo em seguida foi, com todos os outros crentes, que rondariam os dois mil,  e o próprio pastor, perseguido ferozmente. Muitos foram presos, muitos agredidos pela populaça, e por fim os que estavam mais em evidência tiveram de fugir em barcos ingleses que os acolheram. Arsénio da Silva foi um dos que fugiram e teve de deixar na Madeira, para nunca mais as ver, a mulher e a jovem filha que muito amava.

Fugido para as Ilhas Trindade, um grupo de setecentos dos primeiros protestantes portugueses viveu momentos de grandes dificuldades, com falta de casas onde habitar, falta de empregos, falta de comida. Como Arsénio da Silva fosse oficial da Igreja, e um homem que conhecia perfeitamente a Bíblia e tinha uma boa cultura, achou a Igreja Livre da Escócia, da qual os portugueses faziam parte, que o devia ordenar ao ministério e fazê-lo pastor dessa Igreja. Sublinhe-se a situação de desamparado em que se encontrava este pastor e a sua comunidade, mas todos procuravam manter-se fiéis ao Evangelho que haviam abraçado. O pastor Arsénio da Silva, provavelmente o segundo português a ser ordenado a este ministério (o primeiro fora João Ferreira de Almeida, tradutor da Bíblia) não esquecia a sua mulher e a sua filha, que estavam longe, na Madeira. Já no leito da morte, sem forças para escrever, veio a pedir a um irmão que escrevesse a sua mulher e a sua filha. “Mas que escreverei?  “Diga-lhes, respondeu o moribundo, para se lembrarem do que eu escrevi em cada uma das minhas cartas”. Cada uma das suas cartas, pois não deixara de escrever-lhes sempre que aceitassem Cristo como único Salvador.

Com a preocupação pela falta de condições para os portugueses, o dedicado pastor Silva embarcou para os Estados Unidos e procurou que a Sociedade Protestante Americana ajudasse de modo a que a sua congregação pudesse imigrar para lá e recebesse terras para cultivar. Era um tempo em que os Estados Unidos estavam a receber milhares e milhares de imigrantes europeus. Mas a vida trabalhosa que este Arsénio da Silva levara fê-lo adoecer gravemente já nos Estados Unidos e em pouco tempo este homem morreu junto de irmãos americanos, não dominando ele a língua inglesa.

Este servo de Deus amado por todos os irmãos e chorado por todos, já perto da hora da sua morte, citou para um irmão americano as palavras de Mateus 19:29. “Todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos ou filhas, ou terras, por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna”.

Morreu no dia 10 de Janeiro de 1849, sendo o seu funeral celebrado dois dias depois na Igreja Reformada Holandesa, com uma cerimónia em que oficiaram vários pastores, entre eles o pastor Herman Norton, secretário da Sociedade Protestante Americana, que falou da vida deste grande servo de Deus, mártir do Protestantismo português.

Note-se como foram numerosas as diminuições que este servo de Deus sofreu. Não é sempre assim na vida cristã. Há casos em que se repete a situação de Job. Job perdeu tudo num período da sua vida. O seu corpo chegou a um estado de sofrimento máximo, a sua família foi dizimada, perdeu os seus bens. Mas Job acabou vendo multiplicado tudo o que tivera antes. Noutros casos, como neste pastor madeirense, Deus cumpriu o prometido mas de outra maneira. Ele próprio sentiu que os seus irmãos e irmãs na igreja substituíram espiritualmente em amor e atenção cem vezes mais a família que perdera. Os que o conheceram disseram dele que era um homem calmo e feliz no meio de todos os problemas. Este é um aspecto que não podemos deixar de sublinhar: se uma igreja é verdadeiramente cristã, aqueles que a formam, que tudo deixaram para seguir a Cristo, encontram nos irmãos e irmãs a família que porventura perderam e Deus providenciará para que não lhes falte os bens necessários para viver. E não esqueçamos: quando temos um momento de sofrimento se estamos em Cristo, se o sofrimento vem por causa da nossa ligação a Cristo, ele mesmo nos levantará, nos dará a força do Espírito para a nossa luta. E no momento final da nossa vida, quando a morte aparecer com a diminuição total, a passagem ao grau zero das diminuições, estará connosco o Ressurrecto que nos fará participar da sua vitória sobre a morte! Aquele pastor madeirense, Arsénio da Silva, sorria na hora da sua morte porque ele sabia que a morte não é o fim e que o Deus de amor o esperava.

 

Para se ser cristão, é preciso aceitar pela vida fora momentos que são já pequenas mortes. Desde logo, a conversão, quando ela é verdadeira, é já uma forma de morte. No caso de Arsénio da Silva é um facto: esse homem, a partir do momento em que conheceu a Palavra de Deus, morreu para os ensinos religiosos que tinha até então. Herman Norton diz que ele deixou de se interessar pelas reuniões sociais que sua esposa muito apreciava, vida de salão, vaidades mundanas. Morreu para o mundo. E nesse aspecto, morreu também quando a esposa que ele amava não o acompanhou na sua fé, quando a filha não o acompanhou – foi perseguido e por fim teve de deixar até a sua terra e fugir para a terra alheia. Mas essas pequenas mortes do seu eu eram seguidas por pequenas ressurreições. Ele levantava-se sempre feliz e voltava à sua caminhada com Cristo. Então, no fim, quando a morte maior, quando surgiu a morte que iria destruir o seu corpo, para um dia receber um corpo celestial, chegou o momento supremo da caminhada cristã – o momento em que o crente conhece supremamente a vitória de Cristo. A Palavra de Deus deixa-nos esta exortação: “Sê fiel até à morte e dar-te-ei a coroa da vidaApocalipse 2:10.

 

Manuel Pedro Cardoso

Figueira da Foz, Portugal

Estudos bíblicos sem fronteiras teológicas